Tuíra visitou Luciano da Silva, assentando da reforma agrária, agricultor agroecológico e técnico agrícola, para ver e ouvir uma jornada de transformação que tem a terra como centro

Por Luciana Ferreira e Marcelo Marquesini

Tuíra — Quem é Luciano da Silva?

Luciano — Eu nasci em Ubatã, no sul da Bahia, que é próxima daqui. Meus pais eram agricultores, trabalhavam com cacau. Em 1985 a gente mudou para Aurelino Leal para morar na fazenda chamada Cascata. Em 1998, com a crise gerada pela vassoura de bruxa, começaram as demissões nas fazendas. Um dos oito trabalhadores que permaneceram foi meu pai. Eu estudava em Aurelino Leal, ainda no 1º grau, sem imaginar o que era o Movimento Sem Terra. Não sabia nada disso. E aí eles anunciaram que a fazenda ia ser desapropriada pelo Incra [1] e de uma hora para outra tinha um acampamento lá. E eu: “O que é isso?”. Meu pai, que também não fazia noção do que era, foi convidado para fazer parte do movimento. Foi tudo muito rápido: um assentamento de 40 famílias, incluindo a gente. Em um belo dia do ano 2000, chegou o pessoal da CPT [2] e, dentre outras coisas, criamos um grupo de jovens na comunidade, organizávamos as festas e aí foi… Criamos uma comissão regional e eu comecei a trabalhar com jovens de toda a região sul vinculado ao movimento Ceta.[3] Nesse processo de aprendizado da juventude, foi se construindo um entendimento da luta pela terra. Em 2003, quando concluí o segundo grau, o movimento estava construindo um curso de agronomia.

1 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.

2 Comissão Pastoral da Terra.

3 Movimento Estadual de Trabalhadores Assentados, Acampados e Quilombolas.

Em 2005 migrei para Ibirapitanga para organizar o movimento, mas vim parar em Dois Riachões porque o assentamento sairia mais rápido: mas demorou 18 anos (risos). Fui fazer agropecuária e me formei em 2010. Participamos da ocupação, começamos a trabalhar. Este trabalho que vocês estão vendo aqui começou em 2008. Optamos por trabalhar os conceitos que aprendemos no curso de agropecuária aqui na comunidade. Queríamos ficar na terra por acreditar na reforma agrária. Fizemos um curso de alto nível, com bons professores, boas discussões. Então escolhemos Dois Riachões. Me casei com Elimaria Silva, a Mara, uma companheira do oeste da Bahia que foi colega de curso mas adora trabalhar com alimentação agroecológica. Temos uma filha de seis anos, a Ester. E as coisas foram acontecendo…

Tuíra — Como surgiu o Assentamento Dois Riachões?

Luciano —O cacau na região Sul da Bahia era a principal fonte econômica, que detinha o poder político e também cultural. Esta região produzia muito cacau, as fazendas eram produtivas, era bom o financiamento do governo federal através da Ceplac. [4] O foco da produção de cacau era exportação.

4 Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira.

Uma das consequências da crise da lavoura cacaueira foi a vassoura-de-bruxa, que dizimou a produção de cacau, quebrou a região. Os trabalhadores migraram para outras atividades nos grandes centros. Também havia a má administração dessas propriedades na fase de declínio: a organização dos cacauicultores era muito individual, não conseguiam pensar o cacau no contexto da economia e essa região estrategicamente. Por outro lado, surge um novo fator na região, que é a luta pela reforma agrária. A partir dessa crise, onde não cabia fazer assentamento de reforma agrária, regularização de terra indígena e quilombola por conta do poderio que os cacauicultores tinham na política, surge uma brecha: a possibilidade de desenvolver os assentamentos. Os primeiros assentamentos vêm em 1975-80, ainda no auge do cacau, porém em regiões onde a terra não era tão valorizada e era desinteressante para os grandes fazendeiros, região de solo arenoso próximo ao litoral do sul baiano, assentamentos como Puchim Sarampo, Poço e Provedora. Com essa reorganização da estrutura fundiária, foi possível realizar os processos de movimentos sociais e a luta pela terra. Dentro da pauta do movimento Ceta, começamos a reivindicar várias fazendas para fins de reforma agrária. Em 2002, surge o acampamento Dois Riachões. Em 1998, saiu Cascata, Cruzeiro do Sul, Santa Irene, em 2004 saiu Serra de Areia, São João, Quarí, Terra Boa, Santa Cruz, Entre Rios; enfim, uma série de assentamentos, despertando em outros trabalhadores essa vontade de continuar o modo de vida trabalhando com cacau, mas agora num processo de reforma agrária e associativismo.

Nosso acampamento à beira da BA-652 em barracas de lona preta foi de 2001 a 2007. No dia do trabalhador, em 1º de maio de 2008, ocupamos o imóvel denominado Conjunto Dois Riachões. Dada a morosidade do Incra em desapropriar as áreas, ocupamos estrategicamente as áreas já vistoriadas e avaliadas: se der certo, deu; se não der certo, organizamos a luta dos trabalhadores novamente e pensamos em outras áreas, pois o papel do movimento dos trabalhadores, assentados e quilombolas, o Ceta, é organizar os trabalhadores e trabalhadoras para a luta e para, de forma consciente, conquistar os seus direitos.

Em 2008, o padrão produtivo da região era o pacote da “revolução verde”, difundida pela Ceplac através da assistência técnica baseada no aumento da produtividade para exportação de amêndoas secas de cacau. Mas nosso propósito era trabalhar com a agroecologia. A gente não tinha muita referência no Sul da Bahia, exceto o Terra Vista. [5] Não podíamos contar com a Ceplac, pois o modelo deles estava pronto. Trabalhamos na linha da formação dos agricultores. Esses trabalhadores vinham da “revolução verde”, trabalhavam com agroquímicos e precisavam reaprender a trabalhar com a terra. Nossa aposta inicial foi a soberania alimentar, produzir para se alimentar, pois os trabalhadores tinham uma alimentação muito restrita baseada no feijão, arroz, carne seca e farinha. A lógica era diversificar a propriedade para a alimentação interna e comercializar o excedente da produção. Nós pensávamos nessa linha da diversificação da produção porque o que encontramos aqui foi pasto para criação de gado e cacau abandonado. Então fomos estudar: cursos, capacitações de curta duração, parceiros, e fomos diversificando a produção – tudo isso com a agroecologia.

5 Assentamento Terra Vista fruto da luta pela reforma agraria do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na região de Arataca. Referência na produção de cacau orgânico.

Em 2010 formamos os primeiros quatro técnicos em Agropecuária Sustentável pelo Pronera.[6] Nessa época, organizamos a compra institucional da produção da comunidade, começamos a experimentar a produção agroecológica com o PAA, [7] que transformou os trabalhadores de reforma agrária: eles ganharam importância na cidade porque produziam para alimentar a população carente. A visão de que o sem-terra era preguiçoso, que não trabalhava, que não produzia começou a mudar, principalmente do ponto de vista social. De 2008 pra cá, nos deparamos com: 1) processo administrativo de desapropriação do imóvel e 2) constância das decisões de reintegração de posse interposta pela proprietária. Independentemente disso continuamos a organizar as famílias, aproveitamos os programas de aquisição de alimento.

6 Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária.

7 Programa de Aquisição de Alimentos.

 Em 2013, percebendo o declínio do PAA e das políticas sociais, decidimos mudar nossa estratégia de comercialização. Nossa ideia era aproximar a produção agroecológica do público da cidade, levando alimentos agroecológicos e a nossa história, modo de organização e a necessidade da reforma agrária popular.

Tuíra — O que levou vocês a criar a Rede Povos da Mata?

Luciano — Nós estávamos convencidos a repensar a estratégia da comercialização direta. Com a matriz da agroecologia bem desenvolvida. na passagem de 2014 para 2015, encontramos com dois membros da Rede Ecovida, da região sul do Brasil, que haviam organizado a rede Brotas Cerrado em Minas Gerais e vieram para organizar um núcleo aqui. Com a diversidade de movimentos, de agricultores, de organizações, eles perceberam que o mais interessante era fazer uma construção mais local mesmo. Começamos a participar. O primeiro encontro foi lá em Terra Vista em 2014, onde começamos a desenhar essa organização. As pessoas ainda não acreditavam na agroecologia, no associativismo, e nos empenhamos neste processo.

A fundação da Associação de Certificação Participativa ocorreu em 2015. A gente tinha a teia de agroecologia, que reúne vários movimentos sociais e trabalha as questões mais políticas, mas na ponta a gente não conseguia fazer a certificação pelas vias institucionais. A certificação com a participação dos agricultores possibilitou que esses agricultores pudessem ser reconhecidos por produzir com a matriz agroecológica, tendo a Certificação Participativa e o selo do Orgânico Brasil no seu produto, na sua feira. Essa inovação criou uma reviravolta no processo de comercialização nessa região sul da Bahia. Foi a primeira OPAC [8] da Bahia, e Dois Riachões (ainda ocupação) foi a primeira área com certificação participativa da Bahia. Hoje são 1 mil agricultores no estado da Bahia envolvidos. A então rede de agroecologia do Sul da Bahia se transformou em rede de agroecologia Povos da Mata, porque passou a incorporar, além da Mata Atlântica, o bioma Caatinga, em quatro núcleos: 1) Serra Grande: de Itabuna, Ilhéus, Uruçuca, Arataca, Santa Luzia até Camacã; 2) Monte Pascoal: Porto Seguro, Santa Cruz Cabrália, Belmonte, Eunápolis, Itagimirim, Itapebi, Itabela e Guaratinga; 3) Raízes do Sertão: Irecê; e 4) Pratigi: Baixo Sul, Ibirapitanga, Camamu, Gandu, Pirai do Norte, Valença, Santo Antônio de Jesus, Ipiaú, Jaguaquara, até perto de Salvador. Agora estamos chegando a outras regiões da Bahia.

8 Organização Participativa de Avaliação da Conformidade. 

Ganhamos um prêmio nacional na categoria Agroecologia pela Fundação Banco do Brasil em 2017. Com isso ganhamos visibilidade no país. Vieram reportagens e grupos de pessoas de todo Brasil para conhecer o nosso trabalho e viramos uma espécie de referência nacional. De 2015 para cá, a gente começou a fazer os processos de comercialização direta.

Tuíra — Nesse processo, vocês eliminam a figura intermediária, vocês conseguem também dizer ao consumidor de onde vem o alimento. Isso devolve a feira à população, pois muitas pessoas acabam consumindo tudo nas redes de supermercado.

Luciano — A gente abriu a feira de Itacaré, Algodões, Barra Grande, Itaipú de Fora, Ilhéus, Itabuna, Ibirapitanga, Gandú, e agora Salvador. Estamos melhorando o sistema produtivo das estações e feiras, funcionando em um circuito em que o caminhão vai carregado e volta carregado com produtos combinados: eles produzem o que não temos aqui e vice-versa. E temos o circuito agroecológico nacional Bahia, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Em 2017, fizemos um trabalho com o Slow Food e chegamos a 38 itens de produção, entre olerícolas, frutas e produtos beneficiados.

Tuíra — As famílias, quando chegam na terra, precisam se sustentar, comer para conseguir trabalhar e investir em outras frentes. E isso é difícil no início, principalmente porque o solo está degradado. Como vocês encararam este desafio?

Luciano — Sempre achamos muito importante que as famílias morassem aqui mesmo durante a ocupação. No começo, nosso único recurso era o PAA e a nossa estratégia era destinar uma parte dos fundos para estruturas coletivas. O recurso que seria destinado ao trabalho dos técnicos formava um fundo e a Associação, em assembleia, definia os investimentos. Primeiro foi a rede de água por gravidade, depois a unidade de beneficiamento de mandioca, depois a unidade de beneficiamento de frutas, depois a irrigação nas áreas de produção. E, em 2017, passamos a trabalhar com o cacau. Para escapar do modelo tradicional, de produzir e entregar ao atravessador que mediava com a multinacional, nós decidimos trabalhar na comercialização direta. Eliminamos o atravessador. E o desafio inicial era produzir um cacau agroecológico de qualidade.

Tuíra — Como é o processo até o cacau chegar no Centro de Inovação do Cacau (CIC), e o que as análises do CIC identificam?

Luciano —O trabalho começa lá na cabruca. Nós temos 160 hectares de cacau cabruca, 90% da variedade pará e parazinho. Colhemos só o que está em maturação ideal, o amarelo ouro. Juntamos um grupo de quatro a cinco agricultores para colher em mutirão. Quebramos no mesmo dia. No primeiro dia, ele fica 48 horas aqui, fechadinho, parado, e depois vamos virando a cada 24 horas. No sétimo dia ele está com a fermentação ideal; finaliza quando sua temperatura diminui. Terminada a fermentação, mudamos de espaço. O CIC analisa amêndoas chatas e com defeito, a quantidade de amêndoas violeta – que são as amêndoas que não fermentaram – e a presença de odores estranhos. Por isso esse espaço é longe das casas, longe de áreas que podem ser contaminadas com fumaça. Fazemos os testes de corte para saber como está a fermentação e a secagem, e depois mandamos para análise. Eles identificam os percentuais: cacau tipo 1, tipo 2 e tipo 3. Aqui batemos tipo 1 e, quando tem algum problema, ficamos no tipo 2.

Tuíra — Qual é o valor agregado?

Luciano — Com o cacau tipo 1, fino, comercializamos no circuito (PR, SP, RS, DF e MG) em pequena escala. O chocolate de alta qualidade vai para pequenas empresas em pequenas quantidades, tipo uma saca que segue por avião. Em 2017, negociamos um preço fixo de 270 reais pela arroba do cacau em amêndoa seca tipo 1. Tem também alguns produtores de chocolate que compram o cacau tipo 1 certificado por 300 reais a arroba. Ou seja: o cacau de base agroecológica ia para mercado convencional por 90 reais, e hoje negociamos por três vezes mais. Insistimos na cabruca, porque nesses últimos 25 anos foram desmatados aqui no sul da Bahia aproximadamente 301 mil hectares de cabruca para dar lugar ao eucalipto, pecuária e café e, por incrível que pareça, tem muita gente que ainda insiste no modelo tecnológico de tirar cabruca e colocar sistema tecnificado para produzir apenas 500 arrobas por hectare. Na nossa opinião, a cabruca é viável do ponto de vista econômico, mas principalmente social. Hoje, na região, sem a cabruca não existe agricultura familiar e camponesa para o pequeno produtor. Estamos disputando essa narrativa: a produção do cacau cabruca é viável. E colocamos nossas experiências também para além do cacau. Somente em cacau e olerícolas, a renda que entra no assentamento é cerca de 2.000 a 2.500 reais por família! Estamos provando que é economicamente viável. Lá no início, em 2008, era de 240 reais por família ao mês. Do ponto de vista ambiental é mais interessante ainda, porque não estamos tirando floresta para produzir cacau. Nós nos colocamos o desafio de mudar a cultura de produção do nosso território.

Tuíra — Vocês estão fazendo também o beneficiamento de outras partes do cacau, como a polpa? O cacau é um mundo particular; podemos dedicar uma boa parte dessa conversa somente a ele.

Luciano — Pois é, a cada dia descobrimos uma coisa nova no cacau. Nos interessa horizontalizar a cadeia produtiva em torno do cacau. Não adianta produzir amêndoa de qualidade para uma empresa, por exemplo, e ficar refém dela. Ou seja, substituir uma multinacional por uma empresa apenas. Queremos dominar toda a cadeia produtiva; à medida que entendemos os processos produtivos, tiramos estratégias de atuação. Já extraímos o mel do cacau de forma artesanal. Comercializamos a polpa de fruta direto nas feiras de orgânicos. Fazemos os nibs de cacau, que têm bom valor agregado. Capacitamos alguns jovens da comunidade em parceria com o curso de engenharia de alimentos do Instituto Federal Baiano, de Uruçuca. Nessa parceria, estamos fazendo um chocolate com 70% de cacau só com manteiga de cacau e açúcar demerara.

Tuíra — Vocês vão produzir o chocolate, este de “receita boa”, aqui mesmo no assentamento?

Luciano — Sim! Em 2017, isso era só um sonho. Mas recentemente recebemos os equipamentos da Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC, dentro de um projeto para introduzir um hectare de Sistema Agroflorestal, realizar quatro cursos de produção de chocolate artesanal e aquisição de equipamentos de chocolate para instalação de uma agroindústria no assentamento. Estamos colocando um desafio para o Instituto Federal Baiano, por meio do curso de engenharia de alimentos, que é de substituir o açúcar pela jaca. Se for jaca mole, a concentração de açúcar é maior ainda. Estamos tentando extrair a frutose da jaca e utilizá-la no lugar do açúcar demerara. A jaca sempre foi um problema aqui porque fazia muita sombra para o cacau. Muita gente queria tirar a jaqueira, mas nós defendemos fazer apenas a poda e manter a produção de jaca. Então veio a possibilidade de trabalhar a proteína da jaca. Olha isso: aprendemos também a fazer a proteína de jaca e hoje vendemos muito nas feiras, e tem muita demanda em Salvador e São Paulo. É carne de jaca, palmito de jaca, escondidinho de jaca, coxinha de jaca. Recebemos recentemente aqui um programa da TV Futura, Amor de Cozinha, de Regina Tchelly, para fazer uma matéria bonita sobre a empada de jaca na merenda escolar. Um produto que não tinha nenhum valor comercial nem cultural hoje está introduzido na base alimentar. E tem uma disputa cultural, porque as pessoas vão experimentando, conhecendo as possibilidades de alimentos a partir da jaca e tal…

Tuíra — Então Dois Riachões não é um assentamento exclusivamente de produção de cacau. Como é a alimentação dos assentados?

Luciano — A reforma agrária tem dois objetivos bem claros: a distribuição da terra e a produção de alimentos. A função social da propriedade a partir dos assentamentos, da agricultura familiar, das comunidades indígenas e quilombolas, é a produção de alimentos. Não é produzir commodities! Outra coisa: era proibido ao agricultor produzir comida onde deveria produzir cacau. Eu já vi muito fazendeiro mandar o trabalhador rural desfazer a horta com a qual ele alimentava a família dele porque o tempo dedicado à horta era tempo desperdiçado, do ponto de vista do fazendeiro. A lógica era: o tempo do trabalhador deve gerar lucro para o patrão. Mas quando a gente cria uma comunidade, um assentamento, essa cultura ainda está na cabeça do trabalhador. Está introjetada, é o oprimido que sonha em ser opressor. Então é preciso reaprender. Olha que exemplo maluco: quando chegamos aqui, tinha agricultor que não sabia plantar coentro, não sabia fazer um canteiro. Eles esqueceram! Então fizemos do trabalho em mutirão uma estratégia pedagógica de partilha dos conhecimentos. E, nesse processo, percebemos que duas coisas caminham juntas: primeiro o trabalho coletivo em mutirão e, junto com isso, a educação. É preciso reaprender pela partilha do conhecimento!

Quando o agricultor vai trabalhar para a grande fazenda, vende o tempo dele em forma de mão de obra. Aqui a mão de obra é a nossa. Mas precisa organizar, planejar. Isso não é fácil para quem está acostumado a obedecer. E isso tudo é um exercício, é começar a estimular a voz de quem está acostumado a calar, é conversar para organizar quem está acostumado a obedecer. Nesse processo, fomos convencendo as famílias a diversificar a produção. A segunda etapa, igualmente difícil, é compreender que o alimento que ele faz é bom para ele e para os outros também. Senão o agricultor produz um alimento de qualidade, o vende, e compra no mercado um alimento com veneno. Aí não dá, né? Então é preciso aprender a aproveitar as várias possibilidades de receitas com a jaca, banana da terra, com o aipim, com a amêndoa de cacau que antes só se vendia, e fazer um bom nibs, um bom prato. Extrair o mel. E assim, sair daquela lógica de que o aipim cozido é o único prato possível. São muitas as possibilidades de receita.

Tuíra — É escapar um pouco da lógica de plantar, vender e, com o dinheiro, comprar comida. Ou seja, escapar deste círculo vicioso.

Luciano — Veja o exercício que fazíamos com as famílias. Perguntávamos: quantos sacos de aipim você produziu neste ano? Quantos sacos de feijão? Quantos cachos de banana? E milho, porco, galinha…? Depois a gente pegava esses dados, transformava em dinheiro e mostrava para o produtor. Quer dizer, se ele não produzisse a banana, teria que comprar, e, produzindo, ele não precisa comprar, entende?

Tuíra — O que vocês propõem é uma outra relação – seja com as plantas, seja com a sociedade –, abandonando a época de ouro do cacau, que era somente de exploração. É uma proposta outra, de lidar com a diversificação da produção e das plantas. Quanto mais elementos, melhor para o cacau e para as famílias. Ao falar de agroecologia, de cuidado com a terra, de produzir sem veneno, estamos falando de vida. Que vida queremos viver?

Luciano — É tudo multidisciplinar. Ao mesmo tempo em que trabalhamos a produção de alimentos na parte técnica, para compreender a matriz agroecológica é preciso associá-la à educação, ao gênero, à juventude, às relações de produção, às relações de trabalho… A gente sempre fala: “tem que colocar os meninos lá pra estudar”. Mas de repente a gente vê que alguns problemas de dez anos atrás permanecem: o analfabetismo. Os jovens voltam dos estudos mas não se envolvem com os temas da associação. Dou o exemplo para ressaltar este aspecto da coerência. Junto com a produção agroecológica, trabalhamos com a educação no campo, pois estamos falando de mudanças de comportamento. Precisa ser uma educação em que esses jovens possam ser incorporados à vocação de uma agricultura que não passa pela venda da força de trabalho, e que consigam administrar os meios de produção conquistados com muita luta. A educação no campo pode qualificar as relações de produção e de comercialização. O campo precisa de profissionais de diversas áreas, pois acreditamos num campo que tenha gente, serviços e produção de cultura. Esse nosso esforço de trabalhar com a agroecologia e a reprodução de modos de vida no campo exige que os profissionais recém-formados na área de educação, ciências agrárias, direito e saúde conversem com os nossos conhecimentos. Estamos chamando isso de educação do campo contextualizada, para não perder esses novos profissionais para a lógica da indústria do veneno ou do capital – porque quem está no sistema não está invulnerável às seduções do mercado. E não adianta apenas um assentamento trabalhar na lógica da agroecologia isolado: ele precisa influenciar o território. A questão ambiental é outra pauta urgente hoje. Estive na Itália recentemente para falar de cacau agroecológico, mas falei também de biodiversidade, de bioma. Falei da produção do cacau articulado com o bioma em que ele está inserido.

Tuíra — O cacau cabruca é o exemplo da interdependência. Porque ele só vai bem se tudo perto dele estiver igualmente bem. Se tudo estiver mal, o cacau vai mal.

Luciano — No auge do cacau, quando ele representava 70% da economia baiana, a produção nas melhores fazendas não passava de 50 arrobas por hectare. Hoje os caras querem produzir 500 arrobas por hectare com o discurso de que isso vai melhorar a vida. Naquele tempo do auge, o índice de analfabetismo desta região estava entre os piores do Brasil, o salário mínimo era o mais desvalorizado. É essa a herança do cacau que queremos trazer? E o que a gente quer para as pessoas que saíram do campo? Porque cerca de 97% da população carcerária de Itabuna, Ilhéus e até Porto Seguro é composta por filhos e netos de agricultores. Como trazer também para a juventude do campo que eles podem ser introduzidos num sistema de produção e comercialização de alimentos? Com educação e modelos tecnológicos de produção que hoje não são apenas de força bruta: a cooperativa, o aplicativo, a roçadeira, o perfurador de solo, a internet, mas também o motorista, o técnico, o agrônomo, o pedagogo… É compreender o campo com a sua gente.

Tuíra — Em Dois Riachões vocês apresentam muitos elementos – tanto no trabalho de rede e articulação política em várias frentes, quanto na educação, nas relações ambientais, econômicas e sociais – que apontam para um novo paradigma de sociedade. É isso que escutamos quando vocês contam essas experiências. Vocês praticam uma política baseada no cultivo.

Luciano — A gente compreende a matriz agroecológica como uma ciência. Estamos experimentando e demonstrando que é possível um modelo de matriz agroecológica passando pela produção de alimentos e sua comercialização, fora do modelo de integração do Estado. A maioria das políticas desenvolvidas principalmente nos governos do PT, [9]quando a tendência DS [10]ocupou o Incra e o MDA,[11]sempre apoiaram a agricultura familiar, os pequenos e médios agricultores e buscaram integrá-los ao grande comércio, ao agronegócio. Isso aconteceu com as políticas de integração com a Sadia no Rio Grande do Sul na produção de suínos e aves e, aqui no Nordeste, com o trabalho das cooperativas e o cacau no sul da Bahia. Enfim, há toda essa integração da pequena agricultura ao grande mercado, como Walmart, Pão de Açúcar, Macro, etc. Este modelo, no entanto, é uma armadilha. Compreendemos que o processo deve ser autônomo. Temos pouca gente no campo – hoje são 20%, e 80% na cidade – e a política de reforma agrária não avançou, não teve começo, meio e fim. A reforma agrária vai respondendo ao calor da luta social que os movimentos imprimem, ora mais intenso, ora menos intenso a depender da conjuntura. Nós queremos uma produção que dialogue com o consumidor – esse é o diferencial. A maioria dos consumidores está na cidade e estabelecer essa relação cidade-campo é um desafio tanto na produção de alimentos quanto na construção de um projeto de sociedade. Outro elemento é que a luta social dos trabalhadores do campo não pode estar dissociada da questão ambiental. É produzir alimento preservando o meio ambiente e convivendo com os diferentes tipos de biomas. O agronegócio não faz isso; ele destrói o meio ambiente para produzir cada vez em escala maior. Firmar um modelo agroecológico de produção exige sistemas participativos de associativismo e cooperativismo que garantam para esses trabalhadores e suas organizações a organização da produção em processos coordenados por eles mesmos de forma autônoma. Caso contrário, ocorre uma quebra, uma ruptura. Mas como fazer com que isso tudo se transforme em política? Como isso vira uma necessidade para a sociedade? Quem consome precisa compreender esse processo. Recentemente teve o debate da Lei da Agroecologia e Produção Orgânica no estado da Bahia e só estavam presentes as organizações do campo. Se não houver entendimento da sociedade baiana e do campo da Bahia de que essa lei é importante, não vai adiantar de nada. Então a gente precisa produzir, trabalhar com agroecologia, trabalhar com os processos organizativos da produção agroecológica e dialogar com esses atores na ponta a respeito da importância disso para a sociedade e para o país como um todo. Quem a gente chama para esse time dos territórios agroecológicos? E como a gente junta força para dizer assim: “agora a nossa pauta é a da produção agroecológica, da comercialização direta”, ao mesmo tempo em que o Estado cria as políticas públicas para fomentar esse modelo? Nos últimos tempos os movimentos e as organizações foram criando mecanismos de sobrevivência e se esqueceram de um projeto nacional. Hoje não temos um projeto nacional de esquerda para contrapor ao projeto hegemônico, que é uma porcaria, uma aberração. Como recompor isso? Tem movimento que se afastou da base, ficou 20 anos sem aparecer e, quando volta, o trabalhador olha e pergunta: “por onde você andou?”. O processo, o modelo e as experiências que a gente vem construindo nos permitirão, no médio prazo, constituir uma frente, um bloco na Bahia e talvez no Brasil que conseguirá dizer assim: a agroecologia é o processo mais inovador na luta dos trabalhadores. Ela organiza a luta numa discussão mais ampla: gênero, juventude, produção, comercialização, educação, formação organizacional do território… Dá pra discutir tudo isso de forma holística.

9 Partido dos Trabalhadores.

10 Democracia Socialista.

11 Ministério do Desenvolvimento Agrário à época; extinto no Governo Temer.

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