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Maio de 1968: 50 anos depois

Marco simbólico do ativismo contemporâneo, o fenômeno perturbador de Maio permanece inquietante e disruptivo até hoje

Marco simbólico do ativismo contemporâneo, o fenômeno perturbador de Maio permanece inquietante e disruptivo até hoje

Cássio Martinho

O conceito de Acontecimento tem sido invocado pelas ciências humanas para designar fenômenos coletivos decisivos e imprevisíveis, capazes de alterar profundamente estruturas de poder, dispositivos institucionais, regimes simbólicos, relações sociais e a experiência concreta de vida das pessoas numa dada sociedade – na forma de um abalo, um turbilhão, uma tempestade que anula (ainda que seja temporariamente) a ordem vigente e a supera por meio da instauração de outras dinâmicas de vida e contrapoder.

Maio de 1968 francês é um desses casos singulares, cujos efeitos, 50 anos depois, ainda se fazem sentir; um “acontecimento-esfinge” (na expressão de Edgar Morin), que até hoje se busca decifrar. Enquanto fenômeno emergente, tem similaridades com o 2013 brasileiro: irrompe de forma súbita, embaralha as regras do jogo, tira os atores do lugar, desabilita os instrumentos analíticos tradicionais (torna-se “opaco”), desorganiza os sistemas explicativos. “O acontecimento é em primeiro lugar aquilo que a princípio não compreendo”1 diz Jacques Derrida, a propósito do 11 de Setembro, outro “acontecimento”. A essa crise da explicação, segue-se uma enxurrada de interpretações e versões dos fatos, de narrativas e mitologias que tentam dar inteligibilidade ao fenômeno na mesma medida do abalo produzido.

1 Giovanna Borradori. Filosofia em Tempo de Terror: Diálogos com Jürgen Habermas e Jacques Derrida. Campo das Letras, 2004, p. 148-149.

Maio de 1968 vem sendo então, década após década, insistentemente esmiuçado, analisado, interpretado à direita ou à esquerda, por filósofos liberais ou de viés anarquista. “O significado de Maio”, afirma o historiador François Dosse, “continua sendo elaborado e ao mesmo tempo, em cada comemoração, o significado tenta se fixar nas memórias. (…) O quadragésimo aniversário comprovou que não havia fixação definitiva e que a questão continua viva e presente. São necessários quarenta anos para ter tempo para refletir?”.2 Estamos agora, 50 anos depois, tentando, de novo e de novo, compreender sua singularidade que resiste à captura.

2 François Dosse. Renascimento do acontecimento: um desafio para o historiador: entre Esfinge e Fênix. Unesp, 2013, p. 286.

Para os teóricos do Acontecimento, ele é uma espécie de evento que não cessa. Ao produzir uma ruptura na história, de alguma forma o Acontecimento (quase) tudo reinaugura e, desse modo, é impossível circunscrever-lhe os efeitos ao tempo em que sucedeu. Numa conversa de Jean-Paul Sartre com um dos líderes estudantis, Daniel Cohn-Bendit, publicada no calor da ocupação de Paris, Sartre aponta com admiração o que lhe parece ser uma das maiores contribuições da “imaginação” do levante de Maio: “Existe algo que surgiu de vocês que assombra, que transtorna, que renega tudo o que fez de nossa sociedade o que ela é. Trata-se do que eu chamaria de expansão do campo do possível. Não renunciem a isso.”3 Eis aqui, para o ativismo contemporâneo, a atualidade permanente de 1968.

3 Jean-Paul Sartre e Daniel Cohn-Bendit. A ampliação do campo do possível. Publicado em: Sergio Cohn e Heyk Pimenta (orgs.). Maio de 68. Azougue, 2008, p. 25.

Emergência

A sucessão de eventos de Maio em Paris é semelhante às reações em cadeia e enxameamento presentes também nos episódios da Primavera Árabe (2011) e das Jornadas de Junho no Brasil em 2013: deflagração a partir de pequenas ações de resistência e luta política, seguidas de repressão policial e um súbito incremento da mobilização alcançando uma escala ampla sem precedentes. Primeiro, a revolta estudantil contra o fechamento da universidade; depois, uma série de confrontos entre estudantes e o aparato policial (as emblemáticas cenas de barricadas e carros incendiados); por fim, a adesão em massa dos operários que ocupam fábricas e realizam a maior greve geral da história da França (10 milhões cruzaram os braços). O país estava virtualmente paralisado (ocupado) e o governo De Gaulle, acuado e perplexo. Na última semana de maio, no entanto, o levante, abalado, pelo apoio dado ao governo por parcela significativa da população francesa, de um lado, e por uma série de acordos do governo com as centrais sindicais e o Partido Comunista, de outro, perde força e chega ao fim. No final de junho, depois de convocadas eleições gerais, De Gaulle vence novamente.

A cronologia do levante e o desenvolvimento do processo, da eclosão à decadência, é menos importante do que o impacto e a natureza dos agenciamentos históricos produzidos em e por Maio de 1968. Para a genealogia do ativismo contemporâneo, 1968 surge como um marco, senão inaugural (uma vez que as linhas de força das ideias, princípios e táticas contemporâneas remontam até mesmo ao século XIX e incorporam contribuições de outras fontes inclusive antitéticas a um certo estilo europeu de luta), certamente como um divisor de águas: todo um conjunto de noções, problemas e desafios políticos e táticos se apresenta ali de forma significativa e inovadora.

É isso também o que explica a mitologia de Maio: o levante adensa, produz e faz transbordar a teoria que se atualiza por meio do Acontecimento. No pano de fundo de Maio, ressoa uma teoria da ação política. A ocupação das universidades e das fábricas, as barricadas de rua, a “tomada da palavra” e a expressão dos cartazes e inscrições nos muros da cidade, as experimentações da convivência e da organização dos vários grupelhos4 e comitês, tudo isso, em paralelo, concebeu e teceu um pensamento sobre a ação e a organização, o confronto e a mobilização, a comunicação e a produção simbólica, a mudança histórica e a revolução. Se somarmos a isso, as inovações estéticas, simbólicas e táticas dos movimentos contraculturais que agitaram os Estados Unidos entre 1966 e 1969, teremos então, a conformação de um novo paradigma estético-político de luta que está presente no ativismo do Ocidente ainda no século 21. (As lutas de 1968 no Brasil, onde os estudantes emergem como agentes políticos decisivos da resistência à ditadura militar, não se enquadram tipicamente nesse caldo de cultura.)

4 A ideia de “grupelho” faz alusão ao termo ressignificado por Felix Guattari no texto Somos todos grupelhos, publicado em Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. Brasiliense, 1981.

Teoria da ação contemporânea

O conjunto de problemas postos no Acontecimento de Maio e seu entorno temporal mais imediato (um pouco antes, um pouco depois, no âmbito do espírito da contracultura da década de 60) persiste 50 anos depois com um renovado incômodo – seja pelo acirramento das contradições no âmbito da prática ativista, seja pela expansão e ampliação dos dispositivos de controle e espoliação do Estado e do Capital.

A crítica da mercadoria e da “sociedade do espetáculo” – ideias que os situacionistas e, particularmente Guy Debord, formularam de forma pioneira pouco antes da eclosão do levante francês – de certa forma prefiguram a superação do desenvolvimentismo e do industrialismo (tão caro aos dogmas da revolução proletária de então) que viriam conformar o ambientalismo nascente nos anos seguintes e, mais recentemente, o anticonsumismo, o movimento adbuster e as proposições de “suficiência intensiva” a partir dos anos 2000. Há, nos discursos de Maio, também uma aposta no caráter emancipador das tecnologias (de comunicação e de produção), que poderiam, enfim, libertar a humanidade do fardo da alienação. Este é um desafio inescapável para o ativismo que é contemporâneo das redes, dos capitais voláteis, dos algoritmos opacos, dos robôs fabris, dos bots e drones. Tanto a recusa da mercantilização do mundo quanto a crítica ao trabalho (alienado) puderam ser tematizados em 1968; a revolução digital e os problemas qualitativos que suscita estavam longe de seu alcance – e é uma realidade para a qual só os ativistas deste século podem dar resposta.

Maio de 1968 pôs em crise o próprio modelo de revolução até então hegemônico (capitaneada por uma vanguarda entrincheirada sob a redoma de um partido burocrático de viés hierarquizante e autoritário) e as condições de sua construção; o levante francês aliás revelou as próprias organizações tradicionais dos trabalhadores – os sindicatos – como agentes de suporte do poder estabelecido, seja por cooptação explícita, seja por degeneração de sua natureza representativa (em Maio tivemos greves selvagens, autogeridas, à revelia das direções sindicais). Maio de 1968 foi declaradamente antistalinista. O levante enfatizou a juventude como agente político da transformação por excelência, algo que as cartilhas de então sequer poderiam imaginar.

O caráter libertário da organização coletiva do levante atualizou as práticas dos sovietes e conselhos de base da primeira fase da revolução russa e os procedimentos da democracia direta e da autogestão (algo que pôde ser visto em alguns pontos do Brasil durante as Jornadas de Junho de 2013). Assembleias gigantes, lideranças móveis, dezenas de comissões, horizontalidade, um forte caráter espontaneísta e emergente das ações desenhavam em Paris o antimodelo de um novo tipo de projeto revolucionário. O que, mais tarde, na década de 1990, Hakim Bey viria a elaborar como Zona Autônoma Temporária (TAZ) – uma forma de luta efetiva pelo desaparecimento tático e pela “invisibilidade” –, a própria natureza fluida do Acontecimento de Maio prefigurava.

Sob o piso [das ruas], a praia, diz a inscrição, numa referência direta ao ato de retirar os paralelepípedos do calçamento de Paris

Também ali se experienciou o diverso terreno da vida onde “tudo é política” e o exercício comunitário do território da revolução: as ocupações das salas de aula e das fábricas, a apropriação dos lugares e das ruas (e uma correspondente formulação teórica do urbanismo e da errância), a disposição do corpo na espacialidade concreta da cidade – um traço significativo e característico de outros marcos do ativismo recente, como as ocupações das escolas por secundaristas em 2016 no Brasil e os acampamentos-TAZ nas praças Tahir, no Cairo, e no Zucotti Park durante o Occupy Wall Street, em Nova York, ambos em 2011.

A exemplo da contracultura hippie e yippie norte-americana que deflagrou nos anos 60 novas frentes de luta micropolítica (que vêm desembocar em grandes avalanches no século 21), Maio de 1968 contribuiu para (re)estabelecer ou reforçar a perspectiva de construção de outras formas de vida cotidiana (família, amor, sociabilidade etc), indissociável ela mesma da experiência coletiva da revolução (ou do levante). Os relatos das testemunhas e participantes da tomada de Paris naquele ano trazem sempre a menção aos “dias de felicidade” ou à alegria coletiva que a suspensão da ordem provocou. Essa inseparabilidade da ação coletiva revolucionária em relação aos afetos da vida, a própria imbricação proposta (e realizada) entre vida e política e – conforme sugeriam os situacionistas a partir do dadaísmo – entre arte e vida são os signos da grande singularidade, vamos dizer, experiencial do projeto instaurado pelo Acontecimento de Maio.

Mesmo hoje é difícil imaginar um projeto de transformação política que seja formulado em bases esteticamente sólidas e que se articule, pelo menos em parte, por meio de estratégias de caráter poético. A tradição que opõe a poeticidade à “dureza” da luta é um tropo corrente (a poesia, para alguns, é um instrumento risível). Durante o levante parisiense, em função do pensamento situacionista e de sua abordagem experimental da linguagem, não só a produção simbólica dos cartazes e slogans nos muros, mas algumas táticas de rua, de comunicação e de interlocução com as autoridades – alguns modos de fazer a luta – encontravam-se atravessados por um viés estético que tornou-se talvez a marca registrada da novidade do Acontecimento e sua grande diferença.

A práxis de 1968 postulou e realizou essa possibilidade da ação política na vida como estética, da ação estética na vida como política, da ação estética na política como a vida que se pode viver como num levante. Arte+política+outras formas de viver. Esta é uma equação que parece urgentemente contemporânea e que nos desafia fortemente – cinco anos (depois de 2013), 50 primaveras depois de Maio. _


Cenas de Paris durante os conflitos de Maio, quando uma inusitada beleza tomou as ruas e a imaginação

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