Sofía Marcía

tradução: Yadira Ansoar e Paola Amaris

Levas de migrantes percorrem todos os anos os países da América Central em direção às fronteiras do norte. A ativista hondurenha analisa as condições que fundamentam o fenômeno e se pergunta como é possível impedir a expulsão das pessoas de seus territórios.

Quiero irme a casa, pero mi casa es la boca de un tiburón.

Mi casa es un barril de pólvora,

y nadie dejaría su casa a menos que su casa le persiguiera hasta la costa,

a menos que tu casa te dijera que aprietes el paso,

que dejes atrás tus ropas, que te arrastres por el desierto,

que navegues por los océanos. [1]

[1] Eu quero ir para casa, mas minha casa é a boca de um tubarão.

Minha casa é um barril de pólvora,

e ninguém deixaria sua casa a menos que sua casa lhe perseguisse até a costa,

a menos que tua casa te tenha dito que apertes o passo,

que deixes tuas roupas, que te arrastes pelo deserto,

que navegues pelos oceanos.

Fragmento de Hogar, de Warsan Shire

Um êxodo em massa de hondurenhos e hondurenhas surpreendeu o mundo em outubro de 2018. Vimos mulheres, homens, jovens, meninos e meninas, famílias inteiras se juntando à chamada Caravana de Migrantes, para chegar aos Estados Unidos.

Antes desse outubro, nós nos acostumamos com a partida de algum parente, um amigo de infância, algum colega de trabalho, vizinho ou conhecido. Até celebramos ao saber que estavam indo bem; em outros casos, tivemos que receber de volta o primo que não conseguiu chegar e não quis tentar novamente.

Mas desde outubro as imagens de cerca de 13 mil centro-americanos, na sua maioria hondurenhos e hondurenhas que se juntaram à caravana, foram dolorosas. Lembraram-nos quem somos, gritaram-nos com força que esta realidade nos ultrapassou. O que motivou essas pessoas a sair de maneira massiva? O que acontece em seus lares e comunidades? Por que eles decidem arriscar tudo para fugir? É possível impedir a expulsão daqueles que amamos? Quem são os responsáveis por sua partida?

Este texto é uma tentativa de explicar o contexto de Honduras e sua ligação com a caravana de migrantes – um reflexo daquilo que poderíamos ser, qualquer um de nós em qualquer lugar, se nossa casa-território parecer esgotar-se, se a pobreza e a violência nos alcançarem, se a desesperança se tornar a vida diária.

A CARAVANA DE MIGRANTES, UMA EXPRESSÃO POLÍTICA DO DESCONTENTAMENTO SOCIAL

Esse enorme movimento migratório, conhecido como a caravana de migrantes, mas que poderia ser melhor chamado pelo nome de êxodo em massa de centro-americanos e haitianos (mas principalmente de hondurenhos e hondurenhas), tem origens diferentes se o olharmos desde este pequeno país no centro da América.

O estopim desse grande movimento migratório em outubro de 2018 tem a ver com uma soma de fatores, principalmente os políticos e econômicos, que afetaram uma população que não tinha nada a perder porque já perdeu tudo aqui, até a esperança. Um destes fatores é pelo enorme descontentamento social que se acumulou na população hondurenha empobrecida e que teve seu auge após as eleições presidenciais de novembro de 2017. Essas eleições foram cheias de fraudes desde o início, com a candidatura de um então presidente que, segundo a Constituição da República, não tinha possibilidade de reeleição, nem mesmo de participação nas eleições. Mas, além de quebrar qualquer ordem constitucional explícita, Juan Orlando Hernández (chamado pelo pseudônimo de JOH pelas pessoas que lutam nas ruas desde o dia em que se impôs como presidente) é apenas a face de uma ditadura consolidada desde o golpe de Estado que ocorreu em Honduras em 2009, que tem deixado como consequência a negligência em relação aos direitos políticos, sociais e econômicos da população; um Estado inexistente; e uma falsa democracia, da qual participam majoritariamente aqueles que zelam por seu próprio capital econômico, com o apoio e a bênção do governo dos Estados Unidos. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, tem usado as vidas dos migrantes em um discurso que favorece sua candidatura por meio da xenofobia, do racismo, do terror e do ódio contra os latino-americanos, mesmo os nascidos nos EUA em famílias latinas.

ANTES E DURANTE A CARAVANA

Em outubro de 2018, começamos a ouvir falar sobre um êxodo em massa de hondurenhos e hondurenhas que viajavam para os Estados Unidos. Este êxodo começou a tomar forma no departamento de Cortés, no terminal de ônibus da cidade de San Pedro Sula, uma das cidades mais violentas do mundo, no dia 12 de outubro – paradoxalmente, o dia em que se celebra oficialmente os indígenas, mas que na verdade é uma data de resistência desses povos.

Cerca de 1.200 pessoas de todo o país se reuniram no terminal de ônibus. Muitas delas foram convocadas principalmente por redes sociais, e outras souberam quando viram na televisão que uma caravana de migrantes havia sido planejada. No dia 13 de outubro, a caravana partiu para a fronteira com a Guatemala. Passaram a noite na cidade de Santa Rosa de Copán, no ginásio de uma escola e onde mais conseguiram ficar. Muito mais pessoas começaram a se juntar e a cobertura da mídia se tornou cada vez maior. Foi então que nós, que moramos na capital, percebemos a magnitude da caravana de migrantes.

No momento em que chegaram à fronteira entre Honduras e Guatemala, estimou-se que havia cerca de 3 mil pessoas e um grande cerco de militares guatemaltecos esperava por eles do outro lado. Havia muitas incertezas nesse momento e tudo indicava que eles não os deixariam passar. No entanto, as pessoas começaram a pressionar e organizações de direitos humanos já estavam acompanhando esse momento; não houve maneira, assim, de conter essa enorme quantidade de migrantes. Naquela noite, eles dormiram em abrigos temporários. Nos dias seguintes, a solidariedade de muitas pessoas na Guatemala foi avassaladora e, ao mesmo tempo, contrastou com o discurso de ódio que começava a tomar forma por parte do presidente de Trump. Houve até quem sugerisse que as pessoas recebiam dinheiro dos adversários de Trump para se juntarem à caravana, reduzindo a simples fantoches um sujeito político com força e coragem, mas sobretudo com razões suficientes para continuar migrando.

Enquanto a primeira caravana percorria a Guatemala, outras caravanas saíram de Honduras. Apesar da tentativa de fechar as fronteiras, também houve grupos que se juntaram na Guatemala, em El Salvador e na Nicarágua; parecia que a primeira havia inspirado as outras.

A HISTÓRIA APAGADA DOS MIGRANTES LATINO-AMERICANOS

Muitos se perguntaram quem organizou a caravana, quem idealizou esse movimento migratório que aparentemente atenta contra a estabilidade econômica dos países da América Central, México e Estados Unidos, conforme as constantes ameaças de Donald Trump. Deve-se dizer que a população vem migrando há anos e que não é a primeira caravana que se organiza; houve outras em menor magnitude ao longo de 2017 e, na realidade, parte das economias da América Central se sustenta graças às remessas enviadas pelos migrantes para seus parentes (apenas em Honduras, representam 18% do PIB).

Os países da América Central têm uma história muito semelhante, apesar dos governos que passaram da esquerda ou da direita. Na Guatemala, registra-se 59,3% dos habitantes em situação de pobreza e extrema pobreza, o que afeta principalmente a população indígena-rural.

Assim como Honduras, o país recuou nos últimos dez anos não apenas em questões econômicas, mas também em direitos humanos, apesar dos acordos de paz assinados há mais de 20 anos, depois do genocídio de populações principalmente indígenas que caracterizou o conflito político e militar dos anos 80.

No ano 2015, foi exigida a renúncia do presidente guatemalteco Otto Pérez Molina, envolvido em um caso de corrupção junto a vários de seus funcionários do governo, principalmente a vice-presidente. Ambos lideravam uma cadeia de corrupção na alfândega. As pessoas nas ruas conseguiram que a justiça determinasse a prisão preventiva dos corruptos. Meses depois, é eleito um presidente daqueles que não são os de sempre na política partidária, um comediante, apresentador de televisão, Jimmy Morales, que era pior em questões de corrupção e impunidade. Seu governo rompeu com o Estado de direito e age com impunidade, protegido pelo discurso de ter sido colocado ali pelas maiorias.

Em San Salvador, onde em outubro de 2018 reuniu-se um grupo de cerca de 500 pessoas no famoso monumento El Salvador del Mundo para se juntar à caravana, a violência se abate sobre a população. De acordo com uma enquete realizada pela Universidade Jesuita Centroamericana José Simeón Cañas (UCA), mais de 235.700 pessoas foram forçadas a se mudar somente em 2018 devido às gangues ou maras. As condições de desigualdade, pobreza e violência que continuam expulsando essas famílias não mudaram depois do conflito político dos anos 80 entre os guerrilheiros e o exército, que perpetuou massacres como o de Mozote, onde pelo menos 765 pessoas foram mortas em um único dia, na maioria meninas e meninos. Só até o ano 2012, o governo de San Salvador o reconheceu, sem que até hoje tenha sido processado um único oficial militar do exército ou que se tenha apontado o papel dos Estados Unidos, que rotulou de propaganda comunista a notícia do massacre e apoiou o exército e o governo com mais recursos econômicos e militares.

Na Nicarágua, um conflito que ninguém esperava eclodiu a partir de uma crise política. O detonador foi uma reforma da Previdência Social, mas o descontentamento já tinha se acumulado há muito tempo com o governo “sandinista e esquerdista” de Daniel Ortega. Este governo por mais de uma década se dedicou a criar uma espécie de dinastia que favorecia seus familiares e parentes juntamente com a empresa privada, às custas de interesses sociais e sob a proteção do império americano (que tinha sido seu inimigo durante os anos 1980, quando se dá o triunfo da Revolução Sandinista). A violência que gerou a resposta das forças armadas e militares na Nicarágua ao protesto social de abril de 2018 deixou mais de 350 mortos, segundo a Associação Nicaraguense dos Direitos Humanos (ANDPH), dezenas de prisioneiros e presos políticos (alguns recém postos em liberdade) e mais de 30 mil pessoas que migraram desde o início do conflito político, em abril de 2018, para vários países da região, incluindo os Estados Unidos.

Em Honduras, antes do êxodo em massa, estimou-se, segundo dados do departamento de relações exteriores, que 200 a 250 pessoas migravam por dia. Ou seja, havia um êxodo muito silencioso – o que é conveniente, especialmente quando levamos em conta os dados sobre as remessas que entram nas finanças do país.

Tenta-se apagar toda essa história da América Central. Ela está carregada de pobreza, violência e dor, com feridas que permanecem abertas e que afetam os mais pobres nesses países: os camponeses, os indígenas, os das periferias. Mas são justamente estes que em outubro de 2018 decidiram se tornar visíveis através das caravanas de migrantes para nos lembrar das feridas que carregamos há anos.

A migração tem sido, assim, uma das alternativas de vida digna para a maioria, quando não há outras. Mas migrar sem um visto americano tem um alto custo, não apenas econômico, mas também social. Os chamados coiotes, por exemplo, que são responsáveis por levar pessoas pelas diferentes rotas do México, cobram por pessoa uma média de 5 mil dólares. Na maioria dos casos, essa quantia é paga pelas famílias nos Estados Unidos; outros se endividam; e alguns viajam pela estrada sem um coiote, o que representa um risco muito alto. As caravanas possibilitaram, de alguma forma, viajar com mais segurança e a um custo econômico mais baixo, embora não possamos assegurar que isso fosse inteiramente um fato, quando se sabe do sequestro de alguns migrantes por cartéis de drogas ao longo do caminho.

A JORNADA CONTINUA

Quando os centro-americanos chegaram em Tecún Umán, na fronteira entre a Guatemala e o México, já era incontável o número de pessoas que tinham se juntado à caravana. Enquanto isso acontecia, Trump ameaçava reduzir a ajuda aos países da América Central se os governos não conseguissem conter as caravanas, que segundo suas palavras eram grupos de criminosos que iam até os Estados Unidos. Na realidade, são pessoas sem esperança e em busca de condições de vida melhores do que aquelas causadas nos países da América Central pela mesma política de extermínio e exclusão da intervenção dos Estados Unidos. Assim, apesar das ameaças, as pessoas não deixaram de somar-se cada vez mais, com a esperança de chegar aos Estados Unidos.

Ao chegar à fronteira com o México, houve momentos de grande tensão. Os portões foram fechados e novamente forças militares receberam aos migrantes em um lugar onde dizia: “Bem-vindo ao México”. Os centro-americanos que querem entrar no México devem apresentar um visto dos Estados Unidos, Canadá ou do próprio governo mexicano. É evidente que, depois de vários quilômetros de caminhada e fadiga, aqueles que esperavam entrar certamente não traziam consigo as exigências migratórias – exigências essas que foram impostas como outra maneira de estabelecer muros para impedi-los de entrar naquele país da América do Norte.

Milhares de migrantes estavam localizados em frente aos portões e sobre a ponte que divide a Guatemala e o México. Muitas horas de espera, uma noite toda e com chuva. O desespero se abateu sobre muitos: alguns decidiram pular a ponte e se jogaram no Rio Suchiate para nadar até o outro lado da fronteira, chegando ao México, enquanto outros cruzavam em jangadas de madeira e borracha, apesar das advertências das autoridades. Do outro lado da ponte, aqueles que conseguiam cruzar cantavam o Hino Nacional de Honduras, tentando encorajar os outros a fazer o mesmo. Um helicóptero voa sobre o rio enquanto as pessoas continuam a passar sem parar; outros decidem ficar e depois os portões, não conseguindo contê-los, são derrubados por algumas pessoas. Na frente estavam muitas crianças com pais que, no meio de gás lacrimogêneo, corriam em desespero.

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Já no México, foram reportados cerca de 13 mil centro-americanos, principalmente hondurenhos e hondurenhas, que compõem o êxodo de migrantes, incluindo 24 mulheres grávidas, 184 pessoas com deficiência, 31 adolescentes solteiras, 87 pessoas da comunidade LGTBIQ+ e mais de 2 mil meninos e meninas. Era a soma de várias caravanas que chegavam por diferentes pontos fronteiriços a cidades como Veracruz, Oaxaca, Chiapas e outras caravanas que ainda deixavam os países da América Central.

Na Cidade do México, assim como em outras cidades do país, foram preparados albergues onde muitos se reuniram para participar de assembleias, o que lhes permitiu discutir questões como a conveniência de vistos humanitários que o governo mexicano oferecia para as pessoas que solicitassem refúgio. Alguns aceitaram os vistos, embora eles não fossem garantia de condições decentes; apenas garantiam a circulação dentro da fronteira mexicana para o trabalho.

Outro grupo decidiu nomear uma comissão de 19 hondurenhos e hondurenhas representando 17 dos 18 municípios e os hondurenhos que vivem nos Estados Unidos, bem como três de cada país da América Central (El Salvador, Nicarágua, Guatemala). Essa comissão solicitou na cidade do México, que o Comissário da ONU declarasse o êxodo dos migrantes como uma crise humanitária, e aplicasse o Pacto Global para uma Migração Segura, Ordenada e Regular.

Enquanto as redes sociais serviram para convocar e inspirar milhares de pessoas a se juntarem às caravanas, foi através delas que também Donald Trump promoveu um discurso de ódio contra os migrantes. Mas não o fez em um momento qualquer, e sim antes de 6 de novembro, data em que é renovada uma parte do Congresso estadunidense e os governos estaduais por meio de eleições de meio de mandato. Momento algum seria melhor para promover a xenofobia, passar a responsabilidade dos imigrantes ilegais para o Partido Democrata (o partido da oposição) e buscar mais eleitores, que era o que mais importava nessas eleições.

Em Honduras, o governo se dedicou a culpar os líderes políticos da oposição, inclusive Bartolo Fuentes, ex-deputado do partido Liberdade e Refundação, por ser quem convocou e provocou a caravana de migrantes. Segundo o departamento de relações exteriores e outros políticos, eles levaram as pessoas enganando-as e usando a força. Além dessa acusação ser claramente falsa, colocou a vida de Bartolo em risco.

Da primeira soma de muitos êxodos que saiu em outubro de 2018, soube-se que a maioria conseguiu chegar aos Estados Unidos. Eram grupos diferentes e, embora não tenhamos voltado a ouvir falar de um movimento tão grande quanto o ocorrido naquele outubro, as pessoas não param de migrar a despeito da militarização das fronteiras e da perseguição pelas rotas convencionais. A mudança de perfis e fluxos migratórios continua representando um desafio para as organizações, abrigos e instituições que acompanham a migração segura como um direito.

A migração continua sendo uma expressão da crise democrática e política nesses países, da pobreza e da violência, mas também uma expressão daqueles que buscam condições de vida mais dignas, daqueles que se cansam de viver em desesperança e sabem que é necessário ir além.

UM OLHAR SOBRE O CONTEXTO HONDURENHO PARA ABORDAR O ÊXODO DE MIGRANTES

Para descrever o momento atual vivido em Honduras, imagine por um momento uma panela de pressão que está liberando fumaça, mas encontra-se a ponto de explodir. Dentro, há alguns ingredientes que, ao serem misturados, não demoram muito em surtir efeito: empobrecimento, violência, impunidade, corrupção, narcotráfico, extorsão, desemprego, militarização, crise democrática, concessão de território e resistência social.

Neste país no centro da América, com cerca de 9 milhões de habitantes, sete de cada dez pessoas vivem em condições de pobreza, quatro delas em pobreza extrema. [2] E, segundo o Banco Mundial, Honduras é o terceiro país mais desigual do mundo, o que se traduz em enormes concentrações de riqueza em poucas mãos.

[2] Dados do Instituto Nacional de Estadísticas de Honduras (INEH) gerados em 2018.

O desemprego e o subemprego prevalecem na população. Vejamos alguns dados oficiais [3] sobre isso: a taxa de desemprego aberto é de 5,7%; se você é jovem e com um diploma universitário, você terá mais dificuldades para encontrar emprego, ainda mais se for mulher. Se encontrar, pode aspirar a um salário máximo de 13.809 lempiras, cerca de 566 dólares. Já a renda média geral para o total de empregados é de 278 dólares. Ao mesmo tempo, a cesta básica é considerada pelo Banco Mundial como uma das mais caras, avaliada em 540 dólares. Ou seja, a média de hondurenhos e hondurenhas não atinge uma renda para cobrir suas necessidades básicas.

[3] Idem.

À situação alarmante de emprego acrescentaremos as condições de trabalho, que nos últimos 10 anos se tornaram cada vez mais precárias. As conquistas e lutas dos trabalhadores das empresas bananeiras [4] na greve de 1954 que deram uma enorme contribuição ao código de trabalho, com garantias mínimas para ter condições dignas, estão hoje invisibilizadas pelo novo contrato por hora aprovado no ano 2010, que subtrai qualquer benefício dos trabalhadores e trabalhadoras.

[4] Honduras é conhecida como República das Bananas, termo cunhado por O. Henry e que se tornou popular para descrever um país pobre, instável, corrupto e pouco democrático, que se move ao gosto de interesses estrangeiros. Mas, em Honduras isso também tem a ver com a forma como a produção de banana da região recebeu um impulso decisivo no século 20, “graças às operações das grandes empresas americanas de banana, particularmente a United Fruit Company”, como afirma Arturo Wallace nesta reportagem de 22 de maio de 2017 na BBC: https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-39693332

Nas cidades com maior movimento econômico (San Pedro Sula, Choloma, El Progreso, Tegucigalpa e La Ceiba), deve ser paga mês a mês a extorsão, ou “imposto de guerra”. É um pagamento que tem que ser feito a diferentes grupos criminosos, comomarasou gangues, para que não te matem.

Honduras é também uma das principais paradas para 90% da cocaína consumida nos Estados Unidos. Sua geografia, a impunidade e a corrupção das instituições estatais o permitem. Os fluxos de cocaína direto para Honduras cresceram significativamente após 2006 e aumentaram drasticamente após do golpe de Estado em 2009, diz um relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Segundo o governo dos Estados Unidos, aproximadamente 80% de todos os voos suspeitos de tráfico de drogas que saem da América do Sul desembarcam pela primeira vez em Honduras, transportando 65 das 80 toneladas que chegam por esta rota. [5]

[5] International Narcotics Control Strategy Report, 2016.

Os pontos de trânsito tornaram as cidades de Copan, Atlántida, Yoro e Cortes as mais violentas. As maras e gangues desempenham um papel essencial no controle dos territórios para as drogas, enquanto os cartéis mantêm os territórios em disputa pelas praças e pelo narcomenudeo. [6] Em consequência disso, as pessoas fogem do sequestro de seus filhos e filhas pelas maras, da extorsão e violência generalizada; as comunidades se sentem desprotegidas e incapazes de enfrentar essa violência, e famílias inteiras são forçadas a deslocar-se no nível interno e externo procurando sobreviver.

[6] Pequeno comércio de drogas ilícitas.

E se nos referirmos aos feminicídios, a cada 23 horas uma mulher é morta no país. Os assassinatos ligados à violência sexual ocorrem principalmente na via pública ou em casa, quase sempre por seus parceiros. Em sua maioria, são mulheres jovens com idade entre 19 e 39 anos que pararam de denunciar os casos pela falta de credibilidade das instituições do Estado e que, mesmo quando denunciados, permanecem impunes.

Mesmo com todos os elementos até agora mencionados, os números duros dizem que não estamos mais entre os 10 países mais violentos do mundo. Mas isso não significa que nós, hondurenhos e hondurenhas, nos sentimos mais seguros. Recentemente, o Instituto Universitario en Democracia, Paz y Seguridad (IUDPAS) da Universidad Nacional Autónoma de Honduras (UNAH) apresentou os resultados da enquete de Percepção dos Cidadãos sobre Insegurança e Vitimização em Honduras; a maioria percebe a insegurança como o principal problema do país, seguida de questões econômicas, e consideram que nos próximos meses a situação ficará pior.

O descontentamento generalizado na população que vem se acumulando especialmente desde o golpe de Estado de 2009 foi reacendido com os casos de corrupção no Instituto Hondureño de Seguridad Social. O partido político do atual presidente, o Partido Nacional de Honduras, foi acusado de desviar fundos para a campanha política, entre outros casos. E a situação foi agravada pela crise pós-eleitoral gerada em novembro de 2017, quando o atual presidente decidiu mover todo o mecanismo do Estado em seu favor (poder Executivo, Legislativo e Judiciário) para ser reeleito inconstitucionalmente. [7]

[7] Essa foi, inclusive, uma das razões que justificou a derrota de Manuel Zelaya em 2009, que tinha a proximidade com os governos progressistas da América Latina e em consequência com a ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América): houve uma consulta popular para perguntar se concordavam em realizar um referendo sobre a reeleição. Então, o que antes era considerado ruim para uns, agora acabou se tornando algo bom para outros.

Foram realizadas eleições que já eram ilegais, e que também foram altamente questionadas pela população que saiu para votar, como nunca antes, por uma mudança. As enquetes e a contagem inicial deram como vencedor o líder da aliança contra a ditadura, Salvador Nasrrala, mas depois de várias horas e a queda do sistema, o tribunal eleitoral deu como vencedor Juan Orlando Hernández. Isto levou as pessoas a sair massivamente às ruas para protestar. Os confrontos entre o exército e a população insatisfeita deixaram como saldo inúmeras violações de direitos humanos.

O atual governo continua a aumentar a militarização, que vem sendo notória desde o golpe de estado de 2009, mas que agora se torna mais evidente, especialmente no orçamento do Estado. As dotações foram aumentando para a Segurança, Defesa e o serviço da dívida, ao passo em que foram gradualmente reduzidos os orçamentos para saúde, educação e investimento público. [8] Não temos escolas suficientes, nem universidades, e muito menos hospitais ou remédios, mas temos mais de 24 mil membros das Forças Armadas e um alto investimento em armas militares e inteligência de Estado.

[8] Estudo do Foro Social de Deuda Externa y Desarrollo de Honduras (Fosdeh) que reúne dados oficiais dos orçamentos de 2010 a 2019 em Honduras.

Se olharmos com um pouco mais de detalhe, veremos que as Forças Armadas adquiriram grande relevância desde 2010 e mais ainda no atual governo, ao ponto de as encontrarmos ocupando posições chave nas estruturas governamentais. Não é algo casual: não se trata apenas de pagar favores, mas também de garantir os investimentos econômicos dos grandes empresários e das empresas transnacionais do país.

Há também uma ameaça latente para as populações nos territórios rurais do país, onde encontramos povos indígenas Lencas, Chortis, Pech, a tribo Tolupana, Miskito, negros e negras Garífuna, camponeses e camponesas que estão sendo perseguidos e criminalizados pela defesa de territórios e propriedades comuns.

Grande parte do território de Honduras está cedido para projetos extrativistas. Somente em agosto de 2009, em meio da crise do golpe de Estado, a Lei Geral da Água permitiu a concessão de 47 usinas hidrelétricas em todo o país; também estima-se 302 concessões para mineração. A paralisação da reforma agrária por grandes interesses nos anos 1990, bem como a lei da modernização agrícola, continuam gerando violência e expropriação para as comunidades e organizações camponesas.

Recentemente foram aprofundadas ameaças e perseguições políticas para aqueles que lideram as lutas e a defesa da vida. Nos meses anteriores, foram assassinados Salomon e Juan Samael, pai e filho, que durante anos se opuseram à venda e comercialização da floresta da tribo Tolupan. Eles se juntaram à longa lista de mortes de defensores de recursos naturais e bens comuns, cujos assassinos permanecem impunes. Há também o caso de Berta Cáceres, coordenadora do Consejo Cívico de Organizaciones Populares y Indígenas de Honduras (COPINH), que foi assassinada pela empresa hidrelétrica DESA com a cumplicidade do Estado. Apesar do diretor executivo e de segurança da empresa estar preso, assim como os assassinos que dispararam as balas, os autores materiais e intelectuais ainda não foram chamados a julgamento.

Líderes que acompanham a luta da comunidade Guapinol pela defesa de seu rio e a área central de um Parque Nacional foram recentemente processados por associação ilícita, como se a organização em defesa dos recursos naturais fosse um perigoso cartel. Foram levados para a cadeia e finalmente libertados graças à pressão de toda uma comunidade, o acompanhamento de uma equipe jurídica enormemente comprometida e a pressão de organizações internacionais de direitos humanos.

Sob esse pano de fundo, há aqueles que ainda estão procurando os responsáveis por organizar as caravanas de migrantes e desestabilizar o país. O representante do governo dos EUA em Honduras chegou a fazer ligações públicas para dizer às pessoas que não saíssem, que não se deixassem enganar por sujeitos inescrupulosos, que no seu país os aguarda todo o peso da lei. Donald Trump anunciou recentemente a suspensão da ajuda econômica aos países do chamado triângulo norte e a construção do muro que ele vem apresentando como parte de sua campanha política, bem como o fechamento da fronteira.

E tudo isso impediu que os migrantes parassem de sair de Honduras? Pelo contrário, eles encontraram maneiras de continuar saindo e continuarão a fazê-lo. Enquanto os responsáveis pelas políticas de morte continuarem a deixar as populações sem alternativas, eles poderão construir milhões de muros, mas não conseguirão impedir as pessoas de continuar a lutar por suas vidas e dignidade em meio a esse desastre.

DEPOIS DO ÊXODO QUE VISIBILIZOU A CRISE

Sem dúvida, o êxodo em massa de outubro nos mostrou a força daqueles que a história tentou tornar invisíveis. Aqueles e aquelas a quem naturalizamos que sempre vivessem com a dívida que a democracia deixou aos das periferias: violência, empobrecimento e desesperança. Pessoas oprimidas que sonharam com uma vida com dignidade, e que se atreveram a deixar tudo para trás, ir adiante, levar suas filhas e filhos ou suas famílias inteiras, tentando de novo, e de novo, porque já não há nada mais a perder. Essa é a história dos migrantes que viajaram naquela grande caravana.

Contudo, embora a caravana tenha visibilizado a crise, o que veio depois foi uma tentativa de desacreditar o êxodo e retaliar os migrantes. Em Honduras, pais ou mães que tentaram migrar com seus filhos foram criminalizados. As pessoas passaram a buscar “pontos cegos” – nome dados aos lugares em que se consegue cruzar a fronteira sem ter que mostrar os documentos para a polícia de imigração. Quando as fronteiras entre Guatemala e Honduras foram fechadas, as pessoas passaram por rios, encontraram outras rotas e, continuam até agora. Recentemente vimos uma imagem terrível de um pai e sua filha de 23 meses de idade, Oscar e Angie, que se afogaram no Rio Grande – imagens duras que nos lembraram a criança síria afogada. Algo deve estar errado com a humanidade para que permitamos que essas tragédias passem por nós, sem entender que a migração é um direito e uma expressão da crise em que vivemos.

No México, os grupos migratórios tem sido atingidos por ameaças. Em cidades como Oaxaca e Chiapas, para pegar um ônibus, você deve mostrar documentos comprovando sua nacionalidade mexicana; caso contrário, você correrá o risco de deportação. Os albergues no México relatam um aumento alarmante no número de migrantes e aumentaram sua capacidade em até três vezes. A grande maioria das organizações da sociedade civil viu seu trabalho se tornar bastante complicado, tem sido criminalizada e perseguida pelo mesmo aparato militar e executivo do governo progressista de Andrés Manuel López Obrador.

Essa campanha de terror e medo dirigida aos migrantes e seus aliados, somada à militarização das fronteiras no México e na Guatemala, à disseminação do discurso de ódio de Trump e à imposição do status de país seguro à Guatemala – o que se traduz em mais militarização e detenção –, seria muito fácil pensar que não há mais pessoas tentando chegar aos Estados Unidos. Mas em Honduras, somente neste ano, o Observatório Consular e Migratório (CONMIGHO) relatou 68.909 migrantes deportados principalmente do México e dos Estados Unidos, ao passo em que em todo o ano de 2018 foram um total de 75.279. Assim, o ano ainda não acabou e estamos prestes a atingir os números do ano passado.  Em poucas palavras, a crise migratória não cessou, mesmo que agora se fale pouco ou nada sobre o êxodo dos países da América Central. 

Os números oficiais já mostram um grande número de famílias e pessoas retornadas, mas além dos números, conhecer os rostos dos migrantes na estação de ônibus quando eles chegam depois de horas de viagem e dias detidos em meio à incerteza, é doloroso. Muitos são jovens e a maioria expressa que, apesar da deportação, tentarão novamente. Há até aqueles que, assim que chegam à estação, retomam novamente uma outra rota de migração. 

Enquanto as condições de vida na América Central não mudarem, a crise migratória continuará aumentando. É preciso continuar pensando em alternativas, seguir tecendo pontes que nos juntem e persistir em apagar as fronteiras. Ações isoladas não bastam: uma das lições que essa crise nos deixa é a necessidade e a urgência de nos unirmos, de agirmos com base na solidariedade. Continuaremos assumindo com coragem e rebeldia a tarefa de buscar a esperança, sonhando e lutando para construir algo diferente dessa realidade e, por que não, de outro mundo possível.

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