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Ariel Nobre – quando a pessoa se torna ativista

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista?

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Ariel Nobre

Pessoal e político

O ativismo, para mim, vem da necessidade de me sentir ouvido. Quando entrei no ativismo em 2013, eu pensava: “Não é pessoal, é político”. Mas depois, quando eu revisitei assédios de infância, pensei: “A quem queremos enganar? É pessoal também”. Hoje, minha maior missão como ativista e artista é balancear o que é pessoal e o que é político, assim como entender o que do pessoal vale levar do político e o que do político vale tratar e cuidar como pessoal. Então, acho que hoje ser ativista é isso: essa mediação interna-externa.

No Preciso Dizer que Te Amo, meu projeto de sensibilização contra o suicídio de homens trans, é um pouco assim: tudo é do âmbito privado. Escrever Preciso Dizer que Te Amo nas pessoas e nos lugares por onde passo pode parecer pessoal, e é, porque faço como uma auto-cura. Mas, ao mesmo tempo, a cura tem uma interface coletiva. Quando eu falo, uso minha experiência pessoal para convocar uma reflexão social sobre o suicídio dos homens trans. A pergunta que quero lançar é “eu me suicido ou sou suicidado?”. A lâmina da faca está apontada para o lugar errado – para nós.

E precisamos de outra separação que também dói: a separação entre homem e violência. Dói porque a gente não imagina a masculinidade sem violência. É um desafio criativo, não só para minha comunidade como para os homens em geral. É um desafio que tomo para mim enquanto homem trans porque também disputo o protagonismo de criar, para nós mesmos, novas referências positivas de masculinidades, conectadas com o mundo, a coletividade e a escuta, principalmente das mulheres – seja a mulher que eu fui, sejam as mulheres que estão à minha volta. Então, ao mesmo tempo em que é uma questão pessoal, é também uma questão coletiva. O ativismo, para mim, está nessa borda, nesse pressionar, nessa fricção entre público e privado, pessoal e coletivo.

Pessoa

Tem coisas que não faço mais por entender que já não preciso ou já não é estratégico fazê-las. Por exemplo, sinto que é muito cobrado das pessoas trans que contemos nossas histórias pessoais. Isso tem a ver com a mídia e com as expectativas sobre ser trans em nossa sociedade. Por muito tempo eu quis contar minha história, me apropriar dela e ganhar dinheiro com ela. Hoje já não quero, mas sinto que é uma necessidade de homens trans porque, como a gente não se vê, precisamos contar nossa história para nós mesmos e dizer “eu tenho história, este sou eu”. É uma necessidade narrativa de reconhecimento e de imagem. Mas hoje, como já sou considerado uma referência e já sou considerado ativista, tenho tentado questionar essa minha necessidade de expor minha imagem.

A questão que tenho pensado agora é como meu ativismo pode se tornar maior do que minha história. Não me interessa mais a minha própria história. Já saí de um nível de precariedade e estou em outro momento, inclusive reconhecendo privilégios. Reconhecer isso também faz bem para mim, para os meus e para meu ativismo. Então estou nessa nova fase de ir além da minha história.

Cultura

Por mais que tenhamos tido essa vitória recente no STF [Supremo Tribunal Federal], a transfobia é muito cultural. Foi um passo importante, mas a nossa vida continua. E o meu ativismo é muito no âmbito cultural. Eu não sei fazer controle social, por exemplo. Não sei quais são as esferas do poder. Tudo para mim ainda é novo, mesmo depois de cinco anos. Descobri o que é a Defensoria no ano passado! E passei a conhecer mais do sistema prisional acompanhando as manifestações pelo Rafael Braga. Meu ativismo é muito mais na arte, na cultura, na linguagem, na narrativa: disputo esse âmbito e não tento outras coisas.

Cura

Tenho tido reflexões bem profundas em relação ao fato de a cura ser coletiva. Poder dizer “não” é uma questão coletiva: hoje temos adesivos que dizem Não é não e as mulheres têm uma interface de luta. É você que vai emitir o “não”, mas, para você se fortalecer, precisa conversar com outras mulheres. Minha reflexão hoje passa por como somar na coletividade, e como a experiência do ativismo pode ser de auto-cura, e não de adoecimento. Por que é tão adoecedor quando nos propomos a nos curar?

Hoje, com mais autonomia, inclusive financeira, tenho mais condição de me perguntar o que é importante para mim e onde eu sinto que tenho importância. Precisei desse tempo para entender que sou só uma pessoa trans e não entendo de tudo.

Caminho

[O tornar-se ativista] para mim é um caminho sem volta. A fagulha veio em 2013, de uma necessidade física de nudez – principalmente de andar sem camiseta. Nas manifestações do Rio, eu vi que a nudez não era um preciosismo ou bobagem: os homens cisgêneros podiam, no calor de 50ºC, tirar a camiseta, mas eu não. Na época eu não sabia se era cis ou trans, só entendia que precisava tirar a roupa. Hoje eu sei que aquela pessoa que tirava a roupa não estava se encaixando na pessoa que eu queria ser. Eu só sentia uma necessidade fodida de ficar pelado e ficar sem camiseta, seja em casa, seja em lugares públicos. Percebi que a nudez é distribuída e aceita de forma diferente entre os gêneros e raças. O limite entre o que é considerado nudez e o que é considerado obsceno varia entre os gêneros. Vi que era algo político, e não pessoal. Isso me marcou muito.

Depois de 2013, tudo mudou na minha vida. Vivi intensamente as manifestações no Rio de Janeiro. Eu nunca tinha participado de um coletivo, ido a manifestações, era muito alheio a tudo aquilo. No ambiente privilegiado em que eu estava, em uma faculdade pública, o discurso dos lugares ditos “inteligentes” era de que tudo estava muito resolvido, de que não precisávamos mais falar dos assuntos, podíamos até votar! Entendia-se que falar sobre gênero, raça, direitos iguais e ativismo era algo muito ultrapassado, tinha ficado nos anos 1970. Ao mesmo tempo em que eu me sentia sufocada (na época), eu não tinha com quem falar sobre a forma como me sentia. E, mesmo se falasse no âmbito do sentir, não conseguia conectar isso e transformar em algum tipo de ação.

Acho que essa foi a questão de 2013: sentíamos que tinha alguma coisa errada, mas ninguém sabia o que era. De todos os lados, rolou uma necessidade de extravasar. As pessoas têm uma visão muito racional de 2013, mas eu acho que é uma coisa de sentimento, de transbordar – é anterior. Quando vejo os vídeos da galera coxinha gritando, sempre me pergunto se a questão é política, porque o que eu vejo é uma pessoa infeliz, querendo extravasar, incomodada com o fato de outra pessoa ter poder. É muito racionalista dizer “não faz sentido o que você está falando”. Dois mil e treze, para mim, foi isso: um transbordar de coisas e sentimentos sem nome, que passeava no corpo individual e coletivo das pessoas, e que veio à tona.

Corpo

No mundo em que estamos hoje, somos bombardeados por narrativas midiatizadas o tempo todo e acabamos por perder nossa conexão com nós mesmos e com a realidade. Perdemos uma noção corpórea da realidade. Ficamos disputando por fotos e mensagens, mas não nos damos ao perigo – porque é perigoso – de experienciar a cidade por si. Perdemos essa cartografia corpórea da realidade vinda de mim para o mundo. Hoje estou numa transição para que meu ativismo seja um convite à conexão. Podemos criar narrativas mais autônomas e mais conscientes – ou menos conscientes também. Acho que existe um produtivismo no nosso ativismo e no nosso trabalho, um excesso de coisas que nos força sempre a essa coreografia de reduzir todo o mundo à interação com um dispositivo. Acho que a libertação é corporal também, e isso exige criar novas coreografias e enxergar o mundo de forma mais “direta” – mesmo que exista uma série de outras lentes. É uma responsabilidade mais holística sobre o ativismo.

Sacrifício

Se estamos falando de violência, como vamos propor um evento ou espaço sem nos violentar, e sem a promessa e ilusão do sacrifício? É uma ideia cristã e também capitalista: se você se sacrificar, você se ilude de que vai ter a vida eterna. E você se ilude a respeito do que está fazendo pelos outros e cria uma expectativa de dívida: o que está no holofote é o seu sacrifício, e não a perspectiva deste ser, ainda considerado “outro”. Então, penso em como hackear essa coreografia cristã que produz uma ansiedade em relação à vida eterna. Como criar ativismos e conexões grupais sem essa ilusão martírica? Recentemente, eu me dei conta de uma obviedade: eu sou religioso. Fui evangélico a maior parte da minha vida, nasci na igreja e, dos meus 30 anos de existência, 20 foram na igreja. Hoje, percebo que minha forma de lidar com o Preciso Dizer que Te Amo é religioso, ritualístico, me leva a sentir que estou fazendo o bem e que sou uma pessoa melhor. Até a forma como as pessoas me veem é religiosa: “veja só esta pessoa fazendo o bem”. É uma ilusão moderna acharmos que não somos religiosos.

Vazio

Agora estou me dando a chance de nutrir um vazio para criar uma nova forma de ativismo e, mais que isso, para criar propostas: como e com quem vou me organizar de uma forma não violenta e com um olhar holístico? Como propor isso? Vai ser algo performático, no sentido de primeiro estar no corpo e depois na tela? Estou fazendo menos coisas na internet, ou melhor, usando a internet para encontros corporais. Hoje, a rede social pela qual tenho mais apreço é o Tumblr, porque lá tenho meu portfólio, que desenhei como um convite para encontros corporais. Ele não chega antes de mim. É uma interface que fica mais próxima do corpo do que o Facebook ou o Instagram, por exemplo. Estou indo para algo mais performático e também menor.

Poesia

Quero que o outro tenha uma experiência poética do meu ativismo. Acho muito mais efetivo escrever Preciso Dizer que Te Amo em você e falar sobre o suicídio de uma forma coletiva; isso vai ser muito mais profundo e ter muito mais poder de transformação do que eu fazer um keynote sobre o suicídio de homens trans. Se você tem uma experiência poética daquilo, sua recepção será mais profunda e sua vivência mais leve. E é menos violento para mim, porque é também uma auto-cura.

VEJA OS OUTROS TEXTOS:
Áurea Carolina
Ariel Nobre
Miguel Reis Afonso
Rebeca Lerer
Werá Mirim
artigo: Quando a pessoa se torna ativista

Se preferir, baixe o PDF da revista Tuíra #01.

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