Nos anos 1980, enquanto lutava contra o câncer, Audre Lorde afirmou que cuidar de si mesma era um “ato de guerra política”. Desde então, o autocuidado se tornou um jargão popular em círculos ativistas. A retórica do autocuidado passou de específica a universal, de desafiadora a prescritiva. Quando falamos de autocuidado hoje, estamos falando do mesmo que Audre Lorde? É hora de reexaminar esse conceito.
Mas o que poderia estar errado com o cuidado? E por que implicar com o autocuidado, dentre todas as coisas?
Primeiro, porque ele se tornou uma vaca sagrada. É doloroso ouvir as pessoas falarem de forma moralista e hipócrita sobre qualquer coisa, especialmente sobre as coisas que mais importam. A unanimidade devota implica em um lado obscuro: à sombra de cada igreja, um antro de pecado. Isso cria um outro, traçando uma linha entre nós, bem como através de nós.
Auto e cuidado – nesta ordem – são valores universalmente reconhecidos nesta sociedade. Qualquer pessoa que apoie o autocuidado está do lado dos anjos, como diz o ditado – o que equivale a dizer que está contra todas as partes de nós que não se encaixam no sistema de valores prevalecente. Se quisermos resistir à ordem dominante, temos que jogar como advogadas do diabo, buscando aquilo que está difamado e excluído.
Sempre que um valor é considerado universal, encontramos as pressões da normatividade: por exemplo, a pressão para performar o autocuidado para os outros, mantendo as aparências. Muito do que fazemos nesta sociedade é motivado por manter nossa imagem de indivíduos bem-sucedidos e autônomos, independentemente da realidade. Nesse contexto, a retórica do autocuidado pode mascarar o silenciamento e o policiamento: por favor lide com seus problemas sozinho, para que ninguém mais precise fazê-lo.
Pressupor que o autocuidado é sempre bom significa inferir que auto e cuidado têm sempre o mesmo significado. Mas, aqui, queremos desafiar compreensões monolíticas e estáticas do eu e do cuidar. Propomos que diferentes tipos de cuidado produzem diferentes tipos de eu, e que o cuidado é um dos campos de batalha em que as lutas sociais sucedem.
Não me fale para ficar calma
Embora defensores do autocuidado enfatizem que ele pode ser diferente para cada pessoa, as sugestões costumam ser curiosamente similares. Ao pensar em atividades estereotipadas de “autocuidado”, o que você imagina? Tomar um chá, assistir a um filme, tomar um banho de banheira, meditar, fazer yoga? Essa seleção sugere uma ideia bastante restrita do que é o autocuidado: essencialmente, acalmar-se.
Todas essas atividades são construídas para ativar o sistema nervoso parassimpático, que governa o descanso e a recuperação. Mas algumas formas de cuidado requerem adrenalina e atividades extenuantes, que estão sob domínio do sistema nervoso simpático. Uma forma de prevenir o transtorno de estresse pós-traumático, por exemplo, é conceder ao sistema nervoso simpático liberdade suficiente para descarregar o trauma por meio do corpo. Quando uma pessoa está tendo um ataque de pânico, tentar acalmá-la raramente ajuda. A melhor forma de lidar com um ataque de pânico é correr.
Então comecemos descartando qualquer entendimento normativo do significado de cuidar de si. Pode significar acender velas, tocar um disco de Nina Simone e reler The Animal Family, de Randall Jarrell4. Pode também significar sadomasoquismo, arte performática intensa, artes marciais, estilhaçar vidraças de bancos ou erguer a voz contra alguém que abusou de você. Pode até mesmo parecer ser trabalho muito pesado para outras pessoas – ou pode ser parar de funcionar completamente. Isso não é apenas um clichê pós-moderno (“cada um na sua”), mas uma questão do tipo de relação que estabelecemos com nossos desafios e nossa angústia.
4 Ainda não publicada no Brasil
Cuidar de nós mesmas não significa pacificar-nos. Devemos suspeitar de qualquer entendimento do autocuidado que identifique bem-estar com placidez ou nos peça para performar “saúde” diante de outras pessoas. Será que podemos imaginar, ao invés disso, uma forma de cuidado que dê ferramentas para que possamos estabelecer um relacionamento intencional com nosso lado obscuro, permitindo a nós reunir forças a partir do redemoinho caótico que nos habita? Tratar a nós mesmas com gentileza pode ser uma parte essencial disso, mas não devemos pressupor uma dicotomia entre curar-se e engajar-se nos desafios dentro e ao redor de nós. Se o cuidado for apenas o que acontece quando nos afastamos dessas batalhas, estaremos eternamente divididas entre uma suspensão insatisfatória do conflito e seu lado oposto, um vício em trabalho [workaholism] que jamais é suficiente. Idealmente, o cuidado deveria abranger e transcender tanto a luta quanto a recuperação, destruindo os limites que as dividem.
Esse tipo de cuidado não pode ser descrito por meio de clichês. Ele não é um ponto de agenda conveniente para se acrescentar ao programa de alguma ONG. Ele demanda medidas que irão interromper nossos papéis atuais, conduzindo-nos ao conflito com a sociedade em geral e até com algumas pessoas que afirmam estar tentando mudá-la.
Por meio de sua resposta ao perigo, é fácil dizer o que você viveu e o que lhe foi feito. Você mostra se quer continuar vivo, se pensa que merece viver, e se acredita que vale a pena agir. –Jenny Holzer