Por Luiza Ferreira – 29/02/2024

 

 

Entrevista com o pesquisador Vinícius Fernandes revela alguns dos impactos e estratégias do tecnoautoritarismo no Brasil e no mundo

Crédito: Access Now via CC 4.0

No começo deste ano, a confirmação da suspeita da existência de uma Abin paralela através das investigações da Polícia Federal acrescentou ao gosto amargo do legado do bolsonarismo. Segundo as investigações, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) teria sido usada de forma ilegal para espionar políticos, jornalistas e autoridades adversárias ao governo de Jair Bolsonaro, com o intuito de favorecer o clã do ex-presidente.

Os ministros do STF Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia e o ex-governador do Ceará e hoje ministro da Educação Camilo Santana estariam entre as autoridades vítimas do esquema criminoso de monitoramento. A atuação paralela da instituição se dava através da utilização do software israelense First Mile. 

A PF realizou operações contra Alexandre Ramagem (PL-RJ) e Carlos Bolsonaro, onde encontrou indícios da obtenção de “materiais” ilegais através da agência, fruto do monitoramento criminoso. De acordo com as investigações, o filho do ex-presidente era quem chefiava o núcleo político da espionagem, sem o aval da Justiça, de adversários políticos, autoridades e jornalistas. A PF já teria indícios de que Jair Bolsonaro seria um dos favorecidos com informações do esquema de espionagem ilegal. 

As revelações colocam em foco a questão da atuação clandestina da agência durante o governo de Bolsonaro, e levantam sérias preocupações sobre o uso criminoso de uma instituição pública e de dispositivos de vigilância pelos governos de extrema-direita para controle e acesso à informações privilegiadas e favorecimentos pessoais. E isso também implica na segurança coletiva da população brasileira. Quem fala um pouco mais desses impactos é o pesquisador Vinícius Fernandes da Silva, da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa.

Escola de Ativismo: Há novidade na atuação clandestina da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo Bolsonaro? Como isso impacta a segurança coletiva e a privacidade dos ativistas?

Vinícius Fernandes da Silva: Sim e não. Vamos lá. A Abin foi criada em 1999, sendo sucessora direta do Serviço Nacional de Informações (SNI), o órgão responsável pelas informações que orientavam a repressão da ditadura a militantes, ativistas, partidos políticos, sindicatos, mídia, igreja, entre outros. Portanto, a Abin herdou um know how, um modus operandi do SNI, isso muito pela forma como o processo de redemocratização foi tutelado pelos militares, não havendo uma ruptura, mas sim uma continuidade. Mesmo instrutores, a mesma cartilha, reproduzindo a mesma lógica. Após a redemocratização, o uso para fins políticos já ocorreu, como no caso de 2002 com denúncias de que agentes da Abin participaram de uma operação que determinou a desistência da ex-governadora do Maranhão, Roseana Sarney, à disputa pela Presidência da República. Também tivemos um caso revelado em 2008 com grampos da agência em alguns parlamentares, no qual a Abin negou a participação, mas gerou o afastamento da cúpula do órgão.

Entretanto, neste caso recente do governo Bolsonaro, as provas são irrefutáveis. A Abin através do contrato 567/2018, de caráter sigiloso, utilizou a ferramenta de vigilância de 26 de dezembro de 2018 até 8 de maio de 2021, monitorando, segundo denúncias, adversários políticos, ativistas, senadores, governador e até ministro do Supremo Tribunal Federal STF. Na sociedade da informação atual, a utilização destas ferramentas de vigilância, no caso, o FirstMile com capacidade de monitoramento em tempo real de até 10 mil donos de celulares a cada 12 meses, gera enorme insegurança da privacidade dos ativistas.

EA: O que isso nos diz sobre o estado da vigilância hoje no mundo contra a sociedade e movimentos sociais?

VFS: Com a constante evolução tecnológica, a capacidade técnica e instrumental do Estado exercer o seu legítimo uso da força aumenta. Com isso, as ações em zonas de anomias, caracterizadas por lugares de ausência de direitos, potencializam o dano ao Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, a tecnologia fora das regras democráticas irá perpetuar ações de violência estrutural dentro da dinâmica patriarcal e eurocentrada do mundo.

Desde o caso Snowden, em 2013, quando o ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança (NSA) revelou documentos da agência e da CIA sobre a espionagem em massa de cidadãos estadunidenses, além da interceptação de conversas privadas de lideranças mundiais da época, como Dilma Roussef e Angela Merkel, a tecnologia ampliou o poder do estado.

A empresa dona da tecnologia espiã, a Cognyte (ex Verint), não por acaso é uma empresa israelense, pertencente a um estado militarizado, testando suas ferramentas de vigilância contra o povo palestino. O exército brasileiro é o maior comprador da tecnologia no país, gastando mais de 82 milhões de reais entre 2014 e 2023.

Nos países latino-americanos, de histórico recente de ditaduras militares, temos ainda uma preocupação maior pela herança do estado à margem das regras com a justificativa da segurança pública dos homens de “bem”. 

EA: Qual é o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) no controle e supervisão das atividades de inteligência, especialmente em casos de espionagem ilegal?

VFS: Como já decidido pelo STF, as atividades de inteligência da Abin não operam em campo de exceção dos direitos fundamentais. Pelo contrário, as atividades se submetem às regras do Estado Democrático de Direito e respeito aos direitos fundamentais (ADPF 695). Portanto, as ações descritas pela Abin Paralela são ilegais e devem ser julgadas de acordo com a lei.

Recentemente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) provocou o STF através da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 84), sugerindo que a Corte dite regras a serem seguidas até que haja uma regulamentação específica sobre o tema. A PGR entende que há uma lacuna constitucional na regulamentação da questão, então acionou o STF para que garanta balizas provisórias à salvaguarda dos direitos fundamentais à intimidade e à privacidade, e à inviolabilidade do sigilo das comunicações pessoais e de dados, até que o Congresso faça o seu papel em legislar sobre o tema.

A última movimentação da ADO, o Ministro Cristiano Zanin, relator do caso, abriu prazo de dez dias (iniciado em 02/02) para que o Congresso Nacional preste informações sobre a regulamentação do uso de ferramentas de vigilância. É uma medida de praxe, porém mostra o interesse na celeridade do assunto na Corte.

EA: Como a utilização de informações obtidas ilegalmente pela Abin pode ter impacto na integridade de processos democráticos e nas relações políticas no Brasil? Como isso impacta na defesa da democracia brasileira?

VFS: Ainda saberemos melhor de acordo com o progresso das informações o tamanho do impacto da Abin Paralela. Os primeiros relatos, como o divulgado em reportagem da TV Band, demonstra uma lista com pelo menos 21 nomes, citando deputados, senadores da CPI da Covid, ex-bolsonaristas, ex-governador e ministros do STF.

Nessa lista, há nove senadores que integraram a CPI da Covid, entre os quais o presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM) e o relator, Renan Calheiros (MDB-AL). Outro integrante da CPI que teria sido espionado é o Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), líder do governo no Congresso. Além do ex-governador de São Paulo, João Doria, entre outros nomes.

O teor político da ação demonstra a utilização das ferramentas do Estado para além das regras do jogo democrático, expondo o uso do espaço público para a manutenção do poder. As medidas necessárias devem ser tomadas, não podemos aceitar novas impunidades ou anistias.

EA: Quais são os principais mecanismos de vigilância utilizados hoje pela extrema-direita para monitorar jornalistas, políticos e autoridades, conforme indicado pela investigação em curso?

VFS: O FirstMile é mais uma das diversas tecnologias utilizadas de forma invasiva pelo Estado. Através do projeto Defendendo o Brasil do Tecnoautoritarismo, a Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa observou o uso de diversas ferramentas e técnicas por parte do Poder Público, como:

Projeto Excel, o projeto foi instituído pela Portaria nº26/2020, Secretaria de Operações Integradas/SEOPI visando viabilizar o compartilhamento de dados das Secretarias de Segurança Pública dos Estados à Diretoria de Inteligência/DINT para gerar uma base de dados focada em desenvolvimento de inteligência de segurança pública. A Data junto a outras entidades da sociedade civil enviaram um ofício ao Ministério Público Federal sobre o caso;

Harpia Tech e Pegasus, ambas as tecnologias visam a uma maior vigilância do cidadãos possibilitando a coleta, cruzamento e análise de dados pessoais podendo gerar perfis detalhados. Representam um evidente exemplo de software de espionagem, com a SEOPI liderando o processo de aquisição de ambas. O caso foi analisado pelo TCU que, no entanto, não impediu a contratação;

Cortex, sistema utilizado pela Agência Brasileira de Inteligência que possibilita o acesso a câmeras rodoviárias e monitoramento de pessoas. Entenda mais sobre a atuação da Data junto à sociedade civil frente ao MPF aqui.

Cadastro Base do Cidadão, uso de decreto para facilitar a interoperabilidade dentro dos sistemas públicos, inclusive quanto à serviços de inteligência. O Decreto 10.046/2019 desconsidera normas de proteção de dados pessoais e representava um risco à população pela falta de procedimentos para o tratamento de dados. O caso foi analisado em julgamento conjunto da ADI 6649 e ADPF 695, tornando-se um caso emblemático dentro da disciplina da proteção de dados pessoais.

EA: Em sua visão, existe uma tendência global de governos de extrema-direita utilizarem órgãos de inteligência para alcançar seus objetivos políticos? Vimos isso especialmente nos EUA, que utilizavam da espionagem em massa para vigiar não só a população norte-americana, mas outras…

VFS: Sim, temos diversos exemplos só do uso do First Mile ao redor do mundo, possuindo um histórico documentado de violações aos direitos humanos. Há registros da utilização das tecnologias para perseguição e violação de direitos de opositores no Sudão e, em Myanmar, os sistemas estiveram relacionados no incidente que levou a prisão de mais de 12.000 e ao assassinato de 1.600 pessoas.

EA: De que forma a sociedade civil pode se proteger contra possíveis abusos de vigilância e espionagem ilegal por parte do Estado?

VFS: A sociedade civil deve pressionar por uma regulamentação das ferramentas de inteligência dentro dos direitos fundamentais de proteção dos cidadãos. Devemos promover um ambiente em rede de fortalecimento da sociedade civil, capacitando e orientando para as melhores práticas de proteção e preservação deste espaço conquistado democraticamente. Devemos incidir nos poderes públicos para que haja um sistema de freios e contrapesos, onde os três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) tenham autonomia para que exerçam as suas funções, mas com um controle externo dos outros poderes, sempre em um contexto de accountability. O controle cidadão também deve fazer parte desta narrativa, promovendo a participação de organizações do terceiro, academia, ativistas em mecanismos de transparência e efetivo diálogo com as demais instituições públicas.

EA: Quais são as medidas recomendadas para fortalecer a transparência e prestação de contas nos órgãos de inteligência, visando evitar práticas de espionagem ilegal e garantir o respeito aos direitos individuais?

VFS: É necessário um desenho normativo claro e objetivo que determine em lei as regras para a utilização destas ferramentas, a partir do artigo 5º da Constituição, dos direitos e deveres individuais e coletivos, da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, sobre interceptações telefônicas, e a Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1.999, que institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria a Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Toda atividade policial deve ser resguardada pela autorização jurídica pertinente, observando a discricionariedade, o devido ordenamento legal e a proteção dos dados sensíveis dentro dos direitos fundamentais.

*Vinícius Fernandes da Silva é graduado em gestão de políticas públicas e mestre em mudança social e participação política pela USP, atuando em temas relacionados à democracia, segurança pública e artes.

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