Pesquisadora da obra de Angela Davis e fundadora do Coletivo Di Jeje, Jaque Conceição relata como o contato com a autora estadunidense permeou sua vida e a encorajou a construir um espaço de aprendizagem e produção de conhecimento com mulheres negras

Jaque Conceição

Li pela primeira vez o nome Angela Davis no ano de 2013. Eu estava estudando um texto de Herbert Marcuse em que ele conta sobre a mente mais brilhante e inteligente que ele havia conhecido: Angela Davis. Fiquei muito curiosa. Descobri que essa foi uma das mulheres mais temidas pelo governo dos Estados Unidos entre 1968 a 1972. Uma mulher negra, de 24 anos, inimiga número um dos Estados Unidos? Essa história eu precisava conhecer, para poder contar.

Quando Angela Davis retornou da Alemanha em 1967, depois de concluir o doutorado em filosofia alemã clássica sob orientação de Theodor Adorno, ela começou a lecionar na Universidade da Califórnia e iniciou sua militância junto ao Black Panther Party (Partido dos Panteras Negras). Parte de seu trabalho consistia na formação política dos membros do Partido e na luta pela libertação de presos políticos, como George Jackson, que foi também seu grande amor juvenil. Quando o irmão de Jackson, Jonathan, tramou e executou o sequestro de George da penitenciária de San Quentin durante um julgamento, culminando na morte de quatro homens – incluindo o próprio Jonathan e um juiz federal –, Davis foi acusada de cúmplice, pois as armas usadas na operação estavam em seu nome. Depois de quase quatro anos, ela foi finalmente julgada e absolvida do crime e retirada da lista dos dez mais perigosos do FBI. Tudo isso com apenas 26 anos de idade.

No ano seguinte ao meu encontro inicial com Davis, fui a Salvador pela primeira vez. Andando pelo Mercado Modelo, um senhor negro, que vendia pimentas, me disse: “Menina, você parece com os Jejes. Você sabe quem foram eles? Vou te contar: os Jejes são um povo guerreiro, andarilho, do norte da África. Onde eles chegam, chega a morte, o medo, chega a destruição. Você me lembra muito as mulheres guerreiras Jeje.”

Essas duas histórias ficaram marcadas em mim: a história de uma mulher negra, que com nada mais que sua inteligência e poder de falar, colocou em choque toda a elite branca de um país explorador e racista; e a história de um povo africano, de força e rebeldia. Passei o ano de 2014 lendo e pesquisando textos escritos por Davis, como que costurando uma colcha de retalhos, porque as obras chegavam aos poucos para mim. Até 2017, havia apenas dois de seus livros traduzidos para o português (A democracia da abolição e O povo contra Angela Davis) e dois artigos, que eram entrevistas traduzidas. O pouco material que consegui acessar foi resultado de uma exaustiva pesquisa na internet. Nessa época, tive contato com Mulheres, raça e classe; Mulheres, cultura e política; São obsoletas as prisões?; O legado do blues para o feminismo negro; Palestras sobre Libertação; e A comunidade escrava e o legado da mulher negra, todos em inglês.

No final daquele ano, fui aos Estados Unidos, onde consegui ter contato com mais uma série de materiais produzidos por Davis – com aquilo que ela vem produzindo há mais de meio século sobre racismo e formação da sociedade ocidental e capitalista.

Angela Davis vem de uma longa tradição de teóricos críticos ligados à Escola de Frankfurt, uma corrente da filosofia política criada no começo do século passado como uma estratégia de enfrentamento ao fascismo e conservadorismo que dominavam cada vez mais as ciências sociais. A base de seu pensamento está na tese central da Teoria Crítica: a opção pela violência como processo civilizatório é um traço da socialização dos indivíduos, e essa opção empurrará a sociedade cada vez mais para a barbárie. Em outras palavras, os mecanismos de controle e validação social tornam os indivíduos incapazes de fazer a crítica social e avançar nos processos civilizatórios, pois eles se tornam reprodutores de um sistema que segrega, condiciona e domina através da violência – reproduzindo, então, esse mesmo sistema. A grande contribuição de Davis é introduzir neste debate a questão racial, ou o racismo, pautando-o também como estratégia violenta de dominação e segregação.

Em Palestras sobre Libertação, originalmente publicado em 1970 pela Editora Randow em Nova Iorque, mas com uma tradução minha para o Coletivo Kilombagem, Davis nos diz que:

“A ideia de liberdade tem sido justificadamente um tema dominante na história das ideias ocidentais. O homem tem repetidamente definido a sua liberdade como algo inalienável. Um dos paradoxos mais agudos presentes na história da sociedade ocidental é que, enquanto no plano filosófico, a liberdade foi delineada da forma mais elevada e sublime, na realidade concreta, para alguns ela é marcada pela forma mais brutal que é a escravidão. Na Grécia Antiga, onde a democracia teve a sua origem, não se pode esquecer que, apesar de todas as afirmações filosóficas da liberdade do homem, apesar da demanda de que o homem só podia realizar-se através do exercício da sua liberdade como um cidadão da polis: a maioria das pessoas em Atenas não era livre. As mulheres não eram cidadãs e a escravidão era uma instituição aceita. Mas lá, houve definitivamente uma forma de racismo presente, e apenas para os homens gregos foram concedidos os benefícios da liberdade: todos os não-gregos foram chamados bárbaros e por sua natureza não poderiam ser merecedores ou mesmo capazes de exercerem a liberdade.”1

1 Tradução de Jaque Conceição. Disponível em: http://rapefilosofia.blogspot.com.br/2015/07/texto-completo-de-angela-davis.html

A partir disso, Davis aponta que a construção de todos os conceitos que moldam a identidade do indivíduo moderno são consolidadas sob a perspectiva de negação da existência do indivíduo negro, justamente porque o coloca na condição de escravo e, portanto, sem liberdade – portanto, não indivíduo.

Quando retornei ao Brasil, profundamente marcada pelas leituras raciais produzidas por Davis e pela experiência de entrar em contato com uma parte importante da história do movimento negro mundial, nos Estados Unidos, o processo de iniciação no candomblé me atravessava por completo.

Lembro-me de um dia, sentada depois de um jogo de búzios, pensando sobre minha vida enquanto mulher negra, sobre minha história, neta do meio de uma família de mulheres negras guerreiras, que vieram do Sul da Bahia para viver e desbravar terras na periferia de São Paulo. Sentada ali, pensando em quantas dores já haviam me perpassado em menos de 30 anos de vida, me lembrei de uma frase que li em um artigo de Angela Davis de 1969: quando vozes negras se levantam, o mundo estremece.

E foi então, em novembro de 2014, que ficou óbvia para mim a necessidade de um espaço de formação política e produção de conhecimento sobre a mulher negra. Nosso primeiro curso foi justamente sobre o pensamento de Angela Davis, partindo da necessidade de materializar um espaço de produção de pensamento social preto, que paute as questões raciais pelo viés da filosofia política. O curso aconteceu em parceria com Coletivos Negros e um Núcleo de Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. A idéia era apresentar algumas ideias iniciais sobre a autora que nos fornecessem pistas para avançar nas investigações de suas produções teóricas.

O conceito central que abordamos foi a noção de liberdade desenvolvida por Davis entre 1964 e 1972. Para ela, liberdade não poderia ser uma categoria abstrata e individual, já que, da perspectiva dos povos africanos, escravizados e explorados no ocidente, liberdade trata de algo concreto e bem objetivo: muitas vezes, ser livre implica abrir mão da própria vida, pois vida e trabalho dividem o mesmo tempo e espaço, um mantido pelo outro; logo, vida e trabalho se traduzem em toda a nossa existência. Em Palestras sobre Libertação, ela nos diz ainda que:

“O homem é livre ou não é livre? Deveria ele ser livre ou não deveria ser livre? A história da Literatura Negra prevê, em minha opinião, uma explicação muito mais esclarecedora da natureza da liberdade, sua extensão e os limites dos discursos filosóficos sobre este tema na história da sociedade ocidental. Por quê? Por numerosas razões. Em primeiro lugar, porque a Literatura Negra neste país e em todo o mundo projeta a consciência de um povo que tem seu acesso à liberdade negado. Os negros têm exposto pela sua própria existência as insuficiências da liberdade, não só em sua prática, como também na sua formulação teórica. Porque se a teoria da liberdade fomenta a separação entre o conceito e a prática, ou seja, o que se pensa, não se vivencia então isso significa que algo deve estar errado com o conceito.”2

2 Tradução de Jaque Conceição. Disponível em: http://rapefilosofia.blogspot.com.br/2015/07/texto-completo-de-angela-davis.html

Foi um curso maravilhoso. Houve 350 inscritos, dos quais 290 eram estudantes negros da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O que mais me marcou foi a fala de uma jovem de 22 anos, aluna de engenharia da computação, vinda da Baixada Fluminense e contemplada pelo sistema de cotas. Sua fala me emociona até hoje, três anos depois: “Ontem eu pensei em me matar, ando triste, deprimida, parece que me odeiam nesse lugar; mas hoje, depois de ouvir você falar sobre Angela Davis, eu senti que vale a pena lutar, não só por mim, mas pelos que virão.” Aquilo me tocou de uma forma muito profunda. Esse processo de empatia, de identificação com o pensamento de Angela Davis, certamente se deve ao fato de sermos solitárias enquanto mulheres negras. Somos sombras que circulam nos espaços embranquecidos. Quando finalmente encontramos uma voz que pode nos guiar neste mundo de dor e solidão, nos sentimos amparadas e apoiadas. A intelectualidade de Angela Davis, e de tantas outras intelectuais negras ao redor do mundo, tem sido nosso sol de cada manhã, e nosso luar nas noites de desespero e descrença, como nos sentimos após o extermínio de Marielle Franco.

E foi depois de ouvi-la, apesar de todas as angústias e dúvidas sobre como seria o futuro, que decidi buscar alternativas para manter o Coletivo Di Jeje. Hoje, quase quatro anos depois desse encontro, ele é o primeiro centro de pesquisa e formação política feito por mulheres negras, para mulheres negras, com um método de trabalho pedagógico desenvolvido para potencializar as negras vozes que participam de nossos encontros presenciais e virtuais. Temos sete cursos presenciais e uma loja com mais de 20 cursos de temas que debatem o universo da mulher negra. Em nossos encontros presenciais e virtuais já participaram mais de 3000 mulheres negras. Tudo isso planejado e mantido por mulheres negras.

Nosso modelo de gestão financeira adota apenas o autofinanciamento, ou seja, não contamos com apoio ou patrocínio institucional de empresas, organizações, fundações ou poder público. Os 160 mil reais arrecadados nesses três anos e meio vieram da venda de cursos e da doação de bolsas de estudo feita por pessoas físicas, principalmente mulheres.

Hoje, o maior desafio do Coletivo Di Jeje é alcançar as mais de 50 milhões de mulheres negras, levando o acesso ao conhecimento e a história dos negros e negras em nosso país, por que o conhecimento emancipa, o conhecimento liberta!

Seguimos, pois quando vozes negras se levantam, o mundo estremece! _

Se preferir, baixe o PDF da revista Tuíra #01.

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