Por Carol Almeida – 13/07/2023

Comunidade do Vão Grande, no Mato Grosso, lança protocolo de consulta prévia e ganha ferramenta para proteger território e vidas quilombolas

O Vão Grande é um território quilombola localizado no Mato Grosso, formado por cinco comunidades tradicionais – São José do Baixiu, Morro Redondo, Camarinha, Vaca Morta e Retiro. É neste lugar que eles mantêm vivas manifestações culturais e religiosas, como as festas de Santos e as rodas de cururu; além da agricultura típica, à base do milho, da banana, da mandioca e peixe de água doce; que caracterizam a tradição mato-grossense.  

O local que é fonte de diversas disputas territoriais e políticas têm na sua recente história um caso de união e articulação popular em defesa da vida no campo, por meio da construção coletiva de um Protocolo de Consulta Prévia, lançado oficialmente em julho.

Esse documento foi criado como uma ferramenta importante para impedir o licenciamento ambiental de uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH) no rio que corta esse território, chamado Jauquara.

“Esse projeto estava dentro de uma área específica que afetaria comunidades tradicionais. Neste caso, elas precisam ser ouvidas! Mas a estrutura dos processos e os documentos que foram apresentados pelo Ministério Público eram muito gerais. O juiz não compreendia exatamente quem eram as pessoas impactadas e até se existia uma comunidade”, relata a advogada Mariana Lacerda, integrante do grupo PesquisAção do projeto Humedales Sin Fronteras, que presta uma assessoria jurídica para o Vão Grande, desde 2019.

 

Duas crianças seguram folhas de protesto pela defesa do rio Jauquara

Crianças do Vão Grande celebram aniversário do rio | Foto: Pedro Ribeiro Nogueira/Escola de Ativismo

Como foi criado?

O primeiro passo, então, foi apresentar provas mais diretas da importância do Jauquara para a manutenção daquele território. Por isso, foram anexados ao ofício um abaixo-assinado e um vídeo, explicitando a presença daquelas pessoas e os motivos pelos quais o rio deveria ser preservado. Esses registros foram feitos pela Escola de Ativismo e incorporados ao processo. 

Após a inclusão desses anexos, a decisão do Ministério Público Federal (MPF) impediu que o seguimento da licença ambiental da PCH fosse concedida sem que antes houvesse uma consulta àquela comunidade.

“A gente pensou em estratégias de defesa territorial. Quando a gente viu a sentença favorável, a gente pensou: Poxa, isso é um alívio, mas a batalha não foi ganha, porque mesmo com a determinação judicial, qualquer coisa poderia ser aceita como consulta e a obra poderia sair num futuro próximo. Então a gente pensou: O que podemos construir de ferramenta dentro do território do Vão Grande, por meio também do Comitê Popular de Defesa das Águas, para impedir que a SEMA (Secretaria do Meio Ambiente) considere qualquer documento como consulta? Aí veio o protocolo como resposta”, disse Mariana.

Leia mais:

Como uma comunidade pode comemorar o aniversário de um rio e impedir sua destruição

A defesa das águas também é assunto de criança

O surgimento, a resistência e as fabulações quilombolas no livro “Narrativas do Interior”

O que acontece em algumas comunidades é que muitas vezes as pessoas que moram ali no território não conseguem ter acesso à informação do que realmente está sendo construído ou desenvolvido. “No Vão Grande, por exemplo, antes desse processo de mobilização, as pessoas não tinham o conhecimento de que era uma determinada empresa que tinha entrado com o requerimento na ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) para pedir que a vazão hídrica do rio fosse considerada para fins de empreendimento. Eles veem essoas entrando e saindo do território que não dizem o que estão fazendo e qual o objetivo daquilo”, relata Mariana. 

“Esse processo de informação de empoderamento da comunidade culminou tanto na formalização do Comitê Popular em defesa do Rio Jauquara, como em criar estratégias de defesa do território”, explica Mariana. “E essa mobilização foi capaz de criar articulações que permitissem formular e responder perguntas como: Qual tipo de suporte a gente precisa nesse momento? Com quem a gente pode contar? Como que a gente vai se organizar, dentro do nosso território, para não deixar que a barragem exista?”.  

Oficina realizada na comunidade Retiro, do Vão Grande, durante elaboração do protocolo | Foto: Reprodução

O que é o direito de consulta?

Segundo Natiele Santos, advogada popular e integrante da AATR, “O direito de consulta é nada mais um direito que as comunidades tradicionais possuem de serem escutadas e participarem também de qualquer processo seja e legislativo ou administrativo que venha impactar diretamente essas comunidades tradicionais e é um direito que se baseia na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

Por definição do Decreto 6040 de 2007, define-se os Povos e Comunidades Tradicionais, como “os grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”, e compreende-se por “Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas (…)”. 

O Protocolo de Consulta Prévia é um modo de instrumentalizar esse direito, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas, capazes de afetar diretamente essas comunidades, sem qualquer tipo de pressão social. “É como se fosse uma lei da comunidade, construída de forma coletiva por instituições que fazem parceria com as pessoas que moram nesses locais, indicando também de que forma essas comunidades desejam ser ouvidas e consultadas”, explica Natiele. 

A criação desse documento pode enfrentar alguns obstáculos. Dentre eles, o desafio de que as empresas e instituições percebam a importância e respeitem esses protocolos. Outra questão é o tempo: o protocolo não é feito de uma hora pra outra, às vezes demoram anos para serem preenchidos. Por isso é muito importante que essas comunidades estejam bem unidas e articuladas.

“Essa construção foi muito orgânica, bonita e participativa. Eles puderam ver, ao vivo, eles mesmos construindo o protocolo, opinando e interferindo inclusive na metodologia. Por exemplo, eles fizeram um mapa visual em que cada um podia falar da sua comunidade. Também foi feito um jogo teatral em que eles pararam para pensar nas situações que aconteciam lá. Foi criado também uma definição de como eles gostariam de ser consultados”, descreve Mariana.

O próximo passo, se a empresa ainda tiver interesse em manter o empreendimento, é que ela faça essa consulta à população de acordo com o Protocolo. Caso, ao final desse processo, exista o consentimento da comunidade do Vão Grande, ou seja de todas as cinco comunidades, o empreendimento pode ser licenciado para que haja a construção.

“O objetivo foi criar um espaço de tomada de decisão que fosse popular, onde o empreendedor e o Estado não se impusessem. As pessoas ali estão se colocando como protagonistas dentro desse processo de consulta. E essa construção foi muito linda”, comemora Mariana.

O documento final está disponível no site da Escola de Ativismo e no Observatório dos Protocolos Comunitários.  E no site do MPF você encontra outras informações e alguns Protocolos de Consulta Prévia para serem consultados. 

 

 

plugins premium WordPress