Sem diálogo amplo com a sociedade, medida do Ministério da Saúde oferta implante de anticoncepcional apenas para mulheres consideradas socialmente vulneráveis
Por Petra Fantini
O Sistema Único de Saúde (SUS) ofertará implante subdérmico entre seus métodos contraceptivos de longa duração (LARCs). Mas, para quem? Publicada em 19 de abril, a Portaria SCTIE/MS Nº 13 condiciona a incorporação do anticoncepcional de uso contínuo à criação de um programa voltado às mulheres consideradas socialmente vulneráveis. Sem delinear como o medicamento será ofertado para essa população, o texto abre brecha para interpretações eugenistas e aplicação do tratamento sem consentimento.
O público-alvo inclui mulheres em situação de rua; com HIV/AIDS em uso de dolutegravir; em uso de talidomida; privadas de liberdade; trabalhadoras do sexo; e em tratamento de tuberculose em uso de aminoglicosídeos. Além de não considerar indivíduos transgêneros, o texto da Portaria não explica como o programa seria estruturado e não informa se o implante será exclusivamente disponibilizado para essas mulheres.
“A Portaria veio com um alvo”
Essa é a conclusão de Santuzza Alves de Souza, trabalhadora sexual coordenadora do Coletivo Rebu, que questiona a falta de diálogo do Ministério da Saúde com os grupos abarcados pela decisão. “A Portaria 13 veio de supetão, pegou a gente de surpresa. Os movimentos de mulheres em situação de rua, privadas de liberdade, trabalhadoras sexuais, entre outras, não puderam opinar”, denuncia.
O pulo do gato está no que não é dito: Santuzza pontua que o texto não diz que é um método compulsório, mas também não diz que não é. “A decisão deixa um espaço aberto para esse governo, que a gente sabe que tem todo um trabalho fascista, agir de forma higienista. Nossa preocupação é: e quem não quiser usar esse método? Será que essas mulheres em situação de rua vão poder dizer não? Será que as mulheres em privação de liberdade, que vivem sob um sistema carcerário violentíssimo, vão poder dizer não?”, questiona.
Os movimentos sociais, segundo a trabalhadora sexual, entendem que essa é uma medida racista, preconceituosa, “para que a gente não ponha filho no mundo mais”. “Entendemos que eles [o governo federal] querem nos castrar. Já vem o preconceito, o estigma, as violências, tudo. Imagina, se eu quero colocar o implante, eu tenho que ir no posto de saúde e me identificar como prostituta, que tem HIV, que é moradora de rua. Isso é muito invasivo, nos constrange”, concorda a também trabalhadora sexual Fátima Muniz, a Jade, coordenadora do coletivo Clã das Lobas.
Organizações se manifestam
Representantes das mulheres em situação de rua, com HIV/Aids, privadas de liberdade, trabalhadoras do sexo e em tratamento de tuberculose se organizam para tenta combater a medida. Os coletivos Rebu e Clã das Lobas estão entre os que assinaram a nota conjunta da campanha #EugeniaNão #AcessoUniversalSim, que lembra que “a seleção de determinados grupos para experimentos reprodutivos ou estratégias de controle natalista é uma marca indelével da história do Brasil e da saúde reprodutiva mais amplamente”.
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) também se manifestou em texto pela integridade, autonomia e autodeterminação reprodutiva das mulheres. O Movimento Nacional das Cidadãs Positivas (MNCP) afirma que a decisão possui tom discriminatório. Manifestação da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras pontua, por exemplo, que “não há um motivo para limitar a terapia antirretroviral a ser utilizada para o fornecimento do implante para mulheres que vivem com HIV, uma vez que já se descartou que o dolutegravir (remédio usado no tratamento) cause malformação fetal”.
Futuro
Ofício conjunto dos Núcleos de Defesa da Mulher (Nudems) nº 03/2021 – assinado pelas coordenadoras dos Núcleos Especializados de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres das Defensorias de 13 estados –, enviado para o Ministério da Saúde em 2 de maio, questiona a fundamentação legal e técnica para essa escolha do grupo de mulheres. As defensorias ainda não obtiveram retorno sobre a demanda.
Deputadas federais de partidos de esquerda apresentaram em Plenária, em 26 de abril, um projeto de decreto legislativo para sustar a Portaria nº 13, tendo como um dos argumentos que o Relatório de Recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) concentrou sua análise em questões orçamentárias, “longe de avaliar as implicações de uma política que beira o controle de natalidade e afronta a lei que trata do planejamento familiar”. O texto ainda não foi votado.
Coletivos e organizações da campanha #EugeniaNão #AcessoUniversalSim, entraram com pedidos de Acesso à Informação para o Ministério da Saúde sobre os seguintes pontos:
- Qual o rito para elaboração da Portaria (passou pela área técnica, pelo conselho etc)?;
- Demonstrativos de cálculo que embasaram a decisão de limitar a oferta a grupos específicos;
- Estudos que levaram à edição da portaria e à escolha dos grupos definidos como vulneráveis;
- Pareceres técnicos que embasaram a edição da portaria; e
- Consultas a atores e instituições da sociedade civil que tenham acontecido, especialmente aquelas mencionadas no parecer da Conitec sobre o assunto.
Em resposta, o Ministério afirma que “os benefícios dessa tecnologia [implante subdérmico de etonogestrel] e a evidência de eficácia e segurança são reconhecidos, no entanto, o alto impacto orçamentário impossibilitou a recomendação favorável à incorporação para toda a população feminina”. O texto não apresenta os estudos solicitados no item (iii), se limitando a dizer que o segmento populacional foi “delineado pelas Secretarias de Vigilância em Saúde (SVS) e de Atenção Primária à Saúde (SAPS) do Ministério da Saúde e apresentado na 93ª Reunião da Conitec”. Leia a nota na íntegra. Não há novas ações jurídicos previstas pelo movimento por agora.
Histórico
O implante subdérmico de etonogestrel é aplicado sob a pele do braço e libera progesterona continuamente no organismo por três anos, sendo um dos métodos mais eficazes de contracepção, superior a 99%, equivalente ao da ligadura de trompas.
Segundo nota da Abrasco, em 2015 a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) já havia solicitado a incorporação do implante subdérmico com etonorgestrel, porém voltado a adolescentes entre 15 a 19 anos, tendo sido ressaltado também naquela ocasião um público preferencial designado como “populações especiais” ou “grupos vulneráveis” como beneficiários do método. A Febrasgo, inclusive, se declarou favorável à Portaria SCTIE N° 13/2021, contanto que “respeitados os critérios de elegibilidade e da autonomia da mulher”.
Na época o pleito não obteve êxito, diferente do que ocorre em 2021. O proponente desta segunda tentativa, o laboratório farmacêutico Schering-Plough, sugeriu que o método fosse disponibilizado a mulheres entre 18 e 49 anos. O Relatório de Recomendação da Conitec, no entanto, diz que “as evidências são favoráveis ao implante de etonogestrel, mas que a ampla população proposta pelo demandante [mulheres entre 18 e 49 anos] juntamente com o impacto orçamentário estimado, dificultaria a incorporação desta tecnologia no SUS”. Mantendo sua avaliação econômica, a Conitec defende que a medida vai gerar uma economia aos cofres públicos que totaliza R$ 1,2 bilhão, ao final de cinco anos.
Contatado diversas vezes, o Ministério da Saúde não respondeu os questionamentos da reportagem: o contraceptivo será de acesso universal aos usuários do SUS? Como será o funcionamento do programa? Como foram definidos os grupos de mulheres contempladas? A colocação do implante será obrigatória para esse público-alvo? Entidades representativas dessas mulheres foram consultadas para a elaboração da Portaria? Como o Ministério da Saúde responde às críticas de que a Portaria estaria tolhendo o direito reprodutivo das mulheres incluídas no programa?
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