Por Bárbara Poerner – 17/04/2024

 

 

Movimentos sociais mostram na prática como a reforma agrária significa defesa da democracia, reparação social e resistência climática

O MST completou 40 anos em janeiro de 2024 l Foto: Greiciane Souza

Não há história mais antiga no Brasil que o roubo e a concentração de terras: é a base do projeto colonial e da invasão europeia. E seus efeitos são bastante sentidos até hoje na falta de soberania alimentar e desigualdade, assim como no modelo agroexportador e latifundista. E não à toa também que os movimentos populares de luta pela terra que reivindicam a reforma agrária – e também urbana – assumiram um papel de protagonismo tão significativo no país.

Desse modo, a agenda da reforma agrária é uma disputa, mas passa, explica Darci Frigo, integrante da Coordenação Nacional do Terra de Direitos, por condições institucionais, vinculadas às políticas públicas de redistribuição de terras. O conceito é diferente daquele debatido na década de 1980, continua ele. Com a mudança de modelo de desenvolvimento no campo, a luta reforma agrária passou a significar também luta ambiental, preservação das águas, produção de alimentos saudáveis não dominados pelas tecnologias transgênicas ou pelo agrotóxico.

O coordenador defende, então, a terminologia “reforma agrária popular”, que é capaz de unir aquilo que deveria ser a política institucional, mas que só acontece quando há a luta pela terra. “A luta pela terra e luta pela reforma agrária convergiram no discurso e no imaginário popular com a possibilidade de acesso à terra, seja pela via pública, seja pela luta social. Hoje, elas reúnem todos esses povos diferentes (indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais etc.) que estão no campo e que querem manter viva a biodiversidade, a floresta, a água e produzir alimentos saudáveis”.

Pensar nisso é revisitar e reparar a história do Brasil, argumenta, Ceres Hadich, da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Trata-se de “fazer uma justiça histórica, ainda que tardia, a todos os povos do campo que historicamente foram expropriados do direito do acesso à terra”.

Embora a Constituição Federal de 1988 defenda o conceito de uso social da terra, dados mostram que 45% da área rural está nas mãos de menos de 1% das propriedades privadas no Brasil, conforme a análise dos Censos Agropecuários, realizada pela OXFAM. Isso é um problema grave, diz Darci, porque “sempre entendemos que a concentração da terra significava também concentração de poder”.

Ele acredita que o Brasil “não consegue superar o paradigma da concentração da terra, que dá muito poder ao latifúndio, e hoje isso está traduzido no poder do agronegócio tanto no Congresso Brasileiro como na sociedade”. Apesar de existir um superávit do ponto de vista da balança comercial, é possível ver, ao lado de um grande latifúndio, pessoas passando fome, continua Darci, que destaca a falta de soberania alimentar do país.

Isso impede o êxito da justiça social, sendo uma das grandes ameaças destacadas pelo coordenador “é que o fortalecimento do agronegócio e desse grande e velho latifúndio não permite que a sociedade, de fato, seja democrática”.

A fome, por exemplo, está diretamente relacionada com isso. São 90,4 milhões de brasileiros que passam fome ou têm dificuldade para se alimentar, segundo dados compilados em 2022 pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

Por isso movimentos sociais, como o MST, defendem uma agenda de reforma agrária que “reveja e reverta essa estrutura concentrada de terras e permita a construção de um projeto popular e soberano para a agricultura e para a sociedade brasileira”, diz Ceres. É uma forma de pensar, a partir do direito à terra, formas de acessar o direito à natureza, ao trabalho digno, à alimentação agroecológica etc. “A reforma agrária, na sua integralidade, é um conjunto de políticas públicas que olham para a questão econômica e acesso do direito à terra, mas mais do que isso, que é capaz de incidir sobre as diferentes dimensões da nossa vida”.

É, continua ela, uma nova proposta de experiência humana. “Pensar em processos que permitam às pessoas se humanizar, se educar, se transformar, se libertar. A educação, a cultura e outras formas de expressar a vida são fundamentais para a gente também construir e reconstruir relações entre seres humanos mais humanizados. Por aí que passa o nosso conceito de reforma agrária”.

Uma marcha do MST na Bahia l Foto: Arquivo/Reprodução

Luta pela terra é resistência climática

As referências de reforma agrária popular e luta pela terra no Brasil são inúmeras. Ceres destaca o Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis, que consiste em plantar 100 milhões de árvores em dez anos nas escolas do campo, cooperativas, centros de formação técnica, praças, avenidas e nas cidades, fortalecer a produção de alimentos saudáveis nas áreas de assentamentos e acampamentos do MST, denunciar o modelo destrutivo do agronegócio e seus impactos ao meio ambiente, e foi lançado em 2020 pelo movimento em todo Brasil.

Essa é uma vitória que só acontece por conta da organização popular. “Nosso movimento se coloca como mais uma organização que usa dessas ferramentas de luta como uma forma de colocar o debate da reforma agrária para a sociedade, e de, concretamente, organizar o povo para fazer a pressão social. Fomos entendendo, ao longo dos anos, que a gente só alcança conquistas com o povo organizado e mobilizado – independente de governo, de período histórico”, acredita Ceres.

Em sua visão, estamos “estamos diante de uma possibilidade histórica de avançar nessa perspectiva e é papel efetivo do Estado brasileiro prover essas políticas para estabelecer a justiça social, o que passa pela reforma agrária no Brasil. Atualmente, duas das três grandes prioridades do governo Lula passam diretamente pela causa da reforma agrária, que é o combate à fome e que é o cuidado com o meio ambiente.”

Ceres acredita que se não existissem esses movimentos, hoje haveriam ainda menos áreas com cobertura florestal preservada no país e teríamos cada vez mais dependência da produção de alimentos com variedades cada vez mais reduzidas. “Então, o papel desses movimentos é apresentar outro projeto popular soberano de agricultura agroecológica, com a produção de alimentos saudáveis”, defende Darci.

A reforma agrária, nesse sentido, “se juntou à luta de toda a sociedade por melhorias nas condições ambientais porque onde tem o latifúndio, tem destruição, tem o fim da floresta, tem a ameaça gravíssima do fim da biodiversidade. Tudo isso é importante para o futuro da humanidade e são esses movimentos que levantam quotidianamente as bandeiras para continuar essas lutas, seja no campo ou seja, às vezes se somando às lutas de setores urbano”, finaliza o coordenador.

reunião em cooperativa

Velório do Massacre Eldorado do Carajás, 1996. l Foto: Arquivo MST

17 de abril: dia de luta

O Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária, instituído oficialmente em 2022, é uma referência ao massacre de Eldorado do Carajás, que aconteceu no dia 17 de abril de 1996, no Pará. Na ocasião, 21 trabalhadores rurais foram mortos pela Polícia Militar enquanto protestavam pela reforma agrária.

“O episódio foi muito marcante na história do movimento de luta pela terra, e também pelo ponto de vista da violência e impunidade. Até hoje, lutamos para que haja o reconhecimento da violência do Estado e da milícia contra os camponeses”, explica Ceres Hadich. Ela explica que, por causa disso, o mês referenciado como Abril Vermelho é mais do que uma simbologia, mas demonstra um exemplo concreto da organização entre os trabalhadores sem terra.

Darci Frigo pensa semelhante. Segundo ele, dia 17 de abril é uma memória da violência que, historicamente, marca a disputa por terra no país. Contudo, ele destaca a importância de relembrar o episódio como uma forma de “dizer que esses movimentos sociais, que surgiram no processo da redemocratização do nosso país vieram pra ficar e pra ter longa vida”. 

Anualmente, o MST prepara uma série de atividades, marchas e mobilizações para o Abril Vermelho. Neste ano, o destaque é a campanha “Ocupar, Para O Brasil Alimentar”. Ceres ainda cita o lançamento do Programa Terra da Gente, a marcha que está ocorrendo há alguns dias na Bahia com assentados do estado, e a mobilização na Curva do S, em Carajás, que ocorre hoje. Até agora, o movimento já realizou 24 ocupações em 11 estados brasileiros, mobilizando mais de 20 mil famílias assentadas.

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