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Diário de um alagado

Ivan Rubens Dário Jr da Escola de Ativismo faz um diário das preparações das comemorações do Dia do rio Paraguai e do Pantanal

Sábado, 16 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Desembarcar

Os Comitês Populares já seguiram para os seus respectivos territórios. Agora o trabalho organizativo ganha outras características. Colocar os materiais em ordem, guardar tudo, arrumar, limpar. Neste caso, finalizar a Caravana é também organizar o próximo encontro, os próximos encontros. Qual será o próximo encontro? bem, essa resposta só o tempo vai dizer…

Talvez um encontro forte e verdadeiro não seja resultado de um bom planejamento apenas. Claro que um bom encontro requer uma boa organização, é claro. Mas um bom encontro, um encontro forte, um encontro verdadeiro de corpos vivos pra valer nasce na força do encontro anterior, desdobra, resulta, um bom encontro lança as sementes do encontro seguinte.

Na Escola de Militância Pantaneira não há um currículo pré-determinado. A Escola de Militância Pantaneira cria seu próprio currículo na potência dos encontros, encontros de pessoas, pessoas e lugares. Encontros, encontros são. Gente que se encontra, gente que encontra lagoas e nascentes, gente que se encontra em lagoas e nascentes, gente que se renova, que se reencontra. Gente que encontra, que se encontra, que encontra-se.

Percorremos cerca de 350 km para ir e 350 km para voltar. Foram 700 km em dois dias. Até que não é muito. Mas considerando que estávamos em 25 carros, mais de 100 pessoas… Isso dá um pouquinho da dimensão da Caravana Águas para a Vida.

Para o planeta? nenhum grau a mais.

Para o planeta? nenhum grau a mais.

Para o planeta? nenhum grau a mais.

Direitos da natureza quando? Já!!!

Direitos da natureza quando? Já!!!

Direitos da natureza quando? Já!!!

Espero que você tenha nos acompanhado um pouquinho pelo menos dessa viagem dos Comitês Populares de Defesa das Águas e do Clima do rio Paraguai/Pantanal e seus afluentes, da Escola de Militância Pantaneira, da Sociedade Fé e Vida e sua lista de parceiros/as, aqui incluindo a Escola de Ativismo, subindo em caravana o Rio Paraguai até sua nascente. Assim foi um pouquinho do que conseguimos registrar (e pensar com) a Caravana Águas para a Vida.

Águas para a vida – e não para negócios.

Águas para a vida – e não para negócios.

Águas para a vida – e não para negócios.

Sexta feira, 15 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Águas para a vida (e não para negócios)

Vamos iniciar este texto de um jeito diferente… Acordamos o galo (rs), o galo cantou para acordar o pessoal. A Caravana Águas para a Vida (e não para negócios) raiou assim com o sol. O café da manhã coletivo juntou o pessoal porque estávamos distribuídos em vários lugares. Na cidade de Alto Paraguai não há acomodação com mais de 100 leitos. Então nos distribuímos em duas pousadas pequenas, improvisadas, e muitas barracas.

Carros na estrada sentido Diamantino/MT, um trecho curto de asfalto e seguimos pela estrada de terra com aclives moderados. É mais ou menos como um menino que vai pegar a pipa no telhado: ele sobe, sobe até chegar na cumeeira. E depois desce, desce. Pega a pipa e retorna. Sobe até a cumeeira, depois desce. Cumeeira: aquele ponto do telhado da que fica mais em cima, o ponto mais alto que quando chove, parte da água escorre para um lado e parte da água escorre para o outro lado. Cumeeira do telhado divide as águas da chuva para dois lados. Obviamente a Caravana Águas para a Vida não subia telhados. Subíamos com cerca de 25 carros por estradas de chão de terra morro acima. Chegamos a aproximadamente 800 metros de altitude em relação ao nível do mar, estávamos pertinho da cumeeira. Cumeeira é a palavra utilizada para falar de telhados. Então vamos usar uma outra palavra: divisor de águas. Estávamos pertinho do divisor de águas de duas bacias hidrográficas muito importantes. Toda a chuva que cai ali naquela cumeeira, ops, naquele divisor de águas, parte escorre para uma lado do telhado, ops, parte escorre numa vertente e parte escorre na outra vertente. De um lado a água escorre para rios que formam, para tributários do rio Amazonas. Do outro lado a água escorre para os rios que formam, rios tributários do rio Paraguai/Prata. Estávamos ali bem pertinho do divisor das águas dessas importantes bacias hidrográficas. Se tivesse um geógrafo na Caravana, estaria muito emocionado.

Afinal, estávamos numa área de transição de biomas onde ainda vemos marcas do bioma cerrado e começamos a ver as marcas do bioma amazônia. Tudo ali diante dos nossos olhos e ao alcance das mãos. Ou melhor, tudo o que ainda resta dos biomas se misturando nessa faixa de transição.

Seguimos convictos até as lagoas, em particular a lagoa da Princesa, onde estão as nascentes do rio Paraguai. Pode parecer incrível, mas as nascentes estão em área particular. Estão dentro de uma fazenda e os donos da fazenda produzem soja. É muita soja, é soja até onde a vista alcança. É um mar de soja, é sojeira sem fim Todas as estradas que dão acesso às lagoas estavam fechadas com cavaletes e placas dizendo: PROPRIEDADE PARTICULAR, em letras maiúsculas.

PROIBIDO ENTRADA é a mesma coisa que dizer não entre, ou você não é bem vindo aqui, ou você não é nosso convidado para nada, “sai fora”, desapareça, suma daqui. Mas nossa Caravana acredita que as Águas são para a vida e não são para os negócios. Fizemos nossa celebração ali pertinho da Lagoa da Princesa, foi muito bonito, foi emocionante. Cantamos, dançamos, gritamos reverências ao rio Paraguai afinal Águas são para a Vida, águas não são mercadoria daquele tipo que fica disposta nas vitrines do shopping center, nas prateleiras dos hipermercados. As águas são bens comuns de toda humanidade, os rios são as veias que hidratam e alimentam todo o corpo da mãe Terra. Sem vida na mãe Terra não há vida nenhuma na terra, sem água não há vida então, podemos pensar que uma nascente de um rio, de qualquer rio, de todo rio, uma nascente é como se fosse a fonte de toda vida. A minha vida, a tua vida, a vida do passarinho, a ida do tuiuiú, a vida dos peixes e dos jacarés, a vida humana e não humana, sem água não há chuva, sem água não tem comida e nem bebida etc, etc.

A paisagem da soja, o mar de soja, a sojeira é terra arrasada num filme distópico, a sojeira é uma espécie de futuro sem futuro, uma paisagem devastada, a sojeira é mono. Monocultura, e monocultura exige toda sorte de pesticidas para controle de pragas. São fungicidas, inseticidas e herbicidas. No passado se fazia capina mecânica ou manual de outras plantas que ousavam crescer junto com a plantação mas desenvolveram uma soja transgênica que resiste ao herbicida que, por sua vez, mata todas as outras plantas menos a soja. Com isso, a quantidade de herbicida na soja aumentou muito! Assim como em todos os alimentos derivados dela.  

Pragas?

O exército de gafanhotos de que trata o livro do apocalipse já chegou: é o agronegócio!!!

É de admirar como os interesses que movem o agronegócio usam as palavras, manipulam as palavras em favor de seus interesses comerciais, criam ideologia, ou seja, como vão devagar e a conta gotas criando um mundo na cabeça das pessoas do tipo: o agro é pop. Fazem isso por meio da propaganda, fazem isso comprando enredos inclusive das novelas, fazem isso colonizando a cultura com suas botas de couro, seus chapéus, cintos com fivelas douradas, colares de ouro no pescoço em clara apologia ao garimpo e à mineração que também envenena rios com mercúrio e outras químicas pesadas. Com suas caminhonetes pesadas, potentes e escandalosas. 

Joga herbicida no Google pra ver no que dá. Podemos escrever de um outro jeito: são produtos químicos muito perigosos à saúde. Ou numa única palavra: veneno.

A Lagoa da Princesa pra você:

Nos despedimos da lagoa da Princesa e deixamos a sojeira para trás. Já passava das 10h30 quando juntamos novamente toda a Caravana Águas para a Vida num ponto do rio Paraguai onde pudemos molhar as mãos, jogar uma água no rosto embaixo da sombras das árvores e fazer nosso primeiro lanche com o pãozinho e o famoso bolo de arroz matogrossense. O almoço aconteceu numa terra indígena, na aldeia dos Umutina Balatiponé. Foi um acontecimento, um encontro de culturas, uma mistura maravilhosa. Habitamos mais uma faixa de transição, mas não entre dois biomas. Desta vez habitamos uma faixa de transição entre duas culturas. De um lado da rodovia MT 246 está o Território Quilombola do Vão Grande e de outro está a Terra Indígena Umutina. Viola de cocho e chocalho xamânico, o ganzá e a maraca. E dança, muita dança ritualística. Os Umutina Balatiponé apresentaram seus rituais, pinturas corporais, ornamentados, peles e penas, cocares etc. Os Comitês apresentaram um pouco de sua cultura, da arte e das tradições pantaneiras. Almoçamos em comunhão, comum_união. Um encontro, encontro das águas, encontro de vidas, encontro de culturas. Encontro.

Mas a tarde chega e a caravana passa. Seguimos com destino a Cáceres. Um ma_ra_vi_lho_so por de sol entre nuvens de chuva encerrou nosso dia. Um presente da Natureza. Merecido. Lutamos em defesa das águas, em defesa da vida. Somos um movimento em defesa das águas e da vida. Despedidas emocionadas. Os laços afetivos, os vínculos vão se fortalecendo neste movimento mesmo, na ação, na luta. Saímos da Caravana bem mais fortes do que entramos.

Cansados, é verdade. E fortalecidos na potência dos encontros vividos nesta Caravana.

Quinta feira, 14 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Caravana Águas para Vida

Acordar as 4h30, banho, cuidados e preparação. Início das atividades às 5 horas. Agora nosso coletivo já está bem crescido. Estamos em 25 carros e aproximadamente 100 pessoas. Café da manhã e partimos precisamente às 6 horas.

Dia 14 de novembro é dia do rio Paraguai. Dia de luta e também é um dia de celebração. É como fazemos com os parentes e amigos. Nesta perspectiva, o rio é parente. Se considerarmos que parente é aquela pessoa da família tipo um primo ou uma prima, o rio também é parte da família. Mas seria o rio apenas um parente distante?

Hum… Tenho o hábito de procurar de onde vem uma palavra que me interessa. Verdade, me interesso muito pelas palavras. Estou aqui trabalhando com elas, brigando com elas, amando-as, brincando com as palavras. E fui pesquisar uma das origens da palavra parente. Segundo o site “Origem das palavras”, uma das possibilidades é o latim e, nele, PARENS significa “pai ou mãe”, outra possibilidade é derivar de PARERE, “dar à luz, criar”. Nessa perspectiva, o rio pode ser um parente bem mais próximo, um pai, uma mãe ou mesmo um filho. Se um filho, o rio seria uma parte do nosso corpo fora do nosso corpo. Mas o rio Paraguai é certamente mais velho do que qualquer ser humano vivo. Então, somos filhos do Rio Paraguai. Somos filhos de todos os rios. Um rio é nosso pai e é nossa mãe. Um rio é nosso avô e nossa avó.

A largada da Caravana Águas para a Vida aconteceu na praia de Cáceres. A primeira parada aconteceu na cidade de Porto Estrela, ali na prainha. Dois ônibus com crianças vieram acompanhar a celebração, lancharam conosco, cantaram e dançaram conosco. Na segunda parada em Barra do Bugres, professor Márcio e Valdomiro nos receberam com “abiolô olaripô” exatamente ali na confluência do rio Bugres com o rio Paraguai. “Abiolô olaripô” significa, na língua Balatiponé, que somos filhos do rio.

“Abiolô olaripô”

“Abiolô olaripô”

“Abiolô olaripô”

Somos filhos do rio Paraguai. Somos filhos das águas. Nós somos as águas.

A aldeia dos Umutina Balatiponé fica ali em Barra do Bugres. A caravana segue para Denise e Arenápolis onde fizemos nossa primeira refeição: almoço coletivo na beira do Rio. Uma paradinha para refrescar com garapa de cana, hmm.

O destino nesse primeiro dia é o município de Alto Paraguai. Chegamos um pouco depois das 15h para a Audiência Pública da Assembleia Legislativa do estado do Mato Grosso, de iniciativa do deputado estadual Lúdio Cabral.

https://www.al.mt.gov.br/midia/texto/audiencia-publica-e-marcada-por-ato-de-reconhecimento-do-corredor-biocultural-do-rio-paraguai/visualizar 

https://www.al.mt.gov.br/midia/album/comemorar-o-dia-estadual-do-rio-paraguai-pantanal-vivo/visualizar 

https://ludiocabral.com.br/ludio-realiza-caravana-partindo-de-caceres-e-audiencia-publica-em-alto-paraguai-no-dia-do-rio-paraguai/ 

https://ludiocabral.com.br/ludio-se-une-a-comunidades-e-povos-tradicionais-em-audiencia-publica-pelo-futuro-do-pantanal/ 

Durante a Audiência Pública nos autodeclaramos um CORREDOR BIO CULTURAL, apresentamos nossa cultura e nossas tradições, apresentamos as expressões da arte popular, lutamos pela nascente do rio Paraguai e em favor do parque do Alto Paraguai e apresentamos a Carta do Rio Paraguai com nossos posicionamentos frente às agressões que o cerrado vem sofrendo, em favor das águas para a vida e não para os negócios, em favor do Pantanal e do rio Paraguai.

Às 19 horas seguimos para o jantar e para a dormida.

Quarta feira, 13 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Fazendo escola

Num tempo em que o governador do estado de São Paulo mostra seu poder de autoridade às marteladas… patética cena do extremista, versão limpinha e cheirosa do velho fascismo à moda brasileira, fechando mais um leilão de venda do patrimônio público, de venda daquilo que é nosso na Bolsa de Valores de SP. Exibição do pacto patriarcal, da velha agressividade das elites escravocratas que continuam destruindo a natureza em nome do acúmulo de riqueza, acúmulo de poder político, da privatização de tudo o que puderem etc, etc… Estamos nós aqui no Pantanal fazendo uma escola.

Uma escola que não é pública. Uma escola que não é estatal, uma escola que não é particular, mas nós estamos aqui fazendo uma escola que é comunitária. Uma escola comunitária de caráter público, uma escola que não é institucional mas que é instituinte. Uma escola que não tem uma sede, nem paredes, nem porteiro, nem placa no portão de entrada. Uma escola que não responde às determinações externas e nem faz sua finalidade em aumentar os índices de avaliação externa, mas uma escola que constrói o seu próprio currículo. Estamos falando de uma escola que é movimento. Uma escola movimento popular que se produz no esforço mesmo das lutas de defesa da natureza, nas lutas pelo rio Paraguai vivo e sem fronteira, uma escola que se faz na defesa do Pantanal e na defesa da vida. A ESCOLA DE MILITÂNCIA PANTANEIRA.

Uma escola do comum. Essa escola que não desperta o interesse de nenhuma Bolsa de valores, uma escola que leilão nenhum há de privatizar.

A Escola de Militância Pantaneira (EMP) reúne os 13 Comitês Populares em Defesa das Águas e do Clima do rio Paraguai e dos rios afluentes. Nesta noite a EMP finalizou os preparativos para a grande Caravana Águas para a Vida. A EMP fará uma aula de campo, um trabalho de campo, uma ação concreta: visitar/conhecer a nascente do rio Paraguai. Neste encontro de hoje também trabalhamos as ações possíveis no sentido de garantir maior proteção a essa nascente. E usamos duas tecnologias inovadoras: a aula e a conversa.

“Por isso que o trabalho popular é mais duro. Se fosse uma escola com um currículo, sei lá como vocês chamam isso, a gente só tinha que aplicar o que estava escrito lá mas aí a gente ia perder uma oportunidade de viver intensamente os encontros”, disse o amigo Isidoro.

Ouvindo essa frase acima, pensamos: “o encontro predomina sobre a forma”. Assim, a Escola de Militância Pantaneira organizou e se organizou para iniciar a Caravana Águas pela Vida com destino à nascente do Rio Paraguai e suas paradas estratégicas.

Terça feira, 12 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Amor ao rio: nós somos o rio

Imagine um grupo de pessoas na beira de um rio. Imaginou?

Pois bem, o que esse grupo de pessoas faria na beira de um rio? Hummm, pescar seria bastante razoável. Esperar um barco, uma rabeta, esperar uma canoa também seria uma boa tentativa de resposta. Um piquenique, brincadeiras, jogando bola são boas opções de resposta. Mas não, um grupo de pessoas estava nesta noite fazendo declarações de amor.

Isso mesmo, um grupo de pessoas na beira do rio Paraguai estava fazendo declarações de amor. As pessoas tocaram e cantaram, recitaram poemas, fizeram falas livres, dançaram, fizeram ciranda de roda cantando, as pessoas comeram manga, maçã e outras frutas, bolos, salgadinhos e pães. Tomaram suco fresquinho, suco geladinho, suco das frutas colhidas hoje mesmo. Tudo isso ali, na prainha, na beira do rio Paraguai. Tinha uma caixa de som com o microfone e as palavras estavam franqueadas, ou seja, o espaço estava aberto, a palavra estava livre para ser tomada, para ser ocupada. Nada de “dar a palavra” para alguém, o que estava acontecendo era o seguinte: toda pessoa, qualquer pessoa poderia tomar para si o uso da palavra. Havia um grupo querendo ouvir sua palavra. Um grupo que estava ali para DECLARAR O SEU AMOR ao rio Paraguai.

Uma comunidade que se constitui em declaração de amor ao rio. Não é bonito? Isso aconteceu neste dia 12 de fevereiro na margem esquerda do Rio Paraguai, na cidade de Cáceres/MT. Muitas falas livres, muita música, crianças, adolescentes e jovens, adultos e idosos, homens e mulheres, enfim, toda gente declarando seu amor ao rio Paraguai. Porque nós somos o rio, não há separação.

Essas pessoas na beira do rio se auto denominam: NÓS SOMOS O RIO.

Segunda feira, 11 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Conversa, muita conversa.

Alvorada 5h30 do Mato Grosso. Primeiro é cuidar das criação. O potro está ferido. Cuidar de bicho grande demanda cuidado e força. E isso nos faz pensar inevitavelmente na educação que fazemos, como estão as nossas práticas de educação? Nossas práticas de educação popular? Em que medida há mais ou menos violência em cada gesto do educador popular e da educadora popular? Em que medida há mais ou menos violência em cada palavra do educador popular e da educadora popular? Se pensarmos que em oposição à violência pode estar uma espécie de acolhimento, uma espécie de convite à reflexão, à busca e ao pensamento, em que medida pode haver mais acolhimento, mais convite, mais reflexão, mais engajamento na luta em cada palavra do educador popular?

Café da manhã e trabalho de organização. Esta caravana se faz com cerca de 30 carros, com mais de cem pessoas. Portanto, mais de 100 refeições por parada, mais de cem dormidas. O que levar? canecas e copos, água e outras coisinhas de uso pessoal. Como preparar o carro? como será o trajeto, onde e quando serão as paradas, o que acontecerá em cada parada? Tudo isso em processo de organização, os horários etc. Não é fácil, não. A distribuição das pessoas nos carros, quem dirige e quem assume outras responsabilidades com cada coletivo. Além de todo esse processo, por assim dizer mais estruturante, tem a parte mais importante que é a programação da caravana. Porque na abertura (que estamos chamando de largada), a cada parada, lá na nascente… estar nesses lugares não é à toa. Pelo contrário, estar em cada lugar desse num grupo grande tem uma intenção clara: lutar pelas águas. Águas para a vida.

No final da tarde as reuniões com parceiros e comitês para os informes gerais. A caravana é coletiva. Coletividade exige alguma disciplina. 1) somos parceiros, disciplinados: caminhamos juntos; 2) carregamos a bandeira de nossa organização; 3) o que carregar em cada carro? 4) trazer disposição para a luta e um tanto de beleza. As orientações foram passadas para as organizações e para os comitês populares numa transmissão ao vivo. Ou seja, reunião e conversa para organizar. Conversa, muita conversa.

Essa tecnologia milenar: conversa!!! Há que se exercitar essa tecnologia e seus instrumentos de mediação. Quando a conversa se dá olho no olho, face a face, quando é possível notar os gestos do seu interlocutor ou de sua interlocutora, é uma coisa. Quando é possível uma conversa mediada por alguma instrumento, é outra coisa. O que mais importa é a conversa. E isso exige presença e atenção do educador e da educadora popular. Exige estar ali, estar presente, estar por inteiro na medida do possível, na medida de nossa humanidade.

Hoje foi dia de muita concentração na organização. Para tanto, planilhas, listas, notas, informes, contas, cálculos, previsões. Listas, nomes, organização de duplas e quartetos. Combinados, horários ou pelo menos previsões de horários e tempos. Trajetos, deslocamentos etc etc etc. Cansa, cansa muito. É um cansaço físico e um certo esgotamento mental. Dormir para ter energia amanhã. Boa noite.

Domingo, 10 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Descanso na luta.

Todo domingo é dia de descanso. Neste caso, o descanso é na luta popular. Até que acordamos bem tarde hoje: 6h30. Considerando que aqui no Mato Grosso atrasamos os relógios em 1 hora dado o fuso horário, para o corpo seria 5h30.

Ajeitar as coisas, arrumar a cama, banho, higiene matinal e café da manhã exatamente às 7 horas. Durante a preparação do café, Silvio se vira com os ovos, eu ajudo na colheita das frutas: mamão e manga colhidos no pé. A temporada da manga já começou por aqui. Fartura de manga, fartura de frutas na chácara. A terra é generosa.

Reunião e tempo de preparação de materiais, tarefa que exige muito cuidado. São muitos parceiros, são muitas parceiras e uma caravana inédita. Partimos para mais uma visita. São cerca de 40 minutos de estrada. Asfalto na direção da Bolívia e terra na direção da casa do Geraldinho e da Cilene. A exemplo do que aconteceu ontem na casa do Maurício e da Clarice, impossível não estar aqui de corpo inteiro. Internet pra quê? Pra nada…. Porque tudo que interessava estava ali naquela sala. A casa estava cheia, uma família nos esperava para o almoço. Estávamos novamente no Comitê Popular do Padre Inácio, um encontro maravilhoso, alegre, potente. Estávamos ali por inteiro lutando pelo Pantanal por inteiro. Quanta coisa aparece numa conversa… Assim, nossa territorialização ganha vigor.

No retorno, paramos para uma olhadela num rio povoado de jacarés. Estamos no pantanal. E para o carro, abre porteira, fecha porteira. Para o carro, abre porteira, fecha porteira. Para, abre e fecha…  chegamos. Pequeno descanso.

Retomamos os trabalhos aqui na “sala de reunião”, na beirinha do rio Paraguai. Como dissemos numa outra vinda, “perto de muita água, tudo é mais feliz” (1). Muita conversa, produção de materiais, mensagens, articulações políticas para acessar a nascente do rio Paraguai. Interessante pensar que a nascente do rio principal que drena o Pantanal nasce numa área particular e os proprietários podem regular o acesso à nascente. Vejam a contradição: um grupo de pessoas organizadas em movimento popular pedindo, por meio da coordenação, acesso à nascente do rio Paraguai.

Soubemos do campeão da Copa do Brasil pela internet, uma informação importante para as conversas que virão. Mais mobilização: partimos para a casa do seu Jair e da dona Nadir, encontramos uma família inteira e mais conversa, mais comida, muita alegria. Na conversa: 1) Heldinho chegou da prova do Enen; 2) Flamengo e Atlético mineiro; 3) Nióbio; 4) brigas de cachorro e a pata ferida do potrinho; 5) 6) 7) 8) a programação do dia do rio Paraguai 2024.

Uma passada rápida na casa da professora Maria com um tanto de conversa e o reforço para participação nas atividades da semana. Hoje vamos dormir cedo, são 22h e vou dormir. Boa noite.

Nota:
(1) Andarilhagens: Sobre escola, água e felicidade

Sábado, dia 9 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Um dia de pouco movimento. Será?

Claro que não. Acordar cedinho, café da manhã às 6 horas, deixar o hotel e chegar à rodoviária. Tudo certo com as passagens previamente reservadas. Seguindo nosso planejamento que se produz na experiência concreta. Assim, considerando os frequentes atrasos no serviço prestado pelas companhias aéreas, vamos acompanhando os passos de nossa equipe de campo e confirmando o passo seguinte. Embarcamos no terminal rodoviário de Cuiabá com destino a Cáceres.

Ao desembarcar, o primeiro encontro, saudoso encontro. No percurso até nosso destino final, muita história recente, muita atualização. O processo de territorialização continua vigoroso. Estamos territorializando aos poucos. Este chão vai nos constituindo aos poucos. É importante passar por esse processo, chegar ao território é um processo, estar nesse chão é uma espécie de habitação. Habitamos o Mato Grosso, habitamos a luta, habitamos os Comitês Populares. Nos tornamos habitantes: habitamos essa luta e essa luta nos habita. Chegar ao Mato Grosso e sempre assim: é como se. é como um processo de deixar o nosso mundo para trás e entrar num uoutro mundo, um mundo outro que não o nosso. Claro que tem um pouquinho do nosso mundo, tem fragmentos que trazemos do nosso mundo para este, mas o nosso mundo pouco interessa aqui nessa luta pelas águas e pelo clima do Pantanal. O mundo que realmente interessa é este que estamos, aos poucos, entrando e que habitaremos até o retorno ao nosso mundo.

Nosso destino é a chácara Cururu. Na chácara rola um mutirão. Almoço coletivo, duas crianças brincam na água. O pequeno Léo gosta de cana de açúcar. Para o pequeno, quanto maior o “pau da cana”, melhor. Uma festa na água, crianças e cães se divertem. Estamos cansados, ouvidos e línguas pedem pro corpo parar um pouco.

Reunião de planejamento: entramos definitivamente no processo de organização dos 13 Comitês Populares e cerca de 30 organizações parceiras. Nesta 24a edição, o dia do rio Paraguai acontecerá em forma de Caravana. Seguiremos até a nascente do rio Paraguai. Para que tudo aconteça respeitando nossos limites de tempo e de recursos, é necessário muita organização e muita, mas muita conversa. Consequentemente muita mensagem de texto, muita mensagem de áudio, porque nem todo mundo escreve e lê. Muito cartazinho (card), muito vídeozinho, e tantas outras estratégias, tantos outros instrumentos de mobilização. Cuidamos para que a mobilização não seja nada fria, pelo contrário, experimentamos mecanismos de mobilização didática. Jeitos que as pessoas entendam o que está acontecendo por trás de cada informação, de cada recado. Cada contato é carregado de informação e de expectativa. Informação sobre o que está acontecendo, sobre o que está por acontecer e, além disso, expectativa que as pessoas compreendam que cada passo deriva de um passo já dado, que o passo seguinte depende deste, e que seguimos juntos e em caminhada. 

Parte importante da mobilização pantaneira acontece em forma de visitas. Isso mesmo: visitas. Nesta noite visitamos Maurílio e Clara. Uma hora de estrada até o sítio no Comitê Popular das Águas e do Clima do Padre Inácio. Uma alegria. A convivência talvez seja a parte mais gostosa de todo esse processo. Algumas horas de dedicação total a esse encontro. Impossível não estar por inteiro nesses encontros.

Sexta, dia 8 de novembro de 2024 – Diário de um alagado

Um dia de pouco movimento. Será?

Preparar-se para uma viagem, separar o que deve ser levado significa inevitavelmente pensar o que será essa viagem, significa pensar o que acontecerá nesses dias de atividade. Estamos partindo para mais uma temporada no Pantanal, mais especificamente na cidade de Cáceres, interior do Mato Grosso para a luta que envolve o dia do rio Paraguai. Vale lembrar que dia 14 de novembro é dia do rio Paraguai e, vivemos o mês do rio Paraguai e muitos esforços coletivos são mobilizados, muito encontros, mutirões, trabalhos em grupo, muitas expectativas são mobilizadas porque os dias do rio não são iguais. São iguais mas são diferentes.

São iguais no sentido em que são a repetição do dia 14 de novembro. E são diferentes porque cada dia do rio Paraguai tem uma programação cuidadosamente construída, são o resultado da caminhada de um ano todo de 13 Comitês Populares, da Escola de Militância Pantaneira, e das inúmeras parcerias que se fazem neste movimento em defesa das águas e do clima, em defesa do Pantanal.

Arrumar as roupas e objetos na mala, arrumar fora significa arrumar um pouco o que está dentro também. Arrumar o que está fora é também arrumar o que esta aqui dentro da gente. É lidar com as expectativas, é lidar com a memória, é preparar-se, é se ajeitas para os encontros com as pessoas que já amamos e iremos encontrar mais uma vez. Neste diário, ENCONTRO é uma palavra central, fundamental. Sempre que aparecer a palavra ENCONTRO, saiba que estamos dizendo muita coisa, uma palavra carregada de significado. Não se trata de uma palavra solta, jogada, uma palavra com um sentido estrito. Pelo contrário, ENCONTRO aqui é uma palavra densa, polissêmica, palavra povoada.

Acordei antes das 2h deste 8 de novembro. Uber, aeroporto, esperas, despacho de bagagens, voo felizmente confirmado para as 3h. Espera de 3h em Brasília, novo embarque e felizmente voo no horário. Retirada de bagagens em Cuiabá/MT, mais espera e o processo de territorialização continua. Manha para pequenos ajustes de rota e contatos, cuidar dos companheiros que virão, confirmar reservas de quem está a caminho e dos que virão nos próximos dias.

Andar pela cidade e o almoço já fazem parte do processo de territorialização. Peixe frito na dieta, banana frita, farinhas e a culinária serve de portal de acesso lento à cultura local. As músicas tocando na cidade, a circulação na capital, os sotaques, fisionomias e etc. Encontro meu companheiro de viagem no final do dia e combinamos nossos horários para a sequencia da viagem, agora em dupla.

Relógio programado para despertar às 5h30. Boa noite.

 

Quinta, dia 7 de novembro de 2024 – Diário de um alagado.

Desde o ano 2020 celebra-se, sempre no dia 14 de novembro, o rio Paraguai. Portanto, 14 de novembro é o dia do rio Paraguai. Nesse percurso anual, muita coisa já foi feita, muita luta, muito enfrentamento, muita experiência, muita alegria que anima uma luta sem fim. São pantaneiros e pantaneiras, assentados em reforma agrária, ribeirinhos e ribeirinhas, pescadores e pescadoras, quilombolas, gente da terra, gente das águas, gente da luta. Luta pela terra, luta pela água, luta pelo clima, luta pela vida. E a luta ganha vigor, ganha força, anima.

Vamos contar uma parte desta 24a edição. Uma parte porque este primeiro registro não se refere à primeira atividade desse mês do rio Paraguai. Já estamos no dia 7 de novembro que, em alguma perspectiva, está marcado por dois acontecimentos:

  1. Um momento de aprender. Ouvimos os companheiros de luta Clóvis Vailant e Oscar Rivas. O primeiro falou das ameaças que o bioma pantanal vem sofrendo, de onde vem tais ameaças, os impactos causados e as consequências sócio-ambientais de tais impactos. Já o Oscar trouxe seu conhecimento a respeito dos corredores bioculturais nas humedales.

Em seguida nos olhamos em ação. Foram imagens em fotografias e imagens em movimento. Foi um movimento em imagens. Foi o movimento popular ali na tela e o mesmo movimento popular com os olhos fixos na tela. O movimento e o movimento, tudo em movimento,

– uma rápida apresentação do que fizeram os 13 Comitês Populares de Defesa das Águas e do Clima. Os dias de rio nos Comitês, as místicas, as celebrações, o sentido de cada comitê, suas expressões culturais, suas tradições e muito mais;

– uma rápida apresentação do que fizemos na Escola de Militância Pantaneira: experimentações pedagógicas e invenções, ações diretas e produção dos próprios materiais, audiências públicas; VIVA A ESCOLA DE MILITÂNCIA PANTANEIRA!

– a ARPA e sua experiência de agroecologia: Associação Regional dos Produtores Agroecológicos localizada no assentamento Roseli Nunes. Vimos fotos lindas da cozinha das mulheres construída em forma de mutirão, fotos da agroindústria de polpa de frutas, a casa do algodão agroecológico, a aprendemos que a produção abastece o Programa Nacional de Alimentação Escolar.

– a Associação Regional das produtoras Extrativistas do Pantanal, o grupo das Margaridas, as amigas da Fronteira, as Amigas do Cerrado e o beneficiamento da castanha do barú, os viveiros de mudas para replantio do Babaçú, e soubemos que elas também abastecem o PNAE.

Entrar na área delimitada do Parque da Cidade para a maior marcha de mulheres da América Latina na manhã do dia 15 de agosto foi como se imergir num fundo mar de esperança. Afinal, lá começava, repleta de diversidade, mais uma edição da Marcha das Margaridas, organizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). Como frutos do sol, as mulheres do campo, da floresta e das águas que não paravam de chegar esbanjavam sorrisos no rosto e uma energia radiante para reivindicar o que já deveria ser seu.

– conhecemos um pouco mais da UNECAFES-MT e seus mais de 20 grupos que atuam em rede e em cooperação;

– A Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras e sua luta para preservar e valorizar as culturas, os conhecimentos tradicionais, para promover a biodiversidade, gerir a terra de forma comunal e o cultivo em forma de muchirum, mas também a luta por direitos e a luta pela terra;

– conhecemos mais um pouquinho do apiário do seu Neuzo e o delicioso mel e a contribuição das abelhas para a natureza, a alimentação, a saúde, a polinização etc etc etc;

– um tanto de conversa e a imensa alegria de estar juntos, mesmo que distantes, porque os comitês criaram durante o afastamento social exigido pela pandemia da covid, um jeito diferente de fazer laives: as laives populares!!

E finalizamos cantando: TRAGA A BANDEIRA DE LUTA, DEIXA BANDEIRA PASSAR, ESSA É A NOSSA CONDUTA, VAMOS SE UNIR PRA MUDAR… Assim aconteceu o segundo encontro (em forma de laive) no processo de Formação Continuada e Multiplicadora 2024. Foi muito bom e muito bonito, daqueles que enche a gente de energia.

Ah, e eu já ia me esquecendo do segundo acontecimento que torna o dia 7 de novembro tão especial. É que logo depois da laive, Silvio Munari e eu, Ivan Rubens, já começamos os preparativos para vencer nosso caminho até Cuiabá, capital do Mato Grosso, e de lá para Cáceres. A cabeça e o coração já estão com o Comitê Popular das Águas e do Clima do rio Paraguai. Nas próximas horas chegará o corpo carregando a bandeira para somar na luta pelo Pantanal Vivo.

 

TEXTO

Letícia Queiroz

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