Forma de protesto ou ação direta, ocupar é demonstrar que outro modo de viver é possível

Carolina Munis

“Vamos ocupar o espaço público”, bradam movimentos aqui e acolá. Ocupar a cidade, a política, a mídia. Ocupar com e sem hashtag. Ocupar: palavra que tomou tantos discursos, planos e narrativas, alastrada radicalmente pelas ocupações das escolas realizada pelos secundaristas a partir de 2015. Mas, muito antes e em tantos lugares, as ocupações já vinham colocando no mapa e na ordem do dia as mazelas políticas, econômicas e sociais contra as quais se ergue o espírito insurgente.

Prefiguração

Não é por acaso que a ocupação se presta como tática por excelência de tantos projetos: sonho, experimento, denúncia, resistência, conquista… Ocupações são fortes exemplos de políticas prefigurativas, em que não há diferença entre o que se busca e a forma como se busca. Mesmo nas condições mais adversas, ocupar é romper a barreira entre imaginação e prática na busca por outra realidade; é rebelar-se contra o que existe e imediatamente perseguir outras possibilidades. Dificilmente uma ocupação não exigirá uma reinvenção das formas de vida, um rompimento do estado de normalidade que classifica, ordena, hierarquiza e subjuga, rumo a outras, ilimitadas e inacabadas, versões do possível.

Nem sempre é preciso deslocar-se de um espaço físico não ocupado para um espaço físico ocupado. Em um mesmo local, passar de um estado de normalidade para um estado de ocupação suspende abruptamente tudo que ali existia: as normas, a posse de prerrogativas, os valores atribuídos aos corpos. Outras possibilidades são convocadas a passarem a existir, ou a própria suspensão do status quo se transforma, ela mesma, em um estado. “A ocupação física da Sorbonne foi seguida por uma explosão intelectual de violência sem precedentes. Tudo, literalmente tudo, foi repentinamente e simultaneamente posto em discussão, em questionamento, em objeção”1, disseram alguns dos que estiveram de corpo presente nas lutas que pararam Paris em maio de 1968. No Brasil, as escolas ocupadas passaram às mãos dos mesmos estudantes que diariamente a frequentavam e, reterritorializadas, foram palco da emergência de outras subjetividades: “Os jovens secundaristas (…) nos contam que ‘ocupar’, no seu caso, tem muito a ver com estar de outra forma naquele mesmo espaço onde passaram e passam quase a vida inteira. (…) Esse novo modo de ‘estar’ (…), rompe de fato com aquilo que vinha antes, pois tem a ver com um estar ali por inteiro, com tudo o que cada um tem, com tudo o que carrega”2.

1 Solidarity. Paris: Maio de 68. Conrad, 2008, p. 38.

2 Grupo Contrafilé. A Batalha do Vivo. p. 42.

Tática

Em primeiro lugar, as ocupações servem como método de resistência para tomada de um local, no tensionamento contra um adversário específico, por um determinado período de tempo. Sharp3, em sua conhecida lista de métodos de ação não violenta, distingue vários tipos de ocupações, chegando a diferenciar aquelas em que os ocupantes estão de pé e sentados, as que ocorrem em áreas proibidas, em praias, na cidade e no campo. Dois exemplos do que ele chama de intervenção física são a incursão não violenta, em que a invasão quer antes “desafiar a autoridade do que ter a efetiva posse do local”, e a ocupação não violenta, em que os ativistas insistem em sua permanência até a resolução de suas demandas. Já a ocupação de terras, que substitui os donos de uma terra por aqueles que a ocupam, é uma forma de intervenção econômica na classificação de Sharp.

3 Gene Sharp. Poder, luta e defesa: teoria e prática da ação não-violenta. Edições Paulinas, 1983, p. 191.

Quando empregada a partir de um bom arcabouço estratégico, a ocupação – como toda boa tática – move a balança de poder em favor dos ativistas. David Harvey descreveu as táticas do Occupy Wall Street como “tomar um espaço público central, um parque ou uma praça, próximo à localização de muitos dos bastiões do poder e, colocando corpos humanos ali, convertê-lo em um espaço político de iguais, um lugar de discussão aberta e debate sobre o que esse poder está fazendo e as melhores formas de se opor ao seu alcance. Essa tática (…) mostra como o poder coletivo de corpos no espaço público continua sendo o instrumento mais efetivo de oposição quando o acesso a todos os outros meios está bloqueado.”4 As suposições consolidadas sobre a posse de um espaço ou sistema são imediatamente colocadas em xeque, e tanto a permanência da ocupação quanto seu despejo forçado colocam a autoridade oponente em um constrangimento moral.

4 David Harvey. Os rebeldes na rua: o Partido de Wall Street encontra sua nêmesis. Publicado em: David Harvey e outros. Occupy: movimentos de protesto que tomaram a rua. Boitempo/Carta Maior, 2012, p. 60-61.

Protesto ou ação direta

A ocupação pode ser uma forma de protesto ou uma ação direta. O protesto existe como a vocalização de um discurso, manifestação de um desejo, publicização de uma demanda ou causa – geralmente para reivindicar algo a um agente intermediário que detém o poder de tomada de decisão. Como exemplo, pode-se pensar nas ocupações de fábricas durante uma greve; nas ocupações de reitorias e bandejões durante as mobilizações universitárias; ou na tomada de prédios públicos para aumentar a visibilidade de lutas de longo prazo (como a tomada do Incra pelos movimentos de sem terras ou da Funai pelos indígenas). Também as gigantescas ocupações da Praça Tahir, no Cairo, durante a Primavera Árabe em 2011, ou do Occupy Wall Street, em Nova York, ou as demais acampadas dos diversos Occupy pelo mundo naquele ano, configuram-se como demonstrações de protesto – extensas, duradouras, agenciadoras de dinâmicas novas de sociabilidade, mas ainda assim fundamentalmente orientadas para a produção de efeitos simbólicos e midiáticos (daí sua qualificação como “demonstração” ou “manifestação”).

Já as ocupações de terras realizadas pelos movimentos pela reforma agrária (como o MST) ou as de prédios e terrenos nas grandes cidades pelos movimentos por moradia (como o MTST) possuem como objetivo principal o uso do território urbano ou rural para sua finalidade social concreta: a moradia e o cultivo da terra. Embora essas ocupações acabem por também produzir grande efeito simbólico e alta visibilidade, esse não é seu ponto central. Elas realizam diretamente, sem mediação, e com base nas próprias forças dos agentes, a mudança pretendida – e, nesse sentido, são ações diretas. A ação concreta fala mais alto do que qualquer mensagem, slogan ou grito de ordem. O mesmo ocorreu com as ocupações de fábrica durante a insurreição espanhola de 1936: anarquistas tomaram e administraram as fábricas das regiões da Catalunha e Aragão num exemplo histórico de autogestão operária, só interrompida pela estatização forçada pelo então governo republicano de influência stalinista5. A ocupação com fins de apropriação ou governança coletiva é, portanto, uma ação direta.

5 Para saber mais: George Woodcock. História das ideias e movimentos anarquistas. Vol. 2 – Os movimentos. LP&M, 2002.

Um mesmo movimento pode se valer da ocupação tanto como tática de protesto quanto de ação direta. O MST, por exemplo, ao invadir o prédio do Incra, em Brasília, faz protesto; ao ocupar uma fazenda para fins de desapropriação para reforma agrária e instituir o núcleo inicial provisório de um futuro assentamento, faz ação direta. As ocupações das escolas públicas pelos secundaristas em 2015 e 2016, ainda que viessem a se consolidar como uma marcante e inventiva ação direta, foram principalmente uma forma de protesto, mesmo que de longa duração: a ocupação era um dispositivo para evidenciar e amplificar uma causa, sendo acompanhada por diversas outras táticas de grande impacto.

Tempo

No âmbito das estratégias de guerrilha urbana, como formuladas pelos teóricos guerrilheiros da década de 1960 e 70 na América Latina, as ocupações têm função estritamente provisória. A guerrilha, segundo eles, “tem um caráter extremamente móvel e não pode dedicar-se à defesa de posições fixas ou territórios limitados”6. Sua finalidade é, em geral, protestar, fazer propaganda ou desviar a atenção do inimigo. A determinação do Minimanual do Guerrilheiro Urbano, de Carlos Marighella, é bem explícita: “a ocupação é sempre temporária e, quanto mais rápida, melhor”7. De forma semelhante, Hakim Bey, em seu conceito de “zona autônoma temporária”, aponta que a ocupação institui um território sociopolítico novo e autônomo, mas apenas, e suficientemente, enquanto existe e na medida em que existe. A materialização de outras humanidades possíveis acontece no breve momento de distração dos sistemas de controle e repressão – e a possível descoberta da “zona autônoma” pelas autoridades imediatamente comanda que ela desapareça8.

6 Carlos Marighella. Teoria y acción revolucionarias. Editorial Diógenes, 1972, p. 97.

7 Idem, p. 44.

8 “A TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se refazer em outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la. (…) Assim que a TAZ é nomeada, ela deve desaparecer, ela vai desaparacer (…) Assim sendo, a TAZ é uma tática perfeita para uma época em que o Estado é onipresente e todo-poderoso mas, ao mesmo tempo, repleto de rachaduras e fendas”. Trecho de: Hakim Bey. TAZ: Zona Autônoma Temporária. Digitalizado por: Coletivo Sabotagem e Contracultura. Copyleft.

Por outro lado, uma ocupação pode também encontrar seu poder em sua longevidade, e não temporariedade. Entre 1964 e 1969, nos Estados Unidos, indígenas de várias etnias – muitos deles estudantes e vivendo uma vida precária nas cidades – realizaram três ocupações da ilha de Alcatraz, a dois quilômetros da costa de São Francisco. A mais longa delas, a partir de novembro de 69, durou 14 meses, sendo encerrada apenas pela invasão das forças governamentais.9 Mais impressionante é o caso de Cristiânia, a “cidade livre” anarco-hippie criada em 1971 num distrito de Copenhagen, numa área de 34 hectares onde funcionava um antigo acampamento do exército. Ali vivem até hoje cerca de 1.000 pessoas em regime de autogoverno.

9 Troy Johnson.The Occupation of Alcatraz Island: Roots of American Indian Activism. Wicazo Sa Review, 1994, vol. 10, n. 2, p. 63-79.

Em todos os casos, a ocupação não é uma aposta impetuosa, improvisada e impensada. Ao contrário, ela deve ter um objetivo claro e integrar uma estratégia mais ampla de pressão política sobre o oponente. É uma tática que envolve planejamento meticuloso, grande esforço logístico e um bom cálculo de tempo e timing.


OCUPAR E RESISTIR!

Veja uma lista de cuidados importantes para o uso estratégico da tática de ocupação

ESTRATÉGIA_ Como toda tática, a ocupação não é um fim por si só. Ela deve ser um componente de uma estratégia maior para a solução de um problema político ou social. Essa estratégia precisa ter objetivos de curto, médio e longo prazos definidos e abranger outras táticas de comunicação e ação.

LOCAL_ O local a ser ocupado tem força simbólica, mas traz implicações objetivas. Ocupar um hospital, por exemplo, é diferente de ocupar uma escola, pois os serviços que ele oferece estão diretamente ligados à sobrevivência humana. Ao escolher o local, considere a posição que ele tem no sistema que gera a injustiça a ser enfrentada: pode ser o local onde opressões ocorrem diretamente, onde decisões são tomadas, ou onde o público consome produto ou serviço que deixa em sua trilha um rastro de injustiças. Equacione isso com sua capacidade efetiva de gerir o espaço quando ocupado.

LEI_ A ocupação inevitavelmente vai despertar um dilema jurídico entre a defesa da posse do Estado ou da propriedade privada, de um lado, e a garantia dos direitos constitucionais de reunião e manifestação, de outro. Considere as questões legais e esteja amparado por advogados.

MÍDIA_ A grande imprensa pode fazer uma cobertura desfavorável da ocupação e entrevistas para estes canais podem acabar se revelando emboscadas, a despeito do seu preparo prévio. Busque a mídia independente e lembre-se de que você mesmo pode fazer o papel da mídia com uso de vídeos, redes sociais, músicas, publicações e outras plataformas.

SEGURANÇA DA INFORMAÇÃO_ Construa redes confiáveis para disseminação de informação. Utilize sempre ferramentas de comunicação seguras e garanta que elas sejam de uso coletivo.

TEMPO_ O tempo e o timing são essenciais para o impacto da ocupação. Pense em como a ocupação começa, quanto tempo ela deve durar e como irá terminar – se é que deve terminar. Articule com cuidado momentos de ofensiva e momentos de recuo (se for o caso).

LOGÍSTICA_ Ocupações de médio e longo prazo exigem grande esforço logístico para garantir as necessidades básicas das pessoas que estão ocupando. Aproveite para fazer da limpeza, alimentação e comunicação práticas coletivas que aumentam a articulação e coesão entre os ocupantes.

ATIVIDADES_ O que acontece dentro da ocupação? Um dos poderes das ocupações reside no fato de serem prefigurativas, isto é, em que não há diferença entre aquilo que se busca e a forma como se busca. As atividades realizadas no espaço – sejam elas de produção, formação, cuidado, mobilização ou arte – são, portanto, uma forma de evocar a realidade pela qual se luta.

APOIO_ Articular uma rede de solidariedade fora da ocupação é tão importante quanto o que acontece dentro dela. É isso que irá transformar a ocupação em um fato político de impacto. Essa rede serve, ainda, como um apoio frente a ataques e uma fonte de ajuda para necessidades imediatas de alimentação, segurança, logística e atividades.

SEGURANÇA FÍSICA_ A segurança física e emocional das pessoas ocupantes deve ser prioridade. Algumas formas de ocupação implicam grande esforço físico, político e emocional. As chances de retaliação imediata são grandes; picos de repressão e tensionamentos constantes podem colocar as pessoas em risco e gerar desgastes.


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