Escola de Ativismo

Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

A guerra invisível e o facão no rosto do desenvolvimentismo

O ato guerreiro de Tuíra, para além das chaves de leitura convencionais, se recusa a falar a linguagem política dos brancos
e deve ser lido a partir dos próprios pressupostos da luta indígena

Salvador Schavelzon

1

Qual o efeito de uma ação simbólica, como aquela que protagonizou Tuíre em 1989, quando encostou um facão no rosto do diretor da Eletronorte?

O que nos diz essa ação hoje, depois que a represa de Belo Monte foi construída e inúmeras hidrelétricas, dutos, estradas e plantações avançam sem parar sobre a Amazônia?

É apenas um gesto performático que representa uma oposição política, nos remetendo assim ao campo da política institucionalizada para entender seu sentido? Ou podemos ver no gesto uma força que fala desde outro lugar?
Entre as populações tradicionais do Brasil e o desenvolvimento econômico promovido pelo poder econômico e o Estado, existe um conflito. Podemos dizer que os conflitos têm uma dimensão pragmática e material, e outra dimensão simbólica, ritualizada, formal. Nesse sentido, a ação simbólica pode ter efeitos práticos numa negociação, e simbólicos dentro de um campo de disputa entre os índios, as empresas e o Estado.

Os índios têm sabido se posicionar no cenário político nacional, traduzindo sua resistência em demandas legislativas, por políticas públicas e garantia de direitos.

Mas os conflitos são também vividos nas profundezas do ser, individual ou coletivo, no corpo e na constituição subjetiva que nos determina. No caso dos povos indígenas, o ser coletivo se define longe da linguagem do mundo formatado pela modernidade ocidental, a política nacional e a influência das relações capitalistas de produção, trabalho e mercado.

Nessa medida, o conflito político é também um confronto que está além da política. Não se reduz a um campo codificado de disputas ou relações determináveis. É o campo daquilo que não pode ser entendido, organizado e classificado pela racionalidade dos conflitos internos em um mundo político convencional. A sua política, assim, aparece como grito, violência sem forma e sem sentido. Só assim se manifesta uma civilização que de fato não é sintetizável e inteligível em termos da outra.

Quando o conflito avança para além da disputa de interesses políticos mais diretos, e exprime a oposição entre mundos, histórias e experiências vividas, memórias e espaços essenciais de funcionamento social, os símbolos podem superar a força de uma simples representação, ou ritualização, do confronto político, mobilizando e fazendo presente uma verdade material em ato.

Um símbolo, assim, vai além da representação de posições políticas ritualizadas ou da simbolização metafórica de algo ausente na situação. O ato simbólico pode ser entendido como uma bomba que, jogada contra o vidro de um prédio, se introduz, gerando um incêndio que pode fazer esse mundo interno do prédio – fechado, estruturado, separado do fora – arder.

As lutas indígenas têm essa potência. Trazem outro mundo e se impõem fortemente, ativando essa realidade ancestral que nunca deixa de se reinventar e estar.

Não solicita apenas “inclusão”, “participação” no mundo dos outros. Não é gesto estético que passa a formar parte de uma sociedade multicultural que incorpora sempre de forma controlada, localizada e tergiversada.

O gesto guerreiro encontra sua força numa civilização não subsumida pelo capitalismo e pela modernidade de matriz europeia. Faz essa civilização estar presente, como possibilidade e realidade alternativa, na forma da resistência e insubordinação.

Os povos indígenas podem ter tido seus sistemas de organização social desarticulados, suas roças tomadas e territórios invadidos, mas se mantêm como espaços de diferença que sempre encontram a forma de continuar, fugir, se refazer.

Numa guerra de conquista que leva séculos, a vida indígena convive e se encontra com a civilização invasora. Às vezes é incorporada, desarticulada ou arrasada. Às vezes também compõe com ela territórios intermédios de convívio. Mas também existe autônoma, como virtual-real que se mantém nas margens, invisível, ou que parte para o confronto e pode nesse mesmo ato de guerra, existir.

O gesto de guerra é em si mesmo um ato guerreiro, de materialização da sociedade indígena contra o Estado, com efeitos materiais que não somente representam, mas também performam e criam essa possibilidade de mundo não moderno, não subordinado, não conformado a entrar nos mecanismos de negociação de compensações por obras.

A força do gesto da Tuíre, na mesma direção de muitas lutas ameríndias do continente, não reivindica compensação. Ele simplesmente diz não. Recusa. Foge. Nega com um ato. O gesto é guerreiro porque se opõe sem medir consequências nem se rebaixar a falar na língua do outro. Ao mesmo tempo, ele pode ser um símbolo que nos mobiliza do outro lado da fronteira. Na sociedade dos brancos, onde também abrimos trincheiras contra os mesmos inimigos que cercam o povo Kayapó.

2

Qual é a guerra da Tuíre? Ela não é uma guerra estatal ou entre nações. O povo Kayapó não se encontra em guerra com o Estado brasileiro, embora este tenha sido governado sempre pelos poderosos que questionam o mundo Kayapó.

O poder que enfrenta o povo Kayapó não o questiona quando é considerado folclore, “cultura”, ou “diversidade que compõe o povo brasileiro”, mas se opõe a um mundo Kayapó levado a sério, com outro tempo e espaço, com outras formas de sociedade/natureza que interfiram na lógica capitalista da exploração, espoliação e valor.

A luta dos índios no Brasil também não constitui uma guerra de guerrilhas, nem uma luta anticolonial que busca expulsar os invasores para criar uma nação independente no coração da floresta. Os Kayapó, e outros povos indígenas, não buscam disputar o controle do poder político da sociedade.

A guerra de Tuíre é uma guerra não declarada e, portanto, sem direito a tréguas, armistícios, intercâmbio de prisioneiros ou processos de paz. A guerra que ameaça os povos tradicionais tem para o mundo do poder branco e invasor o nome de “paz”.

Da colônia à república, da república velha aos distintos gestores do capitalismo no Brasil, a pacificação modifica as linguagens com que se apresenta, incorpora novos personagens nas castas aristocráticas ou de elite, reconhece novos direitos e permite, inclusive, uma certa abertura e capacidade de circulação que situações de poder anteriores bloqueavam.

Mas toda pacificação não demora muito em se constituir como nova centralização e busca de monopólio. Os povos indígenas viram isso acontecer muitas vezes. É uma guerra perigosa porque se apresenta como formas de vida mais convenientes, como progresso, liberdade, civilização. A guerra que ameaça a sociedade indígena se apresenta como possibilidade para empreender, receber benefícios do Estado, se integrar num mundo onde nada falta e tudo é confortável, como uma propaganda de TV.

O último embate, pós-ditadura, neoliberal, globalizado, se mostra especialmente perverso. Reserva para os índios o lugar da mercadoria cultural. Não outorga mais o lugar de passado da nação nascente, também não trata do índio a civilizar. Os poderes políticos da formação de nação retrocedem e apenas contam o que pode circular como discurso, como mercadoria, como imagem espetacular sem conteúdo, numa sociedade que se imagina como grande mercado sem fora.

O fim da sociedade da floresta tem um rosto violento, de extração de recursos naturais que secam a terra e matam a vida, com o qual o convívio cosmopolítico de seres não humanos se efetua. Como exorcismo que também a sociedade dos brancos propõe da espiritualidade da floresta, a colonização mostra uma face bélica inocultável.

Mas a guerra também se apresenta de forma amiga. Como benefícios e integração num mundo avançado. É contra essa forma de invasão contínua e conquista invisível que é preciso mostrar o facão.

Simbolizando a oposição a um mundo de energia, progresso e desenvolvimento, Tuíre e os povos indígenas mostram que estão atentos e bem cientes das distintas formas com que a guerra se apresenta como impossibilidade de existir de todo um mundo que não é apenas humano e ameaça o território não apenas em termos econômicos.

O embate que hoje ameaça as populações indígenas, camponesas, ribeirinhas é o da imposição de uma forma de vida que transforma tudo em mercadoria sem saber bem para quê. É um sistema econômico e social contrário à vida, que acumula, produz, desfloresta, ocupa, cerca, vende, mata e desconhece, nega e descaracteriza tudo que não se adapte a esse funcionamento e organização de uma ordem social unificada.

A guerra que enfrentam os índios é a de uma ordem sem ideologia, sem história, sem sentido, a não ser aquele dos indivíduos que concorrem para obter mais, das empresas que buscam se expandir numa fuga desesperada para nenhum lugar, onde quem não escapa é alcançado pelas dívidas, pela carreira onde todos devem superar os outros, inferiores, lentos, incapacitados, para chegar antes, para serem melhores. Do outro lado, para quem não corre e não deixa tudo no plano da autovalorização, resta o deserto que o crescimento econômico e a busca por produzir mais vão deixando por onde passam.

3

O que pode ser hoje uma luta indígena, à qual possamos vir a somar, conseguindo não ser vetores da incorporação deles ao mundo que ainda eles olham de fora?

Poderemos nós também olhar esse mundo de fora?

Poderemos abrir essas formas fechadas para nós, que impõem individualismo, concorrência e narcisismo por todo lado… num regime aberto para o outro, da relação e do gosto antropofágico pelo diferente?
Poderemos ver a força atual, e não simbólica, ritual, folclórica nem cultural, de um gesto, de uma ação, e de formas alternativas vividas por eles, na sua constituição coletiva da pessoa, na imaginação perspectivista e multinaturalista que ainda circula na cosmopolítica que está além da política e que não pode nunca ser traduzida para nossa política?

Como entender, na chuva contínua de informações e dados, a importância de um símbolo como Tuíre, a índia que mostrou que eles resistem, apesar da força dos inimigos, com dignidade e força, não como símbolo estético e espetacular que se soma a essa chuva de informação, mas na abertura de possíveis para eles e para nós – desde que saibamos abandonar tudo aquilo que levamos mesmo sem querer e que faz parte da impossibilidade do mundo deles?

Como fazer com que esse mundo apareça, não seja eclipsado na fragmentação que costumamos impor entre o que seria político, econômico, do campo das artes, das formas culturais, da religião, da espiritualidade, da economia e do que tem valor ou não?

Cosmopolítica de uma floresta habitada, num mundo onde tudo é conexão e não separação… tudo está feito das mesmas forças e formas e tensões… onde o universo está em nós e nós no universo…

Por isso a realização de uma grande obra, estrada, jazida de mineração, porto, barragem, hidrelétrica, não é apenas uma intrusão física, que invade um território. Ela também invade um mundo. Não interrompe uma cultura, que faz do jeito deles o que nós fazemos do nosso. Interrompe um mundo, onde a própria forma de estar no mundo, um tempo, um espaço, se articulam de forma diferente.

Podemos fazer, no Brasil, com que Belo Monte e todos os crimes civilizacionais do Estado e do poder econômico não sejam esquecidos?

Que a floresta e uma sociedade que não se opõe à natureza não se dilua como simbologia retórica! Que seja simbologia que cria mundos e se organiza como materialidade de outros regimes de vida!

Entre a antropofagia e a guerra, o espírito indígena sabe tecer uma forma social que incorpora, sintetiza, processa e dialoga com o mundo do qual faz parte, mas também se opõe, em defesa.

Do outro lado, destruição da floresta e das condições de existência de outras sociedades…

A morte de um índio… de um rio, de um guerreiro…

Somos contemporâneos de uma luta de empobrecimento do mundo. O capitalismo se expande de acordo com uma lógica própria de valorização e lucro que é contra a vida.

Do outro lado encontramos quem diz “não!”. O facão do povo Kayapó, na mão valente da Tuíre. É um símbolo que nos coloca o desafio de criar outro mundo onde caibam muitos mundos e onde o desenvolvimento destruidor do capitalismo seja desarticulado pelas formas selvagens de luta, de vida, e de bem viver comum. _

Se preferir, baixe o PDF da revista Tuíra #01.

tuiragens _ EDITORIAL

Uma revista que é muitas. Que não faz contar o que acontece na hora em que acontece. Que toma distância, mas não é distante. Que faz avaliação, que faz análise, mas que (quase) não faz citação. Que extrapola a situação. Que faz paradoxo, que transita pelo arco do devir. 1968, 2018. 50 anos de paradoxos. Nada mudou, nada está no (mesmo) lugar.

Anarco-situacionista-caiapó. Facão na cara do desenvolvimentismo. Violência é o que cometem contra nós. Inundam nossa história, matam nossa comida, nos expulsam de tudo aquilo que somos nós: nossa terra, nossa vida. Para gerar luz que não ilumina nossas casas. Que nos joga diretamente nas sombras. Não nos enganemos: do coração das trevas, e não da pacificação, nasce a rebelião.

Não só Tuíra, mas tantas tuiragens: múltiplas vozes – da aldeia para o mundo – fazem das lutas poesia e revolução. Colocar a revolução a serviço da poesia!

Quando vozes negras, indígenas, trans, das bordas se levantam, o mundo estremece! Fazem ruir o mundo de mentiras erigido pelos kubēn. E não nos peça para termos calma! Amplificaremos nossas vozes por todos os meios necessários. O que pode uma ação?

Somos tantos ativistas, tantos são os ativismos. Um mosaico. Não tem encaixe perfeito. Perfeito é o encaixe que buscamos no sentido de multiplicar essas lutas e essas vidas que se encontram na vida e nas lutas. Qual é a sua forma de lutar?

Corpos ativistas. Co-fundimos e confundimos: corpos e prazeres. Somos experimentação, atravessamento tecno-ciência-xamã, acelerando as partículas do pensamento. Transformar o mundo segundo nosso desejo: eis a carne da teoria!

Quanto custa entregar o cuidado de nossos corpos aos impérios? Quanto custa entregar o tempo a uma causa? Quanto custa manter a opacidade disso que chamamos civilização?

Ocupar, ou desocupar, as terras, as casas, as escolas, as ruas, os imaginários e os corações. Inventar outra gramática. Destruir a organização dominante da vida. Criar outro mundo – um mundo onde caibam muitos mundos.

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#TÁTICA _ Intervenção Visionária

Desenhando o futuro no chão da cidade

Em São Paulo, uma ciclofaixa põe limite ao domínio dos carros: ação direta feita pelas pessoas _ Foto: © Luciana Cury

Faça você mesmo: ciclofaixa surpresa

Em uma manhã de fevereiro de 2018, em São Paulo, passantes desavisados em uma via movimentada da cidade encontrariam um insólito incentivo à mobilidade por bicicleta: em velocidade relâmpago, um coletivo instalou uma ciclofaixa cidadã. Em apenas 45 minutos e sem qualquer incidente ou imprevisto, foi feita a pintura de um quilômetro de ciclovia e 20 bicicletas sinalizadoras, colocação de balizadores, a pintura de um muro que acompanha a via e a cola de lambes explicando os motivos da transformação. A ação provocou alegria coletiva e conquistou considerável espaço na mídia nas primeiras 48 horas após sua execução, extrapolando a esfera do bairro e ecoando pela cidade como fato político.

Intervenções ao estilo “faça você mesmo” têm por vezes o mérito de colocar o oponente – no caso, o poder público municipal – em um dilema de decisão: ao apagar a ciclofaixa e destruir o trabalho não-oficial, porém claramente funcional dos ativistas, a prefeitura iria restaurar a carência de estrutura cicloviária na região e expor de forma brutal seu débito com a sociedade; de outro lado, manter a intervenção seria uma rendição da ineficiência estatal ao engajamento daqueles que se apropriam radicalmente da cidadania.

Os esforços dos ativistas para garantir que a ciclofaixa tivesse uso possível e seguro não eram apenas instrumentais: eram uma reivindicação da legitimidade da ação cidadã. A chave não está em vencer a autoridade do Estado, nem em complementá-la, mas sim em tensioná-la. Os autores da ação sabiam que empregar a sinalização cicloviária oficial jamais impediria que a ciclofaixa fosse eliminada ou substituída por uma estrutura da Prefeitura. Ao mesmo tempo, ao empregarem a sinalização ao lado de elementos inusitados, como o muro pintado e os cartazes ilustrando as razões da ação, instauram no local uma intervenção visionária: não basta que tenhamos uma ciclofaixa segura e funcional na cidade, porque também não nos basta um Estado autoritário, negligente e impermeável à atuação cidadã. A ação dos ativistas ensaia um passo além, sugerindo um outro futuro possível.

Fotos: © Louise Ganz

Lotes ativos nada vagos

Um projeto da artista mineira Louise Ganz, em colaboração com artistas, profissionais da arquitetura e moradores locais, passou a ocupar temporariamente lotes vagos de Belo Horizonte e Fortaleza para outras finalidades e usos públicos. A ideia era “ativar” um uso público possível de espaços naturalizados como propriedade privada, em ações de criação e engajamento tipicamente locais, ao mesmo tempo que se apontava para soluções de ocupação pública do espaço urbano em escala mais ampla. “Os lotes vagos são pequenos campos (cercados ou abertos) que possibilitam produzir e viver numa esfera distinta da especulação, do planejamento urbano regulatório e da hegemonia de construções e rotinas”, diz o blog da artista. Em Belo Horizonte, lotes foram transformados em praças temporárias, lugares de lazer, convivência e contemplação (como um “praia”) ou em espaços de serviços (cabeleireiros ao ar livre). Em Fortaleza, além de jardim comunitário, os terrenos tornaram-se redários para descanso de trabalhadores e palcos de arte e música. As ações aconteceram entre 2004 e 2008.

Em Recife, ônibus circula de graça num misto de serviço direto e protesto contra o aumento da tarifa _ Foto: © Maira Acioli

Eu Acho É Caro: a Busona

Em campanha carnavalesca contra o aumento das passagens de ônibus do Recife, ativistas organizaram em janeiro e fevereiro de 2018 o bloco Eu Acho É Caro. Em alusão ao bloco recifense Eu Acho É Pouco, a ação colocou na rua um ônibus gratuito (a Busona) que fazia trajetos pela cidade, buscando passageiros pelo caminho em pleno clima da festa. A ação conquistou a imprensa local, que enviou jornalistas a bordo do coletivo para acompanharem a inusitada união entre protesto, serviço e comemoração. A iniciativa se articulou com outras diversas ações diretas e batalhas judiciais contra o aumento da tarifa, interrompendo as negociações e impedindo que ele sequer fosse votado. Foi a quebra histórica de um período de cinco anos de aumentos ilegais do valor do transporte público na cidade. _

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Quando a pessoa se torna ativista

Quando a pessoa se torna ativista

No caminho do corpo-ativista-que-se-inventa não há nem ponto de partida nem ponto de chegada definidos. A invenção caminha junto com a experimentação

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Silvio Munari

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Quando ou como uma pessoa se torna ativista? Rascunhei muitas respostas: narrar alguns filmes em que ocorrem processos dessa natureza (Diários de Motocicleta; O Clube da Luta); contar minha própria trajetória (quando um colega, aos dez anos de idade, me pergunta: “você é punk ou metal?”); quebrar a frase e pensar cada palavra (“quando”, “como”, “pessoa”, “se torna”, “ativista”). Todos continuam me parecendo adequados, correndo o risco de dizer o óbvio: não há um único tempo ou um único modo para uma pessoa se tornar ativista.

O que me parece mais importante na pergunta são dois pressupostos implícitos em “se torna” e “ativista”. A expressão “se torna” aponta para pelo menos duas direções: 1) que alguém deixa de ser algo e passa a ser outra coisa; 2) que já sabemos que coisa é esta – ativista. De forma complementar, temos o problema de que todos já parecem saber o que é “uma pessoa que se tornou ativista”.

Talvez o mais difícil seja o “se torna”. Ao mesmo tempo em que permite, de imediato, pensar que alguém se torna algo diferente do que era, também abre caminho para pensar que alguém tão somente realiza seu destino. O exemplo aqui seria a semente e a árvore: a árvore já estaria virtualmente contida na semente; esta, se cultivada de forma adequada, germina e finalmente se torna aquilo que estava pré-destinada a ser: uma árvore. No caso de nossa pergunta: alguém se torna ativista porque já contém todas as características necessárias, bastando uma circunstância, um instante, um método para que finalmente realize, que traga para a realidade sua essência mais profunda: a de ativista.

Uma outra questão que o “se torna” suscita: a da conversão. É um tema um tanto quanto místico que se rastreia na biografia de santos (a conversão de São Paulo, o apóstolo e, segundo Alain Badiou1, um militante, um ativista), de filósofos (Pascal, Descartes, Rousseau passaram por um “hápax existencial”, uma conversão, segundo texto de Michel Onfray2), de personagens literários (o homem que acorda metamorfoseado em barata, de Franz Kafka3) etc. Assim, entender o “se torna” como uma conversão nos coloca diante de uma rota definitiva: uma vez convertida, “uma pessoa se torna ativista” de uma vez e para sempre.

1  Alain Badiou. São Paulo: a fundação do universalismo. Tradução de Wanda Caldeira Brant. Boitempo, 2009.
2  Michel Onfray: A arte de ter prazer: por um materialismo hedonista. Tradução de Monica Stahel. Martins Fontes, 1999.
3  Franz Kafka. A metamorfose. Tradução de Modesto Carone. Editora Brasiliense, 1994.

Por fim, a expressão “se torna” puxa uma terceira linha no emaranhado de sensações e pensamentos que produzem esta escrita: nem uma pessoa que alcança sua essência mais profunda, nem uma pessoa que passa por uma conversão, mas um corpo que se inventa ativista. Obviamente que este é um pensamento de matilha: já Friedrich Nietzsche, pensador alemão do século XIX, havia subtitulado um de seus mais provocadores escritos de “como alguém se torna o que é”4!E diversos outros pensadores contemporâneos seguem essa esteira, tais como Deleuze5, Onfray6, Foucault7, para pensar a “estética da existência”, a “escultura de si”, o “cuidado de si” como processos pelos quais passam os corpos que habitam esse mundo.

4 Friedrich Nietzsche. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. Companhia das Letras, 1995.
5 Gilles Deleuze. Conversações: 1972-1990. Tradução de Peter Pál Pelbart. Editora 34, 1992.
6 Michel Onfray. A escultura de si: a moral estética. Tradução de Mauro Pinheiro. Rocco, 1995.
7 Michel Foucault. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982).

Estamos aqui em terreno pantanoso, aquele que identificamos como um segundo pressuposto na pergunta: todo mundo sabe o que é “ativista”. E não estamos aqui querendo fazer um apelo à fuga dos estereótipos. Aqui estamos tentando criar uma fissura no bloco que pode bloquear os processos de invenção, ou seja, a produção de um ideal de ativista que funcionaria como modelo a partir do qual todos os demais ativistas seriam comparados. E mais: a depender de quanto um corpo-ativista-qualquer é mais ou menos idêntico à ideia-ativista-modelo, também mais ou menos ativista ele será. E as ideias, já escreveu Oswald de Andrade8, “queimam gente nas praças públicas”. Por isso: “Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas”.

8 Oswald de Andrade. Manifesto Antropófago. Publicado em: Benedito Nunes. A utopia antropofágica. Globo, 2011.

No caminho do corpo-ativista-que-se-inventa não há nem ponto de partida (fundamento), nem ponto de chegada (finalidade, intencionalidade) definidos. A invenção caminha junto com a experimentação e o corpo que se torna ativista pode não ter nenhuma identidade com o ativista-modelo, Ativista com “A” maiúsculo. No processo de se produzir, de se fabricar, de se montar ativista, este corpo vai se transformando, se inventando nos encontros que vai fazendo.

Talvez nos faça bem estabelecer um ajuntamento com aquilo que Gilles Deleuze escreveu a respeito da aprendizagem. Em seu livro sobre Proust, há um pequeno parágrafo em que aparecem a questão do tempo (quando) e do método (como). Podemos ler: “nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos”9. E ainda neste pequeno parágrafo ele toca na questão dos modelos: “Nunca se aprende fazendo como alguém, mas fazendo com alguém, que não tem relação de semelhança com o que se aprende”.

9 Gilles Deleuze. Proust e os signos. Tradução de Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Forense-Universitária, 1987, p. 22.

“Quem sabe como um estudante pode tornar-se ‘bom em latim’” ou “quem sabe como se tornar um grande escritor” são perguntas que o pensador coloca no mesmo parágrafo. No caso do estudante de latim, Deleuze dirá que pode até mesmo se tratar de amor, pode até mesmo se tratar de algo inconfessável. No caso do escritor, ele cita um personagem de Proust, que tem certeza de que um grande escritor não terá saído de uma educação do tipo acadêmica, mas sim do contato com os grandes bares.

Quando ou como? Por amor. Mas também por amizade, como quando um colega ou um professor de escola nos convida para ir a um protesto. Por acaso. Como quando em uma viagem de férias encontramos alguém que nos coloca num caminho do qual já não se pode voltar. Pela dor. Como quando nossos pais, mães, filhos, amigos são mortos cotidianamente devido à cor de sua pele, devido ao local onde moram, devido ao modo como produzem seu corpo, pelo modo como conduzem uma luta. Pelo não-humano. Como quando lutamos pelos rios, pelas florestas, pelos bichos, pelo direito de cada forma de vida existir. 

VEJA OS OUTROS TEXTOS:

Áurea Carolina
Ariel Nobre
Miguel Reis Afonso
Rebeca Lerer
Werá Mirim
artigo: Quando a pessoa se torna ativista

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Werá Jeguaka Mirim, o rapper Kunumi MC – quando a pessoa se torna ativista

Werá Jeguaka Mirim, o rapper Kunumi MC – quando a pessoa se torna ativista

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea Carolina, Ariel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

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Werá Jeguaka Mirim, o rapper Kunumi MC1

1 O primeiro encontro com Werá Jeguaka Mirim foi em Rio Claro, SP, em 2010, quando tinha 9 anos e participou com a família do 3º Bate-papo na Floresta, organizado pelo Arquivo Público e Histórico, na Floresta Estadual, com as crianças do 4º ano da Escola Djiliah Camargo de Souza. Em 2018, nos reencontramos no SESC Vila Mariana, e aquela criança agora era o rapper Kunumi MC, mais desenvolto no português e confiante de seu ativismo pela causa indígena.

Protesto

Eu sou ativista pela demarcação das terras do povo indígena. Quando eu estava com 13 anos, em 2014, aconteceu a Copa do Mundo. Os caras da FIFA vieram para convidar duas pessoas da Aldeia Krukutu2 para participar e as lideranças daqui escolheram [quem seria]. Uma semana depois, vieram pedir para escolher mais um para a abertura, para representar o povo indígena e soltar a pomba da paz. Meu pai, Olívio Jekupé, me indicou, e eu aceitei. Fizemos o ensaio e ficou bom, só que, dois dias antes da abertura, o cacique teve ideia de alguém fazer um protesto, e ele pensou que na hora alguém poderia soltar uma faixa escrita Demarcação já. Levamos a faixa pra ver o que ia dar, só que levamos escondido. Foi aí que o outro menino que estava aparecendo na TV não fez o protesto e sobrou pra mim. Se eu não fizesse aquilo já era, eu sabia que o futuro dos povos indígenas estava nas minhas mãos. Eu sabia que era importante, e eu fiz no meio do campo do Itaquerão. Muita gente me viu, muita gente. Quando saí do campo os jogadores pegaram a faixa e eu deixei, fui ver o jogo lá em cima e voltamos para casa. Contei pro meu pai, que achou estranho, disse que não viu nada, só o menino soltando a pomba da paz. A TV não mostrou o protesto que eu fiz. No outro dia vieram europeus, muita gente de fora do Brasil para saber o que é demarcação e porque eu fiz aquilo. Vieram pra me conhecer, saber quem eu sou e para que servia aquela faixa. No outro dia a gente viu a foto, repercutiu muito.

Infância

Quando eu era mais pequeno eu sempre viajei com meu pai pra vários lugares pra falar como é a vida de um menino na aldeia, só que eu não sabia falar direito na época. Hoje desenvolvi mais um pouco.

Aos 9 anos de idade eu fiz o contrato com a editora FTD e a Panda Books. Depois de 4 anos, quando eu estava com 14 anos, saiu meu primeiro livro que é junto com meu irmão, Os Contos dos Kunumi Guarani, e o segundo livro, Kunumi Guarani, que é quase uma autobiografia, falando de um menino que vive na aldeia. Foi ali que eu gostei de escrever literatura, continuei, e até agora eu estou escrevendo.

Rap indígena

Eu escolhi a literatura para minha vida. Um dia eu estava escrevendo, lendo os livros do meu pai e eu gostei muito – são poesias, e foi ali que tentei escrever poesia e transformar em música. Eu não sabia que aquilo era rap, mas já tinha ouvido os Brô MC’s, que é o primeiro grupo de rap indígena. Eu vi que eram letras de luta, muitas rimas, e eu percebi que tinha feito um rap. Escolhi essa literatura depois da copa do mundo. Quando comecei a cantar rap eu não sabia muito de qual tema falar. Só que eu sempre me lembrava do protesto que fiz na época na Copa do Mundo e me dava inspiração. Então, escrevo só sobre o tema, questão indígena, saúde, a importância de demarcar a terra indígena”.

Sangue vermelho

Quando comecei, muita gente me criticava, falava que o rap não é da nossa cultura, que a gente estava roubando essa cultura. Hoje mostrei pra muita gente que o rap é uma forma de defesa, de luta, para tentar salvar nosso povo através da escrita, pela música. Muita gente ouviu meu rap e gostou. Lancei em 2016 meu primeiro disco,que se chama Meu Sangue é Vermelho, com cinco faixas. Uma delas, a faixa com a música que eu mais gosto, é para os Guarani Kaiowás, em homenagem ao povo do Mato Grosso do Sul que mais sofre aqui no Brasil, que ninguém conhece, ninguém sabe. Pensam que eles vivem bem, ninguém mostra, a mídia não mostra. Eu escrevi essa letra em homenagem a eles, para dar visibilidade, porque estão passando por necessidade. Os fazendeiros estão matando eles toda hora, mas isso a TV brasileira não mostra.

Também tem o segundo disco que lancei em abril, dia 19, bem no Dia do Índio. O nome do álbum é Todo Dia é Dia de Índio, para falar pra muita gente que todo dia é o dia do índio, dia de luta e de vitória. Muita gente tentou nos massacrar, mas estamos de pé.

Cinema

Eu tive um privilégio de fazer um filme média metragem falando sobre meu povo, nossa luta, sobre mim, meus livros, a literatura nativa, meu rap e sobre a minha carreira: o filme Kunumi, o raio nativo, que foi premiado3.

3 O filme foi premiado no concurso Minha Vez, conquistou o segundo lugar no Youth Jury do Prix Jeunesse International 2016 [Alemanha] e venceu como Melhor Documentário e Menção Especial do Júri do prêmio SIGNIS, do festival Divercine [Uruguai].

E agora tem um novo filme, de um inglês, que veio pra cá direto no ano passado para fazer várias gravações. Em breve vai sair e se chama Meu Sangue é Vermelho. Eu viajei para muitos lugares para fazer gravações desse filme. Foi assim que eu conheci os Brô MC’s de perto, conheci como um artista conversando com outro artista. Fizemos gravações, conversamos sobre o rap, a importância do rap e como eles vivem. Foi ali que surgiu a letra Guarani Kaiowá.

Com essa filmagem fomos para o Maranhão. Me surpreendi muito: tem muitos povos indígenas no Maranhão. Cada aldeia tem uma terra, mas é pequena para muita gente. Estão sofrendo muito porque os fazendeiros estão sempre metendo bala neles. Fui conhecer pessoas que foram atacadas brutalmente, facada, tiro nas costas, muita coisa. Fiquei muito triste por ver um parente ser atacado pelos fazendeiros. Esse filme conta um pouco sobre a nossa luta.

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Áurea Carolina
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Isidoro Salomão – quando a pessoa se torna ativista

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Isidoro Salomão

Desaprender

Acredito que nasci com alguma coisa diferente. Desde a escola primária, no ginásio, passando pela escola agrícola, eu já dava um trabalho danado — no sentido de querer mudar as coisas. Nesta minha longa caminhada, sempre foi assim. Eu me tornei ativista na caminhada; não houve nenhum ato automático ou um clique que, de uma hora para a outra, me tornasse um ativista. Mas houve fatos que aceleraram esse processo: me tornei padre na Igreja Católica e vim a ser sacerdote na minha terra. Vivi toda a burocracia de uma igreja que não me cabia. No dia da minha ordenação fui ordenado meia hora antes da cerimônia. O bispo que me ordenou disse: “pode correr, vestir a roupa que nós vamos te ordenar”. No dia seguinte, em outra cidade, eu já estava na atividade de padre. Eu já fui para esse trabalho sabendo que minha missão seria diferente. A questão cultural, por exemplo.

Viola de cocho

Durante o Seminário, eu aprendi a tocar violão. Quando cheguei aqui e ia para as comunidades, percebi que meu violão espantava as violas de cocho1. Então, deixei o violão em casa e praticamente nunca mais peguei nele. Busquei as pessoas da comunidade, aprendi a tocar viola de cocho e fui pras comunidades com ela. Então apareceu um monte de violeiro de viola de cocho. Violão espanta viola de cocho. Isso foi um aprendizado pra mim, assim como tem aprendizado em cada ato, em cada evento. A partir daí, tudo o que eu tinha aprendido numa cadeira de escola, tive que (quase) desaprender, desfazer para caminhar com o povo. Desde então, cada dia é um passo nessa militância e nesse ativismo.

1 Instrumento musical de cordas dedilhadas, variante regional da viola brasileira, comum nos estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e no Centro-Oeste brasileiro. Recebe este nome por ser confeccionada em tronco de madeira inteiriço, esculpido no formato de uma viola. Reconhecida como patrimônio imaterial brasileiro.

Juventude

Nunca tive uma formação específica [na área] ambiental. Mas, por morar no Pantanal, eu deveria ter uma atuação diferenciada. Algo que me mudou muito foi a Campanha da Fraternidade de 1991, com o tema Juventude Caminho Aberto. Começamos um trabalho com juventude aqui e, cada dia mais, esse caminho aberto nos mostrava várias possibilidades. E um dos caminhos que nós começamos a trilhar com a juventude foi o caminho ambiental no Pantanal. A partir daí, fizemos todo um trabalho de aprender e ensinar. Era muito trabalho, tinha muita gente, havia 150 grupos de jovens entre 1991 e 1996. Nós praticamente buscamos os Sem-Terra para nossa região. Procuramos o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] para buscar uma possibilidade, uma solução para aquela juventude toda. Todo este trabalho levou a grandes ocupações de terra na região.

O povo ou a Igreja

Todo esse movimento foi nos tornando cada vez mais ativistas e, como me tornei um padre ativista, já não cabia mais na igreja. O bispo me pediu para escolher: ficar com o povo ou com a Igreja. Respondi que queria os dois, mas se fosse para escolher apenas um, ficaria com o povo. A partir daí fui me apartando da igreja e ficando com o povo. Nosso trabalho não parou, tanto que hoje eles querem reconectar nosso trabalho com a igreja. Ontem eles achavam difícil trabalhar com nós. Hoje eles querem trabalhar com nós.

Caminhada

Ativismo e militância se faz na caminhada. Quando você caminha com o povo, tem um objetivo e planeja essa caminhada, se torna militante, se torna ativista.

Tivemos uma experiência muito interessante: a Escola de Militância. Esse processo de trabalho com jovens focou nos jovens iniciantes, jovens em formação e jovens militantes. Foi uma formação em processo. Não acredito que a mudança do ser humano aconteça num passe de mágica, de uma hora para outra. Toda mudança é um processo. Uma mudança muito repentina não é verdadeira mudança. A mudança que acontece na caminhada tende a ser uma mudança permanente. Talvez por ter feito minha caminhada assim, acredito que a caminhada do outro seja assim também. E há o exemplo – isso é muito importante, porque o exemplo de alguém inspira. Me engrandece ouvir das pessoas: “com você, eu vou”. Então vamos

Cultura

Nosso ativismo provocou reação. Teve repressão, teve punição. Formamos um grupo em parceria com a Vanda2, passamos a cantar o que queríamos. Não falávamos mais: cantávamos, dançávamos. Aquilo que, se falado, seria reprimido. Cantávamos. Incluímos [nossas mensagens] no nosso CD e o pessoal ouvia na rádio. A questão ambiental e cultural torna gostoso o trabalho, envolve a pessoa inteira. Cultura e ambiente se complementam. Quando a questão ambiental está enraizada na vida da pessoa, ela se torna cultura também. Por exemplo, quando fomos reinculturar na viola de cocho, precisei aprender do pessoal… Dentro da igreja, nós fizemos a missa pantaneira, toda sertaneja, cantada e dançada. Isso tudo vai se misturando. Hoje somos uma sociedade sociocultural e ambiental. Não diferenciamos o humano, a natureza, a mística, de como vive essa pessoa. Cultura e natureza se vive. O bonito mesmo é fazer esse trabalho. Tem muito mais de prática do que teoria. É a caminhada que faz o ativismo, que faz a militância, e não um curso.

2 Vanda Aparecida dos Santos, ativista e fortalecedora da cultura pantaneira.

Teologia da Libertação e Comunidades Eclesiais de Base

Sou fruto de uma CEB [Comunidade Eclesial de Base]. Eu não fui para o seminário pequeno (que é quase degradação ou retração do ser humano, onde o cara é feito para ser padre). Fui direto para a faculdade, que é um seminário grande. Isso colaborou na minha formação. Não fui preparado para ser o padre que alguém quer, e fazer aquilo que Roma quer. Então, pela Teologia da Libertação contida nos grupos de reflexão das CEBs, eu cheguei lá… e, depois, por meu relacionamento com pessoas como Leonardo Boff, teólogo da libertação, com Dom Pedro Casaldáglia, com quem trabalhamos. E na Pastoral da Juventude, no auge desse trabalho, fui assessor de bloco no Centro-Oeste. Éramos quatro assessores no Brasil. Isso nos trouxe uma experiência muito grande, produtividade e efetividade. Ao trabalhar com juventude, ou você apresenta resultado, ou perde o jovem. Isso exigiu que a gente trabalhasse com o jovem, inclusive no sentido de dar as respostas para ele na construção de uma sociedade que eles desejavam. Nunca fui um teórico da Teologia da Libertação. Sempre trabalhei com os pés fincados na terra, na realidade.

Servir

Neste momento político, diante da crise atual, não há nada pronto. Todo o valor das coisas está no seu fazer. Durante toda a minha vida eu procurei viver daquilo que eu fazia em grupo. Para mim o maior revolucionário é Jesus Cristo, mas tem gente que acha que é o maior conservador. O desafio é fazer isso tudo concreto na vida das pessoas. Hoje sou considerado um expulso da Igreja, mas tenho em Jesus Cristo um exemplo de luta e isso me traz a referência da alegria de servir. Eu sou um construtor: tudo isso aqui que você está vendo [as construções, os espaços, roças de todo tipo, animais, sistema de aproveitamento de água de chuva, jardins, edificações, alojamentos, áreas livres e espaços comuns, uma chácara organizada para encontros], eu construí. Não para mim, mas para os outros, e tenho a alegria de ver os outros usufruírem dessas coisas todas que eu construí. Servindo aos outros, você está sendo servido também. A alegria está nisso. Para o militante que vem, ou que foi, ou que é, é fazer… fazer com o máximo de qualidade, com empenho da sua vida toda, porque isso é viver.

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Áurea Carolina – quando a pessoa se torna ativista

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Era o fim de tarde da quarta-feira, 14 de março de 2018. O dia tinha sido de duros embates na Câmara Municipal de Belo Horizonte para a então vereadora Áurea Carolina (PSOL), a mais votada nas eleições de 2016 na cidade. A conversa que deu origem ao depoimento abaixo aconteceu numa sala de reuniões da Gabinetona – o espaço institucional hackeado por Áurea e pela sua colega de movimento e partido Cida Falabella – e teve, por isso, uma gravidade incomum, tematizada no texto: a do “peso” da luta. Poucas horas depois, a vereadora Marielle Franco seria assassinada no centro do Rio. Amorosidade, resiliência, a “dor do mundo que constitui as lutas” ecoam aqui o sentimento de indignação que marcarão para sempre a lembrança daquele dia.

Fagulha

Há primeiro uma faísca, um chamado para se engajar. Na adolescência, um dia eu me dei conta de que existia injustiça no mundo. É difícil precisar uma marca, mas há um momento da tomada de consciência, a experiência subjetiva de a pessoa sentir a necessidade de colaborar com alguma coisa maior do que sua própria existência. Aconteceu mesmo antes de eu atuar na cultura Hip Hop como cantora de rap. Ainda que no Hip Hop houvesse a arte – e arte também é essa política dos encontros – eu sabia que não era suficiente escrever letra de rap, cantar rap. Eu queria ter a vivência maior (que está presente no imaginário do Hip Hop) da importância do conhecimento e de agir coletivamente. Daí eu fui tendo acesso a várias outras lutas. Em 2003, participei da retomada do Hip Hop Chama, uma movimentação de jovens da cultura hip hop em Belo Horizonte. Não sei que termo eu usava na época, mas o foco era claro: discutir direitos, política pública, porque havia influência de outros grupos e do debate político na época. O Observatório da Juventude estava puxando a pauta dos direitos juvenis, que era nova. As coisas estavam se entrelaçando. Uma parte de nós era ligada a esses processos de resistência nas comunidades. Depois isso foi virando uma marca. Eu passei a me reconhecer como uma lutadora.

Prefiguração

Há um grau de utopia imprescindível para a gente suportar a investida ativista. Para encorajar as pessoas e se encorajar, é preciso acreditar que é possível mudar. Existe um grau de prefiguração, em que a coisa que se sonha é sonhada porque esse outro mundo pode existir mesmo – e existe, de muitas formas no nosso cotidiano, por mais que não esteja generalizado. A Gabinetona é a tentativa de reconhecer que temos um espaço limitado, mas que pode ser um território das nossas buscas de horizontalidade, das práticas feminista, antirracista, de representatividade, de processos decisórios partilhados, por mais que isso seja uma raridade no ambiente institucional e em outros espaços. É difícil, dá trabalho, mas há uma disposição sincera para fazer. A utopia precisa ser alimentada por essas experimentações, senão as pessoas desistem.

Amor

Nessa conjuntura, em que nossa fé está sendo testada noite e dia, a gente precisa da energia vital da utopia. Eu me alimento das conversas com as mulheres, grupos de jovens, com os movimentos sociais, é lá que eu recarrego esse amor… É um amor, mesmo. Eu sinto também que, quando eu me dei conta disso na adolescência, era uma questão de amor próprio, de as pessoas não se submeterem às disposições que não levam em conta o que você pensa. Porque a gente vai sendo maltratada a vida inteira e esses silenciamentos são estruturais, não são apenas pessoais. O ativismo nos chama para entendermos nossa própria condição de mundo.

Dor

Há uma dor do mundo que constitui as lutas, sempre. Não existe luta sem um sentimento de indignação.

Amor e Luta

Eu tenho me sentido como uma lutadora. Porque os embates são barra-pesada. Lutadora dá a dimensão da contestação das opressões. [A noção de] ativismo pode trazer isso, mas não de primeira. O termo “lutadora” afirma que há um espaço de enfrentamento. Nós temos inimigos (não pessoas, mas ideias, práticas); nós temos coisas a superar, inclusive em nós mesmas, que se reproduzem na nossa formação: lutar contra as violências que aprendemos desde crianças, lutar contra as violências que estão em todos os lugares. Eu tatuei no corpo a expressão “Amor e Luta”. Acho que esses dois elementos são inseparáveis. O amor não é nada passivo, dócil, servil; é uma busca de justiça, de autoconhecimento, de respeito, e não é possível conhecer outra pessoa sem desvendar essas estruturas violentas. Nossos potenciais são massacrados por tudo isso que está aí. A luta precisa de amorosidade para a gente não se aniquilar também. Existe um registro de competição – capitalista, racista, patriarcal – que também afeta as lutas sociais e as esquerdas. Se queremos lutar de outra forma, de uma maneira que nos eduque, a luta precisa ser acolhedora.

O ativista leve

A ideia de “ativista” parece ter uma certa “leveza”. Pode-se construir de muitas formas a dedicação para a coletividade. Ativismo parece tirar um pouco essa carga de que a luta é pesada. A luta traz para nós uma corresponsabilização. Eu não posso transferir a responsabilidade para outra pessoa meramente, trata-se de um processo coletivo que, necessariamente, me envolve. O ativismo talvez tenha a imagem – pode ser muito estereotipada – da ação do voluntariado nas comunidades, tudo muito importante, mas que às vezes faz parecer que você pode fazer uma intervenção e que não precisa continuar.

Micro/Macro

Eu não acredito que há ponto de chegada, que chegaremos a uma situação melhor para todo mundo. Um dia eu falei: “nós vamos ser feministas até o fim, antirracistas até o fim, porque o racismo não vai acabar, o patriarcado não vai acabar, o capitalismo não vai acabar” – pelo menos não no horizonte histórico que temos. Não que o desejo pela mudança não nos interpele e nos convoque. Essa deve ser a nossa busca. O fato é que somos atravessadas infinitamente por essas violências, nós somos essas violências em última instância. Eu acho que a questão entre “micro” e “macro” – um debate situado no século 20 sobre como se organiza as lutas – trata de uma coisa só. Os feminismos também. Não dá para desconectar a minha intimidade, a forma como eu me sinto, do sistema global da especulação financeira, de como a gente lida com os recursos naturais. Chegamos numa fase em que todo mundo vai ter de se virar com tais problemas, algo que incansavelmente é preciso levar adiante e enfrentar.

Conviver

Compartilhar [ideias, experiências] com outras pessoas vai sintonizando os afetos. Aí a coletividade se materializa. Quando estou num espaço só com mulheres, e mais ainda, com mulheres negras, periféricas, a confiança vai também refazendo a vontade de lutar, de seguir. A gente vai construindo mediações, alianças – e as lutas são essas relações, principalmente. As lutas são sempre formas de convivência.

Ambiente institucional

Na Câmara de Vereadores, a pressão para que aumente a distância entre os movimentos e a vida institucional é assustadora. Os movimentos podem até tentar ocupar, mas as barreiras formais são brutais. Existem procedimentos, sombras, apagamentos, ruídos que não tornam automática a conexão das lutas com a vida institucional. Há um vetor do próprio sistema jogando para ficarmos aqui dentro, confinadas. Não se pode permanecer muito tempo nesse ambiente institucional. É preciso arejar a vida institucional continuamente. Do mesmo modo como somos socializadas para nos adequar às normas desde criança, assim é com as lutas no espaço institucional. A radicalidade, a ousadia, a inventividade, tudo isso que nos constitui, vai perdendo um pouco de vigor ao longo do tempo. A conexão das lutas com a institucionalidade requer uma tensão básica: as lutas precisam manter processos autônomos para além das instituições e, ao mesmo tempo, não descansar das instituições. A derrocada do projeto petista, democrático-popular do último período, tem a ver com essa separação. Eu nem falo de cooptação, mas de um enquadramento mesmo, de um empobrecimento [da ação]. Erguer na vida institucional uma presença ativa das lutas é custoso, e pode ser ameaçado com muita facilidade. Mas não se pode desistir; é tudo o que eles querem.

A luta na Câmara

Quando eu olho a Gabinetona na Câmara de Vereadores de Belo Horizonte, tenho de relembrar por que nós estamos aqui, qual é a dedicação de vida para esse projeto comum que a gente sonhou e aos trancos e barrancos vem colocando em prática. Nós primeiro inventamos que queríamos ocupar as eleições – ouvimos de tudo no meio do caminho e tivemos de fazer uma síntese no meio do caminho para persistir. Aqui é um esforço de resiliência diária. Aqui a gente tem de desenvolver estratégias de sobrevivência, e forjar atitudes também. Não se consegue simplesmente com a nossa “boa intenção” sobreviver aqui. É preciso romper, ir abrindo espaço, na marra.

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Miguel Reis Afonso – quando a pessoa se torna ativista

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Miguel Reis Afonso

O início

Comecei minha militância aos 20 anos de idade, no movimento estudantil, com o ingresso no curso de direito em 1978. Tive a felicidade de estar na PUC num período de grande efervescência política. A partir de 1978 e 79, a PUC muda um pouco sua atuação: ao ir para a periferia, ganha um fluxo que é de fora para dentro. Isso acontecia em várias áreas: na Pedagogia, no Serviço Social, no Direito. Naquele momento o centro acadêmico atuava na periferia de São Paulo junto com a cúria metropolitana, oferecendo assistência jurídica em sete pontos da capital – inicialmente um trabalho assistencialista. Eu trabalhava como estagiário de direito. Mas, em São Matheus, existia um movimento sindical muito forte porque o pessoal que foi demitido no ABC [região metropolitana de São Paulo] em 1976 comprou terreno no parque São Rafael, em Sapopemba. Era uma região muito politizada, onde já existiam favelas. Então, o trabalho de assessoria jurídica foi se voltando para os loteamentos clandestinos e favelas.

A Prefeitura tinha uma política de reintegração de posse nas favelas e, assim, nossa relação com as lideranças do movimento de moradia foi se construindo. Em 1979, vem o fundo de greve e nosso envolvimento vai se fortalecendo. Em 1980, surge o PT. O salto de qualidade foi quando, em 1981 e 82, logo depois da eleição, chega uma crise muito forte nas locações – tanto que a lei mudou em 1983 porque tinha muita gente sendo despejada. Os movimentos começaram a se reunir nas igrejas da Zona Leste, particularmente em São Miguel. Foi daí que surgiu o movimento de moradia, quando o pessoal começou a ocupar vastas [áreas] e a gente estava lá dando o suporte jurídico para isso. Participei da organização de favelas e da organização do movimento de loteamentos irregulares e clandestinos, em um grupo de advogados e estagiários que se reunia mensalmente com os representantes de loteamentos clandestinos. Vinha gente de todas as regiões de São Paulo. Assim se constituiu o movimento naquela oportunidade: juntando essa capacidade técnica, ideológica, e a militância concreta de ocupação de terras e ao mesmo tempo de criação de alternativas.

Movimento e Estado

Eu tinha um amigo médico, do curso de Saúde, lá no Eldorado em Diadema. Isso era antes de 1982. Conversando com os pacientes, fazendo reunião, meu amigo médico descobriu a hipótese de que perder a casa causava adoecimento e muito medo nas pessoas: grande parte dos seus pacientes tinha problema de pressão alta por falta de documentação das casas. Ele me chamou para ajudar nesta situação e fizemos um trabalho lá. Em 1984, recém-formado e aos 26 anos de idade, eu sou convidado para trabalhar com a regularização fundiária e vou para o governo. Começo a trabalhar da mesma forma que atuava no movimento fazendo as reuniões à noite, aos sábados e tal. Isso cria problemas tanto dentro do governo quanto junto à comunidade. Sempre fica a pergunta: mas o que esse cara quer aqui? Quer ser liderança também? Vai ser candidato? Mas eu nunca deixei minha militância na zona Leste. Eu saí da prefeitura de Diadema, fiquei um ano desempregado e, quando a Erundina assumiu a prefeitura de São Paulo, aconteceu minha indicação do movimento popular de moradia para assumir na prefeitura. O movimento queria muito mais de mim do que eu poderia oferecer e mesmo assim a gente conseguia fazer muitas coisas. Isso é, para mim, uma postura coerente: estar no governo e estar no movimento. Normalmente as pessoas vão do movimento para os governos, percebem os limites de estar no governo e, quando saem do governo falam mal daquilo que não conseguiram fazer. Eu mantenho minha coerência. Sofro com isso, mas prefiro assim.

Se você deixar o movimento quando assume um cargo público, isso aponta para uma certa concepção. É comum isso acontecer. Quando o sujeito entra na administração pública, aprende que não pode fazer isso ou aquilo. No meu caso, eu nunca saí do movimento e isso sempre tem consequências. Por exemplo, fui demitido do governo Luiza Erundina por ser “muito voltado para os movimentos populares”. Na época, a prefeita deu uma entrevista dizendo que precisava de um perfil mais profissional, mais empresarial na COHAB [Companhia de Habitação]. Eu tenho o jornal com essa entrevista guardado até hoje, onde ela dizia mais ou menos assim: “o Miguel trabalha muito com os movimentos sociais”.

Do direito à luta pela terra

Inicialmente a luta não era pela terra: era por questão contratual. As pessoas compravam os imóveis mas nunca tinham documento, certeza ou segurança jurídica. A situação era muito difícil. Naquela época não havia ainda a lei do parcelamento do solo, de 1979. Meu trabalho é anterior à lei e, sem ela era muito difícil preservar direitos. Naquela época era comum a pessoa não fazer o documento porque não estava a fim, e a situação ficava daquele jeito, irregular. Os loteamentos eram vendidos sem nenhuma garantia, tanto que se o comprador/morador atrasasse duas ou três parcelas, o vendedor simplesmente tirava a casa na mão grande. Era um grande desafio fazer a população entender que tinha tais direitos.

Nosso embate com as imobiliárias era muito grande. Muitas vezes, eles não davam nem um recibo. Certa vez, lá em São Mateus, o pessoal não tinha recibo de compra e venda. A imobiliária enrolava: “passa amanhã, não vou dar o recibo hoje”, ou o preço do recibo era um salário mínimo – olha só o absurdo. Um dia colocamos todo mundo num ônibus e fizemos uma manifestação na porta da imobiliária. Para azar do dono, alguém chamou a televisão. A reportagem passou na hora do almoço e o dono da imobiliária passou a receber telefonemas dos parentes do interior: “O que está acontecendo com você, que sempre foi um cara honesto?”. O cara me ligou no dia seguinte e disse que faria os documentos. Ou seja, era mais ou menos assim.

A luta pela terra vem depois de uma certa compreensão política: o povo vai percebendo o que quer. E era muita terra vazia na periferia servindo à especulação. São áreas construídas ou livres esperando a valorização enquanto tem gente precisando de terra e de casa. As pessoas vão percebendo. Entre 1983 e 1988 aconteceram muitas ocupações de terra em São Paulo e o pessoal está lá até hoje.

Formação

Dentro do movimento de moradia muita gente se capacitou, teve uma época em que procuravam as faculdades de direito. Evidente que estudar direito é muito diferente de advogar. Mas tem gente que hoje está advogando e militando, fazendo seu ativismo junto ao movimento e sua carreira profissional. Fico satisfeito em ver esse processo de formação dos quadros e colaboro sempre que posso.

Favela

Hoje, a luta por moradia continua muito ligada a uma determinada conquista. Depois da conquista vem uma certa desmobilização – exceto quando uma liderança é muito ativa, não vive sem lutar, procura outras lutas. No caso das favelas, houve muito avanço, mas ainda há muita luta. Há uma contaminação midiática que pretende confundir favela com comunidade, por exemplo. Não: você mora numa favela! Favela tem uma história, tem uma origem na exclusão. Foram os negros expulsos do centro e mandados para os arredores das grandes cidades. Apesar se ser esquecida pelo poder público, a favela resiste, supera as crises. É impressionante o poder público não resolver o problema da falta de moradia.

Hoje

O movimento hoje é institucional. Tem uma faceta de luta e uma faceta de produção de unidades habitacionais. Vejo isso como uma conquista. Ao longo dos anos, o pessoal fez ativismo e também propôs fortemente as políticas habitacionais, os mutirões, a autogestão. A política do Fundo Nacional de Moradia Popular e o Minha Casa Minha Vida são fruto desta luta.

São 40 anos de luta. E o que motiva as pessoas a continuar? Conversando com contemporâneos de luta, concluímos tratar-se de fé. Não uma fé religiosa, mas um acreditar nas coisas, acreditar na luta. O que me faz sair da cama muito cedo num domingo e seguir para uma reunião longe da minha casa? Você chega lá e tem gente acordando, tem gente ainda sonolenta, e quando a reunião ameaça de começar chega alguém distribuindo cesta básica… O que me motiva? Acreditar na luta, acreditar nas pessoas, acreditar que a vida pode ser melhor. O que eu ganho com isso? Organização. Não tem benefício próprio: é acreditar num benefício coletivo.

Tem gente que me pergunta: o que eu deixarei para os meus filhos? Deixarei para eles coisas que o dinheiro não compra. Por exemplo, o meu filho mais novo, aos 17 anos, percebeu a realidade por si mesmo numa favela, quando foi num grupo na Vila Prudente para conhecer um grupo de jovens. Agora que ele está na faculdade, essa experiência influencia muito a atuação dele.

Terra

Não somos movimento de sem teto, somos Movimento de Luta pela Terra. Sempre discutimos isso no movimento, tanto que era Movimento dos Sem Terra da Leste I. Entendíamos que o problema está na terra, e não no teto. O problema da moradia você resolve, o da terra é muito mais complicado. Eu cheguei a trabalhar na CPT [Comissão Pastoral da Terra], numa época que a luta estava mais voltada à questão trabalhista em função dos boias-frias. Bebíamos muito na experiência do movimento rural. A terra vem, mesmo no urbano.

Peregrinação

Nunca fiz nada para mim, nunca tirei férias. Fazia seis anos que eu não viajava. Sempre tinha um motivo: doença, falta de dinheiro e tal. Nunca fui um espiritualista, sempre fui concreto apesar de trabalhar muitos anos com a igreja. Fiz o caminho de Santiago de forma a chegar a Compostela no dia do meu aniversário [de 60 anos].. Com a camisa do Santos, aproveitei para pedir uma Libertadores… resumo da viagem: na volta, em Vila Nova do Gaia, entrei na igreja de Nossa Senhora do Pilar, ouvi: “você se prepara muito para estabelecer uma jornada. Ela vai acontecer de qualquer jeito esteja bem preparado ou não. E ela acontece.” E isso resumiu minha caminhada. Foram 11 dias caminhando sozinho, sem distração… para uma pessoa que viveu a vida toda em trabalhos coletivos, todo este tempo pensando na vida, refletindo, foi muito instrutivo.
“Lembrei de uma música.. Como é mesmo aquela do Chico?”

Quando eu morrer / Cansado de guerra
Morro de bem / Com a minha terra:
Cana, caqui / Inhame, abóbora
Onde só vento se semeava outrora
Amplidão, nação, sertão sem fim
Ó Manuel, Miguilim / Vamos embora
(Chico Buarque/1997)

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Rebeca Lerer – quando a pessoa se torna ativista

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Rebeca Lerer

Sem salvador

Hoje, eu trabalho a partir do reconhecimento dos privilégios estruturais e das oportunidades que gerei usando esses privilégios. Isso é você escapar da “síndrome do salvador”, de praticar uma pegada assistencialista no ativismo. Ao invés de focar apenas em fazer uma carreira (ou abrir minha própria ONG etc), o meu caminho é de volta: quero pegar tudo isso que pessoas como eu têm e criar oportunidades para quem não tem. Meu rolê está focado em fazer as conexões para que as pessoas que estão na ponta consigam ocupar esses espaços e fazer a transição para um movimento social e ativista mais diverso e representativo.

Atitude

O ativismo é você fazer o que pode, com a ferramenta que tem à mão naquele momento – senão a gente fica muito inerte frente ao tamanho dos desafios. Uma atitude de vida ativista é ter sempre em mente o que dá para fazer agora e o que vai nos levar, mais à frente, a realizar coisas maiores.

Ativismo orgânico

Há muita gente que virou ativista por força da realidade. Por exemplo: as mães de jovens assassinados pela polícia. É a partir do crime, do terrorismo de Estado cometido contra o filho delas (geralmente são jovens negros) que se tornam ativistas. Essas mulheres nunca passaram por uma formação de advocacy, estratégias, media training para dar entrevistas. Muitas delas nunca tinham sentado numa mesa de debate antes. De repente, na vida delas, passam do luto à luta e acabam se tornando ativistas das mais aguerridas e importantes que há hoje no país. O mesmo acontece nas comunidades de assentamentos rurais de campesinos que acabam virando lideranças locais e ativistas do direito à terra para poder sobreviver. Ou midiativistas em favelas, que são pessoas ameaçadas pelas dinâmicas locais de violência e acabam virando ativistas da comunicação livre porque precisam de um canal para se expressar, ter alguma visibilidade e segurança. Para mim a grande força vem desse ativismo orgânico que está surgindo, que se encontra com o da galera nova que passou pelo processo das cotas nas universidades, das oportunidades de primeiro emprego, das escolas técnicas e que, com o fator internet, tem acesso a todo tipo de informação. Há outros níveis de conexão e diálogo nessa juventude; uma parcela dela está mobilizada, está disputando narrativa nas redes e nas ruas, está forjando uma nova forma de fazer ativismo.

Ruptura sistêmica

Estamos vivendo os efeitos daquela grande onda de junho de 2013 que ressignificou a luta de muita gente. Conheço gente que militou a vida inteira em juventude partidária e que, a partir desses eventos, começou a atuar mais em rede, passou a ocupar os espaços públicos e privados de outra forma, passou a buscar mais autonomia na sua militância. Para mim o ativismo é um compromisso além do institucional, é uma lente de vida, uma forma de se relacionar com os outros e com o meio em que você vive, de priorizar o coletivo acima do privado. Pelo fato de a militância geralmente estar atrelada a uma agenda institucional, não é exatamente autônoma. O ativismo real é autônomo. O ativismo para mim está ligado a uma dimensão de ruptura sistêmica. A militância é mais reformista.

Vida de ativista

Você tem de ser muito teimosa e otimista para insistir em viver dessa forma. O ativismo é um canal de expressão de revolta. Não é um processo confortável ou simples, e muitas vezes é bem solitário. Entendo que muita gente que tenha lampejos na juventude depois de um tempo vá se acomodando. Viver de acordo com o ativismo exige um nível de entrega, de assumir certos riscos. É inerente à função social do ativismo ser uma pessoa provocadora, que produz desconfortos e rupturas para o mundo poder avançar. As pessoas às vezes têm a leitura de essa ser uma pessoa mal humorada, arrogante. Não é isso. Não quero impor nada para ninguém. Mas se isso provoca a pensar as coisas de modo diferente, estou cumprindo o meu papel.

Trajetória 1

Com 11 anos de idade eu falava que iria ser repórter de guerra. Eu tinha a vontade de entender como as coisas aconteciam no lugar onde elas estavam acontecendo. Minha família vem da Rússia (fugindo da Primeira Guerra) e da Polônia (fugindo da Segunda). O antissemitismo e o Holocausto, a narrativa de violação de direitos, de genocídio, de guerra, de sofrimento, de trauma psicológico, sempre foram muito presentes na minha família. Eu fui politizada, nesse sentido, bem cedo, por conta da carga que isso traz. Aos 18 anos fiquei um ano em Israel e lá eu conheci palestinos e o movimento de direitos humanos de israelenses pró-palestinos (o que me impressionou muito, e contrariou toda uma história que tinham me contado). Fui para Londres, morei num albergue de imigrantes, conheci muitas pessoas que naquela época (1995) estavam fugindo da guerra nos Bálcãs, e ouvi as histórias da guerra e da limpeza étnica. Eu, que não havia sofrido preconceito no Brasil, sofri preconceito lá por ser brasileira e imigrante. Tive acesso a outras culturas e outras formas de lidar com a questão das drogas e isso foi a semente para o trabalho que eu faço hoje em dia.

Trajetória 2

Quando eu voltei para o Brasil, fui trabalhar como estagiária na Fundação SOS Mata Atlântica. Morei um tempo no Parque Nacional do Superagui, no Paraná, onde fiz meu trabalho de conclusão de curso de jornalismo. Juntei com um caiçara, morei na ilha sem eletricidade, tive uma vivência comunitária pela primeira vez na vida. Depois fui morar na Amazônia e trabalhar no Greenpeace, numa época em que ele fazia um ativismo raiz mesmo. Tive o privilégio de navegar com pessoas que haviam participado de campanhas clássicas e estavam na organização há muito tempo. Fiz uma indução na ação direta não violenta, toda a cultura de ocupações, invasões, bloqueios, de como se faz um scouting, de como se pensa a parte jurídica. Trabalhei no Greenpeace até 2009 e saí quando era coordenadora da campanha de Clima e Energia com foco no Programa Nuclear Brasileiro. Depois atuei na Matilha Cultural, um centro de cultura e ativismo independente no centro de São Paulo, e lá sou voluntária até hoje. Em 2011, fui trabalhar na Comissão Global de Política sobre Drogas, que é um projeto independente (não é governamental nem da ONU) que reúne 22 lideranças internacionais (ex-presidentes como Fernando Henrique Cardoso, o ex-ONU Kofi Annan, grandes empresários como Richard Branson etc). Foi, digamos, meu MBA em políticas públicas, relações internacionais e advocacy, e, por conta da pauta, que era a legalização das drogas, eu era bastante ativa, ficava na linha de frente de representar os usuários de drogas junto a vários stakeholders de alto nível. Eu estava na Comissão Global em 2013, mas continuava na Matilha, quando então veio Junho.

Junho/2013

A Matilha acompanhava os atos do Movimento Passe Livre (MPL) desde 2011. Rapidamente, vimos o que estava acontecendo e montamos uma base de primeiros socorros. No dia 13, o dia daquele massacre na [Rua] Maria Antônia com a [Rua da] Consolação, a Matilha era a única base de atendimento médico no centro de São Paulo. Não havia uma ambulância por lá. Descolamos uns médicos e enfermeiros voluntários. A gente atendeu mais de 50 feridos naquela noite, encaminhamos três pessoas para o hospital. A Matilha fez o que podia naquele momento, enquanto muitas instituições e espaços se omitiram quanto à repressão e à violência policial que estava rolando ali. A gente se posicionou – e isso é ativismo. Mesmo trabalhando naquela época com o FHC na Comissão Global de Política sobre Drogas, eu permaneci nas ruas, levando gás e fazendo primeiros socorros. O fato de estar vinculada a qualquer instituição nunca me impediu de ser ativista.

Autonomia

Acompanho o coletivo da Marcha da Maconha desde 2008 e atuei “escondida” antes, porque nos lugares em que eu trabalhava isso não pegava bem (inclusive no Greenpeace). Meu ativismo na pauta da maconha é, acima de tudo, autônomo, individual, pessoal. Quando eu saí da Comissão Global, ajudei a formar a Aliança pela Água (momento de crise hídrica no estado de São Paulo em 2015), e depois a Anistia Internacional me chamou para ajudar a estruturar a campanha Jovem Negro Vivo, contra o genocídio da juventude negra periférica, principalmente em função das mortes decorrentes das operações policiais. Fizemos uma campanha sobre a violência no Rio de Janeiro durante os jogos e lançamos o aplicativo Fogo Cruzado, que é um laboratório de dados sobre tiroteios alimentado por celular, fontes livres da imprensa e boletins policiais – um projeto que hoje é independente.

360 graus

A primeira expedição de navio do Greenpeace de que participei lutava contra a poluição química industrial de rios e mares. O último protesto daquela expedição aconteceu em Porto Alegre. Eu estava toda animada, vestida de macacão para a linha de frente, me achando a pessoa mais corajosa do mundo. Eu era estagiária de comunicação e me mandaram ficar na sala de rádio do navio, com uns celulares gigantes, o telefone do barco e os rádios. Eu ouvia a comunicação de toda a equipe e, se tivesse alguém ferido ou se a polícia chegasse, eu precisaria acionar o protocolo de segurança. Era um papel crítico, mas naquela hora, eu, jovem, achava que o importante mesmo era estar na linha de frente. Fiquei revoltada, trancada sozinha na salinha de rádio, perdendo toda a emoção. Só que, no final da ação, deu treta. Aí eu precisei agir, disparar os releases, fazer o que tinha de fazer, e eu fiz direito, fiz rápido, foi super importante. Caiu então a ficha: o ativismo real não tem glamour, não é só o cara que está lá acorrentado, existe toda uma engrenagem que está em volta, em cima, em baixo, 360 graus em torno daquelas pessoas que estão na linha de frente. Ninguém faz nada sozinho. O que faz o ativismo se tornar uma força de mudança é quando outras pessoas, com outros perfis, talentos e reconhecimentos diversos, se juntam para realizar alguma coisa. Mesmo que você só possa ficar em casa, monitorando as redes enquanto a gente está na rua levando porrada, é importante.

Escolhas

É um processo de autoconhecimento você se entender ativista, porque permanecer nesse lugar é uma escolha diária. Quando eu engravidei, me perguntei se eu iria conseguir prover o dinheiro para pagar as contas de uma casa com uma criança. Quando minha filha tinha 13 meses e estava sendo desmamada, eu fiz a primeira viagem para uma ação direta do Greenpeace em Santarém. Aluguei um barco para a imprensa, para filmar a ação, e nosso barco foi invadido por uns ruralistas. Me bateram, queriam jogar a câmera na água. Foi todo um estresse para conseguir mandar a fita para Belém para sair no Jornal Nacional daquela noite. Todo mundo acabou detido, havia 500 ruralistas do lado de fora da delegacia. Lembro que durante o dia eu estava tão adrenada, nervosa, que não senti a dor dos machucados. Eu “esqueci” por um tempo que eu tinha uma neném em casa. No final, todo mundo foi liberado, o Jornal Nacional exibiu a reportagem do protesto. Quando fui embora naquela madrugada, às quatro da manhã, eu sofri uma crise de pânico, porque me caiu outra ficha, a de que eu teria de achar uma nova forma de ser ativista enquanto a minha filha fosse criança, e que eu não poderia mais me colocar numa situação de tanto risco sem saber se voltaria inteira para casa ou quanto tempo demoraria para voltar. Foi outro momento de repactuação com o meu ativismo. Então eu passei a fazer mais coordenação de campanhas, o trabalho de negociar com os advogados e com a polícia, menos na linha de frente e mais nos bastidores. Em uma sociedade machista, para uma mulher ativista, especialmente que é mãe-solo como eu, existem essas outras questões: quem está cuidando da sua filha para você estar aqui protestando? Você não tem medo de apanhar ou de ser presa e deixar sua filha sozinha em casa? Acho que nunca devem ter perguntado isso para um pai ativista, ou perguntam muito menos do que para uma mãe. Então há vários momentos em que você se redescobre e escolhe novamente seguir nesse caminho.

Rebeldia

A gente sabe todas as pressões que a idade traz. Você vai ficando um pouco mais cética com a idade. As pessoas cansam, se desiludem, trocam as prioridades, querem ter vidas mais estáveis. Há esse lado do peso que a vida vai trazendo e as pessoas passam por traumas, elas perdem, passam por lutos, vivem crises financeiras, têm desejos e sonhos frustrados. Vejo pessoas próximas a mim, a amargura em que essas pessoas entraram. Para mim o ativismo é um antídoto anti-amargura. A luta te salva da inércia da derrota. Enquanto você está lutando, você está vivo, está ativo socialmente, está produzindo inspiração, ideias, amor, afeto, empatia.

Bizarrice

Eu só vou parar de lutar pela legalização da maconha quando legalizar ou quando eu morrer. Porque é muito errado. Não é porque eu tenho mania com isso; é uma questão civilizatória acabar com essa guerra às drogas. É uma guerra contra a gente mesmo. Não dá para falar em século 21 e inovação e, ao mesmo tempo, continuar carregando essa herança bizarra do século 20. É uma enganação. Não vou desistir.

VEJA OS OUTROS TEXTOS:
Áurea Carolina
Ariel Nobre
Miguel Reis Afonso
Rebeca Lerer
Werá Mirim
artigo: Quando a pessoa se torna ativista

Se preferir, baixe o PDF da revista Tuíra #01.

Ariel Nobre – quando a pessoa se torna ativista

O que a vida faz do ativismo e o que o ativismo faz da vida? Existe apenas a vida, ou também a vida de ativista? E, além de tudo, muitas vidas: o ativismo, sempre nômade, circula do campo à floresta, da aldeia à cidade, do corpo que se transforma ao corpo que transforma. Quando e como uma pessoa se torna ativista? Não há resposta única – sequer, talvez, resposta. Querer desvendar a pergunta é como querer desvendar o ativismo em uma única vida. Mas a pergunta não irá, e nem deve, calar. Há que ecoar, experimentar suas versões em diferentes corpos, diferentes vidas. É a tarefa que abraçam, nesta edição de Tuíra, Áurea CarolinaAriel Nobre, Isidoro Salomão, Miguel Reis, Rebeca Lerer e Werá Mirim, em seis depoimentos, e Silvio Munari, em um artigo.

Ariel Nobre

Pessoal e político

O ativismo, para mim, vem da necessidade de me sentir ouvido. Quando entrei no ativismo em 2013, eu pensava: “Não é pessoal, é político”. Mas depois, quando eu revisitei assédios de infância, pensei: “A quem queremos enganar? É pessoal também”. Hoje, minha maior missão como ativista e artista é balancear o que é pessoal e o que é político, assim como entender o que do pessoal vale levar do político e o que do político vale tratar e cuidar como pessoal. Então, acho que hoje ser ativista é isso: essa mediação interna-externa.

No Preciso Dizer que Te Amo, meu projeto de sensibilização contra o suicídio de homens trans, é um pouco assim: tudo é do âmbito privado. Escrever Preciso Dizer que Te Amo nas pessoas e nos lugares por onde passo pode parecer pessoal, e é, porque faço como uma auto-cura. Mas, ao mesmo tempo, a cura tem uma interface coletiva. Quando eu falo, uso minha experiência pessoal para convocar uma reflexão social sobre o suicídio dos homens trans. A pergunta que quero lançar é “eu me suicido ou sou suicidado?”. A lâmina da faca está apontada para o lugar errado – para nós.

E precisamos de outra separação que também dói: a separação entre homem e violência. Dói porque a gente não imagina a masculinidade sem violência. É um desafio criativo, não só para minha comunidade como para os homens em geral. É um desafio que tomo para mim enquanto homem trans porque também disputo o protagonismo de criar, para nós mesmos, novas referências positivas de masculinidades, conectadas com o mundo, a coletividade e a escuta, principalmente das mulheres – seja a mulher que eu fui, sejam as mulheres que estão à minha volta. Então, ao mesmo tempo em que é uma questão pessoal, é também uma questão coletiva. O ativismo, para mim, está nessa borda, nesse pressionar, nessa fricção entre público e privado, pessoal e coletivo.

Pessoa

Tem coisas que não faço mais por entender que já não preciso ou já não é estratégico fazê-las. Por exemplo, sinto que é muito cobrado das pessoas trans que contemos nossas histórias pessoais. Isso tem a ver com a mídia e com as expectativas sobre ser trans em nossa sociedade. Por muito tempo eu quis contar minha história, me apropriar dela e ganhar dinheiro com ela. Hoje já não quero, mas sinto que é uma necessidade de homens trans porque, como a gente não se vê, precisamos contar nossa história para nós mesmos e dizer “eu tenho história, este sou eu”. É uma necessidade narrativa de reconhecimento e de imagem. Mas hoje, como já sou considerado uma referência e já sou considerado ativista, tenho tentado questionar essa minha necessidade de expor minha imagem.

A questão que tenho pensado agora é como meu ativismo pode se tornar maior do que minha história. Não me interessa mais a minha própria história. Já saí de um nível de precariedade e estou em outro momento, inclusive reconhecendo privilégios. Reconhecer isso também faz bem para mim, para os meus e para meu ativismo. Então estou nessa nova fase de ir além da minha história.

Cultura

Por mais que tenhamos tido essa vitória recente no STF [Supremo Tribunal Federal], a transfobia é muito cultural. Foi um passo importante, mas a nossa vida continua. E o meu ativismo é muito no âmbito cultural. Eu não sei fazer controle social, por exemplo. Não sei quais são as esferas do poder. Tudo para mim ainda é novo, mesmo depois de cinco anos. Descobri o que é a Defensoria no ano passado! E passei a conhecer mais do sistema prisional acompanhando as manifestações pelo Rafael Braga. Meu ativismo é muito mais na arte, na cultura, na linguagem, na narrativa: disputo esse âmbito e não tento outras coisas.

Cura

Tenho tido reflexões bem profundas em relação ao fato de a cura ser coletiva. Poder dizer “não” é uma questão coletiva: hoje temos adesivos que dizem Não é não e as mulheres têm uma interface de luta. É você que vai emitir o “não”, mas, para você se fortalecer, precisa conversar com outras mulheres. Minha reflexão hoje passa por como somar na coletividade, e como a experiência do ativismo pode ser de auto-cura, e não de adoecimento. Por que é tão adoecedor quando nos propomos a nos curar?

Hoje, com mais autonomia, inclusive financeira, tenho mais condição de me perguntar o que é importante para mim e onde eu sinto que tenho importância. Precisei desse tempo para entender que sou só uma pessoa trans e não entendo de tudo.

Caminho

[O tornar-se ativista] para mim é um caminho sem volta. A fagulha veio em 2013, de uma necessidade física de nudez – principalmente de andar sem camiseta. Nas manifestações do Rio, eu vi que a nudez não era um preciosismo ou bobagem: os homens cisgêneros podiam, no calor de 50ºC, tirar a camiseta, mas eu não. Na época eu não sabia se era cis ou trans, só entendia que precisava tirar a roupa. Hoje eu sei que aquela pessoa que tirava a roupa não estava se encaixando na pessoa que eu queria ser. Eu só sentia uma necessidade fodida de ficar pelado e ficar sem camiseta, seja em casa, seja em lugares públicos. Percebi que a nudez é distribuída e aceita de forma diferente entre os gêneros e raças. O limite entre o que é considerado nudez e o que é considerado obsceno varia entre os gêneros. Vi que era algo político, e não pessoal. Isso me marcou muito.

Depois de 2013, tudo mudou na minha vida. Vivi intensamente as manifestações no Rio de Janeiro. Eu nunca tinha participado de um coletivo, ido a manifestações, era muito alheio a tudo aquilo. No ambiente privilegiado em que eu estava, em uma faculdade pública, o discurso dos lugares ditos “inteligentes” era de que tudo estava muito resolvido, de que não precisávamos mais falar dos assuntos, podíamos até votar! Entendia-se que falar sobre gênero, raça, direitos iguais e ativismo era algo muito ultrapassado, tinha ficado nos anos 1970. Ao mesmo tempo em que eu me sentia sufocada (na época), eu não tinha com quem falar sobre a forma como me sentia. E, mesmo se falasse no âmbito do sentir, não conseguia conectar isso e transformar em algum tipo de ação.

Acho que essa foi a questão de 2013: sentíamos que tinha alguma coisa errada, mas ninguém sabia o que era. De todos os lados, rolou uma necessidade de extravasar. As pessoas têm uma visão muito racional de 2013, mas eu acho que é uma coisa de sentimento, de transbordar – é anterior. Quando vejo os vídeos da galera coxinha gritando, sempre me pergunto se a questão é política, porque o que eu vejo é uma pessoa infeliz, querendo extravasar, incomodada com o fato de outra pessoa ter poder. É muito racionalista dizer “não faz sentido o que você está falando”. Dois mil e treze, para mim, foi isso: um transbordar de coisas e sentimentos sem nome, que passeava no corpo individual e coletivo das pessoas, e que veio à tona.

Corpo

No mundo em que estamos hoje, somos bombardeados por narrativas midiatizadas o tempo todo e acabamos por perder nossa conexão com nós mesmos e com a realidade. Perdemos uma noção corpórea da realidade. Ficamos disputando por fotos e mensagens, mas não nos damos ao perigo – porque é perigoso – de experienciar a cidade por si. Perdemos essa cartografia corpórea da realidade vinda de mim para o mundo. Hoje estou numa transição para que meu ativismo seja um convite à conexão. Podemos criar narrativas mais autônomas e mais conscientes – ou menos conscientes também. Acho que existe um produtivismo no nosso ativismo e no nosso trabalho, um excesso de coisas que nos força sempre a essa coreografia de reduzir todo o mundo à interação com um dispositivo. Acho que a libertação é corporal também, e isso exige criar novas coreografias e enxergar o mundo de forma mais “direta” – mesmo que exista uma série de outras lentes. É uma responsabilidade mais holística sobre o ativismo.

Sacrifício

Se estamos falando de violência, como vamos propor um evento ou espaço sem nos violentar, e sem a promessa e ilusão do sacrifício? É uma ideia cristã e também capitalista: se você se sacrificar, você se ilude de que vai ter a vida eterna. E você se ilude a respeito do que está fazendo pelos outros e cria uma expectativa de dívida: o que está no holofote é o seu sacrifício, e não a perspectiva deste ser, ainda considerado “outro”. Então, penso em como hackear essa coreografia cristã que produz uma ansiedade em relação à vida eterna. Como criar ativismos e conexões grupais sem essa ilusão martírica? Recentemente, eu me dei conta de uma obviedade: eu sou religioso. Fui evangélico a maior parte da minha vida, nasci na igreja e, dos meus 30 anos de existência, 20 foram na igreja. Hoje, percebo que minha forma de lidar com o Preciso Dizer que Te Amo é religioso, ritualístico, me leva a sentir que estou fazendo o bem e que sou uma pessoa melhor. Até a forma como as pessoas me veem é religiosa: “veja só esta pessoa fazendo o bem”. É uma ilusão moderna acharmos que não somos religiosos.

Vazio

Agora estou me dando a chance de nutrir um vazio para criar uma nova forma de ativismo e, mais que isso, para criar propostas: como e com quem vou me organizar de uma forma não violenta e com um olhar holístico? Como propor isso? Vai ser algo performático, no sentido de primeiro estar no corpo e depois na tela? Estou fazendo menos coisas na internet, ou melhor, usando a internet para encontros corporais. Hoje, a rede social pela qual tenho mais apreço é o Tumblr, porque lá tenho meu portfólio, que desenhei como um convite para encontros corporais. Ele não chega antes de mim. É uma interface que fica mais próxima do corpo do que o Facebook ou o Instagram, por exemplo. Estou indo para algo mais performático e também menor.

Poesia

Quero que o outro tenha uma experiência poética do meu ativismo. Acho muito mais efetivo escrever Preciso Dizer que Te Amo em você e falar sobre o suicídio de uma forma coletiva; isso vai ser muito mais profundo e ter muito mais poder de transformação do que eu fazer um keynote sobre o suicídio de homens trans. Se você tem uma experiência poética daquilo, sua recepção será mais profunda e sua vivência mais leve. E é menos violento para mim, porque é também uma auto-cura.

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Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

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