Por Bárbara Poerner – 27/03/2024

 

 

Conheça projetos de pré-vestibulares gratuitos e voluntários que ensinam como transformar realidades por meio da educação popular

Uma turma do cursinho Afirmação, no Rio Grande do Sul l Foto: Arquivo/Reprodução

“Tenho que dizer que se pinte de preto, que se pinte de pardo”, disse o revolucionário argentino Ernesto “Che” Guevara em um discurso na universidade de Las Villas, em Cuba, no ano de 1959. “Não só entre os alunos, mas também entre professores. Que se pinte de operário e camponês, que se pinte de povo, porque a Universidade não é patrimônio de ninguém e pertence ao povo de Cuba”, anunciou, propondo uma revisão radical da forma como o ensino superior era visto até aquele momento na América Latina.

Mais de sessenta anos depois das palavras de Che, o acesso à educação superior ainda é muito desigual no Brasil. Embora o perfil de discentes das faculdades e universidades esteja mudando ao longo das duas últimas décadas devido às políticas de cotas e articulações de movimentos sociais, o cenário ainda é pouco diverso e, para muitos, inacessível. Isso se reflete nos dados: o número de brasileiros com 25 anos de idade que têm o ensino superior completo é de apenas 19,2%, diz o IBGE.

Os cursinhos populares são um modo de desafiar esse modus operandi. Eles são pré-vestibulares gratuitos onde, normalmente, todos os docentes e colaboradores são voluntários. O objetivo é auxiliar os estudantes a ingressarem na universidade, mas não só.  

Ao proporem uma nova lógica de acesso à educação, tais projetos impulsionam uma práxis de comunidade, solidariedade e redução das desigualdades. “Além [do Afirmação] me possibilitar ingressar na faculdade, também me possibilitou o convívio com colegas mais jovens e a formar novas opiniões em questões de gênero, raça e política. Vai muito além do cursinho, eles acolhem o aluno”, exemplifica Daiane da Silva Rosa, uma universitária que reencontrou o caminho do estudo após 20 anos sem entrar em uma sala de aula. 

Daiane foi aluna do Afirmação, cursinho popular localizado no centro de Porto Alegre (RS) e fruto de uma parceria da Escola Estadual Júlio de Castilhos com militantes do Levante Popular da Juventude. Hoje, ela estuda Serviço Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Para mim, ter passado no vestibular significa que nunca é tarde para recomeçar e poder mostrar para os meus filhos que a educação vale a pena, e que mesmo que não tenhamos condições financeiras de pagar um [cursinho] particular, eles podem conseguir também, como eu consegui”, conta a estudante. “É para que o jovem veja que pode ocupar lugar nas faculdades, que não é só quem tem dinheiro que consegue.” 

Nicoly Donati, que foi professora de química da estudante e é uma das coordenadoras do projeto, acredita que isso torna os cursinhos populares uma experiência diferente dos ambientes escolares convencionais. Para ela, “o primeiro impacto dos cursinhos populares é fazer as pessoas entenderem que a realidade delas pode ser diferente, que o lugar delas é dentro do ensino superior e esse é um direito que elas têm”.  

Para o +Nós, cursinho popular que atua em algumas cidades e bairros do estado do Rio de Janeiro, ir além das quatro paredes da sala de aula é essencial. O projeto “não tem só a intenção de ser um curso comunitário, mas sim um movimento de educação popular”, conta Ana Carolina, co-coordenadora e docente de redação, gramática e literatura na unidade do Complexo do Alemão. Ela ainda acrescenta que “defendemos abertamente o fim do vestibular, pois ele é processo de exclusão. E quem vai ser excluído são essas parcelas da população que são mais marginalizadas e que enfrentam uma desigualdade educacional muito grande”.  

Pioneiro na experiência, o atual Instituto Cultural Steve Biko começou em 1992, na cidade de Salvador (BA), como um cursinho voltado para a população preta e parda com o “propósito de inserir pessoas negras politizadas e conscientes dentro da universidade”, afirma Jucy Silva, diretora pedagógica do espaço. A ideia foi inserir uma disciplina diferente, chamada de cidadania e consciência negra, na grade do pré-vestibular.  

Desde então, muita coisa mudou no cenário educacional brasileiro. A Lei de Cotas foi aprovada em 2012 e, em meados de 2000, surgiu o ENEM. A diretora lembra que, há 30 anos, uma pessoa negra oriunda da escola pública demorava mais tempo para ingressar na universidade e não era comum vê-las ocupando cadeiras de cursinhos preparatórios. Hoje, o Steve Biko tem alunos de todas as idades, inclusive estudantes do ensino médio, e ampliou sua atuação para além das aulas preparatórias, mas Jucy destaca que ainda existe uma longa trajetória para garantir o direito ao ensino para a população preta e parda no país.

Uma turma do cursinho +Nós l Foto: Arquivo/Reprodução

Superando os desafios 

Movimento de Educação Popular Inclusiva do Jurunas, realizado em parceria com a Universidade Estadual do Pará (UEPA), atua no bairro homônimo em Belém (PA), começou na década de 1970, passou por um hiato e voltou em meados de 2015. Gabriel Pacheco, professor de História e um dos coordenadores do projeto, explica que o critério de seleção prioriza os estudantes que já residem no bairro, a fim de facilitar a locomoção e também driblar um problema comum entre os cursinhos populares: a evasão.  

Uma estratégia do Afirmação para lidar com a mesma adversidade foi criar o grupo de acolhimento, no qual existe um contato direto com os alunos e alunas a fim de entender a realidade individual de cada. Além disso, existem os núcleos de atividades extracurriculares, comunicação, financeiro e coordenação. “Nenhum grupo tem mais importância ou mais voz do que o outro, são só grupos com tarefas diferentes”, explica Isadora Franck, professora de física e co-coordenadora.  

Tal disparidade no acesso à educação começa muito antes do ensino superior. São 52 milhões de brasileiros que não completaram o ensino médio – ou porque abandonaram, ou porque nunca frequentaram a escola; sete em cada 10 são pretos ou pardos. “O racismo provoca muito fracasso na vida escolar de um jovem negro ou uma jovem negra. O racismo tem efeitos perversos e que impede mesmo a pessoa terminar o ensino médio, a pessoa entrar na universidade. Às vezes ela entra, mas ela não consegue permanecer”, argumenta Jucy.  

Ana também cita o desafio da evasão, mas acrescenta outro que se manifesta no estado carioca: a violência. “Esse problema interfere diretamente na atuação do pré-vestibular, principalmente se ele é localizado dentro de comunidades de favela”, conta a professora, que destaca como o +Nós atua também com reforço escolar para remediar o problema e oferecer espaços seguros de acolhimento. 

reunião em cooperativa

“Eu vejo a educação popular como um trabalho de esperança dos cidadãos que queremos, e onde eles podem chegar”, diz professora do +Nós l Foto: Arquivo/Reprodução

Construindo a educação popular

Desde criança, Gabriel desejava dar aulas de história. Foi no cursinho popular Jurunas onde ele conseguiu concretizar esse desejo e ampliar sua visão de mundo. Segundo o historiador em formação, fazer parte da “grande família” que é o projeto serviu para refrescar sua prática pedagógica. Ao sentir que está ajudando as pessoas com aquilo que ele sabe fazer de melhor, Gabriel acredita “que cada vez mais você está contrariando o sistema, que tenta cada vez mais fazer essas pessoas desistirem e somente aceitarem as coisas”. 

Um dos métodos do Jurunas para abordar temas sociais foi incluir a matéria “Interdisciplinar”, onde são tratados assuntos da atualidade como feminicídio, prisões, fome, escassez hídrica e lixo. A potência do projeto, para o coordenador, está em manter o acesso ao ensino público, gratuito e de qualidade, indo na contramão do ideal de privatização. 

Os cursinhos também são espaços de formação de professores, defende Isadora. Foi o que aconteceu com ela e Nicoly. Hoje, ambas estudam o curso de licenciatura em física e química, respectivamente, motivadas pelas experiências que tiveram no Afirmação. 

Os impactos não se mantêm só na vida do estudante, mas sim ampliam-se para sua família e território. “Conseguimos fazer um trabalho que alcança essas famílias e essas comunidades formando uma rede”, diz Jucy. O estudante “consegue ter uma melhor percepção do que é ser negro na sociedade e eles também têm acesso à história dos nossos ancestrais, nossos antepassados de forma positiva e também consegue se instrumentalizar para poder combater o racismo fora do Instituto Steve Biko, dentro da universidade e também fora dela”. 

Essa prática de ensino ligada às experiências que ultrapassam o caráter conteudista tradicional estão presentes em inúmeros cursinhos populares e são, para Ana, uma formação de cidadania. Ser professora no +Nós expandiu sua leitura de mundo e, hoje, ela é adepta do verbo esperançar, de Paulo Freire . “Eu vejo a educação popular como um trabalho de esperança dos cidadãos que queremos, e onde eles podem chegar”, finaliza. 

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