Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Da produção à modulação do espaço: apontamentos para o ativismo brasileiro em tempos de disrupção cibernética e crise climática
Da produção à modulação do espaço: apontamentos para o ativismo brasileiro em tempos de disrupção cibernética e crise climática
Entender as interrelações entre realidade vivida e ciberespaço para recriarmos ativismos prenhes de novas cosmopercepções e aquilombamento, numa realidade de emergência climática.

Introdução
Agir ativamente para transformar o espaço contemporâneo em suas múltiplas sociabilidades desigualmente afetadas por impactantes mudanças sociais, tecnológicas e ambientais que, co-relacionadas, definem o prognóstico de colapso das relações da natureza terrana pela crescente crise climática global e intensa disrupção dos sistemas econômicos pela transformação sociotécnica cibernética (Rede Mundial de Computadores, Datacenters, Redes Sociais, Ciborgues, Financeirização Dataficada, Inteligência Artificial, Robótica, Realidade Aumentada, Internet das Coisas, Plataformização, Gerenciamento Algorítmico, entre outras) – é necessário. Mas, como agir neste sistema-mundo (a)?
A co-relação complexa entre relações da natureza e relações sociotécnicas redesenha o espaço e transforma a condição de possibilidades (b) dos discursos que legitimam as ações do sujeito ativista, seja individual ou coletivo. Os modos do ativismo que luta pela transformação do espaço neste sistema-mundo capitalístico (c) – que domina e controla a rede de relações (d) entre natureza e sociotécnicas – não possui uma ação condizente que garanta o valor de uso (e), humano e não humano, para aqueles que habitam o espaço. O valor mercadoria é, ainda, o que violentamente move a materialidade social e histórica dos centros e periferias do sistema-mundo, sejam estes capitalistas, socialistas ou comunistas.Os instrumentos do “direito à” conforme teorizado pelo [1] liberalismo do direito universal, ou pelo [2] recorte marxiano do direito à urbanidade também para o campo ou periferias teorizado por Henri Lefebvre na década de 1960 ou mesmo o [3] direito às infraestruturas das forças de produção em vigência na Constituição Federal, no Estatuto da Cidade ou aqueles [4] praticados no cotidiano pelos múltiplos ativismos brasileiros de mobilidade urbana, quilombismo, ecologismo, etc., não fazem frente aos novos arranjos das castas (f) proprietárias e suas superestruturas, cada vez mais violentadoras das relações da natureza e das sociabilidades descapitalizadas.
A proposta deste texto parte das questões apontadas acima e indaga com quais teorias ou categorias de pensamento o ativismo, que age no e para o espaço, e que usa os instrumentos do campo do urbanismo e do planejamento urbano e territorial, pode fazer frente a essas transformações. O Direito à Cidade ou o direito ambiental, o planejamento ou as políticas de desenvolvimento e suas categorias moventes como campo, cidade, rural e urbano, zoneamento, área de preservação ou conservação entre outras, são ainda uma resposta? E o Brasil periferia (de acordo com sistema-mundo estruturado pelas instituições como o Banco Mundial, FMI, BID, ONU, entre outros), centro das disputas das relações da natureza, participa e/ou é impactado de que modo pelas infraestruturas e superestruturas do capitalismo cibernético (mediado pelas sociotecnopolíticas cibernéticas) imposto aos territórios sujeitados?
Intenta-se aqui formular uma reflexão – amparada na teoria da produção do espaço de Lefebvre – para os ativismos do campo ambiental e da cibernética e também para as práticas do campo do urbanismo e do planejamento urbano e regional ainda muito instrumentalizado por categorias de um tempo pretérito.
A produção do espaço
“A produção do espaço” (g), publicada no ano de 1974 por Henri Lefebvre, é uma teoria crítica marxiana que descreve como os campos da arquitetura, do urbanismo e do planejamento urbano moderno, inspirados por diretrizes pretensamente universais da racionalidade funcionalista, prescreveram uma lógica de “homogeneidade-fragmentação-hierarquização” à organização do espaço. A concepção de projetos e planos por essa lógica tentava equilibrar, de um lado, [1] noções convencionais oriundas do humanismo liberal herdado do século XIX e de certo modo revisado pelas críticas
socialistas/comunistas (com o auge no maio de 1968) e, de outro, [2] as forças econômicas do capitalismo industrial, dependente do mercado imobiliário urbano para a reprodução biológica, da força de trabalho e das relações sociais necessárias ao seu desenvolvimento.
Essa lógica de organização espacial faz parte de longo processo da história ocidental, que separa “natureza” percebida como “coisa” e “inferior” da “cultura” como exclusiva ao “humano” e “superior”. No capitalismo, essa relação dominadora e controladora das castas humanas (masculinistas, brancas, eurocentradas) sobre as “coisas inferiores” passa por uma transformação. Saem da ordem da “natureza” e passam para a ordem da “cultura”, da “civilização”, e é este “progresso” que permite aos humanos o direito de produzir, como se deuses fossem, essas “coisas” e dispor destas como “mercadoria”. A terra, na ordem da natureza, é herança divina sem valor de troca; na ordem da cultura, é herança dos pactos civilizatórios patriarcais ocidentais – que permitem ao proprietário “a faculdade de usar, gozar e dispor a coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer injustamente a possua ou detenha (h), sendo esse um direito inviolável e sagrado no mundo ocidental (i).
Paulatinamente, as castas do capitalismo atribuíram às “coisas” do tempo e ao espaço, o valor de troca “justo” a elas, retirando o valor de uso dos assujeitados a elas, sejam humanos ou não humanos, vivos e não vivos. O espaço dominado e controlado pelos proprietários que se organizam pelo sistema capitalista transformou-se em produto infinitamente reprodutível e disponível para troca. Os ganhos, com poucos limites, desse capital que fica à disposição dos humanos das castas proprietárias aumentam seu poder de planejar a produção de suas “mercadorias”, impondo seus interesses privados às vidas terranas das cidades, do campo e dos biomas originários.
Lefebvre aponta que o marxismo, em sua estrita tradição, considera o espaço como base material a partir da qual se apoiam as relações de produção do capitalismo. Mas o autor demonstra que o espaço extrapola o debate sobre a condição “base-estrutura-superestrutura” porque, no capitalismo moderno, o espaço deixa de ser um “chão” em que a mercadoria é fabricada e passa a ser a própria mercadoria. Essa passagem histórica à produção do espaço está onde há uma articulação concomitante e imbricada de três dimensões: do percebido, concebido e vivido.
Esse tríplice arranjo ocorre dentro de uma relação dialética (j) entre o sujeito (individual ou coletivo) nas dimensões inseparáveis do:
- – Percebido: em que o sujeito [decifra, lê, percebe] o espaço através de uma relação dialética entre suas práticas cotidianas e a realidade tangível do espaço. A percepção do espaço se dá pela experiência que cada sujeito cria ao apropriar-se do mesmo e depende de um letramento sobre os códigos aí presentes. Exemplo: um europeu colonizador não consegue ler as sociabilidades humanas e não humanas da floresta e o indígena mais livre da colonização mal lê os códigos espaciais das cidades. Ambos não possuem o letramento necessário à percepção de cada território. O ativismo age quando modifica a condição de possibilidades de aquisição de letramento na dimensão do percebido.
- – Concebido: todo espaço tangível no presente capitalista foi anteriormente idealizado por um saber disciplinar, seja de cientistas, planejadores, urbanistas, tecnocratas, etc. que dominam as noções convencionadas para o desenho/desígnio do espaço (por exemplo: a lógica homogeneidade-fragmentação-hierarquização do planejamento moderno). Essa idealização, ou concepção, é ordenada pelos interesses privados das castas dominantes do capitalismo limitado apenas pelas condições mínimas necessárias à reprodução biológica da força de trabalho e das relações sociais necessárias à sua manutenção. No capitalismo os assujeitados, trabalhadores ou ativistas, não concebem o espaço – não por falta de predicados para idealizar, mas por falta de poder.
- – Vivido: a experiência cotidiana no espaço, a vida, acontece sob o domínio daquilo que foi anteriormente idealizado e depende do letramento dos códigos que permitem ler, ou perceber, o que foi concebido. Uma escola, uma rua, até mesmo uma floresta preservada, no capitalismo, só são vividos se o sujeito entende os códigos idealizados para esse espaço. Mas no vivido há a possibilidade de transformação daquilo que foi idealizado para o espaço, pela transdução dos códigos (pela transformação da natureza da informação que muda o código). O vivido (individual ou coletivo) é o campo de forças subjetivas em que os códigos dominantes são postos em xeque. É a dimensão em que as forças ativistas resistem ao concebido e transformam os códigos e o letramento do percebido.
A triplicidade percebido-concebido-vivido não é um modelo abstrato de espaço. É a apreensão concreta, pelo sujeito (individual e coletivo), de todo e qualquer espaço, no capitalismo. Ex: Toda escola tem [1] a dimensão do poder dominante que projeta as espacialidades necessárias ao educar, tem [2] a dimensão de um código entre professores e estudantes que permitem compreender o que foi projetado como sala de aula, pátio de recreio, diretoria e essas dão condições para que [3] a dimensão vivida das experiências de aprendizado aconteçam no espaço.
Entre várias questões levantadas nessa obra e em outras durante a década de 1980, Lefebvre já percebia a presença de um novo código capitalista sendo concebido (projetado e planejado). As pistas vinham de elementos que pareciam, à época, utopias tecnológicas concebidas no campo da eletrônica, da informática e de um emergente campo da cibernética. Uma outra natureza para as dimensões do espaço – criada pelo agenciamento sociotécnico de diferentes campos como o da comunicação, informação, engenharias, matemática, antropologia e psicologia – que à época não tinha a concretude que se faz hoje, presente. Há, agora, um outro espaço, e este coexiste com o espaço que antes era.
Cibernética: campo
A cibernética é um campo multi-inter-transdisciplinar e seu nome vem da publicação “Cybernetics: or the control and communication in the animal and the machine”, de 1948, escrita pelo matemático Norbert Wiener. No primeiro momento da cibernética, seus colaboradores (de vários campos científicos) buscavam criar condições para o controle e processamento de informações da relação entre a engenharia das máquinas, a fisiologia e a linguagem dos seres vivos. O nome cybernetics (do grego kubernetes) diz da ação de controlar o timão de um barco, mudando essa direção de acordo com as condições dos ventos e das águas, para alcançar o destino almejado. O sentido de controle também é dado pela correspondência entre kubernetes do grego e gubernator do latim para piloto, que deriva no português para a palavra governo – questão de fundo de todo o esforço das primeiras pesquisas deste campo de conhecimento (k). A regulação e o controle, para melhor governar, tem papel fundamental na conceituação da cibernética e em seu desenvolvimento.
A cibernética traz para o campo do planejamento o princípio do feedback (retorno), vindo da engenharia de controle e produção. Os retornos sistematizam adaptações aos projetos e planos e mudam a direção dos mesmos, desviando e reprogramando rotas para melhor alcançar as metas ou cenários desejados. Esse idealizar que permite mudanças de trajetórias após ser concebido, que busca equilibrar os acontecimentos a favor dos objetivos a serem alcançados ganha o nome de planejamento estratégico.
Além dessa noção de circularidade e readaptação pelo retorno de informação durante o processo de execução, outros princípios passam a ser amplamente debatidos entre diferentes campos. A entropia sai da física e passa a ser percebida como um princípio de desordem contido nos sistemas sociais, ecológicos. A homeostase sai da biologia e passa a ser estudada como um fenômeno da comunicação social entre os seres vivos. Essas diferentes relações de relações feitas entre diferentes campos em conjunto são descritas, genericamente, pelo termo complexidade. A cibernética, ao longo do tempo, passa a ser esse campo dos estudos inter-multi-transdisciplinares dos fenômenos complexos. Portanto, pode-se dizer que há uma primeira cibernética, que emerge do contexto entre guerras mundiais e que busca a redução da entropia de um sistema para manter o controle e a estabilidade, ou seja, o “equilíbrio”, a favor de uma gestão empresarial ou governo, e há a segunda cibernética, voltada para os estudos e objetos técnicos dos saberes multi-inter-transdisciplinares ligados aos fenômenos complexos.
Essas duas cibernéticas possuem trajetórias que se sobrepõem ou se afastam, a depender do contexto, mas a conexão intrínseca entre ambas se faz no sistema mundo ocidental, liderado pela governança dos Estados Unidos da América do Norte. Esse governo e fundações norte-americanas interessadas na ampliação das possibilidades econômicas e militares da cibernética financiaram inúmeras pesquisas desde os anos 1940. Desta gestão surgiram descobertas como a [1] análise de processos comunicativos – feitas pelo agenciamento da cibernética, psicologia, medicina e antropologia; [2] inteligência artificial – encontro das ciências cognitivas com as máquinas de processamento de informação; [3] a teoria dos jogos, central na transformação do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro, feita em conjunto pelas áreas da economia, ciência política e matemática computacional; também [4] a rede mundial de computadores criada por múltiplos saberes científicos agenciados em universidades pelo mundo, apropriada para defesa militar norte-americana nos anos 1960 e uso ampliado para todo o globo após os anos 1990 com a abertura para uso comercial. Estas, entre tantas outras invenções cibernéticas permitiram o crescimento exponencial do complexo econômico-industrial-financeiro-militar-acadêmico do sistema mundo ocidental norte-americano (l).
Atualmente, a cibernética não é mais percebida como um amplo campo de conhecimento. Seus desdobramentos parecem ter criado campos específicos como a robótica; as tecnologias da informação; a inteligência artificial; as terapias sistêmicas; ecologia profunda e filosofia ecossistêmica; a bioinformata ou biologia computacional; a bigdata e seus mecanismos de machine learning, de cibersegurança, etc. Entretanto, esses campos específicos só foram possíveis pela “virada cibernética” (m). Esta ensejou ao capital a condição de possibilidades para configurar uma nova natureza para o espaço, que por sua vez fez surgir sociabilidades imanentes a essa complexidade, incluindo aqui também as relações de resistência ao capital, feita por ativismos sociais cibernéticos. Tanto o capital como os ativismos reorganizaram suas condições para dominar ou resistir pela modulação do código das informações organizadas, ou conectadas, pela noção da rede. Mas a rede, por mais que hajam resistências, tem dono.
É justamente nessa fase da cibernética, onde o controle de dados mostra ser o principal elemento da implementação de estratégias do capital, que a Natureza passa a ser tratada não só como “coisa”, mas também como “dado”, e este também passa à condição de “mercadoria” a ser produzida. Às tecnociências cibernéticas (que são originadas desse campo) a serviço do capital global, interessam o componente informacional virtual dos espaços e de suas sociabilidades, humanas e não humanas. Seus impulsos subjetivos são medidos e analisados pelos bigdatas e isso performa o capitalismo pós-industrial, que se movimenta pelo controle dos códigos de informação: o capitalismo de plataforma, financeiro, cognitivo, da atenção, da vigilância, etc.
As implicações dessa fase do capitalismo que alia o capital, as tecnociências cibernéticas (que se originam desse campo) e as novas institucionalidades paraestatais mudaram o conceito de informação e, sobretudo, de espaço. As dimensões do percebido-concebido-vivido agora são todas permeadas por um substrato comum, a informação modulada pelas tecnociências cibernéticas. Essa é a matéria-prima básica e indispensável para valorização e reprodução do capital nos circuitos mundiais do capitalismo cibernético ocidental (origem do capitalismo de plataforma, financeiro, cognitivo, da atenção, da vigilância, etc., centralizado nas megacorporações norte-americanas). Este cibercapitalismo, no presente momento, é dependente do mercado de informações para a reprodução biológica, da força de trabalho e das relações sociais necessárias ao seu desenvolvimento, assim como o espaço o foi na era moderna.
Da produção à modulação do espaço
A produção do espaço teorizada na década de 1970 demonstra a centralidade do espaço na expansão do capitalismo ocidental. Tal sistema apoderou-se de terras pela colonização e fez o acúmulo de capital necessário à industrialização. As revoltas anticoloniais impuseram limites à dominação ocidental e a tensão pelo domínio e controle dos territórios entre os colonizadores imperialistas, acontecimento histórico de amplo conhecimento, culminaram nas guerras mundiais. A reconstrução do espaço das cidades arrasadas pela guerra foi o grande laboratório construtivo do planejamento de diretrizes modernas (zonear o habitar, trabalhar, circular, recrear para desenvolver a economia). O Estado, seu principal agente, justificava suas políticas de desenvolvimento pelo bem estar econômico e social e as diretrizes modernas tornaram um paradigma não só para as cidades centrais do sistema-mundo arrasadas pela guerra, mas também para as cidades das periferias. Os planos diretores urbanos e o planejamento integrado territorial e regional foram os principais dispositivos de produção do espaço moderno.
Entretanto, em poucas décadas, surgiram as críticas aos espaços concebidos por essa percepção reducionista da vida, vindas do cotidiano (dimensão do vivido). O ativismo foi fundamental na construção dessas críticas. O feminismo, negritude, ecologismo, decolonialidade, etc., organizaram os discursos contra o industrialismo capitalístico hegemônico e esses novos arranjos deveriam, por lógica, dar condição de possibilidades para a transformação das diretrizes dos espaços da “homogeneidade-fragmentação-hierarquização” moderna, mas não. Ao contrário, houve um avanço exponencial do sistema-mundo capitalístico, na medida em que os mercados se tornaram globais e financeirizados.
Tal se deu pela reorganização das castas, por meio de redes sociotécnicas cibernéticas. Enquanto os ativismos faziam as críticas à vida moderna e as castas propagandeavam contra as políticas de bem estar econômico e social; enquanto ocorria a luta discursiva entre castas e ativismos minoritários, mediada pelo Estado e por instituições supra-nacionais do sistema-mundo (Banco Mundial, FMI, BID, ONU, entre outros) como por exemplo na ECO-92 (n); enquanto o neoliberalismo passava a dar as diretrizes para a
produção dos espaços da “homogeneidade-fragmentação-hierarquização”, as redes sociotécnicas cibernéticas controladas pelas castas passaram a modular o espaço e transformar a natureza da Natureza, sem que os ativismos pelo espaço conseguissem perceber essa mudança pela falta de acesso às tecnologias cibernéticas e de conhecimento sobre as modulações. Chegaremos lá.
Nas cidades, surgiram as parcerias público-privadas (recursos públicos e lucros privatizados, em sua grande parte) com as obras de renovação, revitalização e requalificação que faziam uso de estéticas pós-modernas que permitiram criar “novas” imagens para velhos espaços. No campo, e nas áreas de preservação, acontecia o declínio das ações do planejamento regional integrado na égide “homogeneidade-fragmentação-hierarquização” moderna, e uma ocupação desenvolvimentista que claramente favorecia os grandes grileiros e proprietários de terras – fazendo do mundo rural e das áreas preservadas, herdadas de tempos pretéritos, um recurso infinito e contínuo de troca financeira.
No Brasil, as regularizações fundiárias de terras griladas no campo e nas áreas de conservação e preservação; as isenções fiscais e outros benefícios legais para atrair indústrias de grande potencial poluidor em países do Sul Global; os financiamentos ao agronegócio; as renovações, requalificações, revitalizações “consensuadas” nas cidades feitas pelos técnicos do desenho e do marketing urbano no planejamento estratégico; as mega-obras para os mega-eventos das Olimpíadas e Copa do Mundo – todas essas ações fazem parte dessa readequação do capitalismo que aprendia a produzir “novos” espaços em territórios pretéritos. A produção do espaço deixava de ser a reforma civilizatória dos primeiros urbanismos, e passava a ser a constante renovação do espaço feita para a geração do lucro para os capitais, que financiam essa indústria a juros altos. Uma mercadoria de reprodução infinita, mesmo.
Mas no território dos espaços tangíveis, na materialidade da dimensão do vivido, a vida resiste e re-existe. As sociabilidades e seus ativismos, na medida que percebiam a ação de morte das forças dessa reprodução especulativa e infinita do capital, se reorganizavam e demandavam que seu direito à vida fosse respeitado. Os movimentos sociais urbanos e rurais; os movimentos socioambientais; a sociedade civil organizada; as associações de moradores; as sociedades indígenas e quilombolas sempre resistiram, e resistem, à dimensão privatizadora do que é concebido pelo capital, aliado ao Estado.
Talvez, a força dessas resistências à privatização da vida, para enriquecer as castas no espaço tangível, aceleraram a hibridação do tangível com o digital feito pelas tecnociências cibernéticas. A emergência do espaço cibernético – essa nova fronteira de expansão do capital – deu-se pela necessidade das castas resistirem às lutas na dimensão do vivido e de se reorganizarem, desterritorizalizando a produção de mercadorias de suas nacionalidades e reterritorizalizando o controle dessa produção por meio de uma eficiente rede mundial de trocas de informação e de recursos financeiros.
A disrupção aconteceu quando essa que era para ser uma rede de controle da comunicação de dados tornou-se espaço. O espaço cibernético emergiu no momento em que as redes de comunicação social, ou redes sociais, estabeleceram sociabilidades específicas, que apenas existem neste ambiente. Esta é uma outra natureza de espaço, ou outro espaço da Natureza, que guardam as mesmas dimensões do percebido-concebido-vivido dos espaços tangíveis do capitalismo. E, além, podemos ultrapassar as categorias lefebvrianas e criar paralelos com as relações ecológicas particulares da Natureza. O bioma é uma palavra de origem grega e diz de um ecossistema (Bio = vida + Oma = grupo ou massa) que necessita da atualização constante, em largas temporalidades, de saberes originais e padronizados para existir. Podemos criar a palavra ciberoma para percebermos sistemas originais e padronizados no ciberespaço (Ciber = cibernético + Oma = grupo ou massa) que também necessitam de atualização constante para existir, mas no ciberespaço contemporâneo estas ocorrem em curtas temporalidades, por meio de saberes hodiernos e disruptivos.
Essas palavras auxiliam na formulação de questões e ações para o ativismo dos e nos espaços contemporâneos. O ciberespaço também é uma mercadoria infinitamente extensível, mas se a natureza antes era tangível, agora ela é cibernética – sua sociotécnica, seus meios de produção e sua relação com o espaço tangível são diferentes e carregados de características muito específicas dada a hibridação com o digital. Por isso, para diferenciar essa inflexão histórica do surgimento dessa outra natureza de espaço, dizemos que espaço não é mais apenas produzido, mas também modulado. A modulação é uma operação de controle da comunicação por meio do processamento de informações e sinais (dados) direcionados a muitos usuários – ao mesmo tempo. É como uma única música tocada em um único espaço que controla as percepções e seus processos de subjetivação, sendo que esse espaço comporta ao mesmo tempo, milhões de usuários que existem e agem em ciberomas específicos com sociabilidades específicas que também impactam nos biomas e suas sociabilidades.
Tomamos esse nome para categorizar um novo modo de determinar o espaço, mediado pelas tecnociências cibernéticas e concebido pelos novos arranjos do cibercapitalismo. Os “dados” são a nova “mercadoria”, e sua feitura é realizada pela captura da atenção, direcionada por operações de controle que processam dezenas de zettabytes de informações ao ano, modulando os interesses da atenção dos usuários por meio de uma única “música”, aquela da preferência das castas proprietárias dos datacenters, ou seja, dos “meios de produção”, bem como colocado pela teoria marxista. Os datacenters são conjuntos técnicos que fazem a mediação entre trabalho humano e a natureza e, neste processo fazem a transformação de todas as relações de relações entre vivos e não vivos no espaço, isto é, transformam a natureza em si.
Comparando, a modulação no cibercapitalismo está para a produção no capitalismo. Os “modos de produção” dos que detém os “meios de produção” que produziam economicamente a expansão capitalista pela reprodução infinita dos espaços tangíveis, agora no cibercapitalismo, modulam dados pela captura cognitiva da atenção, e realizam a expansão do capital pela modulação do espaço nas dimensões inseparáveis do:
(4) – Percebido: em que os sujeitos já tem o letramento digital para mover suas práticas cotidianas em dobra (o) tanto na realidade tangível com cibernética do espaço. Ex.: aplicativos guiam a mobilidade dos sujeitos pelas ruas do planeta que sabem interpretar os dados coletados e modulados pelos datacenters. Quem modula as sociabilidades dos motoristas pelo mundo não são mais os costumes locais, mas as análises algorítmicas dos provedores acessados pelas plataformas dos aplicativos como o israelense Waze;
(5) – Concebido: o ciberespaço é totalmente idealizado por saberes disciplinares que dominam as noções convencionadas das ciências dos dados para o desenho/desígnio do espaço em dobra (do tangível e cibernético), por exemplo: a lógica homogeneidade-fragmentação-hierarquização do planejamento moderno. A concepção continua sendo ordenada pelos interesses privados das castas dominantes, agora do cibercapitalismo, limitado apenas pelas condições cada vez mais precarizadas da reprodução biológica da força de trabalho e das relações sociais necessárias à sua manutenção. Se no capitalismo os assujeitados, trabalhadores ou ativistas, não concebiam o espaço por falta de poder, essa assujeição aumentou exponencialmente Ex: as sociabilidades em dobra dos motoristas que trabalham com entregas movidas por aplicativos e que não tem condições de negociação de trabalho com os cibercapitalistas.
(6) – Vivido: a experiência cotidiana deste espaço em dobra é constantemente atualizada pelo letramento dos códigos digitalizados e dataficados. Esta atualização permite a relação dos usuários com o concebido pelas sociotécnicas cibernéticas e interesses do cibercapitalismo (plataformização, financeirização, datatificação, digitalização, etc., são aspectos desta reconfiguração do capitalismo). Mesmo os não usuários deste novo sistema-mundo são afetados pelo sistema, seja pela interconexão das relações, seja pela transformação da natureza em si. Ex: a captura de dados na compra do remédio na farmácia por idosos que nem mesmo utilizam smartphones e que são vendidos para golpistas ou satélites controlados por garimpeiros que mapeiam as movimentações de sociedades indígenas que resistem ao desmatamento e às queimadas no norte do Brasil, que por sua vez fazem chover cinzas em São Paulo. É nesta dimensão que as forças ativistas mais perdem força de ação nesta nova configuração espacial, por falta de uma sociabilidade ativista letrada o suficiente para agir, ao mesmo tempo, nos espaços tangíveis como no ciberspaço. Lutar hoje é poder resistir às capturas da atenção para os interesses das castas proprietárias, nestas duas espacialidades ao mesmo tempo (porém ou o ativismo está nos territórios dos espaços tangíveis ou está no ciberespaço). A triplicidade percebido-concebido-vivido é a apreensão concreta, mas duplamente articulada das duas espacialidades.
Na era histórica do ciberespaço modulado pelo cibercapitalismo, a primeira característica, talvez a de maior impacto para os ativismos, é a dificuldade de organização social nos territórios dos espaços tangíveis, no nível da informação, pelo baixo letramento dos códigos de programação dos dados requeridos para o acesso à modulação do espaço digital. O resistir precisa ser feito tanto no território tangível como nos ciberterritórios. As sociabilidades de ribeirinhos, povos das florestas, quilombolas, periféricos, e por que também não dizer, as de urbanistas e planejadores urbanos, precisam aprender a programar o código das suas pautas – do mesmo modo que precisaram ganhar o letramento das técnicas do “direto a”, precisam agora ganhar as técnicas do programar.
Mas, os dados e o capital que os controla e que criam robôs, inteligências artificiais, terapias sistêmicas desenvolvidas pelas neurociências baseada em informação coletada pela biologia computacional, isto é, os “meios de produção” deste novo espaço, não são acessíveis aos programadores ativistas. Estes são, entre outros, os novos instrumentos de dominação e expansão do espaço e estes recursos não estão disponíveis à maioria dos corpos (individuais e coletivos) das sociabilidades urbanas ou rurais presentes nos territórios.
Apenas uma pequena minoria privilegiada domina os códigos de informação dessas modalidades do capitalismo “cibernético” – e, cabe reforçar, isso inclui grande parte do campo técnico do urbanismo e do planejamento urbano e regional, ainda formados pelos conhecimentos técnicos pré-cibernéticos. O domínio das tecnociências cibernéticas atualizam, no espaço digital, as transformações das dimensões do percebido-concebido-vivido. Os avatares, os pix, os logins dos apps são os novos corpos digitais (individuais e coletivos) hibridados com os corpos (individuais ou coletivos) no espaço tangível, e todas as dimensões do espaço são agora duplamente ligadas, o corpo tangível é digital, e vice-versa. Somos, agora, todos ciborgues (p) e estamos evoluindo como uma biomáquina (individual e coletiva).
O espaço cibernético é a nova fronteira e a modulação é o novo modo de produzir esse espaço híbrido. Não há mais como pensar o espaço digital apenas como um sistema de informação e comunicação. Socializamos este (e neste) espaço concebido, trazendo para este as dimensões do percebido e do vivido. Se Lefebvre cria o rural e urbano como dimensões da sociabilidade do campo e da cidade, podemos dizer que há uma nova sociabilidade ciborgue, dos corpos biomaquínicos, intimamente ligados aos dispositivos cibernéticos – prótese ligada aos softwares; implantes para biosegurança; libido conectado a redes sociais, etc.
A modulação dos espaços concebida com as tecnologias advindas da cibernética é a matéria-prima básica e indispensável para a expansão e a reprodução do capital nos circuitos mundiais do atual capitalismo, e este fenômeno tende a expandir para além do controle e domínio do complexo econômico-industrial-financeiro-militar-acadêmico do sistema mundo ocidental norte-americano. Outros países parecem modular seus espaços, disputando o controle e domínio ocidental e, neste sistema mundo de poder multipolar, o Brasil participa de modo muito periférico. Esta é a questão espacial no Brasil contemporâneo, seja nas cidades, nos campos ou nos biomas tradicionais e originários. Esse é o problema do ativismo e do campo técnico que pretende organizar os desígnios para o espaço. Estamos sendo novamente colonizados pela incapacidade de atuar espacialmente nas dimensões do espaço cibernético, essa nova realidade concreta, global e local.
O ativismo em tempos de modulação do espaço e colapso ambiental
As castas capitalistas sempre procuraram meios de escapar aos limites impostos pelas lutas dos que a elas são submetidos. Tanto nas reivindicações por direitos, como nas revoltas ou revoluções, o capital sempre fez surgir sociotécnicas com capacidade de pacificar as demandas populares, seja pela violência ou pela sedução. Resistir aprendendo a programar o ciberespaço é necessário, principalmente no que tange as reivindicações do campo do “direito a”, mas, sabemos que outras sociotécnicas serão concebidas e sustentadas pelos interesses das castas para fazer frente a qualquer modo de organização popular.
Entretanto, um limite maior do que o conjunto de todas as lutas sociais está sendo imposto a elas, e este é o colapso ambiental criado pela crise climática – consequência do sistema colonizador e expansionista do espaço. Podemos afirmar, por essa premissa, que o grande limitador da ação das castas não são as lutas sociais em si, mas sim, sua própria cosmovisão e ação. Suas sociotécnicas cibernéticas (como as redes sociais, a realidade aumentada, a cibersegurança, a internet das coisas, o biohacking, ciborguismo etc.) intentam superar tanto os limites das condições biológicas e sociais de reprodução das forças de trabalho como os limites impostos pela mudança climática da Natureza (relação de relações entre vivos e não vivos no espaço), mas a distopia deste sistema-mundo é tão avassaladora que a própria existência das castas está em risco (infelizmente o risco não se limita a elas, todos são impactados e quem mais sofre são os pobres).
Na década de 1990, marco nos debates sobre o clima com a publicação do primeiro relatório científico do IPCC (q), ainda havia uma compreensão de que as mudanças
climáticas seriam benéficas para as castas e seus territórios privilegiados, localizados nos países do Norte Global. O aquecimento contribuiria para a agricultura e para o turismo, por exemplo. Entretanto, o que vemos é que a quebra de padrões climáticos estabelecidos ao longo dos últimos 20 mil anos desestrutura o domínio e o controle de qualquer atividade econômica planejada. A base de qualquer governo é esse controle planejado dos fatos da Natureza, dominado por humanos, esse é o fundamento da dimensão do concebido, e pilar dos instrumentos de poder e de organização social desde o advento da agricultura.
Todos os sistemas de autoridade das sociedades que planejam a vida em seus sistemas-mundo o fazem a partir da regularidade e previsibilidade dos padrões da Natureza. Seja na agricultura ou no abastecimento de água urbano, sem os padrões de previsibilidade das relações de relações entre vivos e não vivos estabelecidas nos últimos milênios, não há planejamento econômico, ou desenvolvimento, possível. Impostos, negociação de dívidas, vendas de commodities, seguros ou qualquer instrumento de aquisição de valor futuro perde sentido sem os padrões de regularidade longamente construídos pela Natureza.
Sem esses padrões, nem o Norte e nem o Sul Global poderão prever as condições das forças que interferem no clima, como: a temperatura, a umidade, a radiação ou mesmo a pressão atmosférica. A própria noção de domínio e controle dos sistemas de autoridade, sem a previsibilidade da Natureza, perde sentido. A desconexão do planejamento, ou seja, da dimensão do concebido com a Natureza, ficou evidente no relatório do IPCC (r) de 2022. Trinta e dois anos após o primeiro relatório as emissões nocivas de carbono de 2010-2019 foram as mais altas na história da humanidade, com aumentos de emissões registrados “em todos os principais setores do mundo”: 9,1 bilhões de toneladas a mais do que na década anterior.
A modulação é o único modo de reverter a negação que impede que aquilo que já se sabe, há três décadas, seja percebido e transformado nas dimensões do concebido-percebido-vivido do espaço. Por isso, a disputa das narrativas é cada vez mais importante, porque é na dimensão das percepções que a luta de classes e os ativismos são feitos no cibercapitalismo. E as narrativas em disputa estão, predominantemente, sendo sociabilizadas no ciberespaço. Portanto, as lutas precisam estar articuladas entre o
tangível e o cibernético e serem moduladas pelos interesses populares, ecologistas, etc.. Solicitar um diagnóstico de impacto ambiental só é relevante se houver junto um diagnóstico de impacto cibernético, e isso para qualquer ação concebida seja na implantação de uma escola, de um parque industrial ou mesmo da permissão de funcionamento de um aplicativo. Os impactos cibernéticos são impactos ambientais e sociais porque esta é, também, a natureza deste novo espaço.
É preciso atentar para as disputas narrativas das castas ocidentais, principalmente para os enunciados e as ações voltadas para a proteção ambiental que descolam as sociotécnicas cibernéticas da acelerada degradação ambiental dos espaços tangíveis. Quanto mais organizado são os discursos da Natureza modulados pelas castas (ex: A ONU discursando sobre sustentabilidade, energias renováveis, etc.) maior é a degradação da relação de relações entre os entes vivos e não vivos da Natureza. Este é um dado e não um discurso ideológico. É preciso correlacionar essas duas ações, não como um paradoxo, mas como um par de ação e reação.
É preciso apreciar, divulgar, vivenciar as percepções e narrativas dos socioambientalistas e dos contracolonialistas, principalmente para os enunciados e as ações voltadas para a proteção ambiental que sentem na pele os impactos das sociotécnicas cibernéticas em seus territórios. Os sistemas mundo desses sujeitos não são da ordem do concebido, planejado, e sim, são da ordem da relação de relações entre vivos e não vivos, estão mais próximos à Natureza.

Gráfico 1 (s) – Representa as emissões de CO2 em relação aos marcos do discurso ambiental e da cibernética
Conclusão
A modulação do espaço é uma atualização do conceito da produção do espaço de Henri Lefevre. Ambos tratam do modo de perceber a Natureza enquanto uma coisa a ser apropriada e transformada em mercadoria, infinitamente, pelo capitalismo. A diferença é que no contemporâneo, o espaço tangível é, também, cibernético. Ambos possuem dimensões do percebido-concebido-vivido, com Naturezas (relações de tempo e espaço) distintas, mas imbricadas, em dobra.
Os dispositivos de controle e domínio cibernéticos sobrepujam qualquer organização das resistências territorializadas nos espaços tangíveis e sempre torna exponencial o ritmo de escravização da Natureza e seus entes porque para os ativismos do e no espaço e para os urbanistas e planejadores, o espaço cibernético ainda não é percebido como espaço, e sim como um sistema de informação e comunicação. Apoiar as narrativas ambientais concebidas e moduladas pelas castas capitalistas é impactar os espaços tangíveis e acelerar sua destruição, em escala exponencial. Este não é um paradoxo, mas uma constatação dada pelos fatos. As narrativas das castas modulam mononaturezas, monoculturas. As próprias castas, para sua sobrevivência, precisam aprender a conceber (projetar e planejar) a proteção ambiental com e neste espaço cibernético, mas não pelas narrativas “dos selos verdes” e dos empreendimentos “sustentáveis” e sim, pelos cosmoperceberes (t) dos sujeitos imbricados na vivência dos territórios que preservaram grande biodiversidade, isto é, de maior complexidade de relação de relações entre vivos e não vivos.
Os ativismos que lutam pela biodiversidade da vida e o campo do urbanismo e o planejamento urbano a esses aliado precisam atualizar suas narrativas, seus instrumentos de ação e seus objetos técnicos, imbricando os cosmoperceberes biodiversos em ambos espaços e de modo articulado. O futuro é ancestral, em ambos os espaços, do ativismo tangível e do cibernético. Um é o outro, e vice-versa. É preciso aquilombar de modo imbricado, nos espaços tangíveis e nos cibernéticos, e reinventar um ativismo ancestral brasileiro, como anunciado por Beatriz Nascimento (u): “aquilombar-se é o movimento de buscar o quilombo, formar o quilombo, tornar-se quilombo”. Ou seja, aquilombar-se é o ato de assumir uma posição de resistência contra-hegemônica a partir de um corpo político conectado a futuros pluriversais, construídos pela afetividade e acolhimento entre diferentes, isto é, é inventar novas sociabilidades de pertencimento entre vivos e não vivos, mesmo que no estranhamento, e aprender a despertencer ao conforto do “povo da mercadoria”.
Fecho o texto com as palavras de mestre Gilberto Gil, na canção “Cibernética”, como se essas palavras uma prece fosse: “ Mas será quando a ciência/ Estiver livre do poder/ A consciência, livre do saber/ E a paciência, morta de esperar/ Aí então tudo todo o tempo/ Será dado e dedicado a Deus/ E a César dar adeus às armas caberá/ Que a luta pela acumulação de bens materiais/ Já não será preciso continuar/ Onde lia-se alfândega leia-se pândega/ Onde lia-se lei leia-se lá-lá-lá”
E… Viva a Vida! Lá-lá-lá…
Notas:
a. Immanuel Wallerstein. A análise dos sistemas-mundo como movimento do saber. In: Pedro Antonio Vieira; Rosângela de Lima Vieira & Felipe Amin Filomeno (org.). O Brasil e o capitalismo histórico: passado e presente na análise dos sistemas-mundo. São Paulo: Cultura Acadêmica Ed., pp.17-28. 2012.
b. Michel Foucault. As Palavras e as Coisas. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
c. Felix Guattari, F. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981
d. Humberto Maturana. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.
e. Karl Marx. O Capital. vol. 1, tomo I. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
f. Isabel Wilkerson. Casta: as origens de nosso mal estar. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2021. 580 p. [ebook]
g. Henri Lefebvre. La producción del espacio. Madrid: Capitán Swing, 2013.
h. Brasil. Art. 1.228 do Código Civil (2002). Código civil brasileiro e legislação correlata. – 2. ed. – Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2008.
i. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789. Universidade de São Paulo: Biblioteca Virtual de Direitos Humanos, 2015.
j. A lógica dialética diferencia da lógica formal por incorporar a contradição e a negação à síntese da totalidade de um fenômeno.
k. Joon Ho Kim. Cibernética, ciborgues e ciberespaço: notas sobre a origem da cibernética e sua reinvenção cultural. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 10, n. 21, p.199-210, jan./jun. 2004.
l. Marcelo Sávio Revoredo Menezes de Carvalho. 2006. A trajetória da internet no Brasil: do surgimento das redes de computadores à instituição dos mecanismos de governança. 239 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro.
m. Laymert Garcia dos Santos. 2003. A informação após a virada cibernética. In: Laymert Garcia dos Santos; Maria Rita Kehl; Bernardo Kucinski; Walter Pinheiro. Revolução tecnológica, internet e socialismo. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, pp.9-33.
n. A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento foi evento ocorrido no Rio de Janeiro, em 1992, conhecida como ECO-92. Foi a segunda grande reunião das Nações Unidas sobre o meio ambiente e reuniu 178 Estados-nação.
o. A dobra é um conceito criado por Deleuze através de Leibniz que o cria a partir da instabilidade expressiva do Barroco. Aponta para uma ordem que vai do micro ao macro e volta, que vai do ponto ao infinito e volta, infinitamente” O barroco remete não a uma essência, mas sobretudo a uma função operatória, a um traço. Não pára de fazer dobras. Ele não inventou essa coisa: há todas as dobras vindas do Oriente, dobras gregas, romanas, góticas, clássicas… Mas ele curva e recurva as dobras, leva-as ao infinito, dobra sobre dobra, dobra conforme dobra. O traço do barroco é a dobra que vai ao infinito. Ver em: Gilles Deleuze. A dobra: Leibniz e o Barroco. Campinas, SP: Papirus, 1991.
p. Donna Haraway. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do sec XX in: Tomaz Tadeu (org) Antropologia ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora, 2009.
q. Painel Intergovernamental para a Mudança de Clima, entidade criada em 1988, pela Organização Meteorológica Mundial e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
r. IPCC AR6 WG3 Summary for Policymakers. Link em https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg3/downloads/report/IPCC_AR6_WGIII_SummaryForPolicymakers.pdf
s. Gráfico representando as emissões de CO2 em relação aos marcos do discurso ambiental e da cibernética. (elaborado a partir de gráfico disponível em: <https://climate.nasa.gov/news/3020/how-much-carbondioxide-are-we-emitting/> Acesso em: 14 de dez. de 2022.) Autores: PORTELA, T.B.. BRAGA, G.L.C. NASCIMENTO, F. A. de B.. Disponível em: https://anpur.org.br/anais-xxenanpur/sessoes-tematicas-sts/ Acesso em: 25 de nov. de 2023
t. O conceito de cosmologias pode ser amplo. Diferente da imagem que parte de uma relação intrínseca com uma predominância dos sentidos visuais e que permite construir a cosmologia como se apenas cosmovisão fosse, o imaginário amplia os sentidos do mundo para além das convenções padronizadas do olhar perspectivístico ocidental e abre o corpo para outras cosmologias ou, como chama Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, outras cosmopercepções. Essas últimas podem criar modos contra-coloniais de imaginar o espaço, re-emaranhando o urbano, o rural e os biomas originários separados pela dicotomia ocidental moderna do patrimônio da Natureza para conservar e preservar de um lado e a propriedade dos zoneamentos urbanos e rurais para desenvolver. Um modo não ocidentalizado, que ainda percebe o linear e a velocidade em direção a um futuro como paradigma para o desenvolvimento, um pensar contracolonial pode ser imaginado a partir do “fazer curva”, em ações de resistência que não batem de frente, que cria o contra-hegemônico não violento, ou menos violento. Ver em: Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí. Visualizing the Body: Western Theories and African Subjects in: Peter H. Coetzee; Abraham P.J. Roux (eds). The African Philosophy Reader. New York: Routledge, 2002, p. 391-415.
u. Beatriz Nascimento. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In: RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. SP: Instituto Kuanza, 2006, p. 117-125
TEXTO
Thais de Bhanthumchinda Portela
Professora do programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (PPGAU\UFBA) e integrante do Grupo de Pesquisa CIPOs.
publicado em
- 29/10/2024
Temas
O espaço cibernético é a nova fronteira e a modulação é o novo modo de produzir esse espaço híbrido. Não há mais como pensar o espaço digital apenas como um sistema de informação e comunicação. Socializamos este (e neste) espaço concebido, trazendo para este as dimensões do percebido e do vivido.

- Regulação das Plataformas de Mídia Social: Uma medida crucial envolve a regulação das plataformas de mídia social, que frequentemente são catalisadoras da disseminação da desinformação em massa. As autoridades regulatórias devem implementar medidas rigorosas para conter a propagação de informações enganosas. Isso inclui a transparência das políticas de moderação de conteúdo, a remoção de conteúdo falso e a responsabilização das plataformas por danos causados pela desinformação.
- Valorização da Cadeia de Produção de Informação em Contextos de Desertos de Notícias: Em áreas com escassa cobertura midiática, é essencial valorizar e apoiar a produção local de informações. Isso inclui o fortalecimento de veículos de comunicação independentes e a capacitação de jornalistas locais para cobrir questões climáticas e socioambientais.
- Diversidade de Vozes: Promover a diversidade de vozes e perspectivas na discussão das mudanças climáticas e questões ambientais é crucial. Isso inclui dar voz a comunidades afetadas desproporcionalmente por esses problemas, como povos indígenas, comunidades tradicionais e grupos vulnerabilizados em territórios de contextos urbanos periféricos. Pesquisadores podem apoiar a amplificação dessas vozes e histórias.
- Justiça Climática e anti-racismo: A luta contra a desinformação ambiental deve estar ligada à promoção da justiça climática e equidade racial. Isso implica em abordar as disparidades socioeconômicas e raciais em relação às mudanças climáticas e garantir soluções equitativas. Pesquisadores podem contribuir com análises sobre essas disparidades, inclusive na pesquisa em comunicação, enquanto a sociedade civil pode fazer campanhas para pressionar os tomadores de decisão.
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O direito de protesto e a importância da advocacia popular no acompanhamento de atos de rua
O direito de protesto e a importância da advocacia popular no acompanhamento de atos de rua
A advocacia popular se faz urgente em uma realidade na qual o direito à manifestação está em risco com o aprofundamento do autoritarismo, de restrições dos espaços de participação social e com o avanço do neoliberalismo.

Os últimos dez anos marcaram a forma de pensar o direito de protesto no Brasil. Primeiro, pela inovação no repertório das mobilizações sociais – táticas e formas de organização – que se deu em parte pelo aprendizado e inserção de junho de 2013 no ciclo global de protestos, cujas origens remontam aos protestos antiglobalização (Seattle 1999) e à Primavera Árabe (2011), mas também pela renovação e o fortalecimento das formas organizativas ou mesmo de estratégias já assentadas nas lutas sociais, especialmente na América do Sul, como bloqueios de vias de tráfego de veículos e ocupações de prédios públicos, por exemplo.
E, segundo, diante das inovações descritas, também observamos atualizações e sofisticações nas formas de vigilância, controle e repressão das lutas sociais, sejam elas organizadas nas ruas, nas redes sociais, em ambientes urbanos ou não. Além disso, vimos os poderes Executivo, Legislativo e o Sistema de Justiça atuarem de forma atentatória à garantia do direito de protesto. Das chamadas jornadas de junho de 2013 até aqui, seja por meio de projetos de lei, seja por decisões judiciais restritivas ou por decretos, somaram-se à repressão policial inúmeras tentativas de suplantar os pilares constitucionais do exercício do direito de protesto, previstos no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, a saber:
- 1. A liberdade de expressão: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.”
- 2. A liberdade de reunião: “Todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.”
- 3. A liberdade de associação: “É plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar.”
É fundamental observar que o contexto dos processos de criminalização e da intensificação de outros mecanismos de controle da mobilização social está intrinsecamente ligado a um cenário de aprofundamento do autoritarismo, de restrições dos espaços de participação social e do avanço do neoliberalismo, onde não só as garantias fundamentais têm sido atacadas, mas também as instituições têm sido enfraquecidas e a luta por direitos sociais e o combate a desigualdade intensamente minadas. Embora a repressão a manifestações populares, e sobretudo, a violência policial no Brasil date desde muito antes de 2013, as jornadas de junho e seus desdobramentos nos anos que se seguiram tornaram-se um marco para os estudos de controle de protesto, sobretudo pela massificação das manifestações sociais e a brutalidade das repressões. Ainda, Junho de 2013 também passou a ser um marco para compreender como o Estado tem respondido às demandas por implementação e aprofundamento de direitos sociais.
Em Junho de 2013, o uso indiscriminado dos chamados armamentos menos letais (1), como balas de borracha, spray de pimenta e bombas de gás e efeito moral, e também o de armas de fogo no contexto dos protestos, foram responsáveis por cenas de violência que marcaram o imaginário e os corpos dos manifestantes, de comunicadores e jornalistas, além de advogados e defensores de direitos humanos que acompanham as manifestações. Nos anos que seguiram, o uso desses armamentos, em especial da munição de elastômero (bala de borracha) continuou vitimando manifestantes, transeuntes, jornalistas, entre outros atores presentes ou nos arredores das manifestações. Muitos destes tiveram ferimentos permanentes e incapacitantes como o fotojornalista Sergio Silva, que perdeu a visão de um dos olhos após ser atingido por um disparo feito pela Polícia Militar de São Paulo, durante seu trabalho cobrindo uma manifestação em junho de 2013, e também os transeuntes Lucas Matheus Cavalcante Abreu, 13 anos, atingido quando estava no comércio de seus pais durante manifestação contra o apagão de grandes proporções que ocorreu no Amapá (2020), e Daniel Campelo da Silva, 51 anos, e Jonas Correia de França, 29 anos, atingidos por disparos de balas de borracha durante os protestos que ocorreram em Recife em 29 de maio de 2021.
Repressão e criminalização dos protestos
Durante os últimos 10 anos, a repressão aos protestos continua sendo um problema para o exercício da liberdade de expressão, mas aqui nos parece importante apontar também a proliferação de projetos de lei que visam restringir o direito de protesto, trazendo sérios riscos às lutas sociais. Dentre muitos, merecem destaque aqueles que buscaram atualizar a Lei 13.260/2016, a Lei Antiterrorismo – sancionada no contexto das grandes manifestações sociais que ocorreram em junho de 2013, mas que seguiram durante a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. A tendência geral das propostas é de recrudescimento e expansão penal, ampliando o espaço para a arbitrariedade e a criminalização de manifestações políticas e da atuação dos movimentos sociais.
Dois exemplos desse fenômeno são os Projetos de Lei 272/2016, proposto pelo então senador Lasier Martins (Podemos-RS) e o Projeto de Lei 1595/2019 de autoria do então deputado federal Major Vitor Hugo (PL-GO). O primeiro foi uma tentativa de enquadrar no tipo penal de terrorismo atos já previstos nos tipos penais de dano (2), perigo comum (3) e incêndio (4), quando cometidos por “motivação política ou ideológica” ou com o objetivo de coagir autoridade pública a fazer ou deixar de fazer algo. A modificação ampliaria o escopo da lei de maneira tal que, se comprovada a motivação política, ela poderia incidir igualmente sobre o ato de incendiar e implodir um edifício habitado através da colisão dolosa de uma aeronave tripulada contra ele (como o trágico exemplo do atentado contra as Torres Gêmeas, nos Estados Unidos em 2001), e sobre o ato de incendiar uma lixeira numa manifestação popular.
Outro ponto crítico é a tipificação da “apologia ao terrorismo”, onde também se constata a desnecessidade frente ao já existente tipo penal de apologia de fato criminoso (5), o potencial para a aplicação arbitrária e a desproporcionalidade das penas cominadas. As proposições amplas e pouco precisas do projeto poderiam, potencialmente, resultar na arbitrária violação de direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e de reunião. Pode-se questionar, por exemplo, em que exatamente consiste a “apologia ao terrorismo”, uma vez que o próprio conceito de terrorismo tipificado é demasiado amplo (6). A medida e a definição da linha entre apologia, neste caso, e a manifestação legítima de opiniões é tênue e só poderá ser verdadeiramente delimitada por ocasião da aplicação da norma (7).
Já o projeto do ex-deputado Major Vitor Hugo é uma evidente afronta ao princípio da taxatividade da lei penal (8), pois busca ampliar indefinidamente o rol de atos terroristas ao estabelecer que as disposições da lei podem ser aplicadas para reprimir qualquer ato que “seja perigoso para a vida humana ou potencialmente destrutivo em relação a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave” ou que “aparente ter a intenção de intimidar ou coagir a população civil ou de afetar a definição de políticas públicas por meio de intimidação, coerção, destruição em massa, assassinatos, sequestros ou qualquer outra forma de violência”. Além de empregar expressões vagas e indeterminadas e criminalizar atos preparatórios, a lei estabelece que ações contraterroristas sejam enquadradas dentro das hipóteses de excludentes de ilicitude, oferecendo amparo legal, portanto, para quaisquer atos ilícitos que venham a ser cometidos durante as ações de repressão. A amplitude da definição do ato terrorista e, consequentemente, de ação contraterrorismo, é tão grande que abre margem para interferência policial indiscriminada em todos os atos da vida civil. Ainda, o projeto propõe através da criação do Sistema Nacional Contraterrorista e da Política Nacional Contraterrorista, ambos submetidos ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI), a criação de uma polícia política e secreta, que poderia coordenar o emprego das forças militares e policiais, mobilizar qualquer servidor público e cidadão e coordenar unidades de inteligência para apoiar intervenções e fornecer informações para atuação secreta das forças policiais e militares em caso de estado de defesa ou de sítio. A polícia política subordinada ao Presidente daria a ele o amplo acesso a informações privilegiadas e dados privados de toda a população, representando uma superestrutura de vigilância e infiltração nas organizações sociais e políticas (9).
Projetos orientados nesse sentido, a truculência das forças de segurança, as tentativas de silenciamento pelo judiciário e legislativo e mesmo as violências empregadas por agentes privados são amostras dos grandes desafios que enfrentamos e continuaremos enfrentando nos “próximos junhos” – estes sempre bem-vindos. Portanto, nós, organizações da sociedade civil que lutam pela liberdade de expressão, pelo direito de protesto e, sobretudo, pela justiça social, estamos cada vez mais unidas para denunciar e combater as injustiças dentro do que nos cabe.
A importância da advocacia popular no acompanhamento de protestos
Em tempos de contestações e anseios por transformações sociais, a advocacia popular se destaca como uma peça-chave no xadrez democrático. Estabelecendo uma ponte entre o Direito e as vozes das ruas, essa modalidade de advocacia ressignifica o papel do advogado, tornando-o mais que um mero intermediário legal, mas um ator ativo no processo de mudança social.
Segundo a concepção da professora Eliane Botelho Junqueira (10), a advocacia popular se configura como aquela voltada para os segmentos subalternizados. Seu foco não é meramente jurídico, mas também social, visando a transformação da realidade a partir de uma atuação que humaniza o cliente, politiza a demanda e estimula a organização coletiva.
Mais do que simplesmente representar juridicamente os manifestantes, a advocacia popular é um instrumento de resistência contra as opressões do sistema, e busca traduzir para a linguagem jurídica as demandas e aspirações dos movimentos sociais, objetivando construir um novo senso comum jurídico que seja libertador e emancipatório, por isso, sua importância no acompanhamento de protestos.
Destacamos alguns motivos que fazem a advocacia popular ser essencial na garantia do exercício do direito de protesto:
- Proteção legal: A advocacia popular oferece suporte jurídico e orientação aos manifestantes, garantindo que eles compreendam seus direitos e responsabilidades legais durante os protestos. Isso ajuda a evitar abusos policiais e a garantir que as manifestações ocorram de acordo com a lei.
- Documentação de abusos: Advogadas e advogados populares desempenham um papel essencial na documentação de abusos por parte das autoridades durante os protestos. Isso inclui registrar casos de violência policial, detenções arbitrárias e qualquer outra forma de repressão injusta.
- Assistência jurídica: Quando ocorrem detenções ou prisões durante os protestos, advogadas e advogados populares estão prontos para oferecer assistência jurídica imediata. Eles podem representar os manifestantes perante as autoridades e garantir que seus direitos sejam respeitados.
- Promoção da transparência: A presença de advogadas e advogados populares durante os protestos ajuda a promover a transparência e a responsabilização das autoridades; podem relatar abusos às organizações de direitos humanos, ao público e à mídia, contribuindo para a conscientização sobre a situação.
- Defesa da liberdade de expressão: A advocacia popular desempenha um papel vital na defesa da liberdade de expressão, que é um componente essencial dos protestos, e luta contra qualquer tentativa de censura ou restrição ao direito de manifestar opiniões.
- Construção de alianças: A advocacia popular muitas vezes colabora com outras organizações de direitos humanos, grupos da sociedade civil e defensores dos direitos civis para fortalecer sua atuação. Isso cria uma rede de apoio mais ampla para a proteção dos direitos dos manifestantes.
- Controle do uso da força: A presença de advogadas e advogados pode atuar como um fator de contenção contra o uso excessivo da força por parte das autoridades durante os protestos. Saber que há observadores legais presentes pode dissuadir as autoridades de recorrerem à violência desnecessária.
Em resumo, a advocacia popular desempenha um papel fundamental na proteção dos direitos dos manifestantes, na promoção da justiça social e na defesa da democracia. Ela assegura que o direito de protesto seja exercido de maneira responsável e legal, ao mesmo tempo em que responsabiliza as autoridades por qualquer abuso de poder. Portanto, seu papel é essencial para manter sociedades livres e democráticas.
Um exemplo da atuação prática da advocacia popular em protesto
Muitas vezes o acompanhamento de advogadas e advogados populares para suporte jurídico a manifestantes em protestos é realizado de forma voluntária e, em geral, improvisada, buscando superar os desafios na medida em que esses surgem durante os atos. A experiência, no entanto, mostra que a criação prévia de protocolos de atuação representa um avanço na busca por maior segurança jurídica dos manifestantes.
Um protocolo de atuação que resultou em um Guia de Atuação da advocacia popular em protestos, além de estabelecer diretrizes claras para a proteção dos direitos de ativistas e manifestantes e prevenir ou minimizar eventuais abusos policiais ou violações dos direitos, visa garantir também a segurança dos/as advogados/as, aumentar sua capacidade de resposta diante de situações adversas, além de fortalecer o trabalho conjunto entre organizações de advocacia popular e de defesa de direitos.
Uma ação básica consistiria, por exemplo, em acompanhar todo o procedimento das manifestações, desde as reuniões de organização até seu acompanhamento presencial. Nas reuniões de preparação dos atos, buscaria identificar eventuais ameaças aos direitos dos/as participantes e planejar ações preventivas. Uma dessas ações seria o contato e acionamento, quando necessário, de instituições como ouvidoria da Polícia Militar, secretaria de defesa social ou segurança pública, órgãos de licenciamento urbano do município, Ministério Público, Defensoria Pública, entre outros responsáveis pelo controle urbano e garantia e preservação dos direitos.
Parte essencial de um protocolo é a que se refere à atuação in loco durante a ocorrência do protesto. Uma das medidas possíveis é a formação de duplas de advogados/as populares para acompanhar a manifestação, analisar o corpo coletivo do movimento e identificar possíveis fragilidades de segurança. Essas duplas podem colocar-se em pontos estratégicos – no início, no cruzamento de vias e no final do ato, pontos que, normalmente são de tensão com a força policial e com demais motoristas e transeuntes – para agir em caso de necessidade. Esses/as advogados/as devem usar faixas no braço para identificação, facilitando o reconhecimento pelos/as manifestantes e pelas autoridades institucionais, permitindo que saibam a quem recorrer em situações de emergência, promovendo a confiança e a segurança no ambiente de protesto. É essencial o uso de meios de comunicação eficientes, como rádios e aplicativos de celular, para manter uma comunicação constante e coordenada durante o protesto. Isso possibilita uma resposta rápida a situações de emergência e facilita a mobilização de recursos adicionais, se necessário.
O protocolo deve prever ainda o contato direto com as forças de segurança e os órgãos de trânsito e de transporte urbano. Advogados/as populares podem se apresentar a essas autoridades e informar sobre sua presença e disponibilidade para auxiliar em questões legais ou de proteção aos manifestantes. Tal comunicação estabelece um canal direto e facilita a interação em momentos de tensão.
Não se pode esquecer da importância da atuação em rede, essencial para a realização e garantia da segurança e livre exercício da liberdade de expressão. O protocolo deve prever o acionamento de outras organizações da sociedade civil, do sistema de justiça e do Poder Legislativo (núcleos de assessoria jurídica, grupos de mídia independente, mandatos legislativos comprometidos com a defesa dos direitos humanos etc), que podem contribuir com a expedição de corpo técnico para o acompanhamento do protesto, bem como apoio nas articulações jurídicas e políticas que se façam necessárias posteriormente. Durante o ato, o protocolo também pode estabelecer que sejam disponibilizados advogado/as na sala da Ordem dos Advogados do Brasil localizada na central de flagrantes, por exemplo. Essa iniciativa visa garantir o pronto atendimento jurídico aos/às manifestantes detidos ou que necessitem de assistência legal. Dessa forma, se possibilita uma ação rápida em casos de prisões arbitrárias ou violações dos direitos dos/as manifestantes (11).
Conclusão
TEXTO
Anna Beatriz Silva, Luka Lins, Manoel Alves, Maria Carolina Corrêa, Priscilla Rocha, Tereza Mansi e Thiago Medeiros
publicado em
- 29/10/2024
Temas
O direito de protesto é uma pedra angular da democracia, pois possibilita a manifestação da voz do povo, a expressão de insatisfações e o clamor por mudanças sociais. Como mencionado anteriormente, as manifestações não são apenas uma forma de expressão, mas também um exercício vital da democracia, criando um espaço público para discussão e um canal pelo qual a sociedade pode demonstrar suas necessidades e anseios ao Estado. Ao exercer esse direito, afirmamos os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.
A liberdade de expressão e o direito à manifestação, além de serem direitos constitucionalmente protegidos no nosso país, estão ancorados em documentos internacionais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos. Essas normas garantem não apenas a liberdade de pensamento, opinião e expressão, mas também a liberdade de reunião pacífica e associação, tal como na nossa Constituição.
No entanto, o Brasil tem enfrentado desafios significativos no que diz respeito a esse direito fundamental. Desde as manifestações de junho de 2013 até os dias atuais, temos testemunhado uma série de ameaças e restrições a esse direito no Brasil, desde a repressão policial até a aprovação de leis que buscam criminalizar os manifestantes.
A advocacia popular desempenha um papel fundamental no acompanhamento de protestos e na defesa desses direitos. Organizações como a Artigo 19, o Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH) e a Comissão de Advocacia Popular da OAB de Pernambuco (CAP) desempenham um papel crucial na proteção dos manifestantes. Essas organizações ilustram a importância da sociedade civil na defesa dos direitos e na manutenção do equilíbrio de poder. A participação ativa da sociedade civil é o que diferencia uma democracia saudável da mera formalidade democrática.
Ao mesmo tempo, a luta pelo direito de protesto se faz necessária, uma vez que o direito por si só não está garantido, ainda que esteja contido em nossa lei maior, a Constituição, ou em Tratado Internacionais que o Brasil faz parte. É fundamental que a sociedade civil, as organizações de direitos humanos, cidadãs e cidadãos estejam vigilantes e engajados na defesa desse direito fundamental. Somente através da mobilização e da solidariedade podemos garantir que o direito de protesto seja plenamente respeitado e que as vozes daqueles que buscam justiça e igualdade sejam expressadas e ouvidas.
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LÍNGUA E ATIVISMOS: o que quer e o que pode essa língua?
A língua é um campo de disputa: ativismos e opressões da linguagem
A forma como falamos e até mesmo a língua que nos é ensinada é fruto de uma disputa histórica. E em que precisamos estar atentos para que muitas vozes não caiam no esquecimento?

Arte sobre foto de Marina Ginestà i Coloma, franco-catalã membro da Juventude Socialista Unificada. Foto tirada em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola. Créditos: Juan Guzmán
Dois jovens peixes estão nadando e cruzam com um peixe mais velho nadando em direção contrária, que os cumprimenta com a cabeça e diz: ‘Bom dia, rapazes. Como está a água para aqueles lados?’, no que eles respondem ‘Está boa’. Os dois jovens peixes nadam por algum tempo, e num dado momento um olha para o outro e pergunta: ‘O que diabos é água?’.
No nosso cotidiano, as dinâmicas sociais relacionadas à língua são uma realidade que parece tão óbvia que muitas vezes é como a água para esses peixes, e não paramos para nos questionar, nos surpreender com ela.
Certamente, vocês já se depararam com diferentes posicionamentos em relação à língua em alguns temas específicos, que mexem mais com os ânimos das pessoas. A discussão sobre formas não binárias de gênero é um exemplo que vem à mente rapidamente, e de fato ela mobiliza toda uma visão de mundo e de categorização das expressões de gênero. Isso porque existe uma relação entre a forma que falamos e como conceitualizamos o mundo.
A teoria que afirma isso ficou conhecida como relativismo linguístico, ou Hipótese de Sapir-Whorf: a hipótese de que línguas diferentes estruturam de formas diferentes nossas formas de pensar. No geral, o que costuma ser chamado de relativismo linguístico é mais um conjunto de teses diversas que afirmam que a língua que falamos molda a maneira como pensamos ou enxergamos a realidade. Mas o Whorf vai no limite, levando a um determinismo linguístico, ou seja, as línguas determinariam modos de perceber e entender a realidade, e as pessoas veriam o mundo que a sua língua permite ver. Em última instância, há uma incomensurabilidade entre os sistemas linguísticos diferentes, até mesmo a impossibilidade de tradução entre as línguas. Não é bem por aí. O que acontece é que língua e mundo se co-constituem, num fluxo contínuo de interação entre as pessoas e o ambiente (social, histórico, político, cultural) que as cerca.
Como resultado, temos dinâmicas sociais e lutas relacionadas à língua que são muito sutis e que passam despercebidas – como a água dos peixes, apenas naturalizamos certa forma de pensar como se fossem verdades absolutas.
As águas profundas da linguagem
Línguas são formas de vida, estão inexoravelmente conectadas, constituindo e sendo constituídas por quem somos no mundo. Todo o nosso repertório linguístico é formado por nossas experiências, o que inclui o lugar em que nascemos, quem nos cria, com quem convivemos, as crenças e ideologias de quem nos cerca, a que grupo social pertencemos. Mesmo quando aprendemos línguas de outros povos, levamos conosco os conhecimentos que temos da ou das línguas com as quais crescemos. E é por isso que respeitar a forma de falar de uma pessoa é respeitar a sua própria existência.
Nem sempre isso é perceptível, o que tem relação com a própria natureza das línguas, que são eventos efêmeros. Elas existem quando são usadas por seus falantes. É como se fossem um vírus e nós, falantes, os hospedeiros sem os quais elas não sobrevivem. Porém, nesse caso, não conseguimos encontrá-las com um microscópio em um corpo físico: sempre que usamos a língua (qualquer que seja) o que achamos que é a nossa língua faz uma aparição fugaz e imediatamente depois desaparece, indo para lugar nenhum. Ainda que existam milhares de dicionários, gramáticas, gravações, etc., eles não são a língua em si.
Pense em uma pessoa querida que já morreu. Uma fotografia pode até registrar um instante da vida dela, mas não é a pessoa. A língua também. Ela só existe na interação, seus registros são como fotografias de um instante de uso linguístico.
No entanto, não é isso que nos ensinam desde crianças. A ideologia hegemônica hoje tem suas origens na Era Moderna, que remonta ao século 17. Há muito a se discutir sobre a relação entre a ciência iluminista e o conceito de língua vigente, mas vamos nos ater à consolidação dos Estados nacionais europeus, no século XIX. Nesse período começa a se falar de ‘soberania dos povos’, são modeladas identidades nacionais, e a língua é usada como um elemento central nesse processo.
Para isso, teve início um processo de padronização artificial das línguas para que se chegasse a um idioma nacional que deveria ser adotado em todo o território. Inclusive, nessa visão o multilinguismo é visto como um problema a ser combatido pelo Estado, já que todo cidadão, para ser considerado como tal, deveria falar da mesma forma. Mas como você já deve desconfiar, as variações entre as formas de falar entre uma região e outra eram difusas, era muito difícil distinguir fronteiras entre elas. Por conta disso, assumiu-se que era preciso ‘purificar’ as línguas, moldando um exemplar nacional, um ideal de língua. A esse ideal podemos chamar de norma padrão.
Uma língua é sempre heterogênea, mutante, flexível; o processo de padronização tira a língua do seu ambiente vivo, seu cotidiano, e a transforma em uma instituição estanque. Por conta disso, as línguas oficiais (norma padrão) sempre são construções abstratas que não têm um equivalente direto na fala. Segundo Marcos Bagno, linguista famoso no Brasil, essa abordagem hipostasia a língua. Uma hipóstase “se caracteriza pela atribuição de existência concreta e objetiva (existência substancial) a uma realidade fictícia, abstrata ou meramente restrita ao caráter incorpóreo do pensamento humano” (2011). Tanto que, no senso comum, é frequente falar de uma língua como um sujeito, como se fosse uma entidade dotada de vontade e poder de ação, ignorando-se que quem faz as coisas são os falantes, os seres humanos que falam as línguas. Aliás, as opiniões que temos sobre línguas e dialetos na verdade são opiniões sobre seus falantes. É mais fácil dizer “Que sotaque feio!” do que “Eu não gosto desse pessoal”.
Vamos então pensar em algumas consequências nas dinâmicas sociais fruto desse tratamento dado à língua. Ou, em outras palavras, quais são as águas que nos cercam e não notamos.
A ideologia da norma
Poderia apostar que todo mundo já ouviu alguém dizendo que “não sabe português”, isso no Brasil e em… português! O que acontece é que há uma associação – equivocada – de língua com a norma padrão, como se fossem sinônimos. Mas, como acabamos de ver, a realidade não é nem nunca foi essa.
O que chamamos de norma padrão é uma forma idealizada, um grande acordo (com Supremo, com tudo) feito para homogeneizar a nossa escrita. É diferente da norma culta, que é o nome que se dá à maneira como as classes sociais mais escolarizadas falam, e não, elas não falam a norma padrão. Na verdade, ninguém fala, porque ela é realmente uma idealização, uma abstração, não existe falante nativo de norma padrão.
Lembremos quem é que historicamente legislou em nossa sociedade. No momento de definir o que entra ou não nos manuais de gramática que prescrevem como se deve ou não falar/escrever, são as pessoas nas posições de poder econômico e político que participam desse processo, refletindo o que parece certo para elas e excluindo a população que não faz parte desse grupo.
Então, quando alguém diz que é “ruim de português”, que “não sabe falar direito”, isso significa que ela não manuseia adequadamente a norma padrão. E só isso, pois essa pessoa sabe sim as estruturas da língua portuguesa, tanto que está se comunicando com a comunidade de falantes de português.
Daí derivam uma série de preconceitos, sendo a associação entre não dominar o padrão com pouca inteligência um dos mais explícitos, e tem sido amplamente discutido sob o termo “preconceito linguístico”. Essa ideologia tem reflexos dos âmbitos mais cotidianos até esferas públicas que vêm sendo mais debatidas, entre elas: quem tem direito à escrita? Só quem domina a norma do poder?
Essa água é tão invisível que, do lado de quem luta pela emancipação dos povos e fim das desigualdades, encontramos muito da ideologia da norma. Isso acontece quando se propõe que comunidades abandonem sua forma de falar para se beneficiarem social e economicamente, como se o único caminho fosse as classes oprimidas aceitarem o código daqueles que as oprimem.
“A opressão linguística […] não surge no vácuo e não constitui um problema por si só – ela vem da mesma sociedade de classes com suas desigualdades. A única maneira de as desigualdades linguísticas desaparecem não é aprendendo a língua dos que estão no topo, mas sim através da eliminação política das desigualdades sociais.” (Puh e Popović, 2023)

Lélia Gonzalez, antropóloga negra brasileira, elaborou os conceitos de pretuguês e povo amefricano / Crédito: Reprodução
Nesse sentido, Lélia Gonzalez, antropóloga negra brasileira, nos fornece como ferramenta de luta os conceitos de pretuguês e povo amefricano. Mais do que uma categoria geográfica, que situa a América Latina, a amefricanidade é também uma categoria linguística. Um português afrobrasileiro, “o pretoguês nada mais é que a marca de africanização do português falado no Brasil” (influência que vai muito além do léxico, permeando a sintaxe, morfologia e fonologia também).
“Os preconceitos que o português brasileiro sofre das elites brancas, dos programas de ensinar português na TV, do assessoramento dos jornais impressos é de fato uma via do preconceito racial no país, em seu caráter linguístico”. Lélia Gonzalez
No século XIX, as línguas indígenas já não incomodavam tanto, e o principal personagem a incomodar a elite letrada brasileira (e recebendo grande desprezo) era o português popular em geral, o “falar atravessado dos africanos”. Isso vinha junto com ideias racistas de pureza vs. impureza/mistura. Há um desprezo por toda a variedade e heterogeneidade linguística do país, em especial quanto à variação social, o português popular. Constrói-se o nosso imaginário não só de um país monolíngue, como também um país linguisticamente uniforme. O que nos leva ao próximo ponto.
Existem cerca de 7 mil línguas no mundo, e isso é possível graças ao multilinguismo. A ideia de que um país equivale a um povo e uma língua (e uma cultura) também é uma construção humana, mais especificamente do Iluminismo pra cá, com seus romantismos e consolidação dos Estados nacionais como os conhecemos hoje. Para que a língua fosse usada como elemento para unificar populações em torno de um projeto de nação, foi preciso negar e perseguir a existência de outras línguas no mesmo território.
A ideologia do monolinguismo
Essa relação entre língua e nação fica bem evidente na história da França, que com a Revolução Francesa perseguiu as outras línguas faladas naquele território e adotou como oficial o que se falava em Paris e arredores – o francês. Lá também há outras línguas, entre elas o bretão, o occitano e o basco. A lógica é a de que todos são iguais enquanto cidadãos, e para ser um cidadão francês deve-se falar francês.
No país vizinho logo ao sul, a história foi ainda mais violenta. O Estado espanhol (ou Reino de Espanha, dado que é uma monarquia) é composto por diversas comunidades autônomas, e algumas delas têm línguas próprias. Hoje são reconhecidas o galego, na Galícia, o basco, no País Basco, e o catalão, na Catalunha, que compartilham a co-oficialidade com o castelhano nessas regiões. Mas nem sempre foi assim.
Após a guerra civil espanhola, que durou de 1936 a 1939, todas as línguas que não fossem o espanhol/castelhano foram proibidas em âmbitos oficiais, como o ensino, a comunicação pública, os ritos religiosos e a imprensa. Quem as usasse nesses contextos era perseguido, e, ainda que em espaços não-oficiais, havia uma forte carga pejorativa sobre seus falantes. Essa proibição tinha o intuito de formar um Estado espanhol centralizado e homogêneo. Nesse contexto, falar galego, catalão, basco ou asturiano era associado a uma postura antirregime, contra a ditadura de Francisco Franco, “antipatriota”. Recomendo o filme “A língua das mariposas” (dir. José Luís Cuerdas, 1999), baseado no conto “A lingua das bolboretas”, de Manuel Rivas, que retrata a perseguição político-linguística na Galícia durante esse período. Durante esse período, a luta contra o fascismo espanhol andava lado a lado com a luta pelos direitos linguísticos dos povos. Foi só com a morte de Franco, e o fim da ditadura, que essas línguas foram permitidas e reconhecidas na Constituição Espanhola.

Mulheres das Brigadas Antifascistas na Espanha.
Somos muitas línguas
Existe um mito de um Brasil monolíngue, de que, apesar da grande diversidade cultural e geográfica, somos todos unidos por uma única língua, o português. Entretanto, a diversidade linguística no Brasil é imensa! Vivemos em um dos países com o maior número de línguas do mundo.
Quando os europeus chegaram ao que depois passou a se chamar Brasil, estima-se que havia uma população de seis a nove milhões de pessoas, que falavam perto de 1.200 línguas, pertencentes a diferentes famílias e troncos linguísticos (conjunto de famílias). Ou seja, o Brasil já era um território multilíngue muito antes da colonização, com povos falantes de línguas muito diversas e um intenso intercâmbio linguístico.
O fato de hoje predominar o pensamento de Brasil como país monolíngue é uma herança daquele pensamento europeu que vimos acima, pois o modelo que associa um país a um único povo e a uma única cultura foi imposto às terras colonizadas.

NÚMERO DE LÍNGUAS POR PAÍS
De acordo com o Ethnologue, uma publicação que reúne dados sobre a diversidade linguística do mundo, hoje o Brasil ocupa a 10ª posição de país com o maior número de línguas faladas. De acordo com o Censo 2010, contamos hoje com 274 línguas e dialetos originários, além das dezenas de línguas africanas que chegaram com as pessoas que foram sequestradas para escravização e dos processos de imigração de variados continentes para cá. Apesar disso, só português e Libras têm reconhecimento oficial em nível nacional.
A construção do nosso panorama linguístico atual remonta às reformas pombalinas. Sebastião José de Caravalho, o Marquês de Pombal, foi uma figura importante no reino português na segunda metade do século 18. Ele atuou na “melhoria da gestão colonial”, munido de ideias modernizadoras com base nas ideias que circulavam na Europa naquele momento. Visando centralizar a administração colonial e neutralizar a ação das ordens religiosas que atuavam de maneira autônoma, sem o controle da metrópole, Pombal expulsou os jesuítas em 1759. Foi ele também que mudou a capital da colônia para o Rio de Janeiro. Mas o grande impacto para a nossa diversidade linguística foi a proibição, em 1758, do tupi e das línguas gerais, como a Língua Geral Amazônica (o nheengatu) e a Língua Geral Paulista, que por sinal eram amplamente usadas pelos jesuítas. A partir desse momento, o português foi instituído como única língua do Brasil.
Dando um salto, hoje a luta pela preservação das línguas indígenas nos permite articular muitas esferas sociais, não só a da linguagem. Por que uma pessoa para de falar uma língua, ou escolhe não ensinar sua língua para os filhos senão por uma questão de sobrevivência numa dada sociedade? Uma língua continua a ser falada enquanto a pessoa pode sobreviver e ter seus direitos garantidos nela, e isso vai de atendimento de saúde e educação formal a prestígio social. No caso dos povos originários, isso envolve garantir a eles a possibilidade de continuar existindo de acordo com a forma como estruturam suas sociedades. Logo, é também uma luta por terra, por direito à vida nos moldes daquela cultura. E esse é um tema que deságua na questão ambiental.
Ao abrir o mapa das terras indígenas demarcadas no Brasil e das áreas cuja vegetação histórica é mais preservada, percebe-se na hora a relação entre elas. Ao pensar na diversidade linguística do mundo, vê-se que está intrinsecamente ligada com a diversidade de povos. Preservar essas línguas significa respeitar vidas indígenas, que é uma das formas mais eficientes de não explodir o mundo, dada a conexão do tema com a preservação de territórios, meio ambiente e modos de vida. Falar de línguas pode ser uma ferramenta para pensar no mundo, ou nos mundos, que queremos construir. Além disso, reconhecer a diversidade linguística do mundo é um dos passos fundamentais para o respeito à diversidade no geral.
“Um dos mitos a se quebrar é o do Brasil como país monolíngue. Ele perturba nossa capacidade de nos percebermos como país multilíngue e multicultural, mas, acima de tudo, embaraça nossa capacidade de reconhecer e compreender a heterogeneidade do português que aqui se fala: sua história, sua polarização, suas reconfigurações contemporâneas.” Carlos Alberto Faraco, no livro História sociopolítica da língua portuguesa.
Ativismos linguísticos

Surdos aplaudem em Libras a aprovação do PLS nº 131/96. Fonte: Roosewelt Pinheiro / Agência Senado. Jornal do Senado, Brasília.
Também a comunidade surda reivindica seus direitos ao lutar por uma educação bilíngue, com o português escrito e a Libras. Esta, aliás, não é uma versão gestualizada do português. A Libras é uma língua natural, isto é, que emerge naturalmente da interação entre os seres humanos.
Em setembro de 1994, houve no Brasil um evento muito importante de visibilização da comunidade surda, a marcha Surdos Venceremos, reivindicando o reconhecimento oficial da sua língua, o direito à educação em Libras e o provimento de intérpretes em espaços públicos. Em 2002, foi aprovada a Lei 10.436, que reconhece a Libras como meio legal de comunicação da comunidade surda, o que trouxe reflexos na estruturação educacional, com a implementação do ensino de Libras nas formações em Pedagogia, Fonoaudiologia e das licenciaturas.
A Libras faz parte da identidade da comunidade surda: até existem novos subsídios tecnológicos que permitem a muitas pessoas passar a escutar, com aparelhos específicos. Mas é muito frequente os surdos não quererem usar esses aparelhos por uma questão identitária, por reivindicar a defesa da cultura da comunidade surda.
Essa pauta mobilizou a própria definição de deficiência, que se baseava exclusivamente em questões físicas; chamada de modelo médico, esse modelo considera certas características físicas das pessoas como uma anomalia a ser tratada individualmente. A partir dos anos 1960, surge o modelo social de deficiência, que considera a deficiência uma soma das características das pessoas com a falta de espaços e estruturas que acolham essas características. Ou seja, nesse modelo social, a deficiência não é estática, mas sim relacional, da pessoa com a sociedade, e portanto uma responsabilidade coletiva.
O socioleto das travestis

E quando um grupo social cria uma língua como meio de se proteger? É mais ou menos essa a origem do pajubá ou bajubá, uma forma de falar com a função de língua de segurança das travestis brasileiras, bastante importante especialmente durante a Ditadura Militar. Ainda que também se aproprie de línguas indígenas, como o tupi, e línguas europeias, o bajubá emerge do contato do português principalmente com línguas africanas, como kimbundo e iorubá.
Ele pode ser pensado como uma criptolíngua ou língua secreta, ou seja, a linguagem de um grupo frequentemente usada para excluir ou confundir pessoas de fora do grupo. Dificilmente essas linguagens secretas são completas porque os falantes costumam ter alguma língua pública em comum, na qual elas são baseadas. Criptolínguas são desenvolvidas por essas sociedades como um meio de impedir que pessoas de fora compreendam sua comunicação, e como uma maneira de estabelecer uma subcultura que atenda às necessidades de sua estrutura social alternativa.
A comunidade LGBTQIA+ foi diretamente alvo de perseguição dos militares durante a ditadura, principalmente pessoas trans e travestis. O grande marco dessa violência foi a Operação Tarântula, conduzida em São Paulo-SP pelo delegado José Wilson Richetti, que consistia em “rondões” pela cidade para deter essas pessoas, sendo recorrentes torturas, espancamentos e extorsão contra aquelas que fossem detidas.
A imprensa também fazia sua parte, como o jornal Estado de S. Paulo “alertando” sobre “perigo” de pessoas travestis:

Hoje em dia, o uso do bajubá é mais corrente entre outras pessoas da sigla LGBTQIA+ e até quem não está no “vale”, o que pode parecer que não pode mais ser uma língua de segurança. Ledo engano… O bajubá se transforma diariamente, o que se conhece fora do seu grupo social de origem sempre será algo mais datado, e tenha certeza de que, se uma travesti não quiser que você a entenda, você não a entenderá.
Para ir encerrando, reproduzo aqui o Manifesto de Girona sobre direitos linguísticos:
- A diversidade linguística é um patrimônio da humanidade que deve ser valorizado e protegido.
- O respeito por todas as línguas e culturas é fundamental no processo de construção e manutenção do diálogo e da paz no mundo.
- Cada pessoa aprende a falar no seio de uma comunidade que lhe dá a vida, a língua, a cultura e a identidade.
- As diversas línguas e as diversas formas de falar não são apenas instrumentos de comunicação; são também o ambiente no qual os humanos crescem e as culturas são construídas.
- Toda comunidade linguística tem o direito de que sua língua seja utilizada como oficial em seu território.
- A educação escolar deve contribuir para a promoção da língua falada
pela comunidade linguística do território. - O conhecimento generalizado de diferentes línguas pelos cidadãos é um objetivo desejável, pois favorece a empatia e a abertura intelectual, ao mesmo tempo que contribui para um conhecimento mais profundo da própria língua.
- A tradução de textos — particularmente dos grandes textos das diferentes culturas — representa um elemento muito importante no necessário processo de aumentar o conhecimento e o respeito entre os humanos.
- Os meios de comunicação são alto-falantes privilegiados no que diz respeito a tornar efetiva a diversidade linguística e a prestigiá-la com competência e rigor.
- O direito de usar e proteger a própria língua deve ser reconhecido pelas Nações Unidas como um dos direitos humanos fundamentais.
Desenvolvido pelo Comitê de Traduções e Direitos Linguísticos da PEN International, que promove um fórum para que escritores possam se encontrar e discutir, é também uma voz que se levanta em nome de escritores que foram silenciados em seus próprios países.
A história das línguas é a história de seus falantes, de modo que são perpassadas pelas estruturas das sociedades que formam (e pelas quais são formadas). Poderíamos passar horas levantando casos de reivindicações de mudanças em formas e terminologias. Temos visto movimentos antirracistas denunciando o preconceito que carregam expressões, como denegrir. No entanto, não podemos, por exemplo, nos limitar a usar pronomes de gênero neutro sem questionar a construção social de gênero da sociedade em que vivemos. Temos que extrapolar a língua e entender que essas reivindicações não podem se encerrar em si mesmas, elas são antes estopins de discussões, como se jogássemos tinta na água transparente que nos cerca e pudéssemos ver do que ela é composta.
Bibliografia:
BAGNO, Marcos. (2011) O que é uma língua? Imaginário, ciência e hipóstase. Em: LAGARES, X. C. e BAGNO, M. & LAGARES, X. (orgs.). Políticas da norma e conflitos linguísticos. São Paulo: Parábola, 2011, pp. 355-387.
BRITO, F. B. O movimento social surdo e a campanha pela oficialização da língua brasileira de sinais. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-03122013-133156/publico/FABIO_BEZERRA_DE_BRITO.pdf
FARACO, C. A. (2016) História sociopolítica da língua portuguesa. São Paulo: Parábola Editorial.
FARIAS, C. (2020). A posição da língua. Disponível em: https://medium.com/babelpodcast/a-posi%C3%A7%C3%A3o-da-l%C3%ADngua-c7f35b62bd0a
FELIPE, P. H.; D’ANGELIS, W. R. (2019) Línguas indígenas e diversidade linguística no Brasil. Em: Roseta V2. N1. Disponível em: https://www.roseta.org.br/2019/02/21/linguas-indigenas-e-diversidade-linguistica-no-brasil/
PUH, M.; POPOVIĆ, I. (2023) Língua e nacionalismo. Cadernos de Letras UFF, Niterói, v. 34, n. 66, p. 335-347.
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Um ano de genocídio em Gaza: caminhos para organização e solidariedade
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No marco de um ano do massacre continuado do povo palestino em Gaza, Juliana Muniz, do coletivo Vozes Judaicas por Libertação fala sobre a guerra e sobre a atuação de coletivos diante da barbárie

Protestos contra o massacre na Faixa de Gaza aconteceram por todo o mundo desde outubro de 2023 l Foto: Brasil de Fato/Renascença/Colagem
Chegar no mês de outubro de 2024 é encarar o amargo marco de um ano do genocídio ainda em curso contra o povo palestino na Faixa de Gaza, perpetrado pelo Estado de Israel. A contagem oficial chega a mais de 40 mil pessoas mortas, 1,8 milhões deslocadas forçadamente e centenas de milhares feridas, e não comunica a totalidade do horror vivenciado pela população palestina. Tampouco as imagens, que fazem deste genocídio o mais hipervisível da história, parecem sensibilizar o mundo sobre o tamanho da destruição e fazer com que ela cesse. Como se não bastasse Gaza, a escalada da violência israelense se expandiu para a Cisjordânia e há poucas semanas faz ataques no Líbano sem precedentes na história. Israel segue impunemente suas atrocidades e crimes contra a humanidade, protegido pelos estandartes do sionismo, do colonialismo, do imperialismo e do neoliberalismo.
Outubro de 2023 não marca um início, mas a continuação de um projeto de 76 anos de colonização, configurado em um sistema de apartheid e ocupação no que se compreende como os territórios de Israel e Palestina. Se no fim do século XIX o debate sionista circulava em torno da questão da autodeterminação judaica e de possíveis resoluções para perseguições históricas, com o tempo concretizou-se como um projeto colonial para a criação de um Estado fundado sobre a expropriação dos palestinos em 1948. Esse processo ficou conhecido como Nakba (catástrofe em árabe).
O poeta libanês Elias Khoury, falecido há poucos dias, foi um dos primeiros a ler a Nakba não como um evento localizado, mas como catástrofe contínua que se estende até hoje: seja na apropriação dos territórios em 1967, no confisco em curso de terras através dos assentamentos, no apagamento de memórias, na militarização da vida cotidiana e no extermínio do povo palestino. Se para muitos Israel significaria a conquista da segurança e liberdade para o povo judeu, para nós do Vozes Judaicas por Libertação, coletivo que integro, foi um sinônimo definitivo de muitas rupturas e reconstruções.
Entro então nessa nefasta linha do tempo a partir de uma pergunta que movimenta muito a trajetória do coletivo: como podem conviver percepções em escala mundial tão opostas em torno do mesmo fato, quando olhamos especificamente para o 07 de outubro? Por um lado, foi imediatamente massificada a informação de que a ação do Hamas foi o “maior ataque contra judeus desde o Holocausto”. Nessa perspectiva, tal fato inédito autorizaria toda e qualquer ação do exército israelense como “direito de defesa” que teria por “consequência natural” o massacre a que assistimos. Essa inclusive é uma das principais égides sionistas, que nomeia o exército como “Forças de Defesa de Israel”. Nessa percepção, tanto o Hamas como os palestinos em geral, além de estamparem exclusivamente as vestes do terrorismo, são eternamente responsabilizados por sua própria catástrofe.
Por outro lado, como comenta o jornalista Antony Loewenstein (2024), o 07 de outubro foi um golpe contra a crença tão consolidada em Israel que os 2,3 milhões de palestinos habitantes de Gaza poderiam ser confinados para sempre na maior prisão a céu aberto do mundo sem haver qualquer tipo de consequências. Sem justificar absolutamente os ataques do Hamas, muito menos desprezar as vidas ceifadas neste contexto, interessa aqui um olhar que faça distinção entre as estruturas e seus sintomas. Desmanchando possíveis armadilhas comparativas dessa linha do tempo, o que se dá como “resposta” a partir do dia 08/10 foi, é e sempre será injustificável. Na compreensão de que há mais leituras do que estas sublinhadas, nos colocamos um desafio enquanto grupo de tentar dissolver perspectivas binárias, desestabilizar e confrontar as narrativas que insistem em normalizar a situação palestina.
Surgimos a público enquanto coletivo a partir da inevitabilidade da revolta e de algo mínimo que ainda não era dito de forma coletiva aqui: um genocídio não será praticado em nosso nome, o Estado de Israel não representa a todos os judeus e deve ser freado em suas políticas e ações constantes de violação dos direitos dos palestinos. A criação do grupo concretizou a possibilidade de um lugar novo em que pudéssemos publicamente manifestar nossa solidariedade à luta palestina e, ao mesmo tempo, afirmar e solidificar uma judeidade antirracista, anticolonial e antiapartheid, uma judeidade não sionista.
A partir do encontro de trajetórias e origens diversas, partilhamos a ruptura com um papel muito bem desempenhado pelas instituições sionistas que convivemos ao firmarem um vínculo indissociável entre judaísmo, judeidade e o Estado de Israel. É importante marcar que não somos “judeus bons” muito menos superiores por isso. Tampouco sofremos de “auto ódio” como muitos também nos acusam, pois nosso posicionamento não se dá apesar de nossas identidades, mas a partir delas. O que cabe aqui é explicitar que a construção sionista, mais do que uma escolha racional por um posicionamento que sustenta a legitimação do que vemos hoje, é um mosaico de manipulação de traumas coletivos e do uso de perseguições históricas para direcionar a aprovação que Israel exista a todo e qualquer custo.
Nos últimos anos, diversas transformações e disputas têm ocorrido dentro e fora da comunidade judaica em relação à Israel-Palestina. Há tanto um fortalecimento de uma direita sionista explicitamente alinhada ao bolsonarismo e ao fascismo, como também manifestações que reproduzem paradigmas datados e crenças como “Dois Estados para Dois Povos” como forma de “resolução” para a questão palestina. Repudiando o sionismo abertamente fascista e desafiando um “sionismo de esquerda” que buscar falar da Palestina sem levantar palavras como “direito de retorno”, “reparação”, “apartheid” e “genocídio”, nos vemos sem lugar nessa comunidade judaica. Nesse cenário, se desenhou a tarefa não só de romper, mas de construir um lugar através da coletividade capaz de se fundar numa outra ética e política, seja na Palestina ou no Brasil.
Ao perfurar o aparentemente inabalável pacto entre sionismo e judaísmo, percorremos esse primeiro ano com muitos desafios, tendo sempre no horizonte que não protagonizamos a luta e a resistência palestinas. Entendemos nossas ações como oportunidades de visibilizar no cenário brasilero um posicionamento solidário desde o lugar que cavamos para ocupar, dialogando e colaborando com os movimentos palestinos. Desse lugar, questionamos as narrativas hegemônicas sionistas e suas representantes, constantemente acionadas como porta-vozes da comunidade judaica, que instrumentalizam o conceito de antissemitismo para silenciar críticas à Israel, dificultando inclusive o combate ao antissemitismo real, que é a discriminação contra judeus pelo fato de serem judeus.
Além disso, impossível não pautar junto de vários outros movimentos e ativistas no país a relação entre Brasil e Israel desde seu lado mais perverso: ambos experimentam as mesmas tecnologias em seus genocídios. Israel exporta sua tecnologia de ocupação e tornou-se ‘referência’ na produção de armas e sistemas de vigilância e monitoramento para o mundo, sem nenhum constrangimento de inflamar conflitos, guerras e a violência de Estado em países por todo o globo. O Brasil, sendo um de seus maiores compradores, além de investir na opressão e extermínio das populações negras, periféricas, indígenas e tantas outras subalternizadas no país, torna-se cúmplice no genocídio do povo palestino.

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Como forma de apoio concreto, defendemos o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), uma forma de resistência não violenta lançada pela sociedade civil palestina em 2006 como um apelo à comunidade internacional à não cooperação com um Estado de apartheid. É de vital importância convocar o rompimento de relações com governos, empresas e insituições dentro e fora de Israel que contribuem com a ocupação e o massacre do povo palestino. Através da campanha pelo Embargo Militar lançada esse ano, mais de 100 organizações exigiram o rompimento dos acordos militares entre Brasil-Israel, uma relação que se iniciou nos anos 2000, e que foi encontrando maior espaço em especial nos últimos anos pelas gestões dos presidentes Michel Temer e Jair Bolsonaro. Tais acordos foram aprovados pela Câmara dos Deputados no dia 18 de Outubro de 2023, enquanto assistíamos ao vivo o início do maior massacre contra o povo palestino já perpetrado na história.
Sobre o chegar no mês de outubro, não há complexidade no assunto que nos impeça de caminhar pelo solo firme da solidariedade por uma Palestina livre. Se as formas de exploração, dominação e opressão nesse momento do capitalismo compartilham suas tecnologias e se sofisticam cada vez mais, precisamos criar pontes que conectem nossas noções e práticas de solidariedade e luta. Entendemos o conceito de solidariedade não como uma ideia passiva, mas junto do historiador Rafael Domingos (2024) como uma tecnologia de emancipação do mundo, e isso requer nossa implicação.
Nosso ativismo se mobiliza na certeza de que é através da coletividade que encontramos sentido na luta e no impacto que nossos posicionamentos e ações podem ter, habitando o horizonte universal da resistência contra a opressão e o esquecimento. Que esse horror cesse e que a libertação Palestina chegue junto do direito de retorno, da desocupação e de um processo verdadeiro de justiça e reparação. Que a sumud, essa palavra palestina que representa permanecer firme, de profundo valor de resiliência, nos acompanhe na luta contra a discriminação, pela descolonização e direito à terra, por justiça e vida digna para todos os povos do mundo.
Referências:
HAASZ, et.al. Judias e judeus tornando-se solidários à causa palestina. Publicado em: Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível
em:<https://diplomatique.org.br/judias-e-judeus-solidarios-causa-palestina/> Acesso 20 set. 2024.
JABR, Samah. Sumud em tempos de genocídio. Ed. Tabla, São Paulo, 2024.
KHOURY, Elias. Rethinking The Nakba. Critical Inquiry, [S. l.], v. 38, n. 2, p. 250-266, inverno, 2012. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/10.1086/662741. Acesso em: 01 out. 2024.
LOWESTEIN, Antony. Laboratório Palestina: como Israel exporta tecnologia de ocupação para o mundo. Ed. Elefante, São Paulo, 2024.
MARTINS, Gizele. Da Palestina à Maré: a luta pelo direito à vida (relato). Disponível em:<https://wikifavelas.com.br/index.php/Da_Palestina_%C3%A0_Mar%C3%A9_-_a_luta_pelo_direito_%C3%A0_vida_(relato).> Acesso 30 set. 2024
OLIVEIRA, Rafael Domingos. Introdução. In “Gaza no coração: História, resistência e solidariedade na Palestina”. Org. Rafael Domingos. Ed. Elefante, São Paulo, 2024.
SAID, Edward. A questão da Palestina. Ed. Unesp, São Paulo, 2012.
VERGÈS, Françoise. A medida do que somos capazes de fazer para mudar o mundo.
In “Gaza no coração: História, resistência e solidariedade na Palestina”. Org. Rafael Domingos. Ed. Elefante, São Paulo, 2024.
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Entender para combater: uma breve história da violência política de gênero
Entender para combater: uma breve história da violência política de gênero contra as mulheres
Luka Franca analisa o histórico de violência política de gênero como um impeditivo para efetivação de uma democracia plena e quais os caminhos para sua superação
“Eu não vou sucumbir
Eu não vou sucumbir
Avisa na hora que tremer o chão
Amiga é agora
Segura a minha mão” (Elza Soares)
A violência política de gênero é uma faceta cruel da misoginia com a qual nós mulheres nos deparamos ao ocupar um espaço público. Espaços estes que são historicamente dominados por homens e por um jeito de fazer política. A violência é estrutural: no Brasil, o direito de votar e ser votada só foi reconhecido em 1932 e teve sua incorporação à Constituição em 1934 e ainda enfrenta inúmeros desafios para ser plenamente efetivado – não custa lembrar que o número de mulheres candidatas em 2024 é de 33% do total, mesmo representando 52% do eleitorado. Além disso, somente em 2024, até 29 de setembro, 130 mulheres foram alvo de violência política de gênero.
Mas o que é violência política de gênero? É quando mulheres são atacadas, ameaçadas, violentadas, caluniadas e constrangidas em seu fazer político por serem mulheres. A definição da Lei n. 14.192, no entanto, deixa de fora uma parcela significativa de ativistas que não se enquadram como candidatas ou eleitas, como veremos mais adiante.
Uma história de resistência

Marielle Franco foi vitimada pela violência política de gênero por conta de sua atenção. l Foto: Mídia Ninja/Fabio Possebon-Agência Brasil/Montagem
Os caminhos de lutas por direitos políticos das mulheres não se deram sem percalços, muito menos sem dura violência contra as que os reivindicavam ao longo da história. Temos como parte infeliz da nossa história no Brasil a Ditadura Empresarial-Militar e a violência estatal que se imprimiu nos chamados anos de chumbo, responsável por tratar com especial violência as mulheres que assumiram a luta contra o regime. “O aviltamento da mulher que acalentava sonhos futuros de maternidade foi usado pelos torturadores com implacável vingança, questionando-lhe a fertilidade após sevícias e estupros.” Durante a ditadura também tivemos o emblemático assassinato de Margarida Alves em 1983 por latifundiários, o crime foi motivado pela ação política de uma das primeiras líderes sindicais do país na região do município de Alagoa Grande na Paraíba.
Já no Brasil da pós-redemocratização há dois grandes marcos da violência política de gênero. O primeiro resultou no golpe contra a primeira mulher presidente do país. A campanha para o impeachment de Dilma Rousseff teve um material de marketing que demonstrava todo o motor da misoginia no país: um adesivo para colocar em cima do local de abastecimento de automóveis em que uma caricatura da ex-presidente aparecia de pernas abertas e o meio delas estava o bocal de abastecimento dos veículos, simulando assim um estupro. O segundo episódio é a execução da vereadora Marielle Franco, em 2018, que também vitimou o motorista Anderson Gomes e ao longo destes anos tem se demonstrado um crime político dos mais imbricados do Rio de Janeiro.
Dando um salto para o passado, nos deparamos na Revolução Francesa com um processo que impede as francesas de serem reconhecidas como cidadãs, inclusive tendo suas imagens degradadas junto à sociedade no pós-Revolução, saindo de heroínas para figurarem como traiçoeiras e violentas. O caso mais emblemático desta época é o de Olympe de Gouges que publicou a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã” como forma de apontar a ausência dos direitos das mulheres na Constituição francesa de 1791. Gouges além de ter publicado tal declaração também se colocava abertamente contra a escravidão nas colônias francesas e chegou a se indispor frontalmente com Robespierre, chamando-o de “algoz impiedoso” em panfletos escritos e assinados. Gouges foi guilhotinada em 3 de novembro de 1793.
Durante a 1ª onda do movimento feminista no mundo, comumente representada na luta pelo direito ao voto, nos deparamos com o enfretamento por parte do movimento sufragista contra diversas formas de violência, especialmente a tortura. Um dos métodos não-violentos adotados pelo movimento sufragista na Inglaterra, por exemplo, foi a greve de fome e algumas vezes as forças policiais recorriam à alimentação forçada para que as sufragistas enfraquecessem suas manifestações em prol do voto igualitário.
Respostas insuficientes
Sim, as mulheres sempre sofreram violência ao se colocarem na luta política e por direitos. O impacto da violência política de gênero retira atrizes do cenário político e assim coloca em xeque o próprio Estado Democrático de Direito. Mas a resposta deste mesmo Estado foi insuficiente.
De fato, em 2021, foi promulgada a lei nº 14.192/2021, que trata da violência política de gênero. Mas ela é limitada: olha apenas para candidatas, parlamentares e membras do poder executivo.
E esse é um ponto fundamental quando falamos de violência política de gênero. É claro que as parlamentares, candidatas ou membras de poder executivo acabam se expondo mais a esse tipo de agressão pela natureza de suas atribuições, porém o fazer político das mulheres na sociedade é bem mais amplo que isso e necessita de proteção.
Inclusive, essa diversidade de atuações está prevista na Lei modelo Interamericana para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra as mulheres na vida política, ou seja, é possível pensar uma proteção mais global aos direitos políticos das mulheres em nosso país ao olharmos o que há acumulado sobre o debate na América Latina.
A história da ocupação por mulheres do espaço público de debate para defender seus direitos é uma história de violência. No momento atual, vivemos um avanço na ocupação política feminina e nas conquistas de direitos. Mas também temos um Estado patriarcal que impõe que não consigamos proteger os direitos políticos das mulheres de forma global e não apenas aquelas de maior evidência política.
Caso emblemático é a da ex-deputada federal Manuela D’Ávila que sofreu reiteradamente violência política de gênero nos momentos em que era candidata e parlamentar, mas ao deixar a política institucional continuou a ser alvo de violência política de gênero em espaços diferentes e não apenas ela como a filha dela também sofreu ataques.
É fundamental compreendermos que as mulheres irão exercer atividade política dentro ou fora de partidos políticos, cumprindo ou não tarefa de candidatas ou parlamentares. Restringir a proteção contra a violência política de gênero como acontece no Brasil é não proteger o conjunto dos direitos políticos assegurados na Constituição Federal para as mulheres.
A garantia de direitos políticos para mulheres demorou séculos para ser consolidada e universalizada para além de mulheres brancas com renda própria. Mas ainda falta muito. A falta de uma proteção abrangente para mulheres que enfrentam a violência de gênero e a desigualdade patriarcal é um impeditivo nada acidental à luta contra a desigualdade de gênero, classe e raça. Só com muita organização social e política conseguiremos seguir avançando. Afinal, a igualdade é algo que, apesar de ser propagado pela Revolução Francesa, só poderá ser atingido pela luta das mulheres.
TEXTO
Luka Franca
Jornalista formada pela PUC-SP, bacharela em Direito pela USJT e coordenadora de organização estadual do MNU-SP
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O que pode um corpo em retomada?

Foto: Tiriri Rayo/Cortesia
O que pode um corpo em retomada?
Raquel Kariri* refaz os rastros de uma mulher cabocla em retomada para propor um antídoto para memoricídio e um caminho para o reencantamento das palavras
Há um toré do povo Kiriri, habitante do território conhecido por Bahia, que diz assim:
“Naquela mata tem uma pedra que abalei. Abalei, vou voltar abalar. Sou eu, índio caboclo índio, eu vim da mata para trabalhar”.
Nesses anos de retomada me sinto assim, abalando diversas pedras que foram alicerçadas dentro e fora do meu espírito para me afirmar uma “índia cabocla índia”. Acho muito bonito que no toré os parentes se afirmam três vezes, afinal, para um bom encanto funcionar, as palavras tem que acompanhar a força da intenção.
Uma das coisas mais bonitas das retomadas no Nordeste é a ressignificação da identidade “cabocla”, antes sinônimo de apagamento étnico, hoje é signo de força e resiliência nativa de quem se mantém alegre e tenaz na defesa de sua ancestralidade.
Bastante presente no vocabulário das gentes das zonas rurais, a caboclagem segue firme no propósito de dar de ombros às categorias raciais criadas pela colonização. Se inventa, reinventa, hackeia e come tudo com farinha na hora do almoço.
Gosto de me pensar como uma mulher cabocla, uma mestiça como o milho crioulo multicolorido que nasce dos andes à Chapada do Araripe. Uma mestiza “tenaz, firmemente amarrada às cascas de sua cultura”, como disse certa vez a cabocla Glória Anzaldúa. Ela também compartilhava essa experiência de pertencimento, de estar agarrada “ao sabugo como os grãos; com caules grossos e raízes fortes”. Essa experiência do espírito que a gente tenta traduzir em palavras, emerge em meu corpo como uma uma vasta floresta cósmica plantada por muitas mãos. Parecem apenas palavras bonitas? Não são.
Reconhecer e dar passagem para essas energias dentro de si não é fácil, há muitas pedras para se abalar, às vezes, pedreiras inteiras. Quando eu fui despertada, havia muita dor no início. O aperto no peito é irmão da desorientação. Algumas se perguntam: “Não é melhor continuar a dormir, seguir o coma colonial?”. Afinal, muitas de nós não é aldeada, – talvez a maioria? – isso deixa a caminhante ainda mais temerosa. Mas retomada não é feita de lógica.


Foto: Tiriri Rayo
As pedras são abaladas em cada território que habita um corpo caboclo e, uma a uma, as mestiças são despertadas pela força do território, dos rios, plantas, bichos e encantados. As mestiças sabem que retomadas são transmitidas pelo espírito. Foi assim antes de nós e continuará muito depois que nos despedirmos desse céu.
“Pisada bonita só tem caboclo/ Oh, pisa caboclo no rastro do outro”
– Pisada bonita só tem caboclo – Toré do povo Kiriri
Não tenho na memória, meu pai e tias mais velhas, usando a palavra índio ou indígena para determinar-se, e isso me causou muita confusão. Na época, não entendia nada sobre o Nordeste ser um território de primeiro contato e o que isso significa para a interrupção de nossas vidas, culturas e memórias. Havia um grande vácuo narrativo em minha família, as memórias sobre minhas/meus ancestrais simplesmente acabavam muito cedo.
Foi observando os costumes, curas, jeitos de nos relacionarmos com a mata e nosso modo de habitar a Terra que passei a cismar, estranhar o que me diziam ser natural. Até então éramos “do sítio” e não havia nada demais estar rodeada de rezadeiras, pessoas que sabiam prever chuvas, anciãs que receitavam plantas para cura, assombrações e encantados que vagavam pela mata, acender fogueira e passar a noite contando histórias… Foi muito depois, quando perguntei à minha tia Rita Alves Rocha, se nossa família é indígena, que pude ouvir a resposta ligeira: “Sim”.
Para mim, dar passagem à minha ancestralidade é uma experiência de amor e carinho profundos, tanto que não sei traduzir. É também fazer justiça para quem foi tão desrespeitado, aviltado, violentado. Quando penso nisso, minhas presas e garras aumentam de tamanho e exigem respeito.
"E, assim, as palavras encantadas estão retornando, a ancestralidade sendo convocada por seu nome, as lutas sendo travadas para a defesa das plantas, bichos e encantados, todas e todos que não falam como os homens."
Raiva e indignação irrompem do meu peito e eclodem em força para enfrentar a violência do etnocídio. Uma violência tão brutal que apagou a memória da minha família tal qual lavou o urucum de nossas peles. Por isso, entre vacilante e destemida, me pinto, defumo, firmo meu ponto, e sigo afirmando que os povos que dão nome ao meu território nunca foram extintos. O povo Kariri e Kariú, não são fantasmas do passado, somos presente e estamos reflorestando com nossas culturas nativas essa imensa monocultura branca.
E, assim, as palavras encantadas estão retornando, a ancestralidade sendo convocada por seu nome, as lutas sendo travadas para a defesa das plantas, bichos e encantados, todas e todos que não falam como os homens.
Quando eu vi o sete estrelo se alumiar no céu/Tive certeza meu povo, Kariri bebeu no mel/ Oh, abelha nativa/ Oh, meu chão é Caatinga
– Toré recebido da encantaria por João Kariri
Quem observa o chão da Chapada do Araripe percebe que ele tem muitas camadas, cada uma com sua função, até aquela que vai tocar as fontes d’água. Esse é o chão que piso: caatingueiro, nativo, do sítio, que me leva cada vez mais profundo e ao encontro dessa e das outras índias caboclas índias. Esse chão se move e deságua em universidades, congressos, reportagens e textos como esse. No meu chão tem toré e passinho de tecno brega, cheiro de futurismo e de pequi da Chapada do Araripe. Tem angústia, indignação e alegria. Meu chão é meu corpo, meu espírito, meu retorno. É pulsão de vida nativa.
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Quer compartilhar olhares e lutas no site da Escola de Ativismo? Inscreva-se no Edital ‘Habla, Comunidade’
Edital "Habla, Comunidade" - o novo site da Escola é de todo mundo
A Escola de Ativismo lança um edital exclusivo para quem é da Comunidade Ativista e/ou participou das formações do ciclo "Democracia e combate à extrema-direita"

O edital “Habla, Comunidade” tem como objetivo abrir espaço para a participação ativa da Comunidade Ativista na produção de conteúdo para o site e redes sociais da Escola de Ativismo. O edital também é parte da frente “Democracia e Combate à Extrema Direita” da Escola de Ativismo, que desde julho vem promovendo oficinas e debates sobre temas emergentes dentro do escopo da democracia.
Agora, após diversas oficinas temáticas e muita troca de ideias entre palestrantes, membros da comunidade e colaboradores da Escola, chegou a hora de transformar estes bate-papos em conteúdo.
Esse edital também é um convite para a Comunidade fazer parte do lançamento do novo site da Escola de Ativismo. Este momento significa um marco para a organização, com uma página muito mais moderna e com algumas editorias inéditas. Nós acreditamos que esse espaço só faz sentido se todo mundo com quem caminhamos nesses anos estejam presentes também.
Serão selecionadas sete propostas de conteúdos de opinião e de análise sobre Ativismo. As propostas aprovadas recebem apoio no valor de R$1.000 (mil reais). Serão aceitas propostas de artigos de opinião, reportagens, ensaios, entrevistas, materiais pedagógicos ou qualquer outra modalidade de material escrito.
As inscrições foram prorrogadas até o dia 14 de outubro!
Do conteúdo
Os conteúdos precisam ser inéditos e trabalhar com o tema da “Defesa da Democracia e Combate à Extrema Direita”. O escopo é amplo, mas os textos podem tocar em diversos assuntos, como eleições municipais, mudanças climáticas, ativismos, lutas pela terra ou pela água, enfrentamento de preconceitos em geral, etc.
Eles podem tratar desde experiências locais até análises macro da situação mundial de enfrentamento desse problema. O importante é que você, membro da Comunidade Ativista, traga o seu olhar sobre essa questão.
Os debates e conteúdos apresentados nos encontros da Escola de Ativismo podem servir de base também, mas sinta-se à vontade para trazer novas ideias e abordagens sobre o tema.
Vamos deixar algumas pautas mais específicas para te inspirar:
Como sua cidade está lidando com a questão da Tarifa Zero para o transporte público
Titulação de terras quilombolas, quais as principais dificuldades hoje?
Tinha uma hidrelétrica no meu caminho: como territórios estão sendo ameaçados pelo desenvolvimentismo
E aí, se inspirou?
Requisitos:
– Pelo menos um dos autores deve integrar a comunidade da Escola de Ativismo ou ter participado de uma das atividades da Comunidade Ativista do ano de 2024.
– Ser em língua portuguesa
– Ter de 6 mil a 12 mil caracteres
– Ao final do texto é necessário citar a bibliografia/referências caso elas sejam utilizadas
– Se for entrevista, citar as fontes
– Abordar o tema “Defesa da Democracia e Combate à Extrema Direita”
– Não ter trechos gerados através de ferramentas de inteligência artificial, como ChatGPT
– É importante que, na entrega do texto, sejam enviadas imagens/fotos que acompanhem a divulgação
– Para a divulgação do material nas redes sociais, será solicitado a/o autor/a indicações de materiais (fotos, vídeos, trechos do texto) que podem auxiliar, com liberação de uso.
Sobre o procedimento de produção dos textos:
– Serão selecionados sete textos
– A Escola de Ativismo entrará em contato com os selecionados para uma reunião de pauta e, caso haja necessidade, adequar a proposta à linha editorial da organização;
– A Escola de Ativismo se reserva o direito de não publicar textos que não estejam dentro da linha política da organização;
– O valor será pago após a entrega do material;
– O conteúdo será divulgado no novo site da Escola de Ativismo, com os devidos créditos e legendas sob licença creative commons
FORMULÁRIO PARA INSCRIÇÕES AQUI
E leia o pequeno manual que ajuda a construir a proposta para ser enviada!
FAQ:
Posso fazer junto com meu coletivo ou com outras pessoas?
Sim, claro! Mas o prêmio de R$1.000 será pago ao proponente do edital, que será responsável por dividir o recurso com as outras pessoas.
Posso usar um conteúdo que já está pronto e nunca divulguei?
Conteúdos institucionais, que possam colocar pessoas em risco ou materiais que não dialoguem com a proposta do edital não serão aceitos! Idealmente, um conteúdo feito “do zero” e exclusivo para a Escola de Ativismo tem mais chances de ganhar, mas se há algum material que já estava sendo feito e só precisava de recursos para ser concluído, ele pode sim concorrer.
Vou receber os créditos pelo trabalho?
Sim, todos os materiais receberão os créditos indicados pelos proponentes.
A Escola de Ativismo vai participar da produção do conteúdo?
Não. O trabalho da Escola de Ativismo é selecionar as melhores propostas de materiais e acompanhar a realização. Isso será feito por meio de uma reunião prévia, para definir e dar mais nitidez à proposta selecionada, e depois da entrega da primeira versão, pedindo ajustes caso seja necessário.
Como vai ser realizado o pagamento?
Para receber o valor será necessário emitir nota fiscal no valor total da proposta. O valor será depositado na conta do emissor da nota.
CALENDÁRIO: DATAS IMPORTANTES
Período de inscrição no edital |
De 24 de setembro a 14 de outubro |
Seleção das candidaturas |
De 08 de outubro a 15 de outubro |
Contato com as candidaturas |
Entre 16 e 18 de outubro |
Período para escrita e entrega dos textos |
Entre 21 de outubro e 11 de novembro |
Postagem dos textos no site da Escola de Ativismo |
A partir do momento em que eles forem entregues até março de 2025, seguindo a linha editorial da página |
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Leia o “Dez por Cento”: box com 6 livros debate Paulo Freire, aprendizagens e militâncias
Leia o “Dez por Cento”: box com 6 livros debate Paulo Freire, aprendizagens e militâncias
Os dez anos de Escola de Ativismo, por uma feliz coincidência, foi comemorado no mesmo ano do centenário do nascimento de Paulo Freire, em 2021.
Para celebrar tal coincidência, a Escola de Ativismo promoveu a série de encontros, agora transformadas em livros, batizados de “Dez por Cento – 10 anos de Escola de Ativismo, 100 anos de Paulo Freire”. Neles, convidamos, educadores, pesquisadores e ativistas para pensar as relações entre ativismo e educação. Foram seis conversas, que foram transcritas, revisadas por suas autoras e seus autores e publicadas em um box especial.
Ainda que Paulo Freire tenha sido o motor que dinamizou o processo, as companheiras e os companheiros trouxeram contribuições e perspectivas muito próprias. Com isso, pudemos ouvir um número elevado de referências, de práticas, de pensamentos que multiplicaram, e muito, as nossas formas de pensar e agir.
De forma que é um prazer compartilhar isso com vocês agora. Quem quiser acessar, pode clicar aqui abaixo e fazer o download de cada um dos livros:
- Romualdo Dias, com Influências de Paulo Freire em nossas trajetórias
- Jorge Larrosa, com Educação, Estudo e Ativismo
- Alessandra Munduruku, com Onde tem a sombra de uma árvore, está a Escola de Ativismo
- Madalena Freire, com Entre Escolas e Ativismos, uma aula com Madalena Freire
- Silvio Gallo, com O professor militante
- Dyarley Vianna, com Paulo Freire: por uma pedagogia preta
Ah, e todas estas falas e conversas estão disponíveis no canal do YouTube da Escola de Ativismo (que você pode acessar clicando aqui). Os livros também estão disponíveis para venda online e em livrarias!
Bons aprendizados, boas ensinanças, boas lutas e boas leituras!
Áurea Carolina: “Todo mundo tem que virar ativista climático”
Áurea Carolina: “Todo mundo tem que virar ativista climático”
A ativista e ex-deputada federal fala sobre sua trajetória, os desafios do presente e a necessidade de mobilização por justiça climática

É um evento parar para escutar Áurea Carolina. A fala é ligeira e bem humorada, o pensamento rápido e acolhedor. Ela oferta uma capacidade de formulação política e uma compreensão sistêmica que flutua entre a esperança, a raiva, o cansaço, o amor e a luta — as duas últimas leva tatuada na pele e mostra com orgulho. Escutar ela nomear as coisas como elas são é conseguir nomear também, é encontrar o eco de tantas subjetividades ativistas que vivem, escrevem, lutam e agem sob nuvens de fumaça e ameaças de trogloditas.
As quebradas de Belo Horizonte, o movimento hip hop, a capital mineira e depois o país foram entendendo isso aos poucos. Muita gente ouviu também quando uma das deputadas federais de maior destaque nacional abriu mão de seguir na carreira política, com um texto bonito, triste e cortante sobre ser uma mulher negra no branco palácio da política patriarcal tradicional brasileira. Ela fala sobre as experiências, algumas vezes violentas, de trabalhar na institucionalidade, e também a sua mudança de interpretação sobre o que é e o papel do ativismo, que, em suas palavras, não pode ser um lugar de consumo.
Para quem não conhece, ela é ativista, educadora popular e mestra em ciência política. Foi vereadora em Belo Horizonte e deputada federal em Minas Gerais pelo PSOL. Fez parte do projeto Gabinetona, Muitxs e rede Ocupa Política. É diretora executiva do NOSSAS e atua nas lutas de mulheres, negritude, juventude, povos e comunidades tradicionais e populações periféricas.
Eu tive a felicidade de escutá-la em 2016, quando estava em campanha para se tornar vereadora em BH. Eu segui ouvindo a distância, acompanhando como podia seus passos. A Escola também ouviu Áurea e a conversa continua a inspirar nossos passos.
Quisemos, nesse momento, ouvi-la de novo. E ela topou. Nessa conversa, fui acompanhado da Vitória Rodrigues, uma jovem comunicadora e ativista da Escola. Ela perguntou sobre o que Áurea teria a dizer para um jovem que sonha como ela. Eu perguntei sobre a vida dela, a trajetória, o cenário político, e a noção de legado. E pedi para que ela fabulasse também como seria uma política outra, em que todo mundo pudesse permanecer. Também quisemos saber como ela pensa a crise climática. E usamos essa frase dela no título para chamar vocês para esse papo.
Áurea, eu tive a oportunidade de te entrevistar em 2016, quando você estava concorrendo à vereança em BH. Também retomei um texto-diálogo que você teve com a Escola em 2018 e pude acompanhar sua trajetória. Aí chego hoje com vontade de te perguntar: o que que é ativismo, o que que é luta social, que que é militância para você hoje passado por todas essas transformações?
Áurea Carolina: Ah, que delícia responder isso com você, pensando também no meu laço com a Escola de Ativismo. É muito especial parar para pensar nisso, sabe? A entrevista de 2018 com Cássio [Martinho], mas foi um dia muito marcante, inesquecível, porque foi no 14 de Março de 2018 [dia em que a vereadora carioca Marielle Franco foi executada]. A gente não imaginava o que estava por acontecer, assim os desdobramentos são inacreditáveis. Cresceu muito a violência política. Mas também as sementes por Marielle são uma força que só se expande, cresce.
Naquele dia eu fiquei numa peleia em que eu falava que não sou ativista não, sou lutadora. Me parecia que ativista era abrandado. Mas isso é algo que eu revisei um pouco. Essa posição na linha de frente, muito combativa, me custou muito. Nunca abri mão, né? Tenho tatuado aqui “Amor e Luta”. Acho que são partes indissociáveis.
Mas o ativismo é mais flexível, comporta muita coisa. Várias formas de ser que são válidas também para construir cidadania, espaço crítico de mobilização e eu acho que isso hoje me interessa mais também: formas menos rígidas e mais dialógicas.
Eu acho que naquele momento fazia muito sentido para mim colocar naqueles termos porque também a gente estava constituindo um mandato coletivo numa esteira de muita inovação, né? Sem muito parâmetro, tinha uma coisa de construção coletiva que era muito potente baseada nas lutas populares. E esse termo é importante: lutas populares. Porque são movimentos e formas de construção de poder popular. E eu continuo achando importante afirmá-lo. Porque a gente não quer também ficar reiterando qualquer tipo de ativismo, embora eu goste da abrangência da amplitude. Acaba tendo uma coisa às vezes mais superficial, né?
"Questiono o ativismo quando ele aparece como um lugar de consumo. A gente tem que sempre estar pensando em criá-lo em formas mais robustas de organização, de um engajamento com consequência para que as causas avancem. "
Não quero aqui descartar algo que desperta as pessoas. Cada um se engaja individualmente. Mas questiono o ativismo quando ele aparece como um lugar de consumo. A gente tem que sempre estar pensando em criá-lo em formas mais robustas de organização, de um engajamento com consequência para que as causas avancem.
Nisso eu vejo a necessidade das formulações feministas, anti-racistas, dos povos tradicionais. Um entendimento da prática da interseccionalidade. E o que é interseccionalidade? São formas de colaboração que são a vida por inteiro, são modos de vida, são culturas, são práticas nos territórios. E é isso que dá cancha para a mudança. Eu não acredito em nada que não passe pelos sujeitos e pelo território. Eu acho que as elaborações mais interessantes, mais criativas e mais poderosas são mesmo a partir desses grupos. E eu fui aprendendo e me moldando.
Leia mais:
Áurea Carolina – quando a pessoa se torna ativista
Eu passei muitos anos no partido, mas nunca fui uma pessoa de partido. Nunca tive muita paciência, apesar de respeitar e valorizar, como um lugar importante desse ecossistema da transformação. Eu acho que os partidos estão mudando na medida que sujeitas como nós estamos ocupando esses espaços e quebrando formas muito estabelecidas e rígidas também, de teorias e de métodos que eu acho que às vezes são muito violentos e totalizantes.
Mas eu estou muito mais interessada em espaços que vão olhar para as vidas como elas estão acontecendo, sabe? Então eu tô muito mais na cultura popular, colando com quem está lidando com dilemas ali à quente, com as contradições à quente, com as encruzilhadas, com soluções para o dia a dia. Resolutividade, né? Que é uma palavra que eu aprendi com o Nego Bispo e é muito importante na vida assim como na ação política. Tenho pensado e experimentado por aí, depois de ter a experiência da campanha, da candidatura coletiva, do mandato. É sobre poder criar e ir montando o quebra-cabeça. Política como abertura de possibilidades.
"Acho que a gente não pode reproduzir esse carreirismo de tantos mandatos consecutivos no nosso campo"
Quando te entrevistei, em 2016, na época você estava se lançando vereadora pelo Muitxs. Você disse: “Nossa intenção é ocupar a eleição com cidadania e ousadia, para construir mandatos coletivos radicalmente democráticos, que irão transformar a lógica da carreira e do benefício próprio. Queremos criar espaços de resistência e fazer a diferença em políticas públicas, dizendo que é possível conquistar direitos para os grupos subalternizados, construir projetos colaborativamente e denunciar violações nessa arena coletiva que iremos chamar de mandato. Estamos indo para ganhar e não estamos de brincadeira.”. Passados oito anos, como você avalia essa missão que você enunciou naquela época?
Fico feliz de ouvir isso assim porque se mantém quase todo sentido ainda, né? Como algo muito genuíno que, claro, eu estava ali verbalizando mas vinha de muitos lugares de muita gente. E eu pude honrar isso. A comunidade LGBTQIAP+ e o Movimento Negro falam muito da importância do orgulho e eu acho que essas realizações são valiosas e contribuem para processos maiores. A gente não pode subestimar. É quem somos, é nosso poder e isso é muito lindo.
Essa parte do benefício próprio da carreira é uma coisa muito séria para mim. Eu nunca me adaptei naquele ambiente da política institucional, por mais que tenha feito muita coisa ali. Tem um sentimento de realização, mas eu vivia desajustada, adoeci de fato, tive um colapso emocional e entendi que é passagem, não projeto para permanecer indefinidamente.
Acho que foi um trajetória sonhada, experimentada mas que também tem que caducar. Toda geração passa por isso. Tem que ter fim. Não permanecer tanto tempo. Acho que a gente não pode reproduzir esse carreirismo de tantos mandatos consecutivos no nosso campo. Eu senti que a gente deu o que tinha que dar e claro que é um contexto complicado, de luta contra a extrema-direita, mas enfim, entendi que eu tinha dado o que tinha para dar como pessoa e como projeto.
Mas isso sou eu, sou muito inquieta e ninguém precisa ser desse jeito. Penso que durar também não é ruim. Temos mulheres como a Luísa Erundina e a Benedita da Silva que são inspiração e patrimônio para a gente. Uma coisa esplendorosa de aprendizado e inspiração. Uma integridade acima da trajetória. Mas para durar tem que preservar coisas que valem a pena.
Eu tinha uma crise muito grande que era assim: tem uma profecia de que nós não damos conta, né? Uma mulher negra com a minha origem já tem uma expectativa de fracasso. Então se eu não continuo, será que eu não tô alimentando esse ciclo também? Mas aí depois de muito pensar entendi que investindo, por exemplo, na candidatura da Célia Xakriabá, eleita deputada federal em 2022, que foi do mandato, era uma expansão. Existem muitas formas de lidar com essa desistência.

Áurea Carolina durante sua atuação como deputada federal
Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
Vitória Rodrigues l Escola de Ativismo: Te ouvir me trouxe muitas coisas. Eu participei no ensino médio do parlamento jovem e entendi que queria estar na política institucional em algum momento. Ver alguém como eu com a caneta na mão. E essa parte da finitude do projeto é muito importante para mim. Eu achei muito honesto quando li seu texto sobre sua saída da política institucional. Aí queria te perguntar o que você diria para uma pessoa jovem como eu, que quer chegar lá um dia e um dia sair também.
AC: Que legal isso, Vitória. Eu sempre botei muito valor nesses projetos de educação política, sempre parava minha agenda para atender, porque a gente nunca sabe quando vai inspirar uma Vitória e isso é lindo demais.
Eu entendo que temos mudanças geracionais. A geração anterior tinha uma coisa maior de estabilidade, de permanecer numa determinada coisa. Meu palpite é que hoje tudo está mais fluido. A vida acelerou e gerou outra dinâmica com a tecnologia, as redes sociais, a precarização do mundo do trabalho. São coisas que vão moldando nossa subjetividade e passam para a política. E essas gerações mais jovens, de lideranças e ativistas, ocupando a política institucional trazem um frescor. Conjugam e desaguam muitas experiências, de organização comunitária, de projetos da sociedade civil ou até de lugar mais acadêmico. Um mosaico potente, diverso, criativo e colaborativo.
Então mete bala, viu? Eu tô acompanhando mais o movimento aqui no Rio de Janeiro e na Baixada Fluminense e tô vendo um despertar de muita coisa legal, de lideranças periféricas, de criação de agenda, de gente que tá no território com sangue nos olhos e disposição de construir.
E acho que pensando na política institucional precisamos de gente para candidaturas, mas também para assessoria de mandato, de interlocução com a cidadania. São todas válidas e necessárias. Eu fazia muita questão de ressaltar isso, de tentar tirar o foco de mim, porque tinha muita gente incrível fazendo um trabalho de excelência no mandato, até adoecendo, porque as condições são adversas e a gente tem que cuidar de todo mundo.
Eu fico te ouvindo e lembrando dessa energia dos movimentos, de hackear a política, de ocupar que a gente trouxe dos anos 2010 e como ela foi se colocando na política e realmente trazendo muita coisa nova e importante. Por outro lado, a gente viu nesses últimos anos uma perda importante de bancadas de centro-esquerda e um crescimento da ultra-direita. Como você enxerga esses processos?
AC: Eu vejo tudo com entusiasmo ainda, apesar de tudo, a era das trevas taí, mas essas coisas coexistem, né? Acho que vamos levar uma lapada nessas eleições [municipais de 2024] porque a extrema-direita está se organizando e a gente está pecando nessa parte. A galera não está ligada em planejamento, gestão, interiorização, implementação. E tem a estrutura partidária. Conheci muitas mulheres negras, lideranças populares que tiveram que se filiar nesses partidos de centrão porque era o que tinha na cidade delas. E a gente nunca conseguiu encarar esse quadro de frente, mesmo com a montanha de recurso que existe para financiar a política institucional e o sistema partidário.
E eu estou muito cansada nesse aspecto. Tenho muita raiva ainda não processada porque a gente tem muita responsabilidade nisso, não tudo, mas temos nossa parcela. Ao mesmo tempo, eu acho que os mandatos ativistas são uma coisa incrível também cheia de nuances, potências, limites, contradições e dificuldades, mas que estão fazendo grandes coisas. Quando eu finalizei o mandato de deputada federal, eu meio que prometi para mim assim, “cara, eu vou de alguma forma contribuir com esses mandatos porque eu sei como que é foda”.
E eu propus que a gente fizesse uma espécie de diagnóstico sobre a real desses mandatos, o que que tá acontecendo com eles? Por que eu acho que todo mundo tem que se corresponsabilizar um pouco para sustentar esse trabalho que é de fazer uma mediação com a cidadania dentro do sistema político. Não dá pra ser só uma relação de consumo.
"Eu ando movida pela imagem e pelo sentimento do ecossistema. De entender a insuficiência das partes, de prezar pela independência e de colaborar. E colaborar não é só palavrinha. É trabalho, tem uma ética e uma forma de construir política e coalizões."
A gente precisa tornar esses mandatos mais sustentáveis porque é de interesse público que eles deem certo. Mas o que a gente mais encontra é a galera pirando e adoecendo. Então como a gente vai dar conta da demanda de saúde mental? E mais: pensando que são processos finitos, como vamos sistematizar nossas práticas para quem vem depois? Porque a gente está falando de Brasil onde a produção de memória é sistematicamente sabotada. A gente precisa deixar essas mensagens na garrafa para o futuro, para se tornarem coisas remixáveis, replicáveis, adaptáveis.
E quais as principais ferramentas que você enxerga para o campo da luta popular, da sociedade civil, do ativismo, daqui para 2026?
AC: Eu ando movida pela imagem e pelo sentimento do ecossistema. De entender a insuficiência das partes, de prezar pela independência e de colaborar.
E colaborar não é só palavrinha. É trabalho, tem uma ética e uma forma de construir política e coalizões. Coalizões é uma termo que ficou muito na moda, mas que eu vejo que tem uma força muito importante . De juntar organizações distintas em prol de causas comuns. De pensar essa heterogeneidade absurda do Brasil numa perspectiva de compartilhamento de conhecimento.
Temos iniciativas importantes nesse campo, o Pacto pela Democracia é uma, houve a campanha pela ministra negra no Supremo Tribunal Federal (STF) que foi bem sucedida apesar de não termos tido essa conquista, mas elevou o debate público e abriu uma discussão sobre racismo institucional no judiciário.
E eu acho que a chave está por aí, nas redes e coalizões, e numa sociedade civil movida pela resolutividade, como um valor mesmo. Eu sou neta de nego Bispo e acho que a gente não pode cochilar mesmo, que a vida acontece. A resolutividade é um senso de entrega, não afobação, mas um jeito de olhar os problemas, as adversidades, os conflitos. Como encarar passos que nem sempre serão os mais acertados mas acontecem pautados por uma ética, uma honestidade e uma ousadia. Porque se não fica uma coisa paralisada demais. E essa é uma das minhas críticas à esquerda convencional do Século 20.
Que exemplos você traz dessa resolutividade?
AC: Estamos com uma construção bem bonita de formação de Agentes Populares para Gestão de Risco Climático em comunidades. E aí passa por mobilização, comunicação estratégica, tecnologias cívicas e isso só pode acontecer num sistema de muita colaboração porque tem muita gente fazendo.
E é difícil porque são resultados pontuais e a gente precisa de algo escalável porque a urgência tá ali. É evento extremo atrás de evento extremo, então não vamos ficar perdendo tempo com o que não interessa.
Também me inspiro muito vendo iniciativas como Acampamento Terra Livre, a organização das mulheres indígenas que têm formulações maravilhosas e elas se propuseram ocupar a política institucional e estão botando para rachar com uma visão estratégica de constituir parcerias que é muito mais generosa e perspicaz do que a do mundo branco, do mundo não-indígena.
Teve uma Marcha das Mulheres Indígenas que aconteceu com um lema que dizia “O território é nosso corpo e nosso espírito”. E isso é o que? É matéria prima de tudo que a gente pode realizar, sentir e sonhar.
"Todo mundo tem que virar ativista climático, não tem para onde ir. Não é possível mais modular cidadania sem a dimensão climática. Não existe."
Falando em urgências e nesses movimentos, queria te escutar falando sobre sua visão da questão da crise climática e o que pode ser feito.
Estou aprendendo muito. Assim, eu venho lá do hip hop, o negócio era urbano. Eu não tava nem aí, não fazia parte do meu repertório a questão socioambiental climática. Até que aconteceu o crime da Vale em Brumadinho e nós tivemos que abraçar a luta dos atingidos.
E enfim, a questão climática vai afetar questões globais, financeiras, modos de produção, tudo. E a gente precisa fazer um entrelaçamento de pautas. Essa confluência interseccional que está sendo dita por pessoas há décadas, mas é isso, eu acho que a água bateu na bunda e todo mundo tem que virar ativista climático, não tem para onde ir. Não é possível mais modular cidadania sem a dimensão climática. Não existe.
A nossa vida está sob pressão, nós estamos vivendo sob uma guerra, né? Como diz a Eliane Brum, é guerra climática. Então vou entendendo isso com dor, angústia, ansiedade, mas também com esperança da possibilidade de ter caminho, de cuidar da vida.
E hoje a gente tem um movimento climático pautando esse impacto nas periferias das cidades. E é uma coisa revolucionária. Eu fico escutando a galera e penso “nossa, benzadeus, o tanto de trabalho que foi feito por tanta gente para ter esses meninos ai de vinte e poucos anos que estão arregaçando nessa pauta”. Que tão pensando em como a gente se prepara para viver essa guerra climática, na diversidade de formas de construir, de ter um espírito comum, de juntar e espalhar as habilidades e ferramentas que a gente vai precisar para se proteger.
Eu li uma entrevista sua no qual você falava sobre a incompatibilidade dos espaços da política institucional com vidas que não sejam de homens brancos e ricos. Sobre como não é um espaço preparado para pessoas que cuidam de outras pessoas. De como é um espaço violento. E aí queria te pedir para você fabular com a gente aqui o que seria uma arquitetura de espaços democráticos para todas as pessoas?
AC: Eu acho que a chave está nos cuidados. Eu tenho visto assim uma revolução pelos cuidados dentro de uma formulação cada vez mais consistente. Não só políticas de cuidados, mas de como se constrói a prática do cuidado. E isso vem de construções feministas, pelo Bem Viver, dos povos tradicionais, da agroecologia. Temos lugares dedicados a essa dimensão, mas os cuidados precisam estar em todos os lugares.
Eu sou mãe solo e estou voltando para Belo Horizonte porque lá tem minha rede. E é muito estruturante na minha vida isso, eu não abro mão por nada dessa dimensão. Respeito ao máximo meus horários de trabalho e faço questão de mostrar isso para equipe sendo diretora-executiva de uma organização, nessa perspectiva de dar o exemplo.
Depois da pandemia, todo mundo ficou meio dodói, né? Não só por Covid, mas saúde mental assim, eu acho que algumas coisas que já estavam sendo ditas sobre cuidados ficaram mais nítidas. E é muito possível essa transformação, um mundo assim não é nada metafísico, é bastante concreto.
Acho que a dimensão do cuidado, que é compartilhada, está muito fraturada. E sermos radicalmente diferentes de tudo que nos trouxe até aqui passa por isso mesmo.
AC: Sim, e eu acredito muito no encontro. Porque as posições são uma coisa. Mas o sujeito é diferente. O sujeito é interpelável. A não ser que seja assim um cara muito sem escuta e aí você larga mão. Mas eu sou educadora popular. Eu acredito muito nos processos.
Porque essa coisa de rede social cansa. Fica uma subjetividade muito burra. Um beco sem saída. Mas fora delas é sempre muito possível. O encontro é uma coisa formidável.
TEXTO
publicado em
24/09/2024
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Pensamentos e comportamentos dos ultraconservadores ficam mais explícitos durante campanhas políticas. Mas e quando eles vêm do vizinho da rua?

As eleições atualizam e exacerbam o discurso radical de direita
Foto: Ravi Kotecha / Edição: Vitória Rodrigues
A derrota nas urnas em 2022 e toda a visibilidade e repercussão sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro não foram suficientes para pôr fim à extrema-direita. Isso fica ainda mais explícito com a chegada de um novo período eleitoral. É justamente nessa época que as condutas de extremistas ganham palco e chamam atenção para com quem estamos lidando. Pesquisadores da área política afirmam que é necessário saber identificar quem pode representar algum tipo de risco em cada um dos mais de 5.500 municípios brasileiros. Além dos candidatos ultraconservadores, parte do eleitorado também deve ser observado, já que, em muitos casos, ele pode ser o vizinho do lado. O que gera a pergunta, como lidar quando esse discurso não está na televisão, mas vindo pela janela?
O perigo é real, não apenas retórico
Maíra Berutti, comunicóloga e diretora de inteligência da Quid – laboratório de comunicação para a disputa de opinião pública na defesa de valores democráticos e progressistas – diz que é impossível ignorar os efeitos perigosos do voto em figuras da extrema-direita, que colocam a vida em risco.
“Temos o exemplo da postura negacionista frente à ciência, que reduziu os índices de vacinação no Brasil no pós Bolsonaro, ou como a guerra às drogas legitima o uso excessivo de força e cria um ambiente em que a violência policial é vista como necessária e justificável, causando o genocídio de jovens negros”, explicou.
Para ela, a extrema-direita continua sendo um movimento que aposta em discursos que colocam em risco a vida de determinados grupos na sociedade, gerando um ambiente de discriminação e violência. Por isso, é preciso ter cuidado com quem se autodefine bolsonarista. Se a relação com um vizinho, por exemplo, não for das melhores por conta de divergência política, durante as eleições é preciso evitar contato e principalmente não entrar em assuntos sobre política, partidos e agendas.
“O desgaste é certo e a mudança no ponteiro praticamente nula. É importante identificá-los e encontrar temáticas em que haja consenso, para que a partir dessas pautas se possa viabilizar um diálogo possível", explica Maíra.
Apesar de tudo isso, a pesquisadora acredita que é possível manter uma relação respeitosa e pacífica com um vizinho mais conservador. “O que observamos é que para além da bolha mais radical, há muito espaço para encontrar consenso principalmente em conversas mais relacionadas a políticas públicas. A polarização, ainda que seja uma realidade ao falarmos de eleições, não se materializa para temáticas relacionadas à saúde, educação ou meio ambiente, onde é possível e necessário fazer o debate de ideias”, afirma Maíra.
Mas quando as opiniões são muito diferentes e os dois lados defendem pautas totalmente opostas, o cenário é outro. “Assim é difícil. Quando falamos de discursos que colocam em risco a vida de determinados grupos na sociedade, gerando um ambiente de discriminação e violência, a situação fica ainda mais grave”, disse.
O doutor em Antropologia Social e Babalawó de Ifá Orlando Calheiros é também escritor e costuma refletir sobre os efeitos do bolsonarismo. Ele explica que nem todas as pessoas que votaram em Bolsonaro são extremistas. Há eleitores que tiveram motivações distintas, como insatisfações anteriores e promessas. Além disso, ele afirma que é preciso compreender que a verdadeira face de Bolsonaro não chega para todo mundo e que muitas pessoas estão ‘presas’ em redes que impedem essas informações de chegar até elas. Há quem acredite que as informações sobre seu verdadeiro comportamento sejam ‘propagandas’ dos opositores políticos.
“Os setores progressistas tendem a ver essas pessoas como uma massa hegemônica, quando as pesquisas mostram que não o são. Inclusive, é importante identificar as diferentes parcelas desse eleitorado para elaborar estratégias para que eles não sejam tragados para esse lado mais extremo do campo conservador”, afirma Calheiros.
Apesar de pensarmos instantaneamente que o adesivo no carro indique que a pessoa reproduz discursos extremistas, racistas, LGBTfóbicos e machistas, essa não é uma regra. Calheiros explica que há situações em que é possível ter uma convivência segura e tranquila.
“Existem pessoas que, apesar de conservadoras, estão mais abertas ao diálogo, mas também existem aquelas que irão te ver como um inimigo. É importante saber diferenciar, entender se é possível se aproximar e como é possível se aproximar. Entender o motivo que leva aquela pessoa a votar nesse ou naquele candidato e elaborar uma resposta para aquilo”.
E se a relação permitir e o eleitor da direita for alguém mais íntimo – conhecido, amigo, parente ou colega de trabalho – ainda é possível tentar virar não só o voto, mas também os ideais. “Quando estamos falando desse “núcleo duro” da extrema-direita estamos falando de pessoas que talvez estejam para além do nosso alcance imediato. É importante compreender isso. E nos focarmos não apenas nos indecisos, mas também nos eleitores que ainda podem ser influenciados pelos ideais progressistas”, afirmou Calheiros.
De uma forma ou de outra, essas pessoas colaboraram com o fortalecimento da direita ou da extrema direita. O antropólogo acredita que quatro aspectos são fundamentais para explicar esse crescimento no Brasil e a sua consolidação como um campo.
“O primeiro deles é a forma como o Brasil ‘escolheu’ promover a cidadania ao longo das últimas décadas. Cidadania pelo consumo. Estimulando a criação e consolidação de uma classe média. Essa classe média não é apenas um recorte econômico, ela é um grupo da sociedade que acaba tendo interesses muito próprios e alinhados com o projeto ultraliberal que rapidamente se alinha com a extrema-direita. O segundo é justamente o crescimento de algumas vertentes evangélicas alinhadas com essa cosmologia ultraliberal. O terceiro é justamente os interesses de alguns setores, como o agro, que se financiam a promoção dessas ideias. O último aspecto é a explosão das redes sociais, a forma como elas foram incorporadas pela população brasileira. Especialmente as redes de feed oculto, como o Whatsapp”, explicou.
Nesse contexto, Calheiros aponta que é importante que o campo progressista também cresça com organização e pensando em retomar campanhas de ocupação e produção de presença nos territórios. Por exemplo, apoiando comitês populares, fazendo ações contínuas nas periferias. O famoso trabalho de base.

Tentativa e golpe em janeiro de 2023 / Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Extremistas no grupo do zap do bairro
Quando é preciso lidar com extremistas nas redes sociais, também é preciso ter cuidado. Se considerarmos que o WhatsApp é uma das principais ferramentas de debate político, chegamos ao ponto de que, no lugar de discutir com alguém a milhares de quilômetros, pode ser alguém que está no grupo da sua rua, bairro ou outro lugar bem próximo fisicamente. Verdadeiras campanhas de desinformação foram usadas durante as eleições de 2018 e a cena se repetiu de forma mais intensa em 2022. E agora volta à tona em 2024.
Pablo Marçal, candidato a prefeito de São Paulo, não esconde que precisa de cortes estratégicos de vídeos para chegar da forma que preferir em seus seguidores. Isso mostra que, para alguns candidatos, gerar situações e manipular eleitores durante a campanha faz parte do jogo. Marçal conta com um exército de pessoas contratadas para fazer esses cortes, já denunciadas pela Justiça Eleitoral.
De todo modo, ele e outros candidatos extremistas seguem inundando as redes como essas mentiras, na certeza de que ganharão visibilidade, mesmo que seja falando mal. A própria imprensa, que por um lado critica as ações do coach, vê o número de cliques e acessos das matérias aumentar quando embarcam nas polêmicas. Assim, por mais que haja um discurso de reprovação, fazem o serviço de catapultar o nome dos candidatos a um público que talvez ainda não os conheça.
O dilema para os ativistas é se vale ou não debater quando esses conteúdos chegam. Uma estratégia é denunciar os usuários ou perfis disseminadores de discurso de ódio, e em caso de perfis profissionais, ocultar os comentários. Sabendo, porém, que as redes sociais – assim como parte da imprensa – estão mais preocupadas com o fluxo, acesso e permanência do que com a veracidade das informações. Então a exclusão de perfis nunca segue a velocidade de propagação das mentiras.
“É importante lembrar que a dinâmica de engajamento em conteúdos assim pode inclusive resultar em seu maior impulsionamento e visibilidade na rede, portanto, evitar interagir é de fato uma estratégia não só para saúde mental mas para diminuir o alcance dos conteúdos”, disse Maíra.
Combater a desinformação e mensagens de ódio também cria o problema de que, com isso, perdemos o foco que deveria ser levar nossas mensagens para mais e mais pessoas. “Muitas vezes olhamos apenas para os nossos ‘inimigos’ e nos esquecemos que eles crescem, justamente, na nossa incapacidade de propagar as nossas mensagens”, afirmou Calheiros.
Extrema-direita reconfigurada
A ascensão da extrema-direita no Brasil ainda é sentida e a sociedade carrega nas costas a pressão e os impactos de uma grande ameaça à democracia. Mas Maíra, pesquisadora da Quid, acredita que o bolsonarismo já não é o mesmo. O movimento precisou se reconfigurar para continuar existindo. Antes centrado em em uma figura única, tornou-se descentralizado. É o que também mostra o fenômeno Pablo Marçal.
“Isso sinaliza um contexto de ruptura no bolsonarismo, com um candidato que tem atraído os eleitores mesmo sem o apoio formal de sua principal liderança. O que sugere que o bolsonarismo não se limita mais a Bolsonaro, mas se torna um espectro de ideais conservadores que pode ser representado por novas lideranças que não compartilham necessariamente do estilo ou das atitudes de Bolsonaro”, afirmou Maíra.
Calheiros concorda que outras faces carregam o nome do movimento e já escreveu que a extrema direita não precisa de Jair Bolsonaro para espalhar suas ideias. Mas para ele, o bolsonarismo chega em 2024 enfraquecido e lutando desesperadamente para manter a hegemonia da direita.
“Bolsonaro foi antes de tudo um sintoma. Passamos os últimos anos tentando identificar as causas desse vírus, como esse vírus infecta outras pessoas e conseguimos estabelecer algumas respostas. Digo no sentido prático mesmo. Eles perderam a eleição, não é mesmo? O problema é que a doença está se transformando, produzindo outros sintomas, como Marçal, como Nikolas. E talvez ainda não tenhamos respostas para eles”.
A verdade é que apagar completamente o bolsonarismo pode ser improvável, mas é possível reduzir sua influência. Só por meio de um esforço coletivo, que inclui a população brasileira e os setores da sociedade, será possível construir um futuro mais justo e igualitário e com convívio amistoso.
TEXTO
Letícia Queiroz
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