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Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

Werá Jeguaka Mirim, o rapper Kunumi MC – quando a pessoa se torna ativista

Werá Jeguaka Mirim, o rapper Kunumi MC – quando a pessoa se torna ativista

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea Carolina, Ariel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

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Escola de Ativismo

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Werá Jeguaka Mirim, o rapper Kunumi MC1

1 O primeiro encontro com Werá Jeguaka Mirim foi em Rio Claro, SP, em 2010, quando tinha 9 anos e participou com a família do 3º Bate-papo na Floresta, organizado pelo Arquivo Público e Histórico, na Floresta Estadual, com as crianças do 4º ano da Escola Djiliah Camargo de Souza. Em 2018, nos reencontramos no SESC Vila Mariana, e aquela criança agora era o rapper Kunumi MC, mais desenvolto no português e confiante de seu ativismo pela causa indígena.

Protesto

Eu sou ativista pela demarcação das terras do povo indígena. Quando eu estava com 13 anos, em 2014, aconteceu a Copa do Mundo. Os caras da FIFA vieram para convidar duas pessoas da Aldeia Krukutu2 para participar e as lideranças daqui escolheram [quem seria]. Uma semana depois, vieram pedir para escolher mais um para a abertura, para representar o povo indígena e soltar a pomba da paz. Meu pai, Olívio Jekupé, me indicou, e eu aceitei. Fizemos o ensaio e ficou bom, só que, dois dias antes da abertura, o cacique teve ideia de alguém fazer um protesto, e ele pensou que na hora alguém poderia soltar uma faixa escrita Demarcação já. Levamos a faixa pra ver o que ia dar, só que levamos escondido. Foi aí que o outro menino que estava aparecendo na TV não fez o protesto e sobrou pra mim. Se eu não fizesse aquilo já era, eu sabia que o futuro dos povos indígenas estava nas minhas mãos. Eu sabia que era importante, e eu fiz no meio do campo do Itaquerão. Muita gente me viu, muita gente. Quando saí do campo os jogadores pegaram a faixa e eu deixei, fui ver o jogo lá em cima e voltamos para casa. Contei pro meu pai, que achou estranho, disse que não viu nada, só o menino soltando a pomba da paz. A TV não mostrou o protesto que eu fiz. No outro dia vieram europeus, muita gente de fora do Brasil para saber o que é demarcação e porque eu fiz aquilo. Vieram pra me conhecer, saber quem eu sou e para que servia aquela faixa. No outro dia a gente viu a foto, repercutiu muito.

Infância

Quando eu era mais pequeno eu sempre viajei com meu pai pra vários lugares pra falar como é a vida de um menino na aldeia, só que eu não sabia falar direito na época. Hoje desenvolvi mais um pouco.

Aos 9 anos de idade eu fiz o contrato com a editora FTD e a Panda Books. Depois de 4 anos, quando eu estava com 14 anos, saiu meu primeiro livro que é junto com meu irmão, Os Contos dos Kunumi Guarani, e o segundo livro, Kunumi Guarani, que é quase uma autobiografia, falando de um menino que vive na aldeia. Foi ali que eu gostei de escrever literatura, continuei, e até agora eu estou escrevendo.

Rap indígena

Eu escolhi a literatura para minha vida. Um dia eu estava escrevendo, lendo os livros do meu pai e eu gostei muito – são poesias, e foi ali que tentei escrever poesia e transformar em música. Eu não sabia que aquilo era rap, mas já tinha ouvido os Brô MC’s, que é o primeiro grupo de rap indígena. Eu vi que eram letras de luta, muitas rimas, e eu percebi que tinha feito um rap. Escolhi essa literatura depois da copa do mundo. Quando comecei a cantar rap eu não sabia muito de qual tema falar. Só que eu sempre me lembrava do protesto que fiz na época na Copa do Mundo e me dava inspiração. Então, escrevo só sobre o tema, questão indígena, saúde, a importância de demarcar a terra indígena”.

Sangue vermelho

Quando comecei, muita gente me criticava, falava que o rap não é da nossa cultura, que a gente estava roubando essa cultura. Hoje mostrei pra muita gente que o rap é uma forma de defesa, de luta, para tentar salvar nosso povo através da escrita, pela música. Muita gente ouviu meu rap e gostou. Lancei em 2016 meu primeiro disco,que se chama Meu Sangue é Vermelho, com cinco faixas. Uma delas, a faixa com a música que eu mais gosto, é para os Guarani Kaiowás, em homenagem ao povo do Mato Grosso do Sul que mais sofre aqui no Brasil, que ninguém conhece, ninguém sabe. Pensam que eles vivem bem, ninguém mostra, a mídia não mostra. Eu escrevi essa letra em homenagem a eles, para dar visibilidade, porque estão passando por necessidade. Os fazendeiros estão matando eles toda hora, mas isso a TV brasileira não mostra.

Também tem o segundo disco que lancei em abril, dia 19, bem no Dia do Índio. O nome do álbum é Todo Dia é Dia de Índio, para falar pra muita gente que todo dia é o dia do índio, dia de luta e de vitória. Muita gente tentou nos massacrar, mas estamos de pé.

Cinema

Eu tive um privilégio de fazer um filme média metragem falando sobre meu povo, nossa luta, sobre mim, meus livros, a literatura nativa, meu rap e sobre a minha carreira: o filme Kunumi, o raio nativo, que foi premiado3.

3 O filme foi premiado no concurso Minha Vez, conquistou o segundo lugar no Youth Jury do Prix Jeunesse International 2016 [Alemanha] e venceu como Melhor Documentário e Menção Especial do Júri do prêmio SIGNIS, do festival Divercine [Uruguai].

E agora tem um novo filme, de um inglês, que veio pra cá direto no ano passado para fazer várias gravações. Em breve vai sair e se chama Meu Sangue é Vermelho. Eu viajei para muitos lugares para fazer gravações desse filme. Foi assim que eu conheci os Brô MC’s de perto, conheci como um artista conversando com outro artista. Fizemos gravações, conversamos sobre o rap, a importância do rap e como eles vivem. Foi ali que surgiu a letra Guarani Kaiowá.

Com essa filmagem fomos para o Maranhão. Me surpreendi muito: tem muitos povos indígenas no Maranhão. Cada aldeia tem uma terra, mas é pequena para muita gente. Estão sofrendo muito porque os fazendeiros estão sempre metendo bala neles. Fui conhecer pessoas que foram atacadas brutalmente, facada, tiro nas costas, muita coisa. Fiquei muito triste por ver um parente ser atacado pelos fazendeiros. Esse filme conta um pouco sobre a nossa luta.

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Rebeca Lerer
Werá Mirim
artigo: Quando a pessoa se torna ativista

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Isidoro Salomão – quando a pessoa se torna ativista


O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Isidoro Salomão

Desaprender

Acredito que nasci com alguma coisa diferente. Desde a escola primária, no ginásio, passando pela escola agrícola, eu já dava um trabalho danado — no sentido de querer mudar as coisas. Nesta minha longa caminhada, sempre foi assim. Eu me tornei ativista na caminhada; não houve nenhum ato automático ou um clique que, de uma hora para a outra, me tornasse um ativista. Mas houve fatos que aceleraram esse processo: me tornei padre na Igreja Católica e vim a ser sacerdote na minha terra. Vivi toda a burocracia de uma igreja que não me cabia. No dia da minha ordenação fui ordenado meia hora antes da cerimônia. O bispo que me ordenou disse: “pode correr, vestir a roupa que nós vamos te ordenar”. No dia seguinte, em outra cidade, eu já estava na atividade de padre. Eu já fui para esse trabalho sabendo que minha missão seria diferente. A questão cultural, por exemplo.

Viola de cocho

Durante o Seminário, eu aprendi a tocar violão. Quando cheguei aqui e ia para as comunidades, percebi que meu violão espantava as violas de cocho1. Então, deixei o violão em casa e praticamente nunca mais peguei nele. Busquei as pessoas da comunidade, aprendi a tocar viola de cocho e fui pras comunidades com ela. Então apareceu um monte de violeiro de viola de cocho. Violão espanta viola de cocho. Isso foi um aprendizado pra mim, assim como tem aprendizado em cada ato, em cada evento. A partir daí, tudo o que eu tinha aprendido numa cadeira de escola, tive que (quase) desaprender, desfazer para caminhar com o povo. Desde então, cada dia é um passo nessa militância e nesse ativismo.

1 Instrumento musical de cordas dedilhadas, variante regional da viola brasileira, comum nos estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e no Centro-Oeste brasileiro. Recebe este nome por ser confeccionada em tronco de madeira inteiriço, esculpido no formato de uma viola. Reconhecida como patrimônio imaterial brasileiro.

Juventude

Nunca tive uma formação específica [na área] ambiental. Mas, por morar no Pantanal, eu deveria ter uma atuação diferenciada. Algo que me mudou muito foi a Campanha da Fraternidade de 1991, com o tema Juventude Caminho Aberto. Começamos um trabalho com juventude aqui e, cada dia mais, esse caminho aberto nos mostrava várias possibilidades. E um dos caminhos que nós começamos a trilhar com a juventude foi o caminho ambiental no Pantanal. A partir daí, fizemos todo um trabalho de aprender e ensinar. Era muito trabalho, tinha muita gente, havia 150 grupos de jovens entre 1991 e 1996. Nós praticamente buscamos os Sem-Terra para nossa região. Procuramos o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] para buscar uma possibilidade, uma solução para aquela juventude toda. Todo este trabalho levou a grandes ocupações de terra na região.

O povo ou a Igreja

Todo esse movimento foi nos tornando cada vez mais ativistas e, como me tornei um padre ativista, já não cabia mais na igreja. O bispo me pediu para escolher: ficar com o povo ou com a Igreja. Respondi que queria os dois, mas se fosse para escolher apenas um, ficaria com o povo. A partir daí fui me apartando da igreja e ficando com o povo. Nosso trabalho não parou, tanto que hoje eles querem reconectar nosso trabalho com a igreja. Ontem eles achavam difícil trabalhar com nós. Hoje eles querem trabalhar com nós.

Caminhada

Ativismo e militância se faz na caminhada. Quando você caminha com o povo, tem um objetivo e planeja essa caminhada, se torna militante, se torna ativista.

Tivemos uma experiência muito interessante: a Escola de Militância. Esse processo de trabalho com jovens focou nos jovens iniciantes, jovens em formação e jovens militantes. Foi uma formação em processo. Não acredito que a mudança do ser humano aconteça num passe de mágica, de uma hora para outra. Toda mudança é um processo. Uma mudança muito repentina não é verdadeira mudança. A mudança que acontece na caminhada tende a ser uma mudança permanente. Talvez por ter feito minha caminhada assim, acredito que a caminhada do outro seja assim também. E há o exemplo – isso é muito importante, porque o exemplo de alguém inspira. Me engrandece ouvir das pessoas: “com você, eu vou”. Então vamos

Cultura

Nosso ativismo provocou reação. Teve repressão, teve punição. Formamos um grupo em parceria com a Vanda2, passamos a cantar o que queríamos. Não falávamos mais: cantávamos, dançávamos. Aquilo que, se falado, seria reprimido. Cantávamos. Incluímos [nossas mensagens] no nosso CD e o pessoal ouvia na rádio. A questão ambiental e cultural torna gostoso o trabalho, envolve a pessoa inteira. Cultura e ambiente se complementam. Quando a questão ambiental está enraizada na vida da pessoa, ela se torna cultura também. Por exemplo, quando fomos reinculturar na viola de cocho, precisei aprender do pessoal… Dentro da igreja, nós fizemos a missa pantaneira, toda sertaneja, cantada e dançada. Isso tudo vai se misturando. Hoje somos uma sociedade sociocultural e ambiental. Não diferenciamos o humano, a natureza, a mística, de como vive essa pessoa. Cultura e natureza se vive. O bonito mesmo é fazer esse trabalho. Tem muito mais de prática do que teoria. É a caminhada que faz o ativismo, que faz a militância, e não um curso.

2 Vanda Aparecida dos Santos, ativista e fortalecedora da cultura pantaneira.

Teologia da Libertação e Comunidades Eclesiais de Base

Sou fruto de uma CEB [Comunidade Eclesial de Base]. Eu não fui para o seminário pequeno (que é quase degradação ou retração do ser humano, onde o cara é feito para ser padre). Fui direto para a faculdade, que é um seminário grande. Isso colaborou na minha formação. Não fui preparado para ser o padre que alguém quer, e fazer aquilo que Roma quer. Então, pela Teologia da Libertação contida nos grupos de reflexão das CEBs, eu cheguei lá… e, depois, por meu relacionamento com pessoas como Leonardo Boff, teólogo da libertação, com Dom Pedro Casaldáglia, com quem trabalhamos. E na Pastoral da Juventude, no auge desse trabalho, fui assessor de bloco no Centro-Oeste. Éramos quatro assessores no Brasil. Isso nos trouxe uma experiência muito grande, produtividade e efetividade. Ao trabalhar com juventude, ou você apresenta resultado, ou perde o jovem. Isso exigiu que a gente trabalhasse com o jovem, inclusive no sentido de dar as respostas para ele na construção de uma sociedade que eles desejavam. Nunca fui um teórico da Teologia da Libertação. Sempre trabalhei com os pés fincados na terra, na realidade.

Servir

Neste momento político, diante da crise atual, não há nada pronto. Todo o valor das coisas está no seu fazer. Durante toda a minha vida eu procurei viver daquilo que eu fazia em grupo. Para mim o maior revolucionário é Jesus Cristo, mas tem gente que acha que é o maior conservador. O desafio é fazer isso tudo concreto na vida das pessoas. Hoje sou considerado um expulso da Igreja, mas tenho em Jesus Cristo um exemplo de luta e isso me traz a referência da alegria de servir. Eu sou um construtor: tudo isso aqui que você está vendo [as construções, os espaços, roças de todo tipo, animais, sistema de aproveitamento de água de chuva, jardins, edificações, alojamentos, áreas livres e espaços comuns, uma chácara organizada para encontros], eu construí. Não para mim, mas para os outros, e tenho a alegria de ver os outros usufruírem dessas coisas todas que eu construí. Servindo aos outros, você está sendo servido também. A alegria está nisso. Para o militante que vem, ou que foi, ou que é, é fazer… fazer com o máximo de qualidade, com empenho da sua vida toda, porque isso é viver.

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Áurea Carolina
Ariel Nobre
Miguel Reis Afonso
Rebeca Lerer
Werá Mirim
artigo: Quando a pessoa se torna ativista

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Áurea Carolina – quando a pessoa se torna ativista

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Era o fim de tarde da quarta-feira, 14 de março de 2018. O dia tinha sido de duros embates na Câmara Municipal de Belo Horizonte para a então vereadora Áurea Carolina (PSOL), a mais votada nas eleições de 2016 na cidade. A conversa que deu origem ao depoimento abaixo aconteceu numa sala de reuniões da Gabinetona – o espaço institucional hackeado por Áurea e pela sua colega de movimento e partido Cida Falabella – e teve, por isso, uma gravidade incomum, tematizada no texto: a do “peso” da luta. Poucas horas depois, a vereadora Marielle Franco seria assassinada no centro do Rio. Amorosidade, resiliência, a “dor do mundo que constitui as lutas” ecoam aqui o sentimento de indignação que marcarão para sempre a lembrança daquele dia.

Fagulha

Há primeiro uma faísca, um chamado para se engajar. Na adolescência, um dia eu me dei conta de que existia injustiça no mundo. É difícil precisar uma marca, mas há um momento da tomada de consciência, a experiência subjetiva de a pessoa sentir a necessidade de colaborar com alguma coisa maior do que sua própria existência. Aconteceu mesmo antes de eu atuar na cultura Hip Hop como cantora de rap. Ainda que no Hip Hop houvesse a arte – e arte também é essa política dos encontros – eu sabia que não era suficiente escrever letra de rap, cantar rap. Eu queria ter a vivência maior (que está presente no imaginário do Hip Hop) da importância do conhecimento e de agir coletivamente. Daí eu fui tendo acesso a várias outras lutas. Em 2003, participei da retomada do Hip Hop Chama, uma movimentação de jovens da cultura hip hop em Belo Horizonte. Não sei que termo eu usava na época, mas o foco era claro: discutir direitos, política pública, porque havia influência de outros grupos e do debate político na época. O Observatório da Juventude estava puxando a pauta dos direitos juvenis, que era nova. As coisas estavam se entrelaçando. Uma parte de nós era ligada a esses processos de resistência nas comunidades. Depois isso foi virando uma marca. Eu passei a me reconhecer como uma lutadora.

Prefiguração

Há um grau de utopia imprescindível para a gente suportar a investida ativista. Para encorajar as pessoas e se encorajar, é preciso acreditar que é possível mudar. Existe um grau de prefiguração, em que a coisa que se sonha é sonhada porque esse outro mundo pode existir mesmo – e existe, de muitas formas no nosso cotidiano, por mais que não esteja generalizado. A Gabinetona é a tentativa de reconhecer que temos um espaço limitado, mas que pode ser um território das nossas buscas de horizontalidade, das práticas feminista, antirracista, de representatividade, de processos decisórios partilhados, por mais que isso seja uma raridade no ambiente institucional e em outros espaços. É difícil, dá trabalho, mas há uma disposição sincera para fazer. A utopia precisa ser alimentada por essas experimentações, senão as pessoas desistem.

Amor

Nessa conjuntura, em que nossa fé está sendo testada noite e dia, a gente precisa da energia vital da utopia. Eu me alimento das conversas com as mulheres, grupos de jovens, com os movimentos sociais, é lá que eu recarrego esse amor… É um amor, mesmo. Eu sinto também que, quando eu me dei conta disso na adolescência, era uma questão de amor próprio, de as pessoas não se submeterem às disposições que não levam em conta o que você pensa. Porque a gente vai sendo maltratada a vida inteira e esses silenciamentos são estruturais, não são apenas pessoais. O ativismo nos chama para entendermos nossa própria condição de mundo.

Dor

Há uma dor do mundo que constitui as lutas, sempre. Não existe luta sem um sentimento de indignação.

Amor e Luta

Eu tenho me sentido como uma lutadora. Porque os embates são barra-pesada. Lutadora dá a dimensão da contestação das opressões. [A noção de] ativismo pode trazer isso, mas não de primeira. O termo “lutadora” afirma que há um espaço de enfrentamento. Nós temos inimigos (não pessoas, mas ideias, práticas); nós temos coisas a superar, inclusive em nós mesmas, que se reproduzem na nossa formação: lutar contra as violências que aprendemos desde crianças, lutar contra as violências que estão em todos os lugares. Eu tatuei no corpo a expressão “Amor e Luta”. Acho que esses dois elementos são inseparáveis. O amor não é nada passivo, dócil, servil; é uma busca de justiça, de autoconhecimento, de respeito, e não é possível conhecer outra pessoa sem desvendar essas estruturas violentas. Nossos potenciais são massacrados por tudo isso que está aí. A luta precisa de amorosidade para a gente não se aniquilar também. Existe um registro de competição – capitalista, racista, patriarcal – que também afeta as lutas sociais e as esquerdas. Se queremos lutar de outra forma, de uma maneira que nos eduque, a luta precisa ser acolhedora.

O ativista leve

A ideia de “ativista” parece ter uma certa “leveza”. Pode-se construir de muitas formas a dedicação para a coletividade. Ativismo parece tirar um pouco essa carga de que a luta é pesada. A luta traz para nós uma corresponsabilização. Eu não posso transferir a responsabilidade para outra pessoa meramente, trata-se de um processo coletivo que, necessariamente, me envolve. O ativismo talvez tenha a imagem – pode ser muito estereotipada – da ação do voluntariado nas comunidades, tudo muito importante, mas que às vezes faz parecer que você pode fazer uma intervenção e que não precisa continuar.

Micro/Macro

Eu não acredito que há ponto de chegada, que chegaremos a uma situação melhor para todo mundo. Um dia eu falei: “nós vamos ser feministas até o fim, antirracistas até o fim, porque o racismo não vai acabar, o patriarcado não vai acabar, o capitalismo não vai acabar” – pelo menos não no horizonte histórico que temos. Não que o desejo pela mudança não nos interpele e nos convoque. Essa deve ser a nossa busca. O fato é que somos atravessadas infinitamente por essas violências, nós somos essas violências em última instância. Eu acho que a questão entre “micro” e “macro” – um debate situado no século 20 sobre como se organiza as lutas – trata de uma coisa só. Os feminismos também. Não dá para desconectar a minha intimidade, a forma como eu me sinto, do sistema global da especulação financeira, de como a gente lida com os recursos naturais. Chegamos numa fase em que todo mundo vai ter de se virar com tais problemas, algo que incansavelmente é preciso levar adiante e enfrentar.

Conviver

Compartilhar [ideias, experiências] com outras pessoas vai sintonizando os afetos. Aí a coletividade se materializa. Quando estou num espaço só com mulheres, e mais ainda, com mulheres negras, periféricas, a confiança vai também refazendo a vontade de lutar, de seguir. A gente vai construindo mediações, alianças – e as lutas são essas relações, principalmente. As lutas são sempre formas de convivência.

Ambiente institucional

Na Câmara de Vereadores, a pressão para que aumente a distância entre os movimentos e a vida institucional é assustadora. Os movimentos podem até tentar ocupar, mas as barreiras formais são brutais. Existem procedimentos, sombras, apagamentos, ruídos que não tornam automática a conexão das lutas com a vida institucional. Há um vetor do próprio sistema jogando para ficarmos aqui dentro, confinadas. Não se pode permanecer muito tempo nesse ambiente institucional. É preciso arejar a vida institucional continuamente. Do mesmo modo como somos socializadas para nos adequar às normas desde criança, assim é com as lutas no espaço institucional. A radicalidade, a ousadia, a inventividade, tudo isso que nos constitui, vai perdendo um pouco de vigor ao longo do tempo. A conexão das lutas com a institucionalidade requer uma tensão básica: as lutas precisam manter processos autônomos para além das instituições e, ao mesmo tempo, não descansar das instituições. A derrocada do projeto petista, democrático-popular do último período, tem a ver com essa separação. Eu nem falo de cooptação, mas de um enquadramento mesmo, de um empobrecimento [da ação]. Erguer na vida institucional uma presença ativa das lutas é custoso, e pode ser ameaçado com muita facilidade. Mas não se pode desistir; é tudo o que eles querem.

A luta na Câmara

Quando eu olho a Gabinetona na Câmara de Vereadores de Belo Horizonte, tenho de relembrar por que nós estamos aqui, qual é a dedicação de vida para esse projeto comum que a gente sonhou e aos trancos e barrancos vem colocando em prática. Nós primeiro inventamos que queríamos ocupar as eleições – ouvimos de tudo no meio do caminho e tivemos de fazer uma síntese no meio do caminho para persistir. Aqui é um esforço de resiliência diária. Aqui a gente tem de desenvolver estratégias de sobrevivência, e forjar atitudes também. Não se consegue simplesmente com a nossa “boa intenção” sobreviver aqui. É preciso romper, ir abrindo espaço, na marra.

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Áurea Carolina
Ariel Nobre
Miguel Reis Afonso
Rebeca Lerer
Werá Mirim
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Miguel Reis Afonso – quando a pessoa se torna ativista

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Miguel Reis Afonso

O início

Comecei minha militância aos 20 anos de idade, no movimento estudantil, com o ingresso no curso de direito em 1978. Tive a felicidade de estar na PUC num período de grande efervescência política. A partir de 1978 e 79, a PUC muda um pouco sua atuação: ao ir para a periferia, ganha um fluxo que é de fora para dentro. Isso acontecia em várias áreas: na Pedagogia, no Serviço Social, no Direito. Naquele momento o centro acadêmico atuava na periferia de São Paulo junto com a cúria metropolitana, oferecendo assistência jurídica em sete pontos da capital – inicialmente um trabalho assistencialista. Eu trabalhava como estagiário de direito. Mas, em São Matheus, existia um movimento sindical muito forte porque o pessoal que foi demitido no ABC [região metropolitana de São Paulo] em 1976 comprou terreno no parque São Rafael, em Sapopemba. Era uma região muito politizada, onde já existiam favelas. Então, o trabalho de assessoria jurídica foi se voltando para os loteamentos clandestinos e favelas.

A Prefeitura tinha uma política de reintegração de posse nas favelas e, assim, nossa relação com as lideranças do movimento de moradia foi se construindo. Em 1979, vem o fundo de greve e nosso envolvimento vai se fortalecendo. Em 1980, surge o PT. O salto de qualidade foi quando, em 1981 e 82, logo depois da eleição, chega uma crise muito forte nas locações – tanto que a lei mudou em 1983 porque tinha muita gente sendo despejada. Os movimentos começaram a se reunir nas igrejas da Zona Leste, particularmente em São Miguel. Foi daí que surgiu o movimento de moradia, quando o pessoal começou a ocupar vastas [áreas] e a gente estava lá dando o suporte jurídico para isso. Participei da organização de favelas e da organização do movimento de loteamentos irregulares e clandestinos, em um grupo de advogados e estagiários que se reunia mensalmente com os representantes de loteamentos clandestinos. Vinha gente de todas as regiões de São Paulo. Assim se constituiu o movimento naquela oportunidade: juntando essa capacidade técnica, ideológica, e a militância concreta de ocupação de terras e ao mesmo tempo de criação de alternativas.

Movimento e Estado

Eu tinha um amigo médico, do curso de Saúde, lá no Eldorado em Diadema. Isso era antes de 1982. Conversando com os pacientes, fazendo reunião, meu amigo médico descobriu a hipótese de que perder a casa causava adoecimento e muito medo nas pessoas: grande parte dos seus pacientes tinha problema de pressão alta por falta de documentação das casas. Ele me chamou para ajudar nesta situação e fizemos um trabalho lá. Em 1984, recém-formado e aos 26 anos de idade, eu sou convidado para trabalhar com a regularização fundiária e vou para o governo. Começo a trabalhar da mesma forma que atuava no movimento fazendo as reuniões à noite, aos sábados e tal. Isso cria problemas tanto dentro do governo quanto junto à comunidade. Sempre fica a pergunta: mas o que esse cara quer aqui? Quer ser liderança também? Vai ser candidato? Mas eu nunca deixei minha militância na zona Leste. Eu saí da prefeitura de Diadema, fiquei um ano desempregado e, quando a Erundina assumiu a prefeitura de São Paulo, aconteceu minha indicação do movimento popular de moradia para assumir na prefeitura. O movimento queria muito mais de mim do que eu poderia oferecer e mesmo assim a gente conseguia fazer muitas coisas. Isso é, para mim, uma postura coerente: estar no governo e estar no movimento. Normalmente as pessoas vão do movimento para os governos, percebem os limites de estar no governo e, quando saem do governo falam mal daquilo que não conseguiram fazer. Eu mantenho minha coerência. Sofro com isso, mas prefiro assim.

Se você deixar o movimento quando assume um cargo público, isso aponta para uma certa concepção. É comum isso acontecer. Quando o sujeito entra na administração pública, aprende que não pode fazer isso ou aquilo. No meu caso, eu nunca saí do movimento e isso sempre tem consequências. Por exemplo, fui demitido do governo Luiza Erundina por ser “muito voltado para os movimentos populares”. Na época, a prefeita deu uma entrevista dizendo que precisava de um perfil mais profissional, mais empresarial na COHAB [Companhia de Habitação]. Eu tenho o jornal com essa entrevista guardado até hoje, onde ela dizia mais ou menos assim: “o Miguel trabalha muito com os movimentos sociais”.

Do direito à luta pela terra

Inicialmente a luta não era pela terra: era por questão contratual. As pessoas compravam os imóveis mas nunca tinham documento, certeza ou segurança jurídica. A situação era muito difícil. Naquela época não havia ainda a lei do parcelamento do solo, de 1979. Meu trabalho é anterior à lei e, sem ela era muito difícil preservar direitos. Naquela época era comum a pessoa não fazer o documento porque não estava a fim, e a situação ficava daquele jeito, irregular. Os loteamentos eram vendidos sem nenhuma garantia, tanto que se o comprador/morador atrasasse duas ou três parcelas, o vendedor simplesmente tirava a casa na mão grande. Era um grande desafio fazer a população entender que tinha tais direitos.

Nosso embate com as imobiliárias era muito grande. Muitas vezes, eles não davam nem um recibo. Certa vez, lá em São Mateus, o pessoal não tinha recibo de compra e venda. A imobiliária enrolava: “passa amanhã, não vou dar o recibo hoje”, ou o preço do recibo era um salário mínimo – olha só o absurdo. Um dia colocamos todo mundo num ônibus e fizemos uma manifestação na porta da imobiliária. Para azar do dono, alguém chamou a televisão. A reportagem passou na hora do almoço e o dono da imobiliária passou a receber telefonemas dos parentes do interior: “O que está acontecendo com você, que sempre foi um cara honesto?”. O cara me ligou no dia seguinte e disse que faria os documentos. Ou seja, era mais ou menos assim.

A luta pela terra vem depois de uma certa compreensão política: o povo vai percebendo o que quer. E era muita terra vazia na periferia servindo à especulação. São áreas construídas ou livres esperando a valorização enquanto tem gente precisando de terra e de casa. As pessoas vão percebendo. Entre 1983 e 1988 aconteceram muitas ocupações de terra em São Paulo e o pessoal está lá até hoje.

Formação

Dentro do movimento de moradia muita gente se capacitou, teve uma época em que procuravam as faculdades de direito. Evidente que estudar direito é muito diferente de advogar. Mas tem gente que hoje está advogando e militando, fazendo seu ativismo junto ao movimento e sua carreira profissional. Fico satisfeito em ver esse processo de formação dos quadros e colaboro sempre que posso.

Favela

Hoje, a luta por moradia continua muito ligada a uma determinada conquista. Depois da conquista vem uma certa desmobilização – exceto quando uma liderança é muito ativa, não vive sem lutar, procura outras lutas. No caso das favelas, houve muito avanço, mas ainda há muita luta. Há uma contaminação midiática que pretende confundir favela com comunidade, por exemplo. Não: você mora numa favela! Favela tem uma história, tem uma origem na exclusão. Foram os negros expulsos do centro e mandados para os arredores das grandes cidades. Apesar se ser esquecida pelo poder público, a favela resiste, supera as crises. É impressionante o poder público não resolver o problema da falta de moradia.

Hoje

O movimento hoje é institucional. Tem uma faceta de luta e uma faceta de produção de unidades habitacionais. Vejo isso como uma conquista. Ao longo dos anos, o pessoal fez ativismo e também propôs fortemente as políticas habitacionais, os mutirões, a autogestão. A política do Fundo Nacional de Moradia Popular e o Minha Casa Minha Vida são fruto desta luta.

São 40 anos de luta. E o que motiva as pessoas a continuar? Conversando com contemporâneos de luta, concluímos tratar-se de fé. Não uma fé religiosa, mas um acreditar nas coisas, acreditar na luta. O que me faz sair da cama muito cedo num domingo e seguir para uma reunião longe da minha casa? Você chega lá e tem gente acordando, tem gente ainda sonolenta, e quando a reunião ameaça de começar chega alguém distribuindo cesta básica… O que me motiva? Acreditar na luta, acreditar nas pessoas, acreditar que a vida pode ser melhor. O que eu ganho com isso? Organização. Não tem benefício próprio: é acreditar num benefício coletivo.

Tem gente que me pergunta: o que eu deixarei para os meus filhos? Deixarei para eles coisas que o dinheiro não compra. Por exemplo, o meu filho mais novo, aos 17 anos, percebeu a realidade por si mesmo numa favela, quando foi num grupo na Vila Prudente para conhecer um grupo de jovens. Agora que ele está na faculdade, essa experiência influencia muito a atuação dele.

Terra

Não somos movimento de sem teto, somos Movimento de Luta pela Terra. Sempre discutimos isso no movimento, tanto que era Movimento dos Sem Terra da Leste I. Entendíamos que o problema está na terra, e não no teto. O problema da moradia você resolve, o da terra é muito mais complicado. Eu cheguei a trabalhar na CPT [Comissão Pastoral da Terra], numa época que a luta estava mais voltada à questão trabalhista em função dos boias-frias. Bebíamos muito na experiência do movimento rural. A terra vem, mesmo no urbano.

Peregrinação

Nunca fiz nada para mim, nunca tirei férias. Fazia seis anos que eu não viajava. Sempre tinha um motivo: doença, falta de dinheiro e tal. Nunca fui um espiritualista, sempre fui concreto apesar de trabalhar muitos anos com a igreja. Fiz o caminho de Santiago de forma a chegar a Compostela no dia do meu aniversário [de 60 anos].. Com a camisa do Santos, aproveitei para pedir uma Libertadores… resumo da viagem: na volta, em Vila Nova do Gaia, entrei na igreja de Nossa Senhora do Pilar, ouvi: “você se prepara muito para estabelecer uma jornada. Ela vai acontecer de qualquer jeito esteja bem preparado ou não. E ela acontece.” E isso resumiu minha caminhada. Foram 11 dias caminhando sozinho, sem distração… para uma pessoa que viveu a vida toda em trabalhos coletivos, todo este tempo pensando na vida, refletindo, foi muito instrutivo.
“Lembrei de uma música.. Como é mesmo aquela do Chico?”

Quando eu morrer / Cansado de guerra
Morro de bem / Com a minha terra:
Cana, caqui / Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
Amplidão, nação, sertão sem fim
Ó Manuel, Miguilim / Vamos embora
(Chico Buarque/1997)

VEJA OS OUTROS TEXTOS:
Áurea Carolina
Ariel Nobre
Miguel Reis Afonso
Rebeca Lerer
Werá Mirim
artigo: Quando a pessoa se torna ativista

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Rebeca Lerer – quando a pessoa se torna ativista

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Rebeca Lerer

Sem salvador

Hoje, eu trabalho a partir do reconhecimento dos privilégios estruturais e das oportunidades que gerei usando esses privilégios. Isso é você escapar da “síndrome do salvador”, de praticar uma pegada assistencialista no ativismo. Ao invés de focar apenas em fazer uma carreira (ou abrir minha própria ONG etc), o meu caminho é de volta: quero pegar tudo isso que pessoas como eu têm e criar oportunidades para quem não tem. Meu rolê está focado em fazer as conexões para que as pessoas que estão na ponta consigam ocupar esses espaços e fazer a transição para um movimento social e ativista mais diverso e representativo.

Atitude

O ativismo é você fazer o que pode, com a ferramenta que tem à mão naquele momento – senão a gente fica muito inerte frente ao tamanho dos desafios. Uma atitude de vida ativista é ter sempre em mente o que dá para fazer agora e o que vai nos levar, mais à frente, a realizar coisas maiores.

Ativismo orgânico

Há muita gente que virou ativista por força da realidade. Por exemplo: as mães de jovens assassinados pela polícia. É a partir do crime, do terrorismo de Estado cometido contra o filho delas (geralmente são jovens negros) que se tornam ativistas. Essas mulheres nunca passaram por uma formação de advocacy, estratégias, media training para dar entrevistas. Muitas delas nunca tinham sentado numa mesa de debate antes. De repente, na vida delas, passam do luto à luta e acabam se tornando ativistas das mais aguerridas e importantes que há hoje no país. O mesmo acontece nas comunidades de assentamentos rurais de campesinos que acabam virando lideranças locais e ativistas do direito à terra para poder sobreviver. Ou midiativistas em favelas, que são pessoas ameaçadas pelas dinâmicas locais de violência e acabam virando ativistas da comunicação livre porque precisam de um canal para se expressar, ter alguma visibilidade e segurança. Para mim a grande força vem desse ativismo orgânico que está surgindo, que se encontra com o da galera nova que passou pelo processo das cotas nas universidades, das oportunidades de primeiro emprego, das escolas técnicas e que, com o fator internet, tem acesso a todo tipo de informação. Há outros níveis de conexão e diálogo nessa juventude; uma parcela dela está mobilizada, está disputando narrativa nas redes e nas ruas, está forjando uma nova forma de fazer ativismo.

Ruptura sistêmica

Estamos vivendo os efeitos daquela grande onda de junho de 2013 que ressignificou a luta de muita gente. Conheço gente que militou a vida inteira em juventude partidária e que, a partir desses eventos, começou a atuar mais em rede, passou a ocupar os espaços públicos e privados de outra forma, passou a buscar mais autonomia na sua militância. Para mim o ativismo é um compromisso além do institucional, é uma lente de vida, uma forma de se relacionar com os outros e com o meio em que você vive, de priorizar o coletivo acima do privado. Pelo fato de a militância geralmente estar atrelada a uma agenda institucional, não é exatamente autônoma. O ativismo real é autônomo. O ativismo para mim está ligado a uma dimensão de ruptura sistêmica. A militância é mais reformista.

Vida de ativista

Você tem de ser muito teimosa e otimista para insistir em viver dessa forma. O ativismo é um canal de expressão de revolta. Não é um processo confortável ou simples, e muitas vezes é bem solitário. Entendo que muita gente que tenha lampejos na juventude depois de um tempo vá se acomodando. Viver de acordo com o ativismo exige um nível de entrega, de assumir certos riscos. É inerente à função social do ativismo ser uma pessoa provocadora, que produz desconfortos e rupturas para o mundo poder avançar. As pessoas às vezes têm a leitura de essa ser uma pessoa mal humorada, arrogante. Não é isso. Não quero impor nada para ninguém. Mas se isso provoca a pensar as coisas de modo diferente, estou cumprindo o meu papel.

Trajetória 1

Com 11 anos de idade eu falava que iria ser repórter de guerra. Eu tinha a vontade de entender como as coisas aconteciam no lugar onde elas estavam acontecendo. Minha família vem da Rússia (fugindo da Primeira Guerra) e da Polônia (fugindo da Segunda). O antissemitismo e o Holocausto, a narrativa de violação de direitos, de genocídio, de guerra, de sofrimento, de trauma psicológico, sempre foram muito presentes na minha família. Eu fui politizada, nesse sentido, bem cedo, por conta da carga que isso traz. Aos 18 anos fiquei um ano em Israel e lá eu conheci palestinos e o movimento de direitos humanos de israelenses pró-palestinos (o que me impressionou muito, e contrariou toda uma história que tinham me contado). Fui para Londres, morei num albergue de imigrantes, conheci muitas pessoas que naquela época (1995) estavam fugindo da guerra nos Bálcãs, e ouvi as histórias da guerra e da limpeza étnica. Eu, que não havia sofrido preconceito no Brasil, sofri preconceito lá por ser brasileira e imigrante. Tive acesso a outras culturas e outras formas de lidar com a questão das drogas e isso foi a semente para o trabalho que eu faço hoje em dia.

Trajetória 2

Quando eu voltei para o Brasil, fui trabalhar como estagiária na Fundação SOS Mata Atlântica. Morei um tempo no Parque Nacional do Superagui, no Paraná, onde fiz meu trabalho de conclusão de curso de jornalismo. Juntei com um caiçara, morei na ilha sem eletricidade, tive uma vivência comunitária pela primeira vez na vida. Depois fui morar na Amazônia e trabalhar no Greenpeace, numa época em que ele fazia um ativismo raiz mesmo. Tive o privilégio de navegar com pessoas que haviam participado de campanhas clássicas e estavam na organização há muito tempo. Fiz uma indução na ação direta não violenta, toda a cultura de ocupações, invasões, bloqueios, de como se faz um scouting, de como se pensa a parte jurídica. Trabalhei no Greenpeace até 2009 e saí quando era coordenadora da campanha de Clima e Energia com foco no Programa Nuclear Brasileiro. Depois atuei na Matilha Cultural, um centro de cultura e ativismo independente no centro de São Paulo, e lá sou voluntária até hoje. Em 2011, fui trabalhar na Comissão Global de Política sobre Drogas, que é um projeto independente (não é governamental nem da ONU) que reúne 22 lideranças internacionais (ex-presidentes como Fernando Henrique Cardoso, o ex-ONU Kofi Annan, grandes empresários como Richard Branson etc). Foi, digamos, meu MBA em políticas públicas, relações internacionais e advocacy, e, por conta da pauta, que era a legalização das drogas, eu era bastante ativa, ficava na linha de frente de representar os usuários de drogas junto a vários stakeholders de alto nível. Eu estava na Comissão Global em 2013, mas continuava na Matilha, quando então veio Junho.

Junho/2013

A Matilha acompanhava os atos do Movimento Passe Livre (MPL) desde 2011. Rapidamente, vimos o que estava acontecendo e montamos uma base de primeiros socorros. No dia 13, o dia daquele massacre na [Rua] Maria Antônia com a [Rua da] Consolação, a Matilha era a única base de atendimento médico no centro de São Paulo. Não havia uma ambulância por lá. Descolamos uns médicos e enfermeiros voluntários. A gente atendeu mais de 50 feridos naquela noite, encaminhamos três pessoas para o hospital. A Matilha fez o que podia naquele momento, enquanto muitas instituições e espaços se omitiram quanto à repressão e à violência policial que estava rolando ali. A gente se posicionou – e isso é ativismo. Mesmo trabalhando naquela época com o FHC na Comissão Global de Política sobre Drogas, eu permaneci nas ruas, levando gás e fazendo primeiros socorros. O fato de estar vinculada a qualquer instituição nunca me impediu de ser ativista.

Autonomia

Acompanho o coletivo da Marcha da Maconha desde 2008 e atuei “escondida” antes, porque nos lugares em que eu trabalhava isso não pegava bem (inclusive no Greenpeace). Meu ativismo na pauta da maconha é, acima de tudo, autônomo, individual, pessoal. Quando eu saí da Comissão Global, ajudei a formar a Aliança pela Água (momento de crise hídrica no estado de São Paulo em 2015), e depois a Anistia Internacional me chamou para ajudar a estruturar a campanha Jovem Negro Vivo, contra o genocídio da juventude negra periférica, principalmente em função das mortes decorrentes das operações policiais. Fizemos uma campanha sobre a violência no Rio de Janeiro durante os jogos e lançamos o aplicativo Fogo Cruzado, que é um laboratório de dados sobre tiroteios alimentado por celular, fontes livres da imprensa e boletins policiais – um projeto que hoje é independente.

360 graus

A primeira expedição de navio do Greenpeace de que participei lutava contra a poluição química industrial de rios e mares. O último protesto daquela expedição aconteceu em Porto Alegre. Eu estava toda animada, vestida de macacão para a linha de frente, me achando a pessoa mais corajosa do mundo. Eu era estagiária de comunicação e me mandaram ficar na sala de rádio do navio, com uns celulares gigantes, o telefone do barco e os rádios. Eu ouvia a comunicação de toda a equipe e, se tivesse alguém ferido ou se a polícia chegasse, eu precisaria acionar o protocolo de segurança. Era um papel crítico, mas naquela hora, eu, jovem, achava que o importante mesmo era estar na linha de frente. Fiquei revoltada, trancada sozinha na salinha de rádio, perdendo toda a emoção. Só que, no final da ação, deu treta. Aí eu precisei agir, disparar os releases, fazer o que tinha de fazer, e eu fiz direito, fiz rápido, foi super importante. Caiu então a ficha: o ativismo real não tem glamour, não é só o cara que está lá acorrentado, existe toda uma engrenagem que está em volta, em cima, em baixo, 360 graus em torno daquelas pessoas que estão na linha de frente. Ninguém faz nada sozinho. O que faz o ativismo se tornar uma força de mudança é quando outras pessoas, com outros perfis, talentos e reconhecimentos diversos, se juntam para realizar alguma coisa. Mesmo que você só possa ficar em casa, monitorando as redes enquanto a gente está na rua levando porrada, é importante.

Escolhas

É um processo de autoconhecimento você se entender ativista, porque permanecer nesse lugar é uma escolha diária. Quando eu engravidei, me perguntei se eu iria conseguir prover o dinheiro para pagar as contas de uma casa com uma criança. Quando minha filha tinha 13 meses e estava sendo desmamada, eu fiz a primeira viagem para uma ação direta do Greenpeace em Santarém. Aluguei um barco para a imprensa, para filmar a ação, e nosso barco foi invadido por uns ruralistas. Me bateram, queriam jogar a câmera na água. Foi todo um estresse para conseguir mandar a fita para Belém para sair no Jornal Nacional daquela noite. Todo mundo acabou detido, havia 500 ruralistas do lado de fora da delegacia. Lembro que durante o dia eu estava tão adrenada, nervosa, que não senti a dor dos machucados. Eu “esqueci” por um tempo que eu tinha uma neném em casa. No final, todo mundo foi liberado, o Jornal Nacional exibiu a reportagem do protesto. Quando fui embora naquela madrugada, às quatro da manhã, eu sofri uma crise de pânico, porque me caiu outra ficha, a de que eu teria de achar uma nova forma de ser ativista enquanto a minha filha fosse criança, e que eu não poderia mais me colocar numa situação de tanto risco sem saber se voltaria inteira para casa ou quanto tempo demoraria para voltar. Foi outro momento de repactuação com o meu ativismo. Então eu passei a fazer mais coordenação de campanhas, o trabalho de negociar com os advogados e com a polícia, menos na linha de frente e mais nos bastidores. Em uma sociedade machista, para uma mulher ativista, especialmente que é mãe-solo como eu, existem essas outras questões: quem está cuidando da sua filha para você estar aqui protestando? Você não tem medo de apanhar ou de ser presa e deixar sua filha sozinha em casa? Acho que nunca devem ter perguntado isso para um pai ativista, ou perguntam muito menos do que para uma mãe. Então há vários momentos em que você se redescobre e escolhe novamente seguir nesse caminho.

Rebeldia

A gente sabe todas as pressões que a idade traz. Você vai ficando um pouco mais cética com a idade. As pessoas cansam, se desiludem, trocam as prioridades, querem ter vidas mais estáveis. Há esse lado do peso que a vida vai trazendo e as pessoas passam por traumas, elas perdem, passam por lutos, vivem crises financeiras, têm desejos e sonhos frustrados. Vejo pessoas próximas a mim, a amargura em que essas pessoas entraram. Para mim o ativismo é um antídoto anti-amargura. A luta te salva da inércia da derrota. Enquanto você está lutando, você está vivo, está ativo socialmente, está produzindo inspiração, ideias, amor, afeto, empatia.

Bizarrice

Eu só vou parar de lutar pela legalização da maconha quando legalizar ou quando eu morrer. Porque é muito errado. Não é porque eu tenho mania com isso; é uma questão civilizatória acabar com essa guerra às drogas. É uma guerra contra a gente mesmo. Não dá para falar em século 21 e inovação e, ao mesmo tempo, continuar carregando essa herança bizarra do século 20. É uma enganação. Não vou desistir.

VEJA OS OUTROS TEXTOS:
Áurea Carolina
Ariel Nobre
Miguel Reis Afonso
Rebeca Lerer
Werá Mirim
artigo: Quando a pessoa se torna ativista

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Ariel Nobre – quando a pessoa se torna ativista

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Ariel Nobre

Pessoal e político

O ativismo, para mim, vem da necessidade de me sentir ouvido. Quando entrei no ativismo em 2013, eu pensava: “Não é pessoal, é político”. Mas depois, quando eu revisitei assédios de infância, pensei: “A quem queremos enganar? É pessoal também”. Hoje, minha maior missão como ativista e artista é balancear o que é pessoal e o que é político, assim como entender o que do pessoal vale levar do político e o que do político vale tratar e cuidar como pessoal. Então, acho que hoje ser ativista é isso: essa mediação interna-externa.

No Preciso Dizer que Te Amo, meu projeto de sensibilização contra o suicídio de homens trans, é um pouco assim: tudo é do âmbito privado. Escrever Preciso Dizer que Te Amo nas pessoas e nos lugares por onde passo pode parecer pessoal, e é, porque faço como uma auto-cura. Mas, ao mesmo tempo, a cura tem uma interface coletiva. Quando eu falo, uso minha experiência pessoal para convocar uma reflexão social sobre o suicídio dos homens trans. A pergunta que quero lançar é “eu me suicido ou sou suicidado?”. A lâmina da faca está apontada para o lugar errado – para nós.

E precisamos de outra separação que também dói: a separação entre homem e violência. Dói porque a gente não imagina a masculinidade sem violência. É um desafio criativo, não só para minha comunidade como para os homens em geral. É um desafio que tomo para mim enquanto homem trans porque também disputo o protagonismo de criar, para nós mesmos, novas referências positivas de masculinidades, conectadas com o mundo, a coletividade e a escuta, principalmente das mulheres – seja a mulher que eu fui, sejam as mulheres que estão à minha volta. Então, ao mesmo tempo em que é uma questão pessoal, é também uma questão coletiva. O ativismo, para mim, está nessa borda, nesse pressionar, nessa fricção entre público e privado, pessoal e coletivo.

Pessoa

Tem coisas que não faço mais por entender que já não preciso ou já não é estratégico fazê-las. Por exemplo, sinto que é muito cobrado das pessoas trans que contemos nossas histórias pessoais. Isso tem a ver com a mídia e com as expectativas sobre ser trans em nossa sociedade. Por muito tempo eu quis contar minha história, me apropriar dela e ganhar dinheiro com ela. Hoje já não quero, mas sinto que é uma necessidade de homens trans porque, como a gente não se vê, precisamos contar nossa história para nós mesmos e dizer “eu tenho história, este sou eu”. É uma necessidade narrativa de reconhecimento e de imagem. Mas hoje, como já sou considerado uma referência e já sou considerado ativista, tenho tentado questionar essa minha necessidade de expor minha imagem.

A questão que tenho pensado agora é como meu ativismo pode se tornar maior do que minha história. Não me interessa mais a minha própria história. Já saí de um nível de precariedade e estou em outro momento, inclusive reconhecendo privilégios. Reconhecer isso também faz bem para mim, para os meus e para meu ativismo. Então estou nessa nova fase de ir além da minha história.

Cultura

Por mais que tenhamos tido essa vitória recente no STF [Supremo Tribunal Federal], a transfobia é muito cultural. Foi um passo importante, mas a nossa vida continua. E o meu ativismo é muito no âmbito cultural. Eu não sei fazer controle social, por exemplo. Não sei quais são as esferas do poder. Tudo para mim ainda é novo, mesmo depois de cinco anos. Descobri o que é a Defensoria no ano passado! E passei a conhecer mais do sistema prisional acompanhando as manifestações pelo Rafael Braga. Meu ativismo é muito mais na arte, na cultura, na linguagem, na narrativa: disputo esse âmbito e não tento outras coisas.

Cura

Tenho tido reflexões bem profundas em relação ao fato de a cura ser coletiva. Poder dizer “não” é uma questão coletiva: hoje temos adesivos que dizem Não é não e as mulheres têm uma interface de luta. É você que vai emitir o “não”, mas, para você se fortalecer, precisa conversar com outras mulheres. Minha reflexão hoje passa por como somar na coletividade, e como a experiência do ativismo pode ser de auto-cura, e não de adoecimento. Por que é tão adoecedor quando nos propomos a nos curar?

Hoje, com mais autonomia, inclusive financeira, tenho mais condição de me perguntar o que é importante para mim e onde eu sinto que tenho importância. Precisei desse tempo para entender que sou só uma pessoa trans e não entendo de tudo.

Caminho

[O tornar-se ativista] para mim é um caminho sem volta. A fagulha veio em 2013, de uma necessidade física de nudez – principalmente de andar sem camiseta. Nas manifestações do Rio, eu vi que a nudez não era um preciosismo ou bobagem: os homens cisgêneros podiam, no calor de 50ºC, tirar a camiseta, mas eu não. Na época eu não sabia se era cis ou trans, só entendia que precisava tirar a roupa. Hoje eu sei que aquela pessoa que tirava a roupa não estava se encaixando na pessoa que eu queria ser. Eu só sentia uma necessidade fodida de ficar pelado e ficar sem camiseta, seja em casa, seja em lugares públicos. Percebi que a nudez é distribuída e aceita de forma diferente entre os gêneros e raças. O limite entre o que é considerado nudez e o que é considerado obsceno varia entre os gêneros. Vi que era algo político, e não pessoal. Isso me marcou muito.

Depois de 2013, tudo mudou na minha vida. Vivi intensamente as manifestações no Rio de Janeiro. Eu nunca tinha participado de um coletivo, ido a manifestações, era muito alheio a tudo aquilo. No ambiente privilegiado em que eu estava, em uma faculdade pública, o discurso dos lugares ditos “inteligentes” era de que tudo estava muito resolvido, de que não precisávamos mais falar dos assuntos, podíamos até votar! Entendia-se que falar sobre gênero, raça, direitos iguais e ativismo era algo muito ultrapassado, tinha ficado nos anos 1970. Ao mesmo tempo em que eu me sentia sufocada (na época), eu não tinha com quem falar sobre a forma como me sentia. E, mesmo se falasse no âmbito do sentir, não conseguia conectar isso e transformar em algum tipo de ação.

Acho que essa foi a questão de 2013: sentíamos que tinha alguma coisa errada, mas ninguém sabia o que era. De todos os lados, rolou uma necessidade de extravasar. As pessoas têm uma visão muito racional de 2013, mas eu acho que é uma coisa de sentimento, de transbordar – é anterior. Quando vejo os vídeos da galera coxinha gritando, sempre me pergunto se a questão é política, porque o que eu vejo é uma pessoa infeliz, querendo extravasar, incomodada com o fato de outra pessoa ter poder. É muito racionalista dizer “não faz sentido o que você está falando”. Dois mil e treze, para mim, foi isso: um transbordar de coisas e sentimentos sem nome, que passeava no corpo individual e coletivo das pessoas, e que veio à tona.

Corpo

No mundo em que estamos hoje, somos bombardeados por narrativas midiatizadas o tempo todo e acabamos por perder nossa conexão com nós mesmos e com a realidade. Perdemos uma noção corpórea da realidade. Ficamos disputando por fotos e mensagens, mas não nos damos ao perigo – porque é perigoso – de experienciar a cidade por si. Perdemos essa cartografia corpórea da realidade vinda de mim para o mundo. Hoje estou numa transição para que meu ativismo seja um convite à conexão. Podemos criar narrativas mais autônomas e mais conscientes – ou menos conscientes também. Acho que existe um produtivismo no nosso ativismo e no nosso trabalho, um excesso de coisas que nos força sempre a essa coreografia de reduzir todo o mundo à interação com um dispositivo. Acho que a libertação é corporal também, e isso exige criar novas coreografias e enxergar o mundo de forma mais “direta” – mesmo que exista uma série de outras lentes. É uma responsabilidade mais holística sobre o ativismo.

Sacrifício

Se estamos falando de violência, como vamos propor um evento ou espaço sem nos violentar, e sem a promessa e ilusão do sacrifício? É uma ideia cristã e também capitalista: se você se sacrificar, você se ilude de que vai ter a vida eterna. E você se ilude a respeito do que está fazendo pelos outros e cria uma expectativa de dívida: o que está no holofote é o seu sacrifício, e não a perspectiva deste ser, ainda considerado “outro”. Então, penso em como hackear essa coreografia cristã que produz uma ansiedade em relação à vida eterna. Como criar ativismos e conexões grupais sem essa ilusão martírica? Recentemente, eu me dei conta de uma obviedade: eu sou religioso. Fui evangélico a maior parte da minha vida, nasci na igreja e, dos meus 30 anos de existência, 20 foram na igreja. Hoje, percebo que minha forma de lidar com o Preciso Dizer que Te Amo é religioso, ritualístico, me leva a sentir que estou fazendo o bem e que sou uma pessoa melhor. Até a forma como as pessoas me veem é religiosa: “veja só esta pessoa fazendo o bem”. É uma ilusão moderna acharmos que não somos religiosos.

Vazio

Agora estou me dando a chance de nutrir um vazio para criar uma nova forma de ativismo e, mais que isso, para criar propostas: como e com quem vou me organizar de uma forma não violenta e com um olhar holístico? Como propor isso? Vai ser algo performático, no sentido de primeiro estar no corpo e depois na tela? Estou fazendo menos coisas na internet, ou melhor, usando a internet para encontros corporais. Hoje, a rede social pela qual tenho mais apreço é o Tumblr, porque lá tenho meu portfólio, que desenhei como um convite para encontros corporais. Ele não chega antes de mim. É uma interface que fica mais próxima do corpo do que o Facebook ou o Instagram, por exemplo. Estou indo para algo mais performático e também menor.

Poesia

Quero que o outro tenha uma experiência poética do meu ativismo. Acho muito mais efetivo escrever Preciso Dizer que Te Amo em você e falar sobre o suicídio de uma forma coletiva; isso vai ser muito mais profundo e ter muito mais poder de transformação do que eu fazer um keynote sobre o suicídio de homens trans. Se você tem uma experiência poética daquilo, sua recepção será mais profunda e sua vivência mais leve. E é menos violento para mim, porque é também uma auto-cura.

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Quando vozes negras se levantam, o mundo estremece

Pesquisadora da obra de Angela Davis e fundadora do Coletivo Di Jeje, Jaque Conceição relata como o contato com a autora estadunidense permeou sua vida e a encorajou a construir um espaço de aprendizagem e produção de conhecimento com mulheres negras

Jaque Conceição

Li pela primeira vez o nome Angela Davis no ano de 2013. Eu estava estudando um texto de Herbert Marcuse em que ele conta sobre a mente mais brilhante e inteligente que ele havia conhecido: Angela Davis. Fiquei muito curiosa. Descobri que essa foi uma das mulheres mais temidas pelo governo dos Estados Unidos entre 1968 a 1972. Uma mulher negra, de 24 anos, inimiga número um dos Estados Unidos? Essa história eu precisava conhecer, para poder contar.

Quando Angela Davis retornou da Alemanha em 1967, depois de concluir o doutorado em filosofia alemã clássica sob orientação de Theodor Adorno, ela começou a lecionar na Universidade da Califórnia e iniciou sua militância junto ao Black Panther Party (Partido dos Panteras Negras). Parte de seu trabalho consistia na formação política dos membros do Partido e na luta pela libertação de presos políticos, como George Jackson, que foi também seu grande amor juvenil. Quando o irmão de Jackson, Jonathan, tramou e executou o sequestro de George da penitenciária de San Quentin durante um julgamento, culminando na morte de quatro homens – incluindo o próprio Jonathan e um juiz federal –, Davis foi acusada de cúmplice, pois as armas usadas na operação estavam em seu nome. Depois de quase quatro anos, ela foi finalmente julgada e absolvida do crime e retirada da lista dos dez mais perigosos do FBI. Tudo isso com apenas 26 anos de idade.

No ano seguinte ao meu encontro inicial com Davis, fui a Salvador pela primeira vez. Andando pelo Mercado Modelo, um senhor negro, que vendia pimentas, me disse: “Menina, você parece com os Jejes. Você sabe quem foram eles? Vou te contar: os Jejes são um povo guerreiro, andarilho, do norte da África. Onde eles chegam, chega a morte, o medo, chega a destruição. Você me lembra muito as mulheres guerreiras Jeje.”

Essas duas histórias ficaram marcadas em mim: a história de uma mulher negra, que com nada mais que sua inteligência e poder de falar, colocou em choque toda a elite branca de um país explorador e racista; e a história de um povo africano, de força e rebeldia. Passei o ano de 2014 lendo e pesquisando textos escritos por Davis, como que costurando uma colcha de retalhos, porque as obras chegavam aos poucos para mim. Até 2017, havia apenas dois de seus livros traduzidos para o português (A democracia da abolição e O povo contra Angela Davis) e dois artigos, que eram entrevistas traduzidas. O pouco material que consegui acessar foi resultado de uma exaustiva pesquisa na internet. Nessa época, tive contato com Mulheres, raça e classe; Mulheres, cultura e política; São obsoletas as prisões?; O legado do blues para o feminismo negro; Palestras sobre Libertação; e A comunidade escrava e o legado da mulher negra, todos em inglês.

No final daquele ano, fui aos Estados Unidos, onde consegui ter contato com mais uma série de materiais produzidos por Davis – com aquilo que ela vem produzindo há mais de meio século sobre racismo e formação da sociedade ocidental e capitalista.

Angela Davis vem de uma longa tradição de teóricos críticos ligados à Escola de Frankfurt, uma corrente da filosofia política criada no começo do século passado como uma estratégia de enfrentamento ao fascismo e conservadorismo que dominavam cada vez mais as ciências sociais. A base de seu pensamento está na tese central da Teoria Crítica: a opção pela violência como processo civilizatório é um traço da socialização dos indivíduos, e essa opção empurrará a sociedade cada vez mais para a barbárie. Em outras palavras, os mecanismos de controle e validação social tornam os indivíduos incapazes de fazer a crítica social e avançar nos processos civilizatórios, pois eles se tornam reprodutores de um sistema que segrega, condiciona e domina através da violência – reproduzindo, então, esse mesmo sistema. A grande contribuição de Davis é introduzir neste debate a questão racial, ou o racismo, pautando-o também como estratégia violenta de dominação e segregação.

Em Palestras sobre Libertação, originalmente publicado em 1970 pela Editora Randow em Nova Iorque, mas com uma tradução minha para o Coletivo Kilombagem, Davis nos diz que:

“A ideia de liberdade tem sido justificadamente um tema dominante na história das ideias ocidentais. O homem tem repetidamente definido a sua liberdade como algo inalienável. Um dos paradoxos mais agudos presentes na história da sociedade ocidental é que, enquanto no plano filosófico, a liberdade foi delineada da forma mais elevada e sublime, na realidade concreta, para alguns ela é marcada pela forma mais brutal que é a escravidão. Na Grécia Antiga, onde a democracia teve a sua origem, não se pode esquecer que, apesar de todas as afirmações filosóficas da liberdade do homem, apesar da demanda de que o homem só podia realizar-se através do exercício da sua liberdade como um cidadão da polis: a maioria das pessoas em Atenas não era livre. As mulheres não eram cidadãs e a escravidão era uma instituição aceita. Mas lá, houve definitivamente uma forma de racismo presente, e apenas para os homens gregos foram concedidos os benefícios da liberdade: todos os não-gregos foram chamados bárbaros e por sua natureza não poderiam ser merecedores ou mesmo capazes de exercerem a liberdade.”1

1 Tradução de Jaque Conceição. Disponível em: http://rapefilosofia.blogspot.com.br/2015/07/texto-completo-de-angela-davis.html

A partir disso, Davis aponta que a construção de todos os conceitos que moldam a identidade do indivíduo moderno são consolidadas sob a perspectiva de negação da existência do indivíduo negro, justamente porque o coloca na condição de escravo e, portanto, sem liberdade – portanto, não indivíduo.

Quando retornei ao Brasil, profundamente marcada pelas leituras raciais produzidas por Davis e pela experiência de entrar em contato com uma parte importante da história do movimento negro mundial, nos Estados Unidos, o processo de iniciação no candomblé me atravessava por completo.

Lembro-me de um dia, sentada depois de um jogo de búzios, pensando sobre minha vida enquanto mulher negra, sobre minha história, neta do meio de uma família de mulheres negras guerreiras, que vieram do Sul da Bahia para viver e desbravar terras na periferia de São Paulo. Sentada ali, pensando em quantas dores já haviam me perpassado em menos de 30 anos de vida, me lembrei de uma frase que li em um artigo de Angela Davis de 1969: quando vozes negras se levantam, o mundo estremece.

E foi então, em novembro de 2014, que ficou óbvia para mim a necessidade de um espaço de formação política e produção de conhecimento sobre a mulher negra. Nosso primeiro curso foi justamente sobre o pensamento de Angela Davis, partindo da necessidade de materializar um espaço de produção de pensamento social preto, que paute as questões raciais pelo viés da filosofia política. O curso aconteceu em parceria com Coletivos Negros e um Núcleo de Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis. A idéia era apresentar algumas ideias iniciais sobre a autora que nos fornecessem pistas para avançar nas investigações de suas produções teóricas.

O conceito central que abordamos foi a noção de liberdade desenvolvida por Davis entre 1964 e 1972. Para ela, liberdade não poderia ser uma categoria abstrata e individual, já que, da perspectiva dos povos africanos, escravizados e explorados no ocidente, liberdade trata de algo concreto e bem objetivo: muitas vezes, ser livre implica abrir mão da própria vida, pois vida e trabalho dividem o mesmo tempo e espaço, um mantido pelo outro; logo, vida e trabalho se traduzem em toda a nossa existência. Em Palestras sobre Libertação, ela nos diz ainda que:

“O homem é livre ou não é livre? Deveria ele ser livre ou não deveria ser livre? A história da Literatura Negra prevê, em minha opinião, uma explicação muito mais esclarecedora da natureza da liberdade, sua extensão e os limites dos discursos filosóficos sobre este tema na história da sociedade ocidental. Por quê? Por numerosas razões. Em primeiro lugar, porque a Literatura Negra neste país e em todo o mundo projeta a consciência de um povo que tem seu acesso à liberdade negado. Os negros têm exposto pela sua própria existência as insuficiências da liberdade, não só em sua prática, como também na sua formulação teórica. Porque se a teoria da liberdade fomenta a separação entre o conceito e a prática, ou seja, o que se pensa, não se vivencia então isso significa que algo deve estar errado com o conceito.”2

2 Tradução de Jaque Conceição. Disponível em: http://rapefilosofia.blogspot.com.br/2015/07/texto-completo-de-angela-davis.html

Foi um curso maravilhoso. Houve 350 inscritos, dos quais 290 eram estudantes negros da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O que mais me marcou foi a fala de uma jovem de 22 anos, aluna de engenharia da computação, vinda da Baixada Fluminense e contemplada pelo sistema de cotas. Sua fala me emociona até hoje, três anos depois: “Ontem eu pensei em me matar, ando triste, deprimida, parece que me odeiam nesse lugar; mas hoje, depois de ouvir você falar sobre Angela Davis, eu senti que vale a pena lutar, não só por mim, mas pelos que virão.” Aquilo me tocou de uma forma muito profunda. Esse processo de empatia, de identificação com o pensamento de Angela Davis, certamente se deve ao fato de sermos solitárias enquanto mulheres negras. Somos sombras que circulam nos espaços embranquecidos. Quando finalmente encontramos uma voz que pode nos guiar neste mundo de dor e solidão, nos sentimos amparadas e apoiadas. A intelectualidade de Angela Davis, e de tantas outras intelectuais negras ao redor do mundo, tem sido nosso sol de cada manhã, e nosso luar nas noites de desespero e descrença, como nos sentimos após o extermínio de Marielle Franco.

E foi depois de ouvi-la, apesar de todas as angústias e dúvidas sobre como seria o futuro, que decidi buscar alternativas para manter o Coletivo Di Jeje. Hoje, quase quatro anos depois desse encontro, ele é o primeiro centro de pesquisa e formação política feito por mulheres negras, para mulheres negras, com um método de trabalho pedagógico desenvolvido para potencializar as negras vozes que participam de nossos encontros presenciais e virtuais. Temos sete cursos presenciais e uma loja com mais de 20 cursos de temas que debatem o universo da mulher negra. Em nossos encontros presenciais e virtuais já participaram mais de 3000 mulheres negras. Tudo isso planejado e mantido por mulheres negras.

Nosso modelo de gestão financeira adota apenas o autofinanciamento, ou seja, não contamos com apoio ou patrocínio institucional de empresas, organizações, fundações ou poder público. Os 160 mil reais arrecadados nesses três anos e meio vieram da venda de cursos e da doação de bolsas de estudo feita por pessoas físicas, principalmente mulheres.

Hoje, o maior desafio do Coletivo Di Jeje é alcançar as mais de 50 milhões de mulheres negras, levando o acesso ao conhecimento e a história dos negros e negras em nosso país, por que o conhecimento emancipa, o conhecimento liberta!

Seguimos, pois quando vozes negras se levantam, o mundo estremece! _

Se preferir, baixe o PDF da revista Tuíra #01.

Se eu fosse outra: reflexões sobre autocuidado

Se eu fosse outra: reflexões sobre autocuidado

Pioneiro, o texto a seguir coloca em xeque muitos dos usos do termo autocuidado, em especial aqueles que o veem como garantia da continuidade da produção do indivíduo no sistema capitalista – ou mesmo, no universo ativista, como garantia da prontidão do indivíduo para a luta.

Nota introdutória

O zine Se eu fosse outra foi publicado originalmente em setembro de 2013 como Self As Other: Reflections on Self-Care. É de autoria de CrimethInc.1, que se define como “uma aliança rebelde (…) um think tank que produz ideias e ações inflamáveis, uma esfinge que coloca questões fatais para as superstições de nossa era”. Além de tudo isso, CrimethInc. é descrita por uns como uma rede de produção de conteúdo e eventos fundada em meados dos anos 1990 nos Estados Unidos por pessoas ligadas ao ativismo punk e, por outros, até mesmo como um grupo branco, de classe média, pós-punk e pós-situacionista2.

2 Rebekah Cordova. DYI Punk as Education: From Mis-Education to Educative Healing. Publicado em: Critical Constructions: Studies on Education and Society, 2016, p. 32-24.

Self As Other é a expansão de uma publicação de maio do mesmo 2013, chamada For All We Care: Reconsidering Self-Care (Sobre aquilo que nos toca: repensando o autocuidado). O texto inicial discute as contradições e múltiplas visões que permeiam a ideia de “cuidado”; na nova publicação, a ele foram agregados três relatos de indivíduos sobre suas batalhas pessoais com o conceito e a prática de cuidado. Aqui, apresentamos as duas primeiras partes do zine, originalmente publicadas em For All We Care, em tradução inédita. Livre para impressão e distribuição por qualquer um a todo e qualquer momento, confere igual liberdade e ânsia de libertação à categoria de cuidado3.

3 NT: O inglês utiliza gênero neutro em adjetivos e alguns pronomes. Na tradução, optou-se diversas vezes por utilizar o gênero feminino, em vez do masculino, como é padrão. Isso porque, em vários trechos, o texto fala das mulheres, principalmente as negras, as trabalhadoras sexuais, as secretárias e as donas de casa como aquelas mais afetadas pela atual estrutura de cuidado. Está evidente, assim, que o texto está endereçado a essas pessoas.

Fuja daquilo que é confortável. Esqueça a segurança. Viva onde você teme viver. Destrua sua reputação. Seja notório. –Rumi

Sobre aquilo que nos toca: repensando o autocuidado

Nos anos 1980, enquanto lutava contra o câncer, Audre Lorde afirmou que cuidar de si mesma era um “ato de guerra política”. Desde então, o autocuidado se tornou um jargão popular em círculos ativistas. A retórica do autocuidado passou de específica a universal, de desafiadora a prescritiva. Quando falamos de autocuidado hoje, estamos falando do mesmo que Audre Lorde? É hora de reexaminar esse conceito.

Mas o que poderia estar errado com o cuidado? E por que implicar com o autocuidado, dentre todas as coisas?

Primeiro, porque ele se tornou uma vaca sagrada. É doloroso ouvir as pessoas falarem de forma moralista e hipócrita sobre qualquer coisa, especialmente sobre as coisas que mais importam. A unanimidade devota implica em um lado obscuro: à sombra de cada igreja, um antro de pecado. Isso cria um outro, traçando uma linha entre nós, bem como através de nós.

Auto e cuidado – nesta ordem – são valores universalmente reconhecidos nesta sociedade. Qualquer pessoa que apoie o autocuidado está do lado dos anjos, como diz o ditado – o que equivale a dizer que está contra todas as partes de nós que não se encaixam no sistema de valores prevalecente. Se quisermos resistir à ordem dominante, temos que jogar como advogadas do diabo, buscando aquilo que está difamado e excluído.

Sempre que um valor é considerado universal, encontramos as pressões da normatividade: por exemplo, a pressão para performar o autocuidado para os outros, mantendo as aparências. Muito do que fazemos nesta sociedade é motivado por manter nossa imagem de indivíduos bem-sucedidos e autônomos, independentemente da realidade. Nesse contexto, a retórica do autocuidado pode mascarar o silenciamento e o policiamento: por favor lide com seus problemas sozinho, para que ninguém mais precise fazê-lo.

Pressupor que o autocuidado é sempre bom significa inferir que auto e cuidado têm sempre o mesmo significado. Mas, aqui, queremos desafiar compreensões monolíticas e estáticas do eu e do cuidar. Propomos que diferentes tipos de cuidado produzem diferentes tipos de eu, e que o cuidado é um dos campos de batalha em que as lutas sociais sucedem.

Não me fale para ficar calma

Embora defensores do autocuidado enfatizem que ele pode ser diferente para cada pessoa, as sugestões costumam ser curiosamente similares. Ao pensar em atividades estereotipadas de “autocuidado”, o que você imagina? Tomar um chá, assistir a um filme, tomar um banho de banheira, meditar, fazer yoga? Essa seleção sugere uma ideia bastante restrita do que é o autocuidado: essencialmente, acalmar-se.

Todas essas atividades são construídas para ativar o sistema nervoso parassimpático, que governa o descanso e a recuperação. Mas algumas formas de cuidado requerem adrenalina e atividades extenuantes, que estão sob domínio do sistema nervoso simpático. Uma forma de prevenir o transtorno de estresse pós-traumático, por exemplo, é conceder ao sistema nervoso simpático liberdade suficiente para descarregar o trauma por meio do corpo. Quando uma pessoa está tendo um ataque de pânico, tentar acalmá-la raramente ajuda. A melhor forma de lidar com um ataque de pânico é correr.

Então comecemos descartando qualquer entendimento normativo do significado de cuidar de si. Pode significar acender velas, tocar um disco de Nina Simone e reler The Animal Family, de Randall Jarrell4. Pode também significar sadomasoquismo, arte performática intensa, artes marciais, estilhaçar vidraças de bancos ou erguer a voz contra alguém que abusou de você. Pode até mesmo parecer ser trabalho muito pesado para outras pessoas – ou pode ser parar de funcionar completamente. Isso não é apenas um clichê pós-moderno (“cada um na sua”), mas uma questão do tipo de relação que estabelecemos com nossos desafios e nossa angústia.

4 Ainda não publicada no Brasil

Cuidar de nós mesmas não significa pacificar-nos. Devemos suspeitar de qualquer entendimento do autocuidado que identifique bem-estar com placidez ou nos peça para performar “saúde” diante de outras pessoas. Será que podemos imaginar, ao invés disso, uma forma de cuidado que dê ferramentas para que possamos estabelecer um relacionamento intencional com nosso lado obscuro, permitindo a nós reunir forças a partir do redemoinho caótico que nos habita? Tratar a nós mesmas com gentileza pode ser uma parte essencial disso, mas não devemos pressupor uma dicotomia entre curar-se e engajar-se nos desafios dentro e ao redor de nós. Se o cuidado for apenas o que acontece quando nos afastamos dessas batalhas, estaremos eternamente divididas entre uma suspensão insatisfatória do conflito e seu lado oposto, um vício em trabalho [workaholism] que jamais é suficiente. Idealmente, o cuidado deveria abranger e transcender tanto a luta quanto a recuperação, destruindo os limites que as dividem.

Esse tipo de cuidado não pode ser descrito por meio de clichês. Ele não é um ponto de agenda conveniente para se acrescentar ao programa de alguma ONG. Ele demanda medidas que irão interromper nossos papéis atuais, conduzindo-nos ao conflito com a sociedade em geral e até com algumas pessoas que afirmam estar tentando mudá-la.

Por meio de sua resposta ao perigo, é fácil dizer o que você viveu e o que lhe foi feito. Você mostra se quer continuar vivo, se pensa que merece viver, e se acredita que vale a pena agir. –Jenny Holzer

 

O amor é um campo de batalha

Se quisermos identificar aquilo que vale a pena preservar no autocuidado, podemos começar analisando o cuidado por si só. Defender o cuidado como um bem universal é deixar escapar o papel que o cuidado também tem em perpetuar os piores aspectos do status quo. Não existe algo como o cuidado em sua forma pura. Não, o cuidado é partidário – ele é repressivo ou libertador. Existem formas de cuidado que reproduzem a ordem existente e sua lógica, e outras formas de cuidado que nos permitem lutar contra ela. Queremos que nossas expressões de cuidado nutram a libertação, não a dominação – que unam pessoas com base em um outra lógica, outros valores.

Seja na atenção ao lar ou no trabalho doméstico profissional – sem contar a enfermagem, hospitalidade, e sexo por telefone – mulheres e pessoas negras são desproporcionalmente responsáveis pelo cuidado que mantém a sociedade funcionando, e no entanto têm voz desproporcionalmente menor para dizer o que esse cuidado engendra. Da mesma forma, uma tremenda quantidade de cuidado é empregada para lubrificar o maquinário que mantém a hierarquia: as famílias ajudam os policiais a relaxar depois do trabalho, as trabalhadoras sexuais ajudam os homens de negócios a descarregar as energias, as secretárias assumem o trabalho invisível para manter os casamentos dos executivos.

Então, o problema com o autocuidado não é apenas o prefixo individualista. Para algumas de nós, focar em autocuidado ao invés de cuidar de outrem seria uma proposição revolucionária, ainda que quase inimaginável – e, enquanto isso, os privilegiados se congratulam por suas excelentes práticas de autocuidado sem reconhecer o quanto de seu sustento vem de outras pessoas. Quando concebemos o autocuidado como uma responsabilidade individual, nós nos tornamos menos propensas a ver as dimensões políticas do cuidado.

Algumas já pediram uma greve de cuidado: uma resistência pública e coletiva às formas pelas quais o capitalismo se apoderou do cuidado. No texto Una Huelga de Mucho Cuidado, as militantes espanholas Precarias a La Deriva exploram as maneiras com que o cuidado foi comoditizado ou invisibilizado – desde o trabalho sexual e o relacionamento com clientes na esfera do mercado até o cuidado emocional não-remunerado nas famílias. Elas nos desafiam a imaginar meios de arrancar o cuidado da manutenção de nossa sociedade estratificada e distribuí-lo em abundância para fomentar a união e a revolta.

Mas esse projeto depende daquelas que já são mais vulneráveis em nossa sociedade. Seria necessário ter imenso apoio de entes familiares, trabalhadoras sexuais e secretárias para entrar em uma greve de cuidado sem sofrer terríveis consequências.

Então, ao invés de promover o autocuidado, devemos buscar redirecionar e redefinir o cuidado. Para algumas de nós, isso significa reconhecer como nos beneficiamos de desequilíbrios na atual distribuição do cuidado, bem como superar formas de cuidado que foquem exclusivamente em nós mesmas, para então apoiar estruturas que beneficiem todas as pessoas participantes. Quem está trabalhando para que você possa descansar? Para outras pessoas, isso pode significar cuidar delas mesmas com mais qualidade do que elas aprenderam que merecem – ainda que seja pouco realista esperar que qualquer pessoa empreenda isso individualmente, como uma espécie de política de consumo do eu. Em vez de criar comunidades muradas de cuidado, vamos buscar formas de cuidado que sejam expansivas, que interrompam nosso isolamento e ameacem nossas hierarquias.

A retórica do autocuidado foi apropriada de maneira que pode reforçar o direito das pessoas privilegiadas. Mas uma crítica do autocuidado não deve ser usada como mais uma arma contra aquelas que já são desencorajadas a procurar cuidado. Alto lá!5

5 No original, “In short: step up, step back”. A expressão “step up, step back” é frequentemente empregada em reuniões para incentivar que aqueles que falam pouco se coloquem mais, e vice-versa, como instrumento para combater silenciamentos estruturais. Neste texto, ela vem alertar para a necessidade de que a crítica do autocuidado empodere aquelas que são oprimidas pelo sistema, e não o contrário.

Uma luta que não entenda a importância do cuidado está fadada a falhar. As revoltas coletivas mais intensas são construídas sobre um pilar de apoio e zelo. Mas reivindicar o cuidado não significa apenas cuidar mais de nós mesmas, mais um item em nossa lista de afazeres. Significa quebrar o acordo de paz com nossas regras, suprimir o cuidado dos processos que reproduzem a sociedade em que vivemos e colocá-lo a serviço de propósitos subversivos e insurgentes.

Além da autopreservação

“Saúde é um fato cultural no sentido mais amplo da palavra, um fato que é também político, econômico e social, um fato que é ligado a um certo estado da consciência individual e coletiva. Toda era define um perfil ‘normal’ de saúde.” –Michel Foucault

A melhor forma de vender um programa normativo para as pessoas é enquadrá-lo em termos de saúde. Quem não quer ser saudável?

Mas, assim como o “auto” e o “cuidado”, a saúde não é algo único. Em si mesma, a saúde não é intrinsecamente boa – é apenas a condição que permite ao sistema seguir funcionando. Pode-se falar da saúde de uma economia ou de um ecossistema: com frequência, estes mantêm entre si um relacionamento inverso. Isso explica por que algumas pessoas descrevem o capitalismo como um câncer, enquanto outras acusam “anarquistas black bloc” de serem o câncer. Os dois sistemas são letais um ao outro; nutrir um deles significa comprometer a saúde do outro.

A função repressiva das normas de saúde é suficientemente óbvia no campo profissional da saúde mental. Enquanto a drapetomania6 e a anarquia eram outrora invocadas para estigmatizar escravos e rebeldes fugitivos, os clínicos de hoje em dia diagnosticam o Transtorno Opositivo Desafiador (TOD). Mas o mesmo acontece longe das instituições psiquiátricas.

6 Drapetomania é um “diagnóstico” médico proposto em 1851 por Samuel A. Cartwright, um médico estadunidense do escravagista estado da Louisiania. O termo deriva do grego e quer dizer algo como “mania de fugir”. Num artigo publicado à època, Cartwright argumentava que a tendência de fuga dos escravos na verdade se tratava de uma desordem médica e que podia ser prevenida e tratada com altos índices de sucesso.

Numa sociedade capitalista, não deveria surpreender que tendemos a mensurar saúde em termos de produtividade. O autocuidado e o vício em trabalho são dois lados da mesma moeda: preserve-se para poder produzir mais. Isso explicaria por que a retórica do autocuidado é tão prevalente no terceiro setor, onde a pressão para competir por financiamento costuma obrigar as pessoas a mimetizar o comportamento corporativo, mesmo que sob outras terminologias.

Se o autocuidado é apenas uma forma de suavizar o impacto de uma demanda por produtividade em constante crescimento, e não uma rejeição transformadora desta demanda, ele é parte do problema, e não a solução. Para que o autocuidado seja anticapitalista, ele precisa expressar uma concepção diferente de saúde.

Isso é especialmente complicado à medida que nossa sobrevivência se interliga com o funcionamento do capitalismo (uma condição designada por alguns com o termo biopoder). Nessa situação, a forma mais fácil de preservar sua saúde é sobressair-se na competição capitalista – a mesma coisa que tanto nos tem prejudicado. “Não existe outra pílula para tomar, então engula aquela que te adoeceu”.

Para escapar a este círculo vicioso, temos que passar da reprodução de um “eu” para a produção de outro. Isso demanda uma noção de autocuidado que é transformadora ao invés de conservadora – uma que entende o eu como dinâmico, e não estático. O ponto não é refrear a mudança, como na medicina ocidental, mas sim fomentá-la; no baralho de tarô, a Morte representa a metamorfose.

Não existe outra pílula para tomar,
então engula aquela que te adoeceu

Da perspectiva do capitalismo e do reformismo, qualquer coisa que ameace nossos papéis sociais não é saudável. Enquanto permanecermos dentro do paradigma anterior, pode ser que apenas comportamentos julgados não saudáveis possam apontar a saída. Quebrar com a lógica do sistema que nos manteve vivos demanda às vezes uma atitude inconsequente.

Isso pode jogar luz sobre a conexão entre comportamentos aparentemente autodestrutivos e a rebelião, conexão esta que remonta a muito antes do punk rock. O lado radical das assembleias do Occupy Oakland, onde ficavam todas as pessoas fumantes, era conhecido como “black lung bloc” (bloco do pulmão preto) – o câncer do Occupy, certamente! A energia autodestrutiva que conduz as pessoas ao vício e ao suicídio pode também habilitá-las a assumir riscos corajosos para mudar o mundo. Podemos identificar múltiplas correntes dentro do comportamento autodestrutivo, algumas das quais oferecem um tremendo potencial. Precisamos de uma linguagem para explorar isso, já que nossa linguagem para autocuidado pode perpetuar um falso binarismo entre doença e autodestruição, de um lado, e saúde e luta, de outra. Ao falarmos sobre romper com a lógica do sistema, não estamos apenas falando de uma decisão corajosa que indivíduos presumivelmente saudáveis realizam no vácuo. Mesmo que distantes do comportamento “autodestrutivo”, muitos de nós já vivenciam a doença e deficiência que nos posiciona fora da concepção societal de saúde. Isso nos força a brigar com a questão do relacionamento entre saúde e luta.

Na luta anticapitalista, será que também associamos saúde com produtividade, denotando que pessoas doentes não podem efetivamente participar? Ao invés disso – sem declarar as pessoas doentes como o sujeito revolucionário a la Icarus Project7 – poderíamos buscar formas de lidar com a doença que nos arranquem de nosso condicionamento capitalista, interrompendo uma forma de existir em que a autovalorização e os vínculos sociais pressupõem uma falta de cuidado conosco e com os outros. No lugar de patologizar a doença e a autodestruição como distúrbios a serem curados em nome da eficácia, poderíamos reimaginar o autocuidado como uma forma de perscrutá-las em busca de novos valores e possibilidades.

Icarus Project é uma rede estadunidense de apoio e educação construída por e para pessoas com questões de saúde mental. O projeto possui uma visão radical que associa saúde mental à justiça social e fomenta iniciativas de cuidado mútuo e apoio que levem à cura e libertação coletivas.

Pense em Virginia Woolf, Frida Kahlo, Voltairine de Cleyre e todas as outras mulheres que bebiam da fonte de suas batalhas pessoais com a doença, a lesão e a depressão para criar expressões públicas de cuidado insubordinado. E Nietzsche: era a sua saúde débil um mero obstáculo que ele, energicamente, superou? Ou era ela intrínseca à sua percepção e às suas lutas, um passo essencial no caminho que o guiou para longe do conhecimento transmitido para que ele pudesse, então, descobrir uma coisa outra? Para entender seus escritos no contexto de sua vida, temos que imaginar Nietzsche em uma cadeira de rodas enfrentando um batalhão da polícia de choque, e não voando pelos ares com um S impresso no peito.

Sua fragilidade humana não é um defeito lamentável que precisa ser tratado com formas adequadas de autocuidado até que você consiga retornar ao trabalho árduo. A doença, a deficiência e a improdutividade não são anomalias a se eliminar; são momentos que ocorrem em toda e qualquer vida e oferecem um terreno comum para nos unirmos. Se levarmos esses desafios a sério e abrirmos espaço para focar neles, eles podem apontar o caminho para além da lógica do capitalismo, rumo a uma forma de vida em que não exista dicotomia entre cuidado e libertação.

 

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Ocupação

Forma de protesto ou ação direta, ocupar é demonstrar que outro modo de viver é possível

Carolina Munis

“Vamos ocupar o espaço público”, bradam movimentos aqui e acolá. Ocupar a cidade, a política, a mídia. Ocupar com e sem hashtag. Ocupar: palavra que tomou tantos discursos, planos e narrativas, alastrada radicalmente pelas ocupações das escolas realizada pelos secundaristas a partir de 2015. Mas, muito antes e em tantos lugares, as ocupações já vinham colocando no mapa e na ordem do dia as mazelas políticas, econômicas e sociais contra as quais se ergue o espírito insurgente.

Prefiguração

Não é por acaso que a ocupação se presta como tática por excelência de tantos projetos: sonho, experimento, denúncia, resistência, conquista… Ocupações são fortes exemplos de políticas prefigurativas, em que não há diferença entre o que se busca e a forma como se busca. Mesmo nas condições mais adversas, ocupar é romper a barreira entre imaginação e prática na busca por outra realidade; é rebelar-se contra o que existe e imediatamente perseguir outras possibilidades. Dificilmente uma ocupação não exigirá uma reinvenção das formas de vida, um rompimento do estado de normalidade que classifica, ordena, hierarquiza e subjuga, rumo a outras, ilimitadas e inacabadas, versões do possível.

Nem sempre é preciso deslocar-se de um espaço físico não ocupado para um espaço físico ocupado. Em um mesmo local, passar de um estado de normalidade para um estado de ocupação suspende abruptamente tudo que ali existia: as normas, a posse de prerrogativas, os valores atribuídos aos corpos. Outras possibilidades são convocadas a passarem a existir, ou a própria suspensão do status quo se transforma, ela mesma, em um estado. “A ocupação física da Sorbonne foi seguida por uma explosão intelectual de violência sem precedentes. Tudo, literalmente tudo, foi repentinamente e simultaneamente posto em discussão, em questionamento, em objeção”1, disseram alguns dos que estiveram de corpo presente nas lutas que pararam Paris em maio de 1968. No Brasil, as escolas ocupadas passaram às mãos dos mesmos estudantes que diariamente a frequentavam e, reterritorializadas, foram palco da emergência de outras subjetividades: “Os jovens secundaristas (…) nos contam que ‘ocupar’, no seu caso, tem muito a ver com estar de outra forma naquele mesmo espaço onde passaram e passam quase a vida inteira. (…) Esse novo modo de ‘estar’ (…), rompe de fato com aquilo que vinha antes, pois tem a ver com um estar ali por inteiro, com tudo o que cada um tem, com tudo o que carrega”2.

1 Solidarity. Paris: Maio de 68. Conrad, 2008, p. 38.

2 Grupo Contrafilé. A Batalha do Vivo. p. 42.

Tática

Em primeiro lugar, as ocupações servem como método de resistência para tomada de um local, no tensionamento contra um adversário específico, por um determinado período de tempo. Sharp3, em sua conhecida lista de métodos de ação não violenta, distingue vários tipos de ocupações, chegando a diferenciar aquelas em que os ocupantes estão de pé e sentados, as que ocorrem em áreas proibidas, em praias, na cidade e no campo. Dois exemplos do que ele chama de intervenção física são a incursão não violenta, em que a invasão quer antes “desafiar a autoridade do que ter a efetiva posse do local”, e a ocupação não violenta, em que os ativistas insistem em sua permanência até a resolução de suas demandas. Já a ocupação de terras, que substitui os donos de uma terra por aqueles que a ocupam, é uma forma de intervenção econômica na classificação de Sharp.

3 Gene Sharp. Poder, luta e defesa: teoria e prática da ação não-violenta. Edições Paulinas, 1983, p. 191.

Quando empregada a partir de um bom arcabouço estratégico, a ocupação – como toda boa tática – move a balança de poder em favor dos ativistas. David Harvey descreveu as táticas do Occupy Wall Street como “tomar um espaço público central, um parque ou uma praça, próximo à localização de muitos dos bastiões do poder e, colocando corpos humanos ali, convertê-lo em um espaço político de iguais, um lugar de discussão aberta e debate sobre o que esse poder está fazendo e as melhores formas de se opor ao seu alcance. Essa tática (…) mostra como o poder coletivo de corpos no espaço público continua sendo o instrumento mais efetivo de oposição quando o acesso a todos os outros meios está bloqueado.”4 As suposições consolidadas sobre a posse de um espaço ou sistema são imediatamente colocadas em xeque, e tanto a permanência da ocupação quanto seu despejo forçado colocam a autoridade oponente em um constrangimento moral.

4 David Harvey. Os rebeldes na rua: o Partido de Wall Street encontra sua nêmesis. Publicado em: David Harvey e outros. Occupy: movimentos de protesto que tomaram a rua. Boitempo/Carta Maior, 2012, p. 60-61.

Protesto ou ação direta

A ocupação pode ser uma forma de protesto ou uma ação direta. O protesto existe como a vocalização de um discurso, manifestação de um desejo, publicização de uma demanda ou causa – geralmente para reivindicar algo a um agente intermediário que detém o poder de tomada de decisão. Como exemplo, pode-se pensar nas ocupações de fábricas durante uma greve; nas ocupações de reitorias e bandejões durante as mobilizações universitárias; ou na tomada de prédios públicos para aumentar a visibilidade de lutas de longo prazo (como a tomada do Incra pelos movimentos de sem terras ou da Funai pelos indígenas). Também as gigantescas ocupações da Praça Tahir, no Cairo, durante a Primavera Árabe em 2011, ou do Occupy Wall Street, em Nova York, ou as demais acampadas dos diversos Occupy pelo mundo naquele ano, configuram-se como demonstrações de protesto – extensas, duradouras, agenciadoras de dinâmicas novas de sociabilidade, mas ainda assim fundamentalmente orientadas para a produção de efeitos simbólicos e midiáticos (daí sua qualificação como “demonstração” ou “manifestação”).

Já as ocupações de terras realizadas pelos movimentos pela reforma agrária (como o MST) ou as de prédios e terrenos nas grandes cidades pelos movimentos por moradia (como o MTST) possuem como objetivo principal o uso do território urbano ou rural para sua finalidade social concreta: a moradia e o cultivo da terra. Embora essas ocupações acabem por também produzir grande efeito simbólico e alta visibilidade, esse não é seu ponto central. Elas realizam diretamente, sem mediação, e com base nas próprias forças dos agentes, a mudança pretendida – e, nesse sentido, são ações diretas. A ação concreta fala mais alto do que qualquer mensagem, slogan ou grito de ordem. O mesmo ocorreu com as ocupações de fábrica durante a insurreição espanhola de 1936: anarquistas tomaram e administraram as fábricas das regiões da Catalunha e Aragão num exemplo histórico de autogestão operária, só interrompida pela estatização forçada pelo então governo republicano de influência stalinista5. A ocupação com fins de apropriação ou governança coletiva é, portanto, uma ação direta.

5 Para saber mais: George Woodcock. História das ideias e movimentos anarquistas. Vol. 2 – Os movimentos. LP&M, 2002.

Um mesmo movimento pode se valer da ocupação tanto como tática de protesto quanto de ação direta. O MST, por exemplo, ao invadir o prédio do Incra, em Brasília, faz protesto; ao ocupar uma fazenda para fins de desapropriação para reforma agrária e instituir o núcleo inicial provisório de um futuro assentamento, faz ação direta. As ocupações das escolas públicas pelos secundaristas em 2015 e 2016, ainda que viessem a se consolidar como uma marcante e inventiva ação direta, foram principalmente uma forma de protesto, mesmo que de longa duração: a ocupação era um dispositivo para evidenciar e amplificar uma causa, sendo acompanhada por diversas outras táticas de grande impacto.

Tempo

No âmbito das estratégias de guerrilha urbana, como formuladas pelos teóricos guerrilheiros da década de 1960 e 70 na América Latina, as ocupações têm função estritamente provisória. A guerrilha, segundo eles, “tem um caráter extremamente móvel e não pode dedicar-se à defesa de posições fixas ou territórios limitados”6. Sua finalidade é, em geral, protestar, fazer propaganda ou desviar a atenção do inimigo. A determinação do Minimanual do Guerrilheiro Urbano, de Carlos Marighella, é bem explícita: “a ocupação é sempre temporária e, quanto mais rápida, melhor”7. De forma semelhante, Hakim Bey, em seu conceito de “zona autônoma temporária”, aponta que a ocupação institui um território sociopolítico novo e autônomo, mas apenas, e suficientemente, enquanto existe e na medida em que existe. A materialização de outras humanidades possíveis acontece no breve momento de distração dos sistemas de controle e repressão – e a possível descoberta da “zona autônoma” pelas autoridades imediatamente comanda que ela desapareça8.

6 Carlos Marighella. Teoria y acción revolucionarias. Editorial Diógenes, 1972, p. 97.

7 Idem, p. 44.

8 “A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se refazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la. (…) Assim que a TAZ é nomeada, ela deve desaparecer, ela vai desaparacer (…) Assim sendo, a TAZ é uma tática perfeita para uma época em que o Estado é onipresente e todo-poderoso mas, ao mesmo tempo, repleto de rachaduras e fendas”. Trecho de: Hakim Bey. TAZ: Zona Autônoma Temporária. Digitalizado por: Coletivo Sabotagem e Contracultura. Copyleft.

Por outro lado, uma ocupação pode também encontrar seu poder em sua longevidade, e não temporariedade. Entre 1964 e 1969, nos Estados Unidos, indígenas de várias etnias – muitos deles estudantes e vivendo uma vida precária nas cidades – realizaram três ocupações da ilha de Alcatraz, a dois quilômetros da costa de São Francisco. A mais longa delas, a partir de novembro de 69, durou 14 meses, sendo encerrada apenas pela invasão das forças governamentais.9 Mais impressionante é o caso de Cristiânia, a “cidade livre” anarco-hippie criada em 1971 num distrito de Copenhagen, numa área de 34 hectares onde funcionava um antigo acampamento do exército. Ali vivem até hoje cerca de 1.000 pessoas em regime de autogoverno.

9 Troy Johnson.The Occupation of Alcatraz Island: Roots of American Indian Activism. Wicazo Sa Review, 1994, vol. 10, n. 2, p. 63-79.

Em todos os casos, a ocupação não é uma aposta impetuosa, improvisada e impensada. Ao contrário, ela deve ter um objetivo claro e integrar uma estratégia mais ampla de pressão política sobre o oponente. É uma tática que envolve planejamento meticuloso, grande esforço logístico e um bom cálculo de tempo e timing.


OCUPAR E RESISTIR!

Veja uma lista de cuidados importantes para o uso estratégico da tática de ocupação

ESTRATÉGIA_ Como toda tática, a ocupação não é um fim por si só. Ela deve ser um componente de uma estratégia maior para a solução de um problema político ou social. Essa estratégia precisa ter objetivos de curto, médio e longo prazos definidos e abranger outras táticas de comunicação e ação.

LOCAL_ O local a ser ocupado tem força simbólica, mas traz implicações objetivas. Ocupar um hospital, por exemplo, é diferente de ocupar uma escola, pois os serviços que ele oferece estão diretamente ligados à sobrevivência humana. Ao escolher o local, considere a posição que ele tem no sistema que gera a injustiça a ser enfrentada: pode ser o local onde opressões ocorrem diretamente, onde decisões são tomadas, ou onde o público consome produto ou serviço que deixa em sua trilha um rastro de injustiças. Equacione isso com sua capacidade efetiva de gerir o espaço quando ocupado.

LEI_ A ocupação inevitavelmente vai despertar um dilema jurídico entre a defesa da posse do Estado ou da propriedade privada, de um lado, e a garantia dos direitos constitucionais de reunião e manifestação, de outro. Considere as questões legais e esteja amparado por advogados.

MÍDIA_ A grande imprensa pode fazer uma cobertura desfavorável da ocupação e entrevistas para estes canais podem acabar se revelando emboscadas, a despeito do seu preparo prévio. Busque a mídia independente e lembre-se de que você mesmo pode fazer o papel da mídia com uso de vídeos, redes sociais, músicas, publicações e outras plataformas.

SEGURANÇA DA INFORMAÇÃO_ Construa redes confiáveis para disseminação de informação. Utilize sempre ferramentas de comunicação seguras e garanta que elas sejam de uso coletivo.

TEMPO_ O tempo e o timing são essenciais para o impacto da ocupação. Pense em como a ocupação começa, quanto tempo ela deve durar e como irá terminar – se é que deve terminar. Articule com cuidado momentos de ofensiva e momentos de recuo (se for o caso).

LOGÍSTICA_ Ocupações de médio e longo prazo exigem grande esforço logístico para garantir as necessidades básicas das pessoas que estão ocupando. Aproveite para fazer da limpeza, alimentação e comunicação práticas coletivas que aumentam a articulação e coesão entre os ocupantes.

ATIVIDADES_ O que acontece dentro da ocupação? Um dos poderes das ocupações reside no fato de serem prefigurativas, isto é, em que não há diferença entre aquilo que se busca e a forma como se busca. As atividades realizadas no espaço – sejam elas de produção, formação, cuidado, mobilização ou arte – são, portanto, uma forma de evocar a realidade pela qual se luta.

APOIO_ Articular uma rede de solidariedade fora da ocupação é tão importante quanto o que acontece dentro dela. É isso que irá transformar a ocupação em um fato político de impacto. Essa rede serve, ainda, como um apoio frente a ataques e uma fonte de ajuda para necessidades imediatas de alimentação, segurança, logística e atividades.

SEGURANÇA FÍSICA_ A segurança física e emocional das pessoas ocupantes deve ser prioridade. Algumas formas de ocupação implicam grande esforço físico, político e emocional. As chances de retaliação imediata são grandes; picos de repressão e tensionamentos constantes podem colocar as pessoas em risco e gerar desgastes.


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All the King’s Men

É difícil pensar a emergência de Maio de 68 sem considerar a influência dos modos de pensar, falar e fazer elaborados pelos situacionistas na Europa desde o final da década de 50. O texto a seguir é um exemplo eloquente do estilo e das ideias do grupo.

Internacional Situacionista _ tradução: Carolina Munis


NOTA INTRODUTÓRIA

Fundada em 1957, a Internacional Situacionista surgiu da fusão de três grupos de artistas e intelectuais radicais – o Comitê Psicogeográfico de Londres, o Movimento por uma Bauhaus Imaginista e a Internacional Letrista – reunindo franceses, suíços, belgas, holandeses, ingleses, alemães e africanos do norte, que combinavam a tradição das vanguardas artísticas, um tanto da teoria marxista do valor e da mercadoria, pitadas de anarquismo teórico e tático e uma forte recusa do capitalismo e da sociedade de consumo. Como antiartistas e revolucionários ao mesmo tempo, os situacionistas produziram um corpus de ideias políticas provocativo, disruptivo e inovador num tempo de cristalização de uma teoria da luta que servia mais à manutenção das burocracias partidárias e sindicais do que à irrupção ou produção de novos “acontecimentos” revolucionários. O conceito de situação – na origem da autodenominação situacionista – se opõe diretamente ao de espetáculo, que pressupõe um espectador passivo. “A situação é feita para ser vivida pelos seus construtores”, é resultado da ação de pessoas vivas, afirmam num de seus textos fundadores.

A revista Internationale Situationniste teve 12 edições entre 1958 e 1969 e foi o principal veículo da produção teórica do grupo. Em 1967, foram publicadas as duas obras situacionistas mais influentes: A sociedade do espetáculo, de Guy Debord, e A arte de viver para as novas gerações, de Raoul Vaneigem. Outro texto situacionista está diretamente vinculado à eclosão de Maio. A miséria no meio estudantil (redigido pelo situacionista tunisiano Mustapha Khayati e revisado por Debord) foi distribuído aos milhares entre os estudantes franceses a partir de 1966 (o próprio Daniel Cohn-Bendit ajudou na distribuição) e tornou-se uma espécie de panfleto seminal do levante.

O texto All the King’s Men foi publicado no número 8 da revista Internationale Situacionniste, em janeiro de 1963. Talvez tenha sido escrito por Vaneigem, já que várias das ideias contidas no artigo aparecem mais tarde em A arte de viver para as novas gerações. O título em inglês, um misterioso “Todos os Homens do Rei”, foi mantido conforme a publicação da revista no original em francês.
– – –

NT: Tradução adaptada por Carolina Munis com base na tradução retirada da obra Antologia Situacionista, organizada por Júlio Henriques e publicada por Edições Antígona em Lisboa, bem como nas versões espanhola, inglesa e no texto original em francês, publicado na revista Internationale Situationniste, n. 8, em 1963. O título, que o próprio texto original traz em inglês, significa “Todos os homens do rei”. À primeira vista misterioso, faz referência à rima infantil Humpty Dumpty, bastante popular em países anglófonos: Humpty Dumpty sat on a wall / Humpty Dumpty had a great fall / All the king’s horses and all the king’s men / Couldn’t put Humpty together again. O mistério se abranda quando o texto recorre à sabedoria de Humpty Dumpty, que, transformado em personagem por Lewis Carroll, conversa com Alice sobre a liberdade para se definir o significado das palavras.

ALL THE KING’S MEN

O problema da linguagem está no centro de todas as lutas em prol da abolição ou da conservação da alienação presente; é inseparável de todo o terreno destas lutas. Vivemos na linguagem como no ar poluído. Ao contrário do que julgam as pessoas espirituosas, as palavras não brincam. Não fazem amor, como acreditava Breton, a não ser em sonhos. As palavras trabalham, por conta da organização dominante da existência. E todavia não estão completamente automatizadas; para a infelicidade dos teóricos da informação, as palavras não são em si mesmas “informacionistas”1; há nelas forças que se manifestam, forças estas que podem frustrar os cálculos. As palavras coexistem com o poder numa relação análoga àquelas que os proletários (tanto no sentido clássico como no sentido moderno do termo) têm com o poder. Empregadas por ele quase o tempo todo, exploradas por todo o sentido – ou falta dele – que pode ser delas extraído, as palavras continuam a lhe ser, de certa maneira, radicalmente alheias.

1 NE: A Teoria da Informação (ou Teoria Matemática da Informação), formulada pelos norte-americanos Shannon e Weaver no final da década de 40, esteve bastante em voga nas décadas seguintes como base dos estudos da comunicação. Segundo essa teoria, a unidade básica de informação é o bit; a “mensagem” circula por um “canal” entre “emissor” e “receptor”, convertida em “sinal”, e pode ser perturbada por um “ruído”. O modelo informacionista é também chamado de funcionalista.

O poder apenas fornece o falso cartão de identidade das palavras, impõe-lhes uma licença de passagem, determina o seu lugar na produção (onde algumas visivelmente fazem horas extras); entrega-lhes, por assim dizer, um contracheque. Devemos reconhecer a seriedade do Humpty Dumpty de Lewis Carroll ao considerar que toda a questão, ao se decidir sobre o emprego das palavras, reside em “saber quem será o dono” delas; em mais nada. E ele, um patrão socialmente responsável neste quesito, afirma que paga hora extra àquelas que emprega muito. Devemos pois entender assim o fenômeno da insubmissão das palavras, a sua fuga, a sua resistência aberta, que se manifesta em toda a escrita moderna (de Baudelaire aos dadaístas e a Joyce) como sintoma da crise revolucionária global que se registra na sociedade.

Sob o domínio do poder, a linguagem designa sempre algo que não o autenticamente vivido. É precisamente nisso que reside a possibilidade de uma contestação completa. A confusão tornou-se de tal ordem, na organização da linguagem, que a comunicação imposta pelo poder se desvenda como uma impostura e um embuste. Em vão um embrião de poder cibernético tentará colocar a linguagem sob a dependência das máquinas que ela mesma controla, de maneira que a informação se torne a única comunicação possível. Mesmo neste terreno manifestam-se resistências, e podemos considerar a música eletrônica como uma tentativa, obviamente ambígua e limitada, de combater a relação de dominação, desviando as máquinas em proveito da linguagem. Mas a oposição é muito mais geral, muito mais radical. Denuncia toda a “comunicação” unilateral, tanto na velha arte como no informacionismo moderno. Convoca a uma comunicação que arruíne todo e qualquer poder separado. Onde de fato houver comunicação, deixará de haver Estado.

O poder vive de receptação. Não cria nada, só captura. Se ele criasse o sentido das palavras, não haveria poesia, haveria apenas “informação” pragmática. Ninguém poderia jamais expressar oposição na linguagem e toda a recusa seria exterior a esta, seria puramente letrista. Ora, o que é a poesia senão o momento revolucionário da linguagem, e, como tal, inseparável dos momentos revolucionários da História, bem como da história da vida pessoal?

O cerco do poder sobre a linguagem é semelhante ao cerco que exerce sobre a totalidade. Só a linguagem que tenha perdido qualquer referência imediata à totalidade pode fundamentar a informação. A informação é a poesia do poder (a contra poesia da manutenção da ordem); é a falsificação mediatizada do que existe. Inversamente, a poesia deve ser compreendida como comunicação imediata no real e modificação real deste real. Ela não é outra senão a linguagem liberta, a linguagem que reconquista a sua riqueza e, desfazendo os seus signos, ao mesmo tempo reconquista as palavras, a música, os gritos, os gestos, a pintura, a matemática, os fatos. A poesia depende, portanto, do maior grau de riqueza em que, em um determinado estágio da formação econômico-social, a vida pode ser vivida e transformada. Torna-se assim inútil precisar que esta relação da poesia com a sua base material na sociedade não constitui uma subordinação unilateral, mas sim uma interação.

Reencontrar a poesia pode confundir-se intimamente com reinventar a revolução, como o provam tão claramente certas fases das revoluções mexicana, cubana ou congolesa. Entre os períodos revolucionários durante os quais as massas acessam a poesia através da ação, podemos pensar que os círculos da aventura poética continuam a ser os únicos lugares onde subsiste a totalidade da revolução, como virtualidade irrealizada mas próxima, sombra de uma personagem ausente. De modo que aquilo a que chamamos aventura poética é difícil, perigoso e, seja como for, nunca garantido (na realidade, trata-se da soma dos comportamentos quase impossíveis numa dada época). Só podemos ter certeza de que já não é a aventura poética de uma época a sua falsa poesia reconhecida e autorizada. Assim, apesar do surrealismo, no tempo de seu assalto contra a ordem opressora da cultura e do cotidiano, ter podido justamente definir o seu armamento como uma “poesia sem poemas, se necessário”, trata-se agora para a IS [Internacional Situacionista] de uma poesia necessariamente sem poemas. E tudo o que dizemos da poesia em nada diz respeito aos atrasados reacionários de uma neoversificação, ainda que alinhados com os menos velhos dos modernismos formais. O programa da poesia realizada consiste em nada menos que criar ao mesmo tempo os acontecimentos e a sua linguagem, de maneira inseparável.

Todas as linguagens fechadas – as dos grupos informais da juventude; as que as vanguardas atuais, no momento em que se buscam e definem, elaboram para sua utilização interna; as que, outrora, transmitidas em objetiva produção poética para o exterior, puderam chamar-se trobar clus ou dolce stil nuovo – têm como fim e resultado efetivo a transparência imediata de uma certa comunicação, do reconhecimento recíproco, do acordo. Mas tais tentativas são expressão de agrupamentos restritos, de um modo ou de outro isolados. Os acontecimentos que estes puderam preparar, as festas que entre si puderam organizar, tiveram sempre de permanecer nos mais estreitos limites. Um dos problemas revolucionários consiste em articular estas espécies de sovietes, de conselhos de comunicação, a fim de inaugurar por toda a parte uma comunicação direta, que já não precise recorrer à rede de comunicação do adversário (ou seja, à linguagem do poder) e possa assim transformar o mundo segundo seu desejo.

“A beleza está na rua”

Não se trata de pôr a poesia a serviço da revolução, trata-se de pôr a revolução a serviço da poesia. Só assim a revolução não trai o seu projeto. Não iremos reeditar o erro dos surrealistas, que se puseram a seu serviço quando justamente já não havia revolução alguma. Ligado à lembrança de uma revolução parcial rapidamente abatida, o surrealismo tornou-se também rapidamente um reformismo do espetáculo, a crítica de uma certa forma do espetáculo reinante empreendida no interior da organização dominante deste mesmo espetáculo. Os surrealistas parecem ter negligenciado o fato de que o poder impõe sua própria leitura a qualquer melhoramento ou modernização interna do espetáculo, uma decodificação cujo código ele mesmo detém.

Toda revolução nasceu na poesia, começou a ser desencadeada pela força da poesia. Este fenômeno escapou e continua a escapar aos teóricos da revolução – é certo que ninguém pode compreendê-lo se continuar a agarrar-se à velha concepção da revolução ou da poesia –, mas foi em geral sentido pelos contrarrevolucionários. Porque a poesia, onde quer que exista, mete-lhes medo; teimam em livrar-se dela com vários exorcismos, do auto-de-fé à investigação estilística pura. O momento da poesia real, que “tem o tempo todo à sua frente”, pretende sempre reorientar, segundo os seus próprios fins, o conjunto do mundo e o futuro todo. Enquanto durar, as suas reivindicações não poderão ser comprometidas. Põe em jogo as dívidas da História que não foram pagas. Fourier e Pancho Villa, Lautréamont e os dinamiteiros das Astúrias – cujos sucessores inventam agora novas formas de greve –, os marinheiros do Cronstadt ou de Kiel, e todos que, por esse mundo afora, conosco e sem nós, preparam-se para lutar em prol da longa revolução, são também os emissários da nova poesia.

A poesia é cada vez mais claramente, enquanto lugar vazio, a antimatéria da sociedade de consumo, porque não é uma matéria consumível (segundo os critérios modernos do objeto consumível: aquele que tem o mesmo valor para uma massa passiva de consumidores isolados). A poesia não é nada ao ser citada, só pode ser desviada, posta de novo em jogo. O conhecimento da velha poesia não passa de um exercício universitário, decorrente das funções globais do pensamento universitário. E a história da poesia é apenas uma fuga diante da poesia da História, se por este termo entendermos não a história espetacular dos dirigentes, mas sim a da vida cotidiana e do seu alargamento possível; a história de cada vida individual, da sua realização.

Não devemos permitir nenhum equívoco sobre o papel dos “conservadores” da poesia antiga, dos que aumentam a sua difusão à medida que o Estado, por razões muitíssimo diferentes, faz desaparecer o analfabetismo. Estas pessoas representam nada mais que um caso particular dos conservadores de toda a arte dos museus. Uma grande quantidade de poesia é normalmente conservada no mundo. Mas em lado nenhum se veem os lugares, os momentos e as pessoas para a reviverem, comunicarem, utilizarem. Isto só pode ser realizado através do desvio, porque a compreensão da antiga poesia mudou tanto ao perder como ao adquirir conhecimentos; e porque a antiga poesia, a cada momento em que é de fato reencontrada, é posta perante acontecimentos particulares, o que lhe confere um sentido amplamente novo. Mas, sobretudo, uma situação em que a poesia é possível não poderia restaurar nenhum fracasso poético do passado (sendo este fracasso aquilo que resta, invertido, na história da poesia como êxito e monumento poético). Ela tende naturalmente à comunicação, e às chances de soberania, de sua própria poesia.

Estritamente contemporâneos da arqueologia poética que restitui seleções de poesia antiga recitadas em disco por especialistas, para o público do novo analfabetismo constituído pelo espetáculo moderno, os informacionistas assumiram a empreitada de combater todas as “redundâncias” da liberdade para simplesmente transmitirem ordens. Os pensadores da automatização visam de modo explícito um pensamento teórico automático, por fixação e eliminação das variáveis que ocorrem na vida e na linguagem. Mas não param de aparecer moscas em sua sopa!2 As máquinas de tradução, por exemplo, que começam a assegurar a uniformização planetária da informação e ao mesmo tempo a revisão informacionista da antiga cultura, são vítimas de seus programas preestabelecidos, aos quais necessariamente escapa toda e qualquer nova acepção de uma palavra, bem como as suas ambivalências dialéticas passadas. Assim, a vida da linguagem – associada a cada novo avanço da compreensão teórica: “As ideias melhoram. E disso faz parte o sentido das palavras.” – se vê expulsa do espaço mecânico da informação oficial, mas, ao mesmo tempo, o pensamento livre pode se organizar com vista a uma clandestinidade incontrolável pelas técnicas da polícia informacionista. A busca de sinais indiscutíveis e de classificação binária instantânea marcha claramente no sentido do poder existente, e há de ser alvo da mesma crítica. Até nas suas formulações delirantes os pensadores informacionistas se comportam como desajeitados precursores patenteados do futuro que escolheram, sendo justamente isto o que modela as forças dominantes da sociedade atual: o reforço do Estado cibernético. São eles os servos de todos os suseranos do feudalismo tecnológico que agora se consolida. Nas suas piadas não há inocência: eles são os bobos do rei.

2 NT: O trecho original é “Ils n’ont pas fini de trouver des os dans leur fromage!”, que alude a um problema, uma dificuldade insistente. Uma tradução literal em português seria “Mas eles não param de encontrar ossos em seu queijo!”.

A alternativa entre o informacionismo e a poesia já não diz respeito à poesia do passado; da mesma forma, nenhuma variante daquilo em que se tornou o movimento revolucionário clássico pode agora, em lugar algum, ser considerada uma alternativa real à organização dominante da vida. É da mesma avaliação que extraímos a denúncia de um desaparecimento total da poesia nas antigas formas em que pôde ser produzida e consumida, e o anúncio do seu retorno em formas inesperadas e operantes. A nossa época já não tem de escrever instruções poéticas, tem de as executar. _

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