Este bloco emergiu de algumas inquietações. A primeira delas é a reverberação de nosso contato com Tuíra, com sua luta em defesa da floresta e com os diversos enfrentamentos realizados pelos povos indígenas desde que o “céu deixou de ser céu”, como afirma Davi Kopenawa. Some-se a desafiadora necessidade de arejar o pensamento político, hoje em processo de ataque pelos totalitarismos, ávidos por sufocar tudo que ouse pensar. Por fim, por acreditar que teoria e prática não se dividem, são relação, e se expandem quando postas em contato.

Encontramos algumas pessoas que se colocam em movimento para a criação de um pensamento político. Um pensamento político inspirado e inventivo, baseado na relação com a terra, com as plantas, com seres que escapam às lógicas ocidentais, modernas, capitalistas. Pensares que explicitam o que é obvio para os povos originários: todos os modos de existir possuem valor e não são meros recursos. Pensares que põem em xeque as crenças de um dos seres mais frágeis da natureza: o ser humano.

Procuramos por Jean Tible, militante e professor de Ciência Política na USP, que prontamente se dispôs a criar algo, como ele mesmo descreveu, “mais solar” sobre a política. Quando trevas e obscurantismo dominam o imaginário político institucional, isso nos pareceu tentador. Em seguida buscamos Luciano da Silva, jovem-experiente, agricultor agroecológico e técnico agrícola formado pelo Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), ligado ao Movimento dos Trabalhadores, Assentados e Quilombolas (CETA) e que, na posse de alguns hectares de terra e ao lado de pessoas dispostas a produzir agroecologicamente, vem participando de um processo de transformação político-econômica-autonomista em um assentamento na região Sul da Bahia.

Para um pedimos um texto: o quê? Para o outro pedimos uma prática: como?

E foi nesta busca, entre papos, viagens, idas e vindas, que descobrimos algo interessante neste bloco: a real conexão entre um conjunto de pensamentos e um conjunto de ações. Diria o antropólogo Jeremy Narby que “a prática é a mais avançada das teorias”. Nossa tentativa aqui foi de fazer falar o texto de Jean Tible nas práticas de Luciano da Silva e assim conectar mundos.

Em seu texto, Jean nos transporta para uma grande viagem do mundo animal ao vegetal, explorando povos, corpos, filosofias, artes, paradigmas. Revela para nós o modo como o pensamento foi estruturado seguindo uma linha predatória e, na sequência, nos mostra um mundo de plantas, conexões, adaptabilidade e força. Descobrimos o quão pouco conhecemos deste universo. Fica explícita uma necessidade, em nome da sobrevivência, de realizarmos adaptações e alianças. Tal como podemos ler na feliz citação que Jean faz de Anna Tsing: “permanecer vivo – para todas as espécies – requer colaborações vivíveis. Colaborações significam trabalhar através da diferença, que leva à contaminação. Sem colaborações, todos morremos”.

Encontramos, no trabalho dos assentados de Dois Riachões e de Luciano, uma verdadeira arte do cultivo. Conhecemos diversas facetas da cultura da Theobroma Cacao, nome científico da planta que nos oferece o “fruto de ouro”, o cacau: desde seu quase desaparecimento no final dos anos 1980, em decorrência de pragas, até seu renascimento atual, a partir de uma nova forma de produção, comercialização e articulação política feita em seu entorno. Segundo Luciano, “muito mais do que um conjunto de técnicas, agroecologia é um modo de vida junto ao campo e à natureza”.

Ao observar tamanha pluralidade na vida das plantas e conversar com um agricultor é possível compreender que, como diria Jean, eles não são simples selecionadores de espécies: são colecionadores de relíquias! Uma variedade imensa de feijões, mandiocas, batatas, milhos e sementes originárias que enriquecem a nossa saúde e a nossa cultura com os diversos esquemas, modos e práticas produtivas.

É preciso imitar a natureza ao máximo! Observar sua composição, os tamanhos das árvores, extratos de uma floresta que se organiza a partir da queda de folhas, galhos, cipós, sempre em busca de sol ou de sombra, e construir plantações que permitam essa paisagem movente, não uma plantação toda retilizada, igual em cor e tamanho. As folhas que caem realizam uma função importantíssima na cobertura do solo que, úmido, se protege e se nutre. A diversidade de plantas na floresta também oferece a possibilidade da energização pela diferença: há ali alimento para todos, animais, microrganismos, insetos e até parasitas. A disputa por nutrientes do solo, luz e água é menor. É uma orquestra, cada um tocando no seu ritmo, seu tom, mas todos em plena sintonia. Lá embaixo, no solo, ocorre a trama de raízes que penetram o solo de maneira desigual buscando nutrientes, água e oxigenação em diferentes camadas. As plantas realizam, ainda, um tremendo processo de comunicação entre si pelas raízes. Quem diz que planta não fala se engana completamente!

Com os povos indígenas e originários aprendemos que é preciso observar a natureza e aprender com ela. Hoje estes conhecimentos estão disseminados em diversos meios pela agroecologia. Sim, as plantas ensinam. Suas palavras e suas pedagogias parecem ter sido ouvidas por poucos. Luciano dá testemunho do quanto foram capazes de ouvir estes ensinamentos no Assentamento Dois Riachões. No Território Quilombola do Vão Grande, aqueles que conhecerem Tio Antônio [1], também testemunharão estas aprendizagens. Ali encontramos aquele “cultivo de comunidades” instaurado textualmente por Jean: “Um cultivo de comunidades onde dormir, acolher quem chega, se reunir, cozinhar e comer, plantar e se cuidar em espaços construídos coletivamente”.

1 Para conhecer mais dessas aprendizagens, visite o texto de Tio Antônio, do Território  Quilombola do Vão Grande

E por que tudo isso é importante?

Basta olhar para esta vida inspirada na terra, na arte de observar a natureza, suas reações, seu cosmo, para pensarmos que uma política inventiva, produtora de mais vida, energizada pelos minerais, pelo Sol, pelas fases da Lua se faz urgente e necessária.

Por uma Política do Cultivo!

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