Apresentamos as mesmas questões para um conjunto de pesquisadores e ativistas sobre um tema inescapável de toda luta social: as ruas. O resultado dessa consulta TUÍRA publica em blocos de três comentários.

Abaixo seguem as reflexões de Alexandre Filordi (psicanalista e professor da Unifesp), Emanuela Castro (comunicadora feminista) e Raphael Escobar (educador social).

Qual o significado da rua para a mobilização e as lutas sociais no Brasil? Esse significado está mudando agora?

ALEXANDRE FILORDI

A rua é o território democrático por excelência. A rua reverbera os anseios por justiça social quando o “morro” desce, o caiçara sobe, o quilombola dança a ancestralidade humana, os povos das florestas celebram a pulsão da vida que transborda a urbanidade. A rua é a trajetividade política por excelência, pois a rua é coisa pública – res publica. A rua foi e sempre será a artéria viva das reivindicações contra as opressões e sujeições das elites, pois estas evitam as ruas, isolando-se delas em seus condomínios luxuosos. A rua agora está em estado latente. Preservarmo-nos da rua é essencial agora, contudo, para fazermos vibrá-la depois, com mais força ainda. Para mim, não é o seu significado que muda neste tempo de pandemia. O que está em jogo é maturar o desejo por mais-rua e, no instante preciso, retomá-la como cartografia de lutas por outros modos de viver, mais justos e menos opressores.

EMANUELA CASTRO

A rua sempre foi o espaço de disputa de posicionamento político e de projetos civilizatórios na humanidade. Seja nas cidades, nas comunidades rurais e nas florestas, os ativistas sempre ocuparam esses espaços para serem vistos e ouvidos, por meio de seus corpos, vozes, expressões e intervenções. Sempre marcados por grandes manifestações, revelava a insatisfação ou luta por direitos. Mas com a pandemia e a necessidade de isolamento social, esse estar no mundo mudou. A rua como espaço hegemônico de expressão e termômetro dos fenômenos sociais pode estar entrando em crise. Em quatro meses, ativistas de movimentos sociais e organizações sociais de luta por direitos, tiveram que se reinventar. A disputa da narrativa saiu das ruas do concreto e foram para as ruas da internet. O online nunca foi tão presente e a comunicação tão necessária. Agora a disputa de narrativas está ocupando as lives, grupos de discussão, produção de conteúdos nos blogs, com vídeos, imagem e áudios. O estar próximo agora é estar conectado. Mas conectado pelo coletivo e pra luta.  

RAPHAEL ESCOBAR

Historicamente a rua é um espaço para a luta. A rua traz em si a ideia de público e carrega nela as diversas camadas de conflito, pois o espaço público nunca foi apaziguador: ele mostra conflitos de classe a todo o momento. A rua é o espaço da greve, da manifestação, do uso de drogas, da desobediência civil, da derrubada de monumentos, da depredação de símbolos de poder e da disputa a fim de conquistar direitos sociais. A rua é a possibilidade de pautar politicamente como o Estado deve proceder. Logo, a rua é o espaço para cobrar e propor.

Não dá pra deixar de lado uma mudança forte, que vem acontecendo de anos para cá, da direita ocupando o mesmo espaço e tentando usar de estratégias similares: grandes manifestações, balões voando, carros de som. Isso pode estar esvaziando estratégias que antes eram boas opções, como gritos “Fora Fulano”, “Fora Sicrano”, ou até termos como democracia, saúde, entre outros.Acontece que com a entrada da direita na disputa da rua, parece que as discussões foram ficando rasas, muitas vezes ligadas a acontecimentos tão rápidos quanto a internet, não existindo reflexão ou criação de estratégias. Isso mostra a falta de um outro ponto importante da luta, que também é feito na rua: o trabalho de base.

Quais, na sua opinião, são os prós e contras de se ir às ruas hoje?

ALEXANDRE FILORDI

No momento, temos de inventar outras ruas: invadir sistemas; solapar caixa de e-mails de deputados, senadores, prefeitos, vereadores com reivindicações; bloquear e denunciar ruas virtuais racistas, sexistas, LGBTQIA+fóbicas etc; produzir ruas virtuais na globosfera denunciando as mazelas deste governo de extrema-direita mundo afora etc etc etc. A rua física deve ser desejada neste momento, porém, resguardada. Ir às ruas, agora, seria uma cumplicidade com os estratos mortíferos da pandemia; seria municiar o poder público com aquilo que ele mesmo não tem respeitado.

EMANUELA CASTRO

Nós, como ativistas, não podemos deixar de nos organizar e aproveitar as oportunidades para seguir na luta. Com toda cautela, ir às ruas hoje exige que tomemos um tempo para refletir e analisar a melhor estratégia para o contexto. Como aconteceu em Recife, com o caso de Miguel, que comoveu ativistas a se mobilizarem e ir às ruas contra o racismo estrutural e por pedidos de justiça. Neste caso, a indignação não cabia mais estar entre quatro paredes, era maior que o perigo em relação ao coronavírus. E, por esse motivo, respeito os que foram às ruas. Se a decisão é ir, que seja com poucas pessoas, mantendo o distanciamento social e com todos os cuidados possíveis recomendados pelos organismos de saúde. Sem colocar em risco ativistas que são mais vulneráveis ao COVID-19. Ainda assim, sou a favor de lançar várias frentes, provocando  outras formas de estar no mundo, e de incidir sobre a luta.

RAPHAEL ESCOBAR

Não sei se a questão é sobre ir ou não ir para as ruas, acho que é  sobre quem vai e como vai.
 Em meio a pandemia, é perigoso fazer aglomerações, logo não acredito que seja o momento de manifestações de 10 mil pessoas gritando “Fora Bolsonaro”. Acredito que seja a hora de poucos na rua, com intervenções pontuais contra símbolos de poder. Quebrar banco, pichar monumento, botar fogo em ônibus.. É hora de demonstrar raiva (como já anda acontecendo em alguns lugares) e de outros tantos continuarem seus trabalhos de base e a fortalecer os seus nessa época, distribuindo cestas básicas, marmitas, cobertores, e, junto disso, ir fazendo base, para que em um futuro não tão distante estejamos mais organizados.

O que pode ser feito fora das ruas neste momento?

ALEXANDRE FILORDI

Podemos engendrar afetos fora dos circuitos programados com os familiares, por exemplo. Precisamos aprender a quebrar as sujeições tempoespaciais do capitalismo: ficar com a família e conosco mesmo de corpo e alma já é algo revolucionário, potencializando afetos legítimos, autênticos e exclusivos. Precisamos aprender a desligar as TVs, os celulares, os computadores, a Netflix para ficarmos uns com os outros. A captura do sistema de dominação não abre mão da captura de nossos sentidos, afetos e sentimentos nem de nossas percepções. Este momento pode potencializar formas de sensibilização fora dos circuitos do comércio, dos modismos, dos fetiches.

EMANUELA CASTRO

Conectar pessoas para a luta e criar redes de solidariedade e empatia podem animar outras pessoas que estão fora da kombi. E por que não?! Aprender sobre um outro tempo, e cuidar umas das outras por grupos de whatsapp, através de áudios, músicas e escuta ativa. É hora de cuidar de quem cuida. Mesmo sem os abraços, é possível estar junto de quem faz ativismo lá no Sertão do Pajeú, que por causa do isolamento não está mais nas reuniões de grupos presenciais, mas precisa de alimento de força e luta para continuar sua batalha por melhores dias. Conectar é a palavra do momento, fazer a política micro, colocar seus corpos,  vozes, expressões a disposição nas ruas da internet. Não deixar passar nenhuma decisão da política institucional que venha interferir nos direitos humanos, sem deixar de dar sua opinião, sem deixar de se organizar para o enfrentamento. Formas simbólicas de estar na rua e demonstrá-las na rede. Ações filmadas e fotografadas com objetivo de difusão nas redes. Ir com interesse estético pode ampliar a difusão se acertar os desejos das pessoas. A rua como cenário das imagens ativistas atuais. Precisamos ser estratégicas/os e aproveitar essa oportunidade em meio ao caos que estamos vivendo. Sabe aquela flor que surge em meio ao asfalto? Precisamos de mais delas!

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Alexandre Filordi é educador, poeta e psicanalista. Atua na Universidade Federal de São Paulo.

Emanuela Castro é ativista do Fórum de Mulheres de Pernambuco e comunicadora social da ONG Casa da Mulher do Nordeste, feminista, agroecológica e humanista, jornalista e comunicadora social em Recife (PE).

Raphael Escobar é artista visual e educador social, trabalhando há 12 anos em contextos de vulnerabilidade social como Fundação CASA, Cracolândias e albergues. Participou da construção de coletivos como Sem Ternos e A Craco Resiste. Atualmente, compõe o coletivo Pagode na Lata (projeto que toca samba junto com os usuários da Cracolândia, em São Paulo, dentro do fluxo).

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