Por Bárbara Poerner*

Concentração de terras, domínio do agronegócio e avanço do garimpo ilegal impedem a consolidação da soberania alimentar, mas populações indígenas e campesinas resistem e propõem alternativas 

Ação do MST relembra e pede justiça por Massacre de Eldorado dos Carajás no Rio de Janeiro em 2021 l Foto: Reprodução/MST 

Vinte e um sem-terra assassinados, 69 feridos. Esse foi um dos saldos do Massacre de Eldorado de Carajás, que marcou para sempre o 17 de abril de 1996. Na ocasião, tropas da Polícia Militar do Pará forçaram violentamente a dispersão dos mais de 1500 manifestantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que marchavam até Belém para cobrar a desapropriação de fazendas e o assentamento de famílias. A data foi carimbada como o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária e é um convite para rememorar os movimentos sociais campesinos e indígenas que atuam contra a espoliação de seus territórios, pela soberania alimentar e proteção dos bens comuns da natureza.  

Ayala Ferreira, da direção nacional do MST, compartilha que abril é um mês de intensas movimentações na organização, em “defesa do teto, da terra e do pão”. Ela explica que o movimento surgiu no bojo da emersão das lutas de massa no Brasil, durante e após a ditadura militar, culminando com a promulgação da Constituição Federal de 1988. O momento de ebulição popular também forjou outros movimentos além dos campesinos, como é o caso do Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB), que hoje se consolida como uma entidade que busca construir uma matriz energética popular. 

Em 1981, o acampamento Encruzilhada Natalino se tornou uma referência para a fundação do MST, que em 1984 realizou o seu 1° Encontro Nacional, na cidade de Cascavel, Paraná. Já o MAB, por conta das grandes obras de infraestrutura da ditadura, como usinas hidrelétricas, articulava ações desde 1970 a partir das reivindicações de atingidos por barragens. Seu primeiro encontro oficial foi em 1987, em Chapecó, Santa Catarina.

Essa luta, porém, começou bem antes da década de 1970. Isso porque “lamentavelmente somos um país que se instituiu legitimando a grande propriedade de terras”, analisa Ayala, ao citar a histórica Lei de Terras

Sancionada em 1850 por Dom Pedro II, a medida dividiu ainda mais o Brasil em latifúndios ao estabelecer que só poderia adquirir terra quem a comprasse ou recebesse do Estado. O resultado foi um agravamento da concentração fundiária, que se desenrola até os dias atuais: 45% das terras no Brasil estão nas mãos de 1% das propriedades rurais,  segundo dados da Oxfam

A militante, contudo, destaca que mobilizações pela reforma agrária e democratização do acesso à terra sempre foram puxadas pela articulação popular de indígenas, quilombolas, campesinos e outros trabalhadores que vivem além da lógica do capital. “Tudo aquilo que nós tivemos de avanço e conquista, não veio sem termos instituído um mecanismo de pressão e reivindicação em torno da reforma agrária, reconhecimento de terras tradicionais e proteção de bens da natureza”, afirma. 

Ayala acrescenta que nesse processo, foi possível contar com figuras mais abertas à negociação. “Na gestão do Partido dos Trabalhadores (PT), foi um período fecundo para o processo de implementação de políticas públicas nos nossos territórios. Mas da perspectiva da massiva distribuição de terras para trabalhadores e trabalhadoras rurais, a política foi tímida. Houve um tensionamento permanente entre os interesses do capital e agronegócio versus os interesses dos trabalhadores do campo em suas vertentes”, diz ela, ao fazer uma distinção entre os períodos históricos em que há maior diálogo, e períodos totalmente fechados, como agora com a gestão de Jair Bolsonaro. 

“É o sucesso do agronegócio, e não o fracasso, que produz a fome”

s3° Congresso Nacional do MST, em Brasília. 1995 l Foto: Arquivo e Memória do MST.

Diversos projetos de lei que têm caráter anti-ambiental tramitam no Congresso Nacional com o apoio do presidente. Eles discorrem sobre a permissão da exploração em terras indígenas, como no PL 191/2020. Ou ainda são antigas sugestões que foram retomadas, como o PL 6299/2002, que sugere a flexibilização do uso de agrotóxicos. São manobras legislativas que beneficiam os setores da mineração e do agronegócio. 

“O agronegócio é responsável pela manutenção da concentração da terra e pelos limites no processo de diversificação da produção agrícola”, continua a militante. “A prioridade do agro é produzir commodities, não alimentos. De modo que o agro também é responsável pela fome no Brasil – e ainda causa diversos problemas ambientais”.

 A análise converge com a do pesquisador José Ribeiro Junior. “O sucesso do agronegócio convive bem com a fome, que é um problema político”, diz o geógrafo, que é um dos autores do Atlas das Situações Alimentares no Brasil. “Precisamos reconhecer os antagonismos que caracterizam nossa sociedade: não é o fracasso, e sim o sucesso do sistema agroexportador, que produz a fome”, completa.

Ele cita o professor, nutrólogo e ativista Josué de Castro, autor da obra Geografia da Fome, que discorre sobre a relação da mazela com o sistema de agroexportação. “O autor identificou que o fato da existência de grandes latifúndios e a monocultura impedia uma produção de alimentos de subsistência para os próprios trabalhadores. Ele chamou essa área de fome endêmica. Para ele, a fome era um fenômeno polimorfo”, explica Ribeiro Jr.. 

“Castro começou a falar da necessidade da reforma agrária. Porém, isso não viria de um estado comandado por essas oligarquias. Por isso a importância dos movimentos sociais: eles não enxergam o faminto como um beneficiário de políticas públicas, e sim como um sujeito político”, completa.

Durante o desenvolvimento do agronegócio, no Brasil e no mundo, uma das justificativas mais usadas é a da modernização do campo e consequente aumento da produtividade, que poderia cessar ou mitigar a fome. O pesquisador vê com ceticismo essa racionalização: “Há, de fato, maior produtividade, com o uso de maquinário, mas isso não significa a diminuição da fome”.

Segundo o geógrafo, isso acontece porque o agronegócio não é o único a produzi-la, mas sim um dos elementos inerentes ao capitalismo, sistema que poupa trabalho e, nesse caso, expulsa os trabalhadores do campo e de suas terras. “Quem absorve esses trabalhadores? Não há absorção, então uma categoria que produz subemprego vai produzir a fome”, explica.  Ribeiro Jr. cita um sintoma relacionado: entregadores de aplicativos de delivery, que ao mesmo tempo em que entregam comida, relatam fome e fazem refeições incompletas.

Apesar da intensa produtividade, grande parte dos itens produzidos pelo agronegócio não vão parar, necessariamente, na mesa dos cidadãos. “Uma parte do que o agro produz não é pra virar alimento, e eles não estão tão preocupados em quem vai comer; se é um brasileiro ou se vai alimentar gado na China, tanto faz”, diz José Ribeiro Jr.. É por isso que, mesmo com grandes safras de soja e milho, por exemplo, milhões de brasileiros passam fome neste momento. Conforme a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede PENSSAN), mais de 19 milhões de pessoas convivem com a mazela e outras 112 milhões – metade da população – sofrem com insegurança alimentar

Camponeses e povos tradicionais: aliados na luta contra a fome

Alimentação orgânica dos mais de 8 mil indígenas do Acampamento Terra Livre foi garantida pelo MST l Foto: Juliana Pesqueira (@jupesqueira) | Coletivo Proteja (@protejaamazonia)

O agronegócio, no entanto, não é o único produtor da fome e do problema de acesso às terras. A mineração e o garimpo também são. Ao citar a pesquisadora indiana Amrita Rangasami, que analisou crises na Índia e no Pacifico, o geógrafo explica que “em uma crise de fome, é importante olhar para quem sofre mas também para quem se beneficia dela”. Isso acontece, continua ele, por conta da extrema vulnerabilidade a qual os famintos são submetidos. O peso das mazelas sociais se distribui de forma diferente. De acordo com ele, são as mulheres e pessoas não-brancas quem mais sofrem com “os processos de expropriação, perda de terras”.

Um exemplo nacional são as situações de estupro e abuso sexual em terras indígenas. O mais recente foi revelado, nesta semana, no relatório Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo. No documento, constam relatos de mulheres e meninas que foram exploradas sexualmente, por garimpeiros ilegais, em troca de alimentos:

  “Os [garimpeiros] dizem: ‘Essa moça aqui. Essa tua filha que está aqui, é muito bonita!’. Então, os Yanomami respondem: ‘É minha filha!’. Quando falam assim, os garimpeiros apalpam as moças. Somente depois de apalpar é que dão um pouco de comida. ‘Se eu pegar tua filha, não vou mesmo deixar vocês passarem necessidade!’, assim os [garimpeiros] falam muito para os Yanomami”. 

Ainda, com o avanço da dinâmica garimpeira, várias famílias não conseguem manter seu cultivo de subsistência e ficam dependentes de trocas desiguais com os garimpeiros. “Alguns trabalham como carregadores em troca de pagamento em dinheiro ou ouro para depois comprar nas cantinas dos acampamentos, onde um quilo de arroz ou um frango congelado custam uma grama de ouro ou 400 reais”, revela o relatório. 

 A prática do garimpo é apoiada pelo atual governo, que empurra pela aprovação de projetos de lei que permitem a exploração de terras indígenas e são discutidos como emergenciais no Congresso. Dessa forma, a luta de povos originários em proteção de seus territórios alia-se à luta dos campesinos. Essa intersecção, para Ayala, é latente.

 “Precisamos nos articular para fazer pautas em comum, seja na lutas por territórios, defesa das florestas, rios e águas. Essa mobilização dialoga com a experiência de defesa que os povos indígenas têm. E são pautas muito comuns”. A militante conta que durante o Acampamento Terra Livre (ATL), mobilização que reuniu mais de oito mil indígenas em Brasília na última semana, foi o MST quem assumiu a preparação e fornecimento dos alimentos para os participantes.

Caminhos possíveis

Encontro Nacional das Mulheres Atingidas em Defesa da Vida. Brasília, junho de 2019 l Foto: Marcelo Aguilar/Reprodução MAB

Observando o histórico de luta dos movimentos sociais, é possível projetar e construir caminhos para efetivar a reforma agrária e a soberania alimentar. Isso significa, também, estar em constante disputa, onde até os conceitos e terminologias devem ser observados. José diz que “existe um tabu em torno da fome. As pessoas não falam “fome”. Essa ideia de segurança alimentar vem de quem tem dinheiro, é um jeito específico de olhar pro fenômeno, na melhor das hipóteses, de quem administra ou faz a gestão da miséria”, analisa. 

A soberania alimentar, pauta colocada pelos movimentos sociais populares, afirma que o povo deve ter autonomia para decidir como, quando e de que forma vai produzir e consumir os alimentos. “Não é só ser orgânico, mas quais as relações sociais por trás da produção. Há toda uma construção de soberania popular”, continua o geógrafo. Uma possível alternativa, para José, encontra-se no sistema agroecológico, que invés de excluir os trabalhadores da produção, os trás para perto. Contudo, ele não deixa de destacar que as soluções não são instantâneas ou individuais, mas sim iniciadas em um processo de luta coletiva e popular. 

Para Ayala, um dos objetivos é derrotar o neoliberalismo e o conservadorismo que regem o país atualmente, e com isso concentrar as forças na democratização do acesso às terras. “A gente só vai avançar na conquista de território e na reforma agrária se formos capazes de mudar a relação das forças que se negociam”, afirma Ayala, que vê as pautas do MST como paralelas a todo contexto brasileiro, do campo às cidades.  

“Há uma poesia que fala que a liberdade da terra e a reforma agrária são assuntos de todos que se alimentam dos frutos do trabalho e da terra. A poesia é nosso manifesto pra dizer que se nós quisermos ter alimentos saudáveis, de custo justo, superar as desigualdades sociais no Brasil, construir um país soberano, nós precisamos assumir a bandeira da democratização, do acesso a terra e da reforma agrária, assim como precisamos assumir a bandeira da democracia, educação, saúde e cultura”, finaliza Ayala.  

*Bárbara Poerner é jornalista e repórter. Cofundadora do pré-vestibular popular Cursinho do Zinga.

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