Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Por uma vida em fricção com a terra
Em conversa online com Luciana Ferreira, durante o Festival AmazôniaS, em abril, Ailton Krenak afirma que a crise pode nos ajudar a limpar os olhos para enxergar melhor o mundo e a vivenciar outros modos de envolvimento com a comunidade e a natureza
Ideias para adiar o fim do mundo, nosso modo de vida e a relação com a natureza
Ficar aqui na aldeia, não só na quarentena, mas ficar aqui na aldeia no resguardo longo, é muito bom porque permite refletir sobre o que já fizemos e não ficar repetindo a mesma coisa. Sobre o livrinho, eu digo [que] aquele livro já foi, eu tô além das proposições daquele livro e das provocações que fiz com relação à ideia de natureza e humanidade: a ideia de uma certa humanidade que recobre o planeta todo, a ideia da super humanidade que são aqueles que ficaram fora do clube da humanidade. Eu não imaginava que nós íamos ser arrochadas pela realidade para ir além desse lugar. Com essa situação agora, o mundo inteiro está sendo convocado a parar. Se o mundo inteiro tá sendo chamado a parar, alguém pode ter também tempo para pensar se aquela correria (que a gente tava fazendo até outro dia), era consciente, se a gente estava indo numa direção consciente ou só fazendo a corrida da boiada.
Tem uma boiada que corre para todo lado. E eu fiquei muito impressionado com a capacidade das pessoas de atender, todas ao mesmo tempo, uma convocatória de “fica em casa”. No mundo inteiro. Em alguns lugares os governos tiveram que fazer uso da força para obrigar as pessoas a fazer esse resguardo; em outros lugares, a grande maioria das pessoas fez isso voluntariamente, conscientes de que estavam fazendo o melhor para si, se resguardando. Curiosamente, o isolamento social pode limpar os nossos olhos para a gente enxergar melhor o que estamos fazendo com as nossas vidas, seja na experiência individual, seja na experiência coletiva. Essa perspectiva de coletivo foi muito ressaltada com a crise; se a gente sentia falta dela, de agora nós estamos aprendendo ela meio que na marra. Se [alguém] tá querendo ir para rua, é obrigado a pensar, porque tem de atender uma outra prioridade que não só a dele, individualista. Que isso nos eduque e que a gente possa aprender um pouco mais sobre os outros – não só sobre o lugar em que nós estamos, mas sobre o lugar em que os outros estão.
Que privilégio para aquelas pessoas que não vivem nesses redutos e que podem, por exemplo, estar no campo, na zona rural, afastados dessas aglomerações e produzindo seu alimento, seu remédio, suas medicinas, suas realidades locais, recorrendo a um repertório de conhecimento de saber e de práticas que alargam o sentido da vida. Daquilo que no livrinho chamei de ampliar as subjetividades, existe uma rica oportunidade de exercício agora. A pessoa que não tá numa rotina de ter que levantar para ir para escola ou trabalho, nenhuma outra rotina muito limitadora, pode fazer um pouco de experiência extraordinária. Se alguém está em um lugar no qual pode mexer na terra, que vá mexer na terra, vai fazer alguma coisa no seu quintal! Se você tá no sítio, faça no sítio. Eu não entendo porque alguém que está em um sítio tem que ficar sozinho dentro de casa, ele não precisa, ele pode ficar junto com toda aquela multidão de maritacas, de sapos, e de tudo que tá na terra – as minhocas, as formigas –, alertando ele que o único sujeito que foi mandado parar foi o humano. De toda a constelação de outros seres que está compartilhando a vida na Terra com a gente, só o humano é que é o vetor da ameaça do vírus. Os outros seres, não.
Mais uma vez estamos tendo a oportunidade de aprender, ao invés de ficar só na expectativa de que alguém nos indique alguma ação para adiar o fim do mundo. Nós estamos sendo coletivamente intimados a pensar, a ter ideias. Tomara que as pessoas aceitem essa oportunidade, não como uma coisa para deprimir, adoecer, mas como uma oportunidade para melhorar! E a nossa solidariedade caminha para aqueles que estão passando aperto. Mantenham a calma, a serenidade.
Agora nós estamos convocando quase todo mundo a se aproximar desse mundo virtual. Alguns de nós tínhamos uma crítica sobre o excesso de relação com essa tecnologia, mas agora nós vamos ter que criar uma disciplina pra se relacionar com ela, porque ela está sendo uma plataforma fundamental para nos dar oportunidade de fazer, por exemplo, o Festival [Amazônias]! Como que a gente pode viver essa experiência sem perder o sentido dos nossos encontros, para que os encontros não sejam tão sublimados a ponto de a gente virar personagens sem carne e osso, sem existência, sem a vida que nos atravessa nos nossos cotidianos, né?
Amazônias no plural
O “s” é muito bem vindo no [nome do Festival] Amazônias. Se não fosse aquelas linhas que marcam as fronteiras entre os nossos países, ela seria sempre no plural, “Amazônias”, porque é tão vasta que chega a ser um lugar imaginário pras pessoas no mundo inteiro. Amazônias é uma imagem antes de ser uma realidade. Tem muita gente que lida com as diferentes materialidades dessas “Amazônias”. Tem gente que pensa como um lugar que historicamente foi o Eldorado, que era o lugar de saquear e buscar riqueza, desde a descida dos espanhóis lá de cima pelo rio Negro, atravessando o Amazonas, até os que entraram aqui pelo sul. Todos bateram essa trilha como aventureiros, viajantes, caçadores, coletores de todo tipo. Exploradores. Os povos antigos que viveram nessas diferentes “Amazônias” têm outras Amazônias no pensamento, no coração e nas suas memórias.
No tempo em que nós vivemos, no século 21, há uma multiplicidade de perspectivas dessas Amazônias: a do governo do Estado, dos ministérios ou de um empresário do Sul. Se cada um deles fosse desenhar o que eles estão pensando, ia ser uma infinidade de Amazônias, porque são os lugares onde cada um quer realizar o seu projeto, digamos assim. E tem o campo das pessoas que nos últimos, 20, 30 anos, se engajaram nas políticas públicas e nos movimentos sociais não governamentais para promover a existência desses lugares chamado Amazônias – desde a proteção da vida, o direito à vida das pessoas que sempre estiveram lá, até a vigilância e fiscalização da invasão desses lugares.
Nós vamos achar que são mais bacanas aqueles que querem conservar a floresta, aqueles que querem apoiar e proteger os modos de vida dos povos que vivem na floresta, mas até nessa parte seria bom a gente olhar com um olhar crítico. Tem os inimigos e tem os amigos; tem os caras que querem comer a Amazônia e tem os que querem proteger a Amazônia. Se a gente ficar fazendo uma simplificação dessas, nós não vamos ser capazes de ser honestos com quem está vivendo dentro dessas Amazônias e precisa que ela continue tendo floresta, rios e segurança. Por que que nós todos nos batemos na década de 90 para que existisse uma infraestrutura voltada para a Amazônia com a ideia de desenvolvimento, mesmo que acrescentado do adjetivo sustentável? No fundo, o motor da ideia era o desenvolvimento. E naquela época já tinha gente dizendo: por que, ao invés de desenvolvimento, a gente não busca ter envolvimento?
Escolhas & possibilidades da Amazônia
Ainda sobre a ideia de fronteiras e Amazônia, tanto uma pessoa que nasceu em Parintins quanto alguém que nasceu em Berlim pode se achar relacionada com a ideia das Amazônias com a mesma intensidade. Ou aquela menina fantástica que mobilizou o mundo alguns meses atrás, a Greta. A Greta tem a mesma intensidade de entusiasmo e envolvimento com uma ideia de Amazônia do que uma menina que nasceu em Ji-Paraná ou Oriximiná. Não é porque ela nasceu lá na Europa que você vai dizer para ela que “você não tem nada para dizer sobre esse lugar”, porque esse lugar para ela tem outras representações. Quando um chefe de Estado na Europa vira e fala “a Amazônia é isso, é aquilo”, e alguém fica nervoso com ele e diz “esse gringo não tem que falar nada sobre a Amazônia”, é porque não está sendo capaz de entender de onde é que ele tá falando. A Amazônia tem um sentido para ele, e isso deveria ampliar a nossa percepção do que são as Amazônias. Elas não são um lugar; elas se constituem numa constelação de lugares de representação mítica, cultural, econômica e política.
Antropoceno & adoecimento de um rio
Eu acompanho faz pelo menos 40 anos tudo quanto é empreendimento dos governos regionais e do governo nacional – desde a Transamazônica! É claro que os engenheiros que estavam fazendo o traçado da Transamazônica achavam que estavam abafando. Depois deles, os que faziam as linhas de colonização do INCRA achavam que estavam pirando! Os que fazem os projetos de hidrelétricas, então, achavam que deveriam ganhar um Nobel! Mas todos estão fazendo uma cagada monumental. Estão invadindo um organismo que não conhecem com um aparato que eles não têm capacidade de desligar depois — pois você não desliga a Transamazônica, você não desativa Belo Monte, Tucuruí, e toda essa esquizofrênica constelação de barragens que foi feita no corpo dos rios, mutilando o corpo desses rios, tornando esses organismos vivos mais suscetíveis a pegar uma doença no futuro. Alguém pode falar “ué, mas rio pega doença?” Claro que pega! Vai mergulhar no Tietê se você acha que rio não pega doença. Ele não só pega, como transmite! Ou vem aqui no rio Doce, sobe na ponte lá em cima de Governador Valadares, dá um mergulho nele. Vai no rio São Francisco, bebe a água do São Francisco, em qualquer trecho dele. Se a gente fizesse uma lista, seriam centenas de rios, de bacias hidrográficas que foram adoecidas pela nossa ação ao longo de 40, 50, 100 anos!
A industrialização e o ajuntamento de milhões de pessoas em lugares concentrados nas cidades curiosamente nascem sempre na curva de um rio. Vide Manaus. As cidades nascem encostadas no rio. Vai ser excepcional você encontrar uma cidade que não tá encostada num rio. Só que desprezam a razão de estar nesses lugares. Num assentamento urbano, 50 anos depois as águas estão contaminadas, quando não podres.
Eu já comentei que uma das coisas que eu sempre achei mais estranhas é que as cidades brasileiras nos trópicos, não só no Brasil, as cidades coloniais, nasceram com as privadas viradas para os rios e a porta da sala, para uma viela. Pode olhar todas as nossas cidades, inclusive Ouro Preto e Mariana. Parece que a gente foi para esses lugares para cagar nos rios. Pega as plantas de todas as nossas cidades no Google e olha para onde é que fica virado o esgoto. E para não dizer que eu não falei das flores, antes da Covid-19, o Rio de Janeiro tava abastecendo as torneiras das pessoas com água de esgoto. Jogaram esgoto nos rios, o rio tá devolvendo esgoto nas torneiras. E não é numa vilinha pobre que não tem como fazer uma estação de tratamento de água. É no Rio de Janeiro, que nos últimos anos deve ter gastado bilhões com a recuperação da Baía de Guanabara. É espetacular. Dava pra filtrar com dinheiro toda a água daquele sistema lá.
Entre isolamento social, distanciamento & envolvimento com a natureza
Eu tenho pensado nessa possibilidade de a gente ser abduzido da relação com a terra, pelo excesso de uso das tecnologias e por uma ampliada dependência delas. Ligar e pedir uma comida, ligar e pedir um remédio, ligar e conversar com a mãe, com a avó, com o tio. E eu fiz um paralelo com um joguinho que eu achava horroroso, que existiu um tempo atrás e que se chamava “segunda vida” – Second Life. É uma dessas maluquices hollywoodianas. Foi criticado pelos psicólogos, que recomendaram não deixar crianças brincar com aquilo porque podia criar uma ilusão de um mundo paralelo, no qual a criança ficava ganhando prêmios, inventando uma fantasia substituta da experiência de viver, e seria uma tragédia se o mundo caísse nessa armadilha de viver essa experiência artificial e deixar a maravilhosa experiência de viver em conexão com a terra, uma fricção com a terra, a ideia primária de mexer na terra, enfiar a mão na terra, pisar na terra.
Uma pessoa que tem 10 anos, 20 anos de experiência, sabe que restaura a gente pisar no chão, mexer no chão. Então mesmo que as pessoas consigam comer, beber e fazer tudo sem ter que mexer na terra, deveriam fazer isso pra ficarem saudáveis. Se perder essa conexão com a terra nós estamos acabados! Mas, mesmo que seja uma tendência, acredito nós não vamos por esse caminho. Eu tenho uma expectativa de que a gente vá ter tempo para considerar o quanto a vida em fricção com a terra, nesse planeta maravilhoso, é importante para a possibilidade de continuar vivendo aqui na Terra. Essa espécie de tranco que nós estamos levando vai fazer muita gente das cidades botar o pé na estrada, no bom sentido, e enfiar esse pé na terra. Nós vamos ter a necessidade de sair dessa casca, dessa plataforma extremamente dependente de tecnologia e se arriscar na terra. E isso é envolvimento.
Indígenas, Constituição & representação política
A própria ideia de ter uma Constituição comum a todos nós tem sido atacada. Toda hora querem emendar a Constituição, fazer uma medida provisória, inventar alguma coisa. O próprio Capítulo dos índios na Constituição é o tempo inteiro aviltado por gente que nunca aceitou aquela vitória que nós tivemos. Eu não tenho relação com partido político faz muito tempo. Nunca tive e me afastei fantasticamente de qualquer discussão nos termos de política partidária porque acho que é um tremendo furo n’água.
O mundo hoje é governado por CEOs, gerentes. As corporações escolhem gerentes, botam os caras para governar e, quando eles não estão correspondendo, tiram eles numa boa. Assim como a ideia da economia movida por uma perspectiva de progresso e desenvolvimento é uma ideia vencida, velha e vencida, a gente deveria superar também a ideia da representação política nos termos em que foi feita até agora, porque é colonialismo. A gente deveria pensar em envolvimento! O envolvimento das pessoas, das comunidades com os lugares onde vive! E a partir desse envolvimento, produzir novas visões, novas realidades sobre a vida social. Agora que nós estamos vivendo um isolamento, a gente devia pensar em como sair dos sistemas falidos e declaradamente corruptos. A gente deveria pensar como é que a gente faz o religamento das relações.
Lançamento! Cartilhas sobre comunicação ativista
Comunicação é meio, processo e espaço de luta para a transformação social. A Escola de Ativismo em parceria com a Bigu Comunicativismo e a Rede Meu Recife vem trazer pras companheiras/os de luta ferramentas atualizadas e simples sobre comunicação com enfoque em dois aspectos decisivos: relação com a imprensa e programação visual. São 10 dicas simples e diretas em cada tema para podermos exercitar uma comunicação autonomista possível, onde o por quê das escolhas de processos são pensadas de forma estratégica.
Resultado do AMPLIFICAR – Comunicação para a Resistência, processo de aprendizagem realizado com grupos das periferias urbanas de Recife, as cartilhas tem como objetivo desburocratizar com respeito e reverência aos saberes populares, desmontando a fórmula da receita pronta pra fazer uma boa comunicação. As dicas são provocações e passos possíveis para que economizemos tempo e energia, sem a pretensão de serem verdades absolutas. Vamos entender um pouco o que cada uma traz?
Essa cartilha traz algumas dicas de como movimentos sociais e sociedade civil podem traduzir suas pautas para a imprensa, com mais atratividade e legitimidade, para poder disputar a opinião e a discussão pública. São dicas que, se somadas, podem construir pouco a pouco a reputação de nossas pautas, organizações e coletivos organizados. O resultado é o nosso reconhecimento como importantes atores e atrizes sociais na discussão pública, a fim de promover mudanças importantes na sociedade.
“Uma imagem vale mais do que mil palavras”, já dizia o ditado. Mas as imagens e palavras organizadas visualmente de forma estratégica e esteticamente agradável valem ainda mais. Uma imagem bem construída é uma mensagem bem passada e recebida. Saber produzir uma boa peça gráfica potencializa a sua comunicação e amplifica a sua luta! Pense bem em cada uma dessas dicas, não importa a ferramenta ou técnica que você use para criar. Se atentar a esses detalhes vai fazer uma grande diferença.
Você pode acessar a cartilhas agorinha mesmo:
10 Dicas de Assessoria de Imprensa <<< aqui
10 Dicas de Programação Visual <<< aqui
Sem mais delongas, boa leitura!
Conheça a Tuíra de Emergência
Teste do blog da escola
“Naquele momento, na impossibilidade material de ir mais longe, eu teria sido obrigado a deter-me, sem dúvida, pronto, a rigor, para voltar a partir em sentido inverso, imediatamente ou muito mais tarde, quando, de algum modo, eu me desatarraxasse de mim mesmo depois de ter-me bloqueado. Isso teria constituído uma experiência rica em interesse e novidade, se é verdade, como fui levado a dizer sem que pudesse fazê-lo de outro modo, que mesmo o mais pálido caminho comporta um andamento totalmente distinto, uma outra palidez, tanto ao retornar quanto ao ir, e inversamente. Inútil tergiversar, sei um monte de coisas”. (Beckett)
Evidentemente, a questão “que pode o corpo?”, se refere não à atividade do corpo, mas à sua potência. É uma questão estranha, em certo sentido, pois aquilo que pode o corpo se mede geralmente pela sua maior ou menor atividade, pelos atos que é capaz. E, todavia, parece que a questão visa outra coisa: ela visa a potência do corpo em si mesma, independente do ato pelo qual se exprime. Mas, podemos interrogar a potência do corpo sem invocar o ato que exprimirá esta potência? Como não examinar a questão a partir da distinção aristotélica clássica entre a potência e o ato? Segundo esta concepção, a potência é concebida como um ato virtual ou possível, e o ato, por sua vez, é concebido como uma potência atualizada, quer dizer, como uma forma determinada. Como se sabe, esta primeira distinção recorta uma outra distinção fundamental de Aristóteles: a distinção entre a matéria e a forma, a matéria como simples potência e a forma como ato puro. Mas isto quer dizer que o ato não tem nenhuma eficácia por si mesmo, pois não passa de uma forma. É necessário, portanto, um terceiro termo que aja a forma na matéria: tal termo será o agente. É o que ilustra o exemplo clássico do artesão, do oleiro que age a forma do vaso na matéria da argila, ou o do atleta, que age o ato da corrida em um corpo que possui a potência. Consequentemente, é depois do ato, ou melhor, depois do agente, que a potência é revelada como tal. Neste sentido, a questão sobre a potencial do corpo parece inseparável de uma resposta que afirma de direito a superioridade do ato – e, portanto, do agente – em relação à potência do corpo.
Todavia, em oposição a esta concepção, há um Fato que, “nós modernos”, devemos sempre nos lembrar, e que também pode ser uma resposta. Esse fato, é que o corpo não aguenta mais. Não se trata nem de um postulado nem de uma tese, mas de um fato. Basta considerar, por exemplo, o domínio da arte hoje em dia, onde se multiplicam as posturas elementares: sentado, esticado, inclinado, imobilizado, os dançarinos que escorregam, os corpos que caem ou se torcem, que se mutilam, que gritam, os corpos desacelerados, adormecidos. 1
Somos como personagens de Beckett, para os quais já é difícil andar de bicicleta, depois, difícil de andar, depois, difícil de simplesmente se arrastar, e depois ainda, de permanecer sentado. Como não se mexer, ou então, como se mexer só um pouquinho para não ter, se possível, que mexer durante um longo tempo? É, sem dúvida, o problema central dos personagens de Beckett, uma das grandes obras sobre os movimentos dos corpos, movimentos de si e entre os corpos. Mesmo nas situações cada vez mais elementares, que exigem cada vez menos esforço, o corpo não aguenta mais. Tudo se passa como se ele não pudesse mais agir, não pudesse mais responder ao ato da forma, como se o agente não tivesse mais controle sobre ele. Os corpos não se formam mais, mas cedem progressivamente a toda sorte de deformações. Eles não conseguem mais ficar em pé nem ser atléticos. Eles serpenteiam, se arrastam. Eles gritam, gemem, se agitam em todas as direções, mas não são mais agidos por atos ou formas. É como se tocássemos a própria definição do corpo: o corpo é aquele que não aguenta mais, aquele que não se ergue mais.
De fato, embora aquilo que designamos sob o nome de Fato, na ausência de um nome melhor, pareça “moderno”, é evidente que é desde sempre que o corpo não aguenta mais. Heidegger dizia: “aquilo que mais dá o que pensar é que nós ainda não pensamos”, para dizer que é desde sempre, e para sempre, que nós ainda não pensamos 2. Ele via aí uma das condições do pensamento. Da mesma maneira, no momento em que se descobre que não se aguenta mais, se descobre, ao mesmo tempo, que é desde sempre e para sempre.
Parodiando Heidegger, seria preciso dizer aqui: aquilo que no corpo mais se faz sentir (mais dá o que sentir), é que nós não agüentamos mais. É a condição mesma do corpo. Não irá mais erguer-se. Dito de outra maneira, o corpo não pode erguer-se de sua condição de ser corpo. Nestas circunstancias, colocar a questão: “que pode o corpo?”, quando sabemos desde sempre que não aguentamos mais, parece um pouco deslocada. Esta afinidade entre o “Eu não aguento mais” do corpo e o “Nós ainda não pensamos” do pensamento, é implicitamente sublinhada por Deleuze quando diz, por exemplo, que “pensar é apreender aquilo que pode o corpo não pensante, sua capacidade, suas atitudes ou posturas”. E acrescenta: “O corpo não está jamais no presente; ele contém o antes e o depois, o cansaço, a espera. O cansaço, a espera, mesmo o desespero, são as atitudes do corpo”3. A impotência (L’impouvoir) do pensamento é como o avesso da impotência do corpo. Seria como as duas fórmulas nas quais se misturam Espinosa e uma inspiração heideggeriana: “nós não sabemos o que pode o corpo” e “o corpo não aguenta mais”.
MANIFESTAÇÃO EM CASA
Dicas para apoiar os atos de rua pela democracia e contra o fascismo
Se você, ainda que não esteja nas ruas, acha importante lutar pela democracia, combater o fascismo e protestar contra a escalada do autoritarismo no país, saiba que dá para fazer muita coisa a partir de casa mesmo.
A necessidade de distanciamento social por conta da pandemia não impede a luta.
Se você gostaria de estar nas ruas, mas não fará isso agora, pode agir de várias maneiras.
A seguir, algumas sugestões.
#1 Acompanhe pela TV e canais da internet
Uma providência básica: saber o que está acontecendo nas ruas, ao vivo. Use as mídias tradicionais e as alternativas (é importante acompanhar as diferentes narrativas). Sem isso não dá para fazer outras ações.
Mídia NINJA
Jornalistas Livres
#2 Comente e analise pelas mídias sociais
Use seus perfis e canais na internet para analisar os acontecimentos. Seus comentários pessoais podem ser úteis para construir visão coletiva sobre as manifestações, mobilizar redes de apoio, denunciar arbitrariedades etc.
#3 Use e divulgue as #hashtags do movimento
Nas mídias sociais, seu acompanhamento ativo, com comentários e análises, deve contar sempre com ashashtags do movimento. Com isso você ajuda a pesquisa sobre o assunto nas redes.
#SomosDemocracia
#VidasNegrasImportam
#4 Divulgue os canais e sites do movimento
Espalhe pelas mídias sociais e grupos de mensagens, os canais, sites, imagens e notícias sobre as manifestações. Ajude a dar volume e fortalecer o apoio social ao movimento.
#5 Aja na porta de casa
Proteste num lugar sem aglomeração: a rua da sua casa. Abuse da criatividade. Registre e divulgue seu ato nas mídias sociais, grupos de mensagens e outros canais da internet. Use as hashtags para articular seu ato às demais manifestações.
#6 Use sua janela ou fachada como outdoor
A janela, as paredes, a fachada e o muro de casa, apartamento ou edifício podem ser usados como suporte de mensagens bem visíveis de apoio ao movimento. Use hashtags, lemas, signos e slogans para articular seu ato às demais manifestações. Registre e divulgue sempre, e por todos os meios, a sua contribuição.
Dicas em https://bit.ly/2Mv7mu2
#7 Se sua casa fica em áreas de manifestação
+ Abra seu wifi
+ Registre as cenas de sua janela
+ Acolha quem precisar de abrigo em caso de violência
+ Distribua máscaras, álcool em gel, água e sabão
COPIE E DISTRIBUA OS CARDS:
Resistência centenária
Dando a letra de Caranguejo, no Recife, Sarah Marques mostra que a pandemia traz dilemas inéditos para as comunidades mais pobres do país, tornando ainda mais importante sua história de solidariedade e coragem
Cara,
Eu sou Sarah Marques, né,
se eu não der nome e sobrenome o racismo me dá nome.
Sou cofundadora do Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste,
formado na maioria por mulheres,
educadora popular no Centro Popular de Direitos Humanos e bolsista do Fundo Baobá.
Aqui no Caranguejo,
mora eu, meu irmão e meus filhos:
os gêmeos Rafael e Juliana, adolescentes de 13 anos.
É, eu sou mãe solo,
o pai não assumiu.
Como várias outras mães negras, de comunidade e de favela, eu tenho esse papel de ser mãe e pai,
de sustentar a casa e a comunidade.
Direito aos direitos
O Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste foi formado no conflito com a Prefeitura de Recife, quando teve tentativa de retirada de algumas casas. Foi aí que a nossa comunidade entendeu que o direito à cidade não é só à sua casa:
é o direito aos direitos.
É o direito a ter acesso a trabalho, a alimentação, a educação.
O coletivo faz o papel de discussão dentro da comunidade, pra gente conhecer nossa realidade, conseguir algumas saídas pra situações difíceis daqui.
Palafitas
No momento de pandemia tudo piora muito.
Muitas das mulheres que estão acessando o auxílio emergencial são mulheres negras que ganham até 285 reais por mês. Quem ganha 285 reais por mês não consegue se sustentar. As mulheres que ganham esse dinheiro, elas têm várias outras formas de se virar pra aumentar essa renda: vai pro semáforo, pras faxinas, ser babá. Só que em um contexto de pandemia, ninguém consegue fazer isso.
Ao mesmo tempo, a gente não pode ficar em casa.
Muitas das casas daqui são 18 metros quadrados, né?
Palafitas.
Mães com 5, 6 crianças que moram todo mundo junto,
e às vezes com marido.
Não é um modelo de mãe, pai e filha.
Vou dar mais um exemplo. A beira de canal tem esgoto da cidade toda, mas esse esgoto passa aqui na porta. Quem mora no rio Capibaribe, nos prédios, nas grandes casas, nas grandes mansões não sente o que a gente sente porque é aqui que o esgoto passa. Na chuva tem enchentes aqui. Como o povo está na palafita, um vai pra casa do outro porque tem um primeiro andar com batente mais alto. Como é que vai ficar quando começar a chuva de verdade? Quem é que fica em casa, quem é que se isola nesse momento? Como falar sobre distanciamento numa comunidade assim, com duas mil e poucas famílias?
A gente tem um inimigo muito mais forte agora porque é invisível.
Os outros a gente sempre tá mostrando ao povo,
e a gente consegue ver pra bater, né?
Mas o o vírus a gente não consegue ver.
E como a gente sempre fala, a fome não é só do estômago, é muito tempo de fome e abandono, então quando vem uma pandemia ou qualquer coisa que não estava no mapa e que a gente nem imaginava, nós somos os primeiros a ser atingidos e de uma forma brutal.
Linha de frente
A gente está fazendo campanhas de atuação direta com kits de alimentação e higiene e entrega de cesta básica. Fizemos uma parceria com um colégio do Recife, o Colégio Damas, que tá dando quentinha três vezes por semana. A gente entrega pros vizinhos, pra quem trabalha no semáforo, pras pessoas que são usuárias de droga, o pessoal alcoolista. Tudo é feito na nossa casa, então as pessoas vêm pra porta da gente.
Estamos fazendo também um trabalho de comunicação, vários textos e cards, passando de bicicleta, falando da pandemia, e trazendo aqui pra dentro as mídias lá de fora pra mostrar que a gente existe. Ontem mesmo saiu um texto nosso nas redes sociais falando que o vírus já chegou na comunidade.
Mas nosso papel é bem difícil: a gente fica numa posição muito cruel nesse momento de ter que escolher quem precisa mais. É muito tempo de abandono. Quando é a gente que tá ajudando, tudo fica muito mais próximo, e as pessoas da comunidade nos cobram com mais força.
E a gente também se cobra.
Medo
O sentimento de medo é o que nos rege agora.
A gente sabe que tudo que é feito sem conversar com a gente nos atinge diretamente e nos atinge sempre de uma forma errada.
A gente sabe que as pessoas têm preconceito com a comunidade, veem a comunidade como suja, desorganizada.
O sentimento é de medo porque a gente está perdendo, nós já começamos a perder os nossos e os nossos a gente perde sempre das formas mais mais cruéis:
morre na fila do hospital,
morre no caminho
– ou morre em casa, porque tem muito beco e rua fechada em que o socorro nem chega.
Na verdade já estava ruim, né? O local que a gente está tem um posto de saúde pra 5 mil pessoas. Uma dentista pra 5 mil pessoas. A médica não está todos os dias, porque ela é chamada pra atender outros municípios. A equipe de saúde também não, e já tem caso de agente de saúde contaminada ou do grupo de risco.
E a gente não sabe a quantidade de gente que tá contaminada, porque na comunidade ninguém aceita dizer que tá com Covid-19. E a gente também não sabe quanta gente vai tratando os sintomas com chá, com coisa caseira.
Mas junto com o medo vem o sentimento da vontade de lutar. Essas comunidades sempre tiveram força, sempre tiveram essas mulheres. A gente vai sobrevivendo, vai se organizando e se ajudando,
sentimento de amor, mesmo.
Humanidade
Nós somos uma cidade invisível, né?
As comunidades são invisíveis a olho nu.
Estão sempre escondidas, atrás de morros, atrás de prédios, atrás de muros.
Você só vê os morros da avenida.
As pessoas de outras classes olham pra cá e só veem o lugar onde se busca o braço do trabalho – e sem pagar os direitos necessários, sem nos entregar o que é nosso. Então nosso papel é mostrar que a gente tá se organizando.
A gente precisa resgatar a humanidade que vai sendo tirada das pessoas. A nossa humanidade.
A gente coloca poemas na bicicleta que circula pela comunidade. A gente precisa dizer ao nosso povo e ao povo de fora que nós somos humanos,
e que a gente também escuta arte, escuta música,
e precisa ter isso pra se manter vivo.
História
O que a gente vem aprendendo é que a história só se repete, se reescreve.
Tem os mesmos personagens,
como os capitães do mato,
que se vendem, se entregam e nos entregam.
Pra adiar o sofrimento deles, aumentam o da gente.
Quando a gente olha os movimentos das politicagens pra dentro das comunidades, a gente começa a entender o porquê dessas pessoas terem sido abandonadas por tantos anos e estarem sempre no lugar mais vulnerável: é porque esses capitães do mato precisam e querem usar essas pessoas.
A gente precisa fazer a leitura crítica dessa história.
Isso dói,
porque nos trás de volta
a memória das dores, da fome, da morte…
Mas também precisamos entender que os nossos e as nossas que vieram antes nos ensinaram muitas coisas:
estar em comunidade,
nos juntarmos pra enfrentar as coisas,
partilhar, ajudar e conectar.
Tanto é que no conflito com a prefeitura e com as imobiliárias, algumas famílias foram pro habitacional a sete quilômetros daqui. Se você chegar na sexta-feira, vai encontrar essas famílias aqui em Caranguejo. Elas voltam porque é aqui que a gente se fortalece, é aqui que divide comida, é aqui que está a mãe, a tia, o irmão.
Nosso
Eu só quero agradecer esse espaço e pedir que as pessoas apoiem as iniciativas comunitárias.
Apoiem, mas também procurem entender essas iniciativas,
fazer essa leitura política,
e nos ajudar a fazer essa leitura política pro mundo.
Nossas comunidades são centenárias, elas vêm de toda a história desse país de exploração,
mas também de mulheres fortes, mulheres dignas, que vão mudando a cara do país e dando esperança para o povo.
Eles sempre dividem pra conquistar, pras pessoas ficarem mais fracas e a comunidade ficar mais fraca.
A gente tem que dizer todo dia que aqui que está nossa história.
Esse chão fomos nós que aterramos,
fomos nós que pisamos,
fomos nós que construímos nossa casa,
e a gente tem direito de ficar e ficar juntos,
pra não morrer.
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O Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste foi fundado em meio ao conflito com a prefeitura do Recife e imobiliárias para defender o direito de uma comunidade que tem mais de cem anos a ficar em seu território.
Sarah Marques é educadora popular no CPDH (Centro Popular de Direitos Humanos), cofundadora do Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste, negra, favelada e mãe de Rafael e Juliana.
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Saiba mais
O brega-protesto “Sem destruição”, que bombou nas redes, gravado por jovens de Caranguejo Tabaiares por meio de parceria entre o Coque Vídeo e o Grupo AdoleScER – Saúde, Educação e Cidadania: https://www.facebook.com/caranguejoresiste/videos/1830498287081408/
Facebook do Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste: https://www.facebook.com/caranguejoresiste/
Instagram: https://www.instagram.com/caranguejotabaiaresresiste/?hl=pt-br
tuiragens
Vida loka cabulosa
O cheiro é de pólvora
E eu prefiro rosas
E eu que, e eu que
Sempre quis um lugar
Gramado e limpo, assim, verde como o mar
Cercas brancas, uma seringueira com balança
Disbicando pipa, cercado de criança
Racionais MC’s
Apresentamos!
Uma revista que é muitas. Que não faz contar o que acontece na hora em que acontece. Que toma distância mas não é distante. Que faz avaliação, que faz análise, mas que (quase) não faz citação.
Que faz paradoxo e transita pelo arco do devir. Arco, nada plano! A Terra é redonda, sim! Contra o consenso. Acreditando na singularidade do pensar e do agir. Contra o legado da tradição, contra o que já existe, em busca do impossível!
Manifestamos!
Regimes de 38 anos caem. Que caiam todas as ditaduras: dentro e fora de nós! Que corra a notícia: diante da força do povo, outros estremecem! Boicotar e pressionar. Os pilares do poder estão ao nosso alcance, afinal! Produzir a solidariedade entre nós. Internacional e interseccional! As pessoas ativistas costuram pontes, erguem redes, migram, produzem mundos.
Berramos!
Somos uma guerrilha contra a linguagem até que ela se produza outra: uma linguagem que já não atravesse as bocas sem produzir afetação! Estamos aqui para berrar e para inventar: textos, formatos, posições. Fincar cunhas nos modelos. Gritamos com os invisíveis de um comitê para que ouçam os mundos que nos atravessam.
Prenunciamos!
Marchar para produzir mais vida! Caminhar na potência, para encontrar a potência. Não importa: o tempo, o cansaço. Só importa o destino. Colocar-se em movimento, lançar-se no suspense, na tensão, no drama de seu desenrolar. Importa o destino, importa o caminho. A marcha mexe: com quem está nela, com quem a observa. Ninguém sai do mesmo jeito que entrou. Em Honduras ou na Índia, no Brasil ou no continente africano, em curtas ou longas distâncias, afirma-se: somente em marcha é possível ir, até para dizer que se quer ficar!
Imaginamos!
Bloquear, hackear, destituir. Inventar uma forma-de-vida tal que faça morrer à míngua: o Estado e todas as suas instituições. Deixar que falem às moscas. Prescindir: de seu vocabulário, de sua organização, de sua polícia e de sua política. Tornar-se ingovernável! Ousar essa imaginação e deixar-se a todo tempo uma interrogação: será?
Expressamos!
Política se faz com as mãos. No plantio. Na pesca. No cultivo diário das relações: entre as gentes e as almas e as terras e as águas. Terra e água são muito mais que recursos: são vida! Admirá-las e com elas maravilhar-se. Tire suas mãos sujas daqui! A Terra não tem plano B. O que pode um corpo? O que pode uma planta?
Anunciamos!
Transformação. Trans-Form-Ação. Colocar-se em movimento. Fazer e ser feito com a ação. Com o mundo e não para ele. Questão colocada a toda pessoa ativista: O que é transformação? Como ela ocorre? O que nós transformamos? O que se transforma em nós? Perguntamos para nos inquietar. Para movimentar o corpo do pensar e com isso criar outras, muitas, novas possibilidades.
PARA QUE O CÉU SEJA CÉU: o caráter de levante da obra de Davi Kopenawa Yanomami
Ana Lígia Leite e Aguiar
Sujeitos políticos só se constituem a partir da internalização de tais desabamentos.
Vladimir Safatle. O circuito dos afetos.
O céu está pesado, qualquer que seja a maneira pela qual se queira compreender essa expressão.
Didi-Huberman. Levantes.
Como pensar o Outro? Uma vez mais essa indagação é antes o desejo de que uma certa tensão filosófica se instaure do que a necessidade imediata de um retorno para aquilo que, sabemos, não encontra alívio em qualquer que seja a sua resposta. A pergunta, organizada por Roland Barthes em Como viver junto [1], é antes de tudo uma pergunta sobre como se percebe o Outro, se convive com o Outro, uma pergunta sobre o mundo e, em um nível cada vez mais micropolítico, uma pergunta sobre a nação, sobre as nossas diferenças, sobre “mim”. Na impossibilidade de fechamento da questão, o que entendemos é que a alteridade foi e é um exercício de suplemento dos nossos próprios paradigmas de vida (desejamos o Outro não por dependência, mas pela vontade de ser atravessado por ele). A alteridade altera a conta do que somos. Todorov [2] foi assertivo ao compreender, lendo os diários de Cristóvão Colombo, que o não entendimento deste sobre os indígenas incorreu em um grande equívoco não só nos termos da tradução de um modo de aparecer da cultura dos povos originários daquilo que um dia viria a ser a América, como na própria maneira de sobrepor seu gesto narrativo pela lógica de redução do Outro, um gesto de superioridade ainda hoje empregado contra tais povos, mas contra, também, outros tantos grupos colocados em situação de uma vulnerabilidade que se intensifica todos os dias.
1 Roland Barthes. Como viver junto. Martins Fontes, 2013.
2 Tzvetan Todorov. A conquista da América. Martins Fontes, 1983.
Contraditoriamente, quando nego o Outro, nego a mim. No dicionário Houaiss, temos que a alteridade é o “caráter ou estado do que é diferente, distinto, que é outro. Que se opõe à identidade, ao que é próprio e particular (…); condição ou característica que se desenvolve por relações de diferença, de contraste”. [3] É essa oposição à identidade e ao particular que deve ser entendida aqui não como recusa ou negação de si, mas a presença desse contraste como solidariedade absoluta a outras formas de vida. A solidariedade seria, assim, a noção aguda de uma igualdade. Uma igualdade na diferença.
3 Disponível em www.dicio.com.br/alteridade/
Quem talvez mais tenha operado dentro da lógica da diferença, no Brasil, até onde se sabe, foram os povos Tupinambá da costa brasileira. Faz-se evidente: o entendimento acerca da compreensão dessa diferença não pôde ser alcançado pelos cronistas dos 1500/1600, mas pela percepção contracolonial de Eduardo Viveiros de Castro (e de tantos outros historiadores e antropólogos), que ao ler os religiosos e marinheiros viajantes que davam notícias do Novo Mundo, consegue visualizar em sua pesquisa o eixo de uma repetição sobre a antropofagia ritual fornecedora de um modelo sobre como perceber o inimigo: “Guerra mortal aos inimigos e hospitalidade entusiástica aos europeus, vingança canibal e voracidade ideológica exprimiam a mesma propensão e o mesmo desejo: absorver o outro e, neste processo, alterar-se”. [4] É que para os nativos, elucida Viveiros de Castro, o que estava em questão era a “afinidade relacional” e não a “identidade substancial”. [5] Isso explica a entrega aparentemente docilizada dos indígenas aos estrangeiros – como se vê na carta de Pero Vaz de Caminha e em outros textos quinhentistas –, assim como a entrega à morte – sem hesitações, diga-se de passagem – na antropofagia ritual. Nos dois casos, os indígenas estavam interessados em conhecer outros mundos, em relacionar-se com a mente do Outro, isso, assim entendido, sem que se precisasse necessariamente abdicar de nada, já que a lógica da alteridade não necessariamente pressuporia qualquer exclusão. Se parece confuso esse “desejo de ser o Outro” “segundo os próprios termos”, para aqueles que creem na identidade substancial – isto é, na crença de um único jeito de perseverar em sociedade –, [6] isso se deve ao fato de os nativos não terem passado, à época, pela colonização de seus desejos.
4 Eduardo Viveiros de Castro. A inconstância da alma selvagem. Cosac Naify, 2002, p. 207.
5 Idem, p 206.
6 Idem, p 195.
Como “metamorfoses ambulantes”, para usar a expressão de Raul Seixas, os corpos dos nativos eram como um circuito rizomático, prestes a se ligarem a tudo, mas sem nunca se afastarem de si. Essa imagética é de difícil imaginação, pois eram a própria ideia daquilo que poderíamos vir a ser:
“(…) escrever por intermédio de slogans: faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha! Seja rápido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite um General em você!” [7]
7 Gilles Deleuze; Félix Guattari. Mil platôs. Editora 34, 1995, p. 36.
Deixar as linhas de fuga da identidade como que “soltas”, ou em um modo de curto-circuito, parece ser a melhor alternativa para não se cair na armadilha do uno. Se a economia de vida dos autóctones era destituída de dogma e de uma fé temerosa àquilo que jamais tinham presenciado, não era porque em nada criam, mas, por sua vez, porque poderiam acreditar em qualquer coisa, a saber, no Outro. [8] No entanto, tal troca ocorreu apenas em uma via de mão única: de acordo com a historiografia oficial, [9] os nativos exercitaram a alteridade, enquanto os europeus fizeram, para dizer o mínimo, uma violenta redução da mesma. Desde Bartholomeu de Las Casas havia sido dado o recado sobre o fato de a razão europeia estar apta a outros tipos de procedimentos:
“Certa vez, os índios vinham ao nosso encontro, para nos receber, à distância de dez léguas de uma grande vila, com víveres e viandas delic as e toda espécie de outras demonstrações de carinho. E tendo chegado ao lugar, deram-nos grande quantidade de peixe, de pão e de outras viandas, assim como tudo quanto puderam dar. Mas eis incontinenti que o Diabo se apodera dos espanhóis e que passam a fio de espada, na minha presença e sem causa alguma, mais de três mil pessoas, homens, mulheres e crianças, que estavam sentadas diante de nós. Eu vi ali tão grandes crueldades que nunca nenhum homem vivo poderá ter visto semelhantes.” [10]
8 Talvez seja desnecessário dizer, mas este pensamento ainda é tributário das ideias de Eduardo Viveiros de Castro.
9 Confira, para tanto, os recortes de Alberto Mussa em sua obra Meu destino é ser onça (Record, 2009). Também são notáveis as contra leituras sobre o modo de se perceber a cultura indígena de Manuela Carneiro da Cunha, Eduardo Viveiros de Castro, Tzvetan Todorov, Enrique Dussel, dentre outros.
10 Bartholomeu de Las Casas. História das Índias Ocidentais. Edições Cultura, 1944, p. 24.
Esse massacre ocorrido em Cuba é relevante em vários aspectos. O primeiro deles é a antecipação daquilo que só séculos depois seria descrito por Hannah Arendt como a “banalização do mal”. [11] É significativo que Las Casas uma hora se dê conta de que, tendo negociado com seus conterrâneos e relatado para a Coroa Espanhola para que interrompessem as torturas e o genocídio aos quais submetiam os nativos, tudo resultasse sem efeito. Coagidos pelo Estado e pela extensão das suas forças, as evidências das “forças do mal” regiam, independentemente do que os nativos fizessem, suas vidas, e fariam suas existências serem condenadas de um modo ou de outro.
11 Hannah Arendt. Eichmann em Jerusalém. Companhia das Letras, 1999.
Submetidos à ideia de subalternidade, a resistência dos indígenas fora imediata. Boa parte dos discursos sobre a dizimação dos povos originários é pactuária dos discursos contra a alteridade. Reconfigurados e lançados a outro tipo de sorte, os nativos não só não foram dizimados como retornaram como multidão. É que a alteridade é também uma forma de subversão que sabe se recolher sem se calar.
INSUBMISSÕES
Mas este texto de agora é fruto dos últimos acontecimentos de 2018 e essa data não pode ser desprezada. Somos presas temporais dela. Naquele ano vivemos, no Brasil, um embate fulminante das ideias do indivíduo versus as ideias da coletividade. A eleição presidencial retomou um momento dramático de nossa história comum e regurgitou nas telas dos diversos dispositivos que portávamos os interesses gerais que conclamavam o liberalismo e o individualismo teatralmente em nome da nação. Para caminhar, o Brasil outsider [12] precisaria se reconciliar com o Brasil oficial, aceitando apagar-se, incluir-se, subjugar-se, não se alterar.
12 A lista é longa, mas, ei-la, uma vez mais: indígenas, negros e quilombolas, mulheres, servidores públicos, LGBTQs+, animais, natureza, etc.
Evitando-se olhar para o Outro, os discursos foram se ensurdecendo para o ao redor, um sintoma que nos aparece no intempestivo Junho de 2013, mas que, aos olhares e às reflexões mais atentas, estão presentes desde a primeira operação da máquina colonial. Em 2015, os brasileiros teriam acesso à tradução para o português da obra de Davi Kopenawa Yanomami, que compreendia com lucidez:
“Hoje, os brancos acham que deveríamos imitá-los em tudo. Mas não é o que queremos. Eu aprendi a conhecer seus costumes desde a minha infância e falo um pouco a sua língua. Mas não quero de modo algum ser um deles. A meu ver, só poderemos nos tornar brancos no dia em que eles mesmos se transformarem em Yanomami. Sei também que se formos v er em suas cidades, seremos infelizes.” [13]
13 Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert. A queda do céu. Companhia das Letras, 2015, p. 75.
“Mas não quero de modo algum ser um deles” se dá justamente porque “só poderemos nos tornar brancos no dia em que eles mesmos se transformarem em Yanomami”. Em 2018 a resposta para Davi Kopenawa seria: então, nunca. A resposta nas eleições de 2018 foi pela igualdade na igualdade, não na diferença: uma espécie de pensamento em “que o Outro seja igual, que seja um igual sem contraste, sem fricção, sem negação de mim. Não desejo ir a campo, não desejo experiência na diferença, não desejo o Outro, desejo a mim”. Se há algo de previsível no encaminhamento dessa dicção – que conhecemos de longa data dado o seu caráter de repetição –, é que o grande erro das nações continuará sendo a aposta na unidade moralizadora dos corpos e das subjetividades. Seria preciso, antes, compreender as diferentes nações que formamos, atribuir carga sensível a elas para que os outros as vejam e as reconheçam, no sentido mais pathos dessa palavra, a pele dessa existência, e sua afecção, sua paixão, seu excesso, seu sofrimento, sua catástrofe. Só assim, no firmamento dos variados povos que somos, seríamos capazes de visualizar um horizonte de ampla convivência. Mas, novamente, como conviver na diferença? Como perceber o Outro-outro, aquele que será colocado no lugar do inimigo? E afinal, mesmo as amizades, os círculos de philia não seriam embebidos de tensões?
DO QUE EU FALO QUANDO EU FALO DE ALTERIDADE [14]
O exemplo de Davi Kopenawa, em A queda do céu, mistura de “relato pessoal e destino coletivo”, é um dos grandes exercícios com o qual nos deparamos em meio às proposições que podemos ter para o grande desamparo em que nos encontramos.
14 Este subtítulo é tributário da obra de Haruki Murakami de 2010, Do que eu falo quando eu falo de corrida (Alfaguara, 2010).
A data aproximada do seu nascimento é o ano de 1956. Desde os anos 1970 ele teria reconfigurado a sua existência para exercer seu direito à vida e à preservação do território onde se localiza seu povo. Desde os anos 1970, conhecidas fotos de Claudia Andujar têm carregado notícia de como o contato e a devastação do território indígena Yanomami, via abertura de estradas (a Perimetral Norte é epígrafe do massacre iniciado pela ditadura civil e militar da época) e mediante a proximidade ‘forçada’ com os trabalhadores das obras, promovem e acentuam o extermínio de tais povos. Garimpo e mineração, no presente, ampliam o campo dos napë, que é “o Outro sem mais, o inimigo por excelência e por essência, é o Branco”. [15] Inimigo, estrangeiro, forasteiro, o mundo da episteme branca em que vivemos corrobora para que a alteridade encontre a hostilidade.
“Os rapazes gastam o seu tempo rondando os postos dos brancos. Eu, ao contrário, cresci na floresta, bebendo mel selvagem o tempo todo. Foi isso que tornou meu pensamento reto e permitiu que ele se ampliasse.” [16]
15 Eduardo Viveiros de Castro. Prefácio. Publicado em: A queda do céu. Companhia das Letras, 2015, p. 13.
16 Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert, 2015, p. 239.
Mas o que a obra de Kopenawa vem contra-acentuar para nós, suas leitoras e leitores? Denúncia, raiva, estigmatização dos missionários, a enorme diferença entre brasileiros e povos indígenas, a imagem de que os brancos eram ladrões de crianças indígenas e veiculadores de epidemias (pneumonia, sarampo, tuberculose, gripes), e, além de tudo, de que os brancos têm o pensamento fixo em mercadorias. Davi Kopenawa apresenta nessa obra fronteiriça suas memórias, sua cosmogonia, sua relação com os xapiri [17] desde criança, narra seu mundo, ocupa um lugar disputado no mundo da escrita, questiona o fato de os brancos não atrelarem sua conduta à fala – falam do pecado, mas o cometem, falam das palavras de seu Teosi, [18] mas as desrespeitam repetidamente.
17 Osxapiri são “seres-imagens (‘espíritos’) descritos como humanóides minúsculos paramentados com ornamentos e pinturas corporais extremamente luminosos e coloridos”. Idem, p. 610. Nota 9.
18 Teosi vem do português ”Deus“. Idem, p. 610.
Ao longo da obra, acessamos a trajetória de Davi, mas entendemos que se trata de uma insurgência sem ilusões. Sendo contra o pensamento colonial, instaura outros mitos de fundação, outra ideia de origem, mas realiza sua narrativa de modo pouco ou nada messiânico. Não se trata de palavras que pretendem salvação. Como um xamã, Kopenawa compreende que as relações produzem um trabalho de chamado e de escuta incessantes, mas está nas mãos de cada um como proceder com suas próprias sensibilidades e afetos.
“Só existe um céu e é preciso cuidar dele, porque, se ficar doente, tudo vai se acabar. Talvez não aconteça agora, mas pode acontecer mais tarde. Então, vão ser nossos filhos, seus filhos e os filhos de seus filhos a morrer. É por isso que eu quero transmitir aos brancos essas palavras de alerta que recebi de nossos grandes xamãs. Através delas, quero fazer com que compreendam que deviam sonhar mais longe e prestar atenção na voz dos espíritos da floresta. Mas bem sei que a maioria deles vai continuar surda às minhas falas. São gente outra. Não nos entendem ou não querem nos escutar. Pensam que esse aviso é pura mentira. Não é. Nossas palavras são muito antigas. Se fôssemos ignorantes, ficaríamos calados. Temos certeza, ao contrário, de que o pensamento dos brancos, que não sabem nada dos xapiri e da floresta, está cheio de esquecimento.” [19]
“Para isso são necessárias pessoas valentes, antropólogos corajosos que não se contentam em fazer pesquisa e depois ir embora. Nós, índios, precisamos de antropólogos que tenham coragem, antropólogos que falem nossa língua.” [20]
19 Idem, p. 498.
20 Idem, p. 530.
Ante o tremendo desamparo diante do Estado brasileiro, que entende que os povos originários são inimigos da nação (basta escutar o discurso das mineradoras, da bancada do agronegócio, dos cidadãos de bem da classe média brasileira, da classe alta, ou mesmo das classes C e D que se identifiquem com os valores das classes mais ricas), Kopenawa assumiu o medo não como paralisia, mas como potência. Vladimir Safatle pontua: “(…) há de se lembrar que o desamparo não é apenas demanda de amparo e cuidado. (…) há um ponto no qual a afirmação do desamparo se confunde com o exercício de liberdade”. [21]
21 Vladimir Safatle. O circuito dos afetos. Autêntica, 2016, p. 31.
Contudo, num mix paradoxal muito benéfico, próprio das comunidades onde não predomina a razão branca, a obra Yanomami recusa a aposta no mundo branco, lugar que não pretende mais ocupar, pois os povos precisamos entender quais seriam os “desejos desejáveis”, e Kopenawa, em uma série de exemplos, demonstra o quão traiçoeira e subalternizante a razão branca pode ser. Sem desejar nada de um universo que só dialoga com eles nos termos de sua destruição, os Yanomami, como outras centenas de povos indígenas, optam por reconhecer que estão desamparados na cena nacional – que os trata ora como estrangeiros, ora como invasores –, e mantêm a crença na tradição milenar, evidenciando que alguns povos estão amparados por Omama, [22] mesmo que o céu desabe.
22 Omama é o demiurgo da mitologia Yanomami. Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert, 2015, p. 610.
Notavelmente interessado em impedir que o céu caia sobre nossas cabeças, Davi se abre ao diálogo, insiste na transmissão de sua história, compartilha os presságios. Se sabe dos avisos dos antigos e dos espíritos da floresta, insiste na crença – paradoxal que seja – de desconhecer, afinal, o que pode o Outro. Alteridade é ausência de previsão. E, nesse sentido, Davi Kopenawa Yanomami não só se lança ao Outro como se levanta. Sua narrativa é definitivamente séria, pautada, como diz Viveiros de Castro por “lampejos de lucidez política e poética”. [23] Esse acontecimento, esse corpo que se joga no front da luta, de modo combatente, acaba por desenhar uma espécie de levante. “O levante se dá com uma determinação que um dia vai pôr fim a uma condição comum por tempo demais suportada”, escrevera Judith Butler, [24] mostrando que o levante não é apenas uma situação em que apenas eu sofro, mas você também, e isso se tornaria um “nós”, um acolhimento, um desejo de colocar fim à sujeição que nos aprisiona por um tempo desmedido. (A pergunta freudiana resumida por Safatle: por que tanta sujeição e recalque?).
23 Eduardo Viveiros de Castro, 2015, p. 15.
24 Judith Butler. Levante. Publicado em: Georges Didi-Huberman (Org.). Levantes. Edições Sesc, 2017, p. 25.
Mas um levante, continua Butler, “é geralmente um acontecimento pontual”. [25] O que Butler apresenta em suas reflexões, em suma, é que levantes geralmente têm começo, meio e fim, e, em geral, fracassam. O dia seguinte ao fracasso de um levante é também quando sua história se torna narrável. Ora, justamente porque os povos indígenas viram o “fim do mundo” com a chegada dos primeiros colonos é que as palavras de Kopenawa surgem nesse tom de rememorar acontecimentos, fazendo apostas em um futuro incerto. Lúcido, o pensamento dele se afina com o de Butler, quando ele diz: “sabemos que as palavras dos brancos só iriam sumir (…) de nossa mente se eles parassem de se aproximar de nós e de destruir a floresta. (…) Nosso espírito se aquietaria e voltaria a ser tão tranquilo quanto o de nossos ancestrais no primeiro tempo. Mas é claro que isso não vai mais acontecer”. [26] Butler, em reflexão semelhante, rememora que:
“em 1832, na Jamaica, escravos entraram em greve, exigindo pagamento por seu salário. Diante da recusa dos proprietários, eles incendiaram as casas e os depósitos de cana-de-açúcar, causando grandes prejuízos. Sob a liderança de Samuel Sharp, 20 mil escravos assumiram o controle de mais de 200 plantações, e, ainda que dominados no final, presos e, muitos, executados, estima-se que o movimento contribuiu para o fim, em 1834, da escravidão imposta pelos britânicos. Todos os levantes fracassaram, mas, conjuntamente, tiveram sucesso.” [27]
25 Idem, p. 31.
26 Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert, 2015, p. 227.
27 Judith Butler, 2017, p. 36.
O fracasso pontual desses gestos pode ter algo a ver com as alterações rizomáticas que a voz de Davi Kopenawa provoca naqueles que a leem. Reparem como o circuito estabelecido por ele retoma, em outros termos, o famigerado movimento inicial de alterar-se exercido pelos Tupinambá. Significativo notar as maneiras de repetição – na diferença – de chamamento, de abertura para o diálogo, de uma aposta naquilo que cada um de nós pode ter de um devir índio, uma aposta aguda no porvir. Vale ressaltar que não é mais a troca, contudo, o que está em jogo, e essa alteração no diálogo proposto é crucial para o entendimento do que pretende a política narrativa dessa liderança Yanomami no presente. A ideia de alteridade, nesse sentido, acabou por sofrer uma espécie de corrosão. Tornar-se Outro é medida que deve ser exercitada unicamente pela episteme branca, tendo em vista o pouco ou quase nenhum deslocamento feito por essa mesma episteme ao longo de mais de cinco séculos no Brasil; portanto, é a ela que cabe qualquer ideia de transfiguração para se construir uma outra afinidade relacional. E se os indígenas necessitam ou desejam os apetrechos do mundo do homem branco, claro está que não confundem mais a ideia de presente com a de mercadoria. [28]
28 Eduardo Viveiros de Castro. Equívocos da identidade. Publicado em: Gondar & Dobedei (Org.). O que é memória social? Contracapa, 2006.
Se retornarmos ao evento da antropofagia ritual, qual seria o motivo de devoração de um sujeito que permanece sempre o mesmo? Se a razão branca não se cansou de não se alterar, logo, devorá-la seria devorar o inalterável, uma espécie de repetição de algo que não só não apresenta diferença como já fora experienciado na esfera da morte inglória, sem qualquer resquício de saldo positivo para os ameríndios nessa relação. Mas os animais humanos não somos sempre os mesmos e esse dado não deve ser ignorado. Mesmo que o mundo da razão branca permaneça voltado para a mercadoria e sem se importar com os direitos da terra, há sobreviventes, dissidentes, os que se importam, pessoas que correm o risco de falar a língua do Outro, a língua menor a qual Deleuze e Guattari [29] se referiam para falar de uma literatura dos recônditos. É essa literatura de um Kafka, de uma Carolina Maria de Jesus, de um Davi Kopenawa Yanomami – que somente pode ser alcançada pelos leitores e leitoras da razão hegemônica por meio de um corpo que aceita revolucionar-se – que altera o Outro, multiplica o seu leque de leituras, provoca os corpos para uma poética política: o sonho dessa narrativa menor nos oferece uma estética de mundo que também é uma política. Nesse caminho, as leis da antropofagia são reinventadas pelos seus próprios fabricantes: o “só me interessa o que não é meu”, com o qual Oswald de Andrade inicia seu Manifesto Antropófago em 1928, retém o fato de a terra ser de todos. Continua-se como um devorador do Outro, mas são as próprias ideias de posse e de comum que necessitam ser reelaboradas. A primeira lei do antropófago contemporâneo seria a de começar a entender a profunda tensão entre aquilo que entendo ser meu e aquilo que entendo ser do Outro. Davi Kopenawa chama a atenção para a questão do ouro nos garimpos: um pó que brilha na terra – como podemos matar um homem por conta disso? [30] Quem sabe olhando juntos o mesmo céu a gente não consiga se interessar realmente por ele, combatendo a premissa de que o mundo já acabou e a ardilosa ideologia de que a persistência do inalterado prevalece sobre a potência da transfiguração, o que torna as diferentes guerras no mundo atual por um outro mundo possível irresolutas. Para que o céu não caia teremos, insistentemente, de continuar nossa aposta no Outro. Outras e novas formas de epistemes brancas haverão de surgir, novos contatos, novas formas de afecção, novos formatos de humanos e de descobrimento, e a obra de Kopenawa é um grande passo para um futuro que se deseja presente. Sem niilismo e sem falsas ilusões, bem ao modo de Kopenawa em sua proposição-levante ao escrever uma obra entre o sonho e a lucidez para que o céu não caia. [31] Para que o céu continue sendo céu.
29 Refiro-me à obra Kafka: Por uma literatura menor, dos autores, de 1975.
30 Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert, 2015, p. 10.
31 Impossível não referenciar aqui o título do espetáculo-manifesto da Companhia de Dança de Lia Rodrigues, “Para que o céu não caia”, de 2016, baseada na obra A queda do céu.
Política e natureza: uma apresentação
Este bloco emergiu de algumas inquietações. A primeira delas é a reverberação de nosso contato com Tuíra, com sua luta em defesa da floresta e com os diversos enfrentamentos realizados pelos povos indígenas desde que o “céu deixou de ser céu”, como afirma Davi Kopenawa. Some-se a desafiadora necessidade de arejar o pensamento político, hoje em processo de ataque pelos totalitarismos, ávidos por sufocar tudo que ouse pensar. Por fim, por acreditar que teoria e prática não se dividem, são relação, e se expandem quando postas em contato.
Encontramos algumas pessoas que se colocam em movimento para a criação de um pensamento político. Um pensamento político inspirado e inventivo, baseado na relação com a terra, com as plantas, com seres que escapam às lógicas ocidentais, modernas, capitalistas. Pensares que explicitam o que é obvio para os povos originários: todos os modos de existir possuem valor e não são meros recursos. Pensares que põem em xeque as crenças de um dos seres mais frágeis da natureza: o ser humano.
Procuramos por Jean Tible, militante e professor de Ciência Política na USP, que prontamente se dispôs a criar algo, como ele mesmo descreveu, “mais solar” sobre a política. Quando trevas e obscurantismo dominam o imaginário político institucional, isso nos pareceu tentador. Em seguida buscamos Luciano da Silva, jovem-experiente, agricultor agroecológico e técnico agrícola formado pelo Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), ligado ao Movimento dos Trabalhadores, Assentados e Quilombolas (CETA) e que, na posse de alguns hectares de terra e ao lado de pessoas dispostas a produzir agroecologicamente, vem participando de um processo de transformação político-econômica-autonomista em um assentamento na região Sul da Bahia.
Para um pedimos um texto: o quê? Para o outro pedimos uma prática: como?
E foi nesta busca, entre papos, viagens, idas e vindas, que descobrimos algo interessante neste bloco: a real conexão entre um conjunto de pensamentos e um conjunto de ações. Diria o antropólogo Jeremy Narby que “a prática é a mais avançada das teorias”. Nossa tentativa aqui foi de fazer falar o texto de Jean Tible nas práticas de Luciano da Silva e assim conectar mundos.
Em seu texto, Jean nos transporta para uma grande viagem do mundo animal ao vegetal, explorando povos, corpos, filosofias, artes, paradigmas. Revela para nós o modo como o pensamento foi estruturado seguindo uma linha predatória e, na sequência, nos mostra um mundo de plantas, conexões, adaptabilidade e força. Descobrimos o quão pouco conhecemos deste universo. Fica explícita uma necessidade, em nome da sobrevivência, de realizarmos adaptações e alianças. Tal como podemos ler na feliz citação que Jean faz de Anna Tsing: “permanecer vivo – para todas as espécies – requer colaborações vivíveis. Colaborações significam trabalhar através da diferença, que leva à contaminação. Sem colaborações, todos morremos”.
Encontramos, no trabalho dos assentados de Dois Riachões e de Luciano, uma verdadeira arte do cultivo. Conhecemos diversas facetas da cultura da Theobroma Cacao, nome científico da planta que nos oferece o “fruto de ouro”, o cacau: desde seu quase desaparecimento no final dos anos 1980, em decorrência de pragas, até seu renascimento atual, a partir de uma nova forma de produção, comercialização e articulação política feita em seu entorno. Segundo Luciano, “muito mais do que um conjunto de técnicas, agroecologia é um modo de vida junto ao campo e à natureza”.
Ao observar tamanha pluralidade na vida das plantas e conversar com um agricultor é possível compreender que, como diria Jean, eles não são simples selecionadores de espécies: são colecionadores de relíquias! Uma variedade imensa de feijões, mandiocas, batatas, milhos e sementes originárias que enriquecem a nossa saúde e a nossa cultura com os diversos esquemas, modos e práticas produtivas.
É preciso imitar a natureza ao máximo! Observar sua composição, os tamanhos das árvores, extratos de uma floresta que se organiza a partir da queda de folhas, galhos, cipós, sempre em busca de sol ou de sombra, e construir plantações que permitam essa paisagem movente, não uma plantação toda retilizada, igual em cor e tamanho. As folhas que caem realizam uma função importantíssima na cobertura do solo que, úmido, se protege e se nutre. A diversidade de plantas na floresta também oferece a possibilidade da energização pela diferença: há ali alimento para todos, animais, microrganismos, insetos e até parasitas. A disputa por nutrientes do solo, luz e água é menor. É uma orquestra, cada um tocando no seu ritmo, seu tom, mas todos em plena sintonia. Lá embaixo, no solo, ocorre a trama de raízes que penetram o solo de maneira desigual buscando nutrientes, água e oxigenação em diferentes camadas. As plantas realizam, ainda, um tremendo processo de comunicação entre si pelas raízes. Quem diz que planta não fala se engana completamente!
Com os povos indígenas e originários aprendemos que é preciso observar a natureza e aprender com ela. Hoje estes conhecimentos estão disseminados em diversos meios pela agroecologia. Sim, as plantas ensinam. Suas palavras e suas pedagogias parecem ter sido ouvidas por poucos. Luciano dá testemunho do quanto foram capazes de ouvir estes ensinamentos no Assentamento Dois Riachões. No Território Quilombola do Vão Grande, aqueles que conhecerem Tio Antônio [1], também testemunharão estas aprendizagens. Ali encontramos aquele “cultivo de comunidades” instaurado textualmente por Jean: “Um cultivo de comunidades onde dormir, acolher quem chega, se reunir, cozinhar e comer, plantar e se cuidar em espaços construídos coletivamente”.
1 Para conhecer mais dessas aprendizagens, visite o texto de Tio Antônio, do Território Quilombola do Vão Grande
E por que tudo isso é importante?
Basta olhar para esta vida inspirada na terra, na arte de observar a natureza, suas reações, seu cosmo, para pensarmos que uma política inventiva, produtora de mais vida, energizada pelos minerais, pelo Sol, pelas fases da Lua se faz urgente e necessária.
Por uma Política do Cultivo!
POLÍTICA E NATUREZA
Muitas outras mediações da relação entre ser humano e natureza são possíveis – e, com elas, podem emergir novos modos de existir e conviver, novas cosmopolíticas e lutas floresta
Jean Tible
“O homem é o lobo do homem”. Esse antigo provérbio romano tornado célebre por Thomas Hobbes sintetiza uma poderosa narrativa sobre o homem, a natureza e a política. O filósofo elabora um relato extremamente influente de uma saída do estado de natureza – e sua guerra de todos contra todos – para a constituição de um estado civil. O medo hobbesiano essencial, da morte violenta (ele escreve no contexto de uma guerra civil), seria, assim, evitado. Os homens deixariam a violência fratricida pela celebração da concórdia, ao renunciarem à natural liberdade absoluta e pondo fim à “guerra perpétua de cada homem contra o seu vizinho”. [1]
[1] Thomas Hobbes. Leviathan or The Matter, Forme and Power of a Common-Wealth Ecclesiasticall and Civil. Yale University Press, 2010 [1651].
Torna-se, para isso, necessário produzir uma desigualdade, uma assimetria incontornável. O autor resgata então a imagem de um monstro bíblico, o Leviatã. Disciplinado por este, o súdito hobbesiano desfrutaria do banimento da guerra. Brotaria a paz e seria instaurado um mundo de ordem: surge, via contrato social, um Estado forte, comandado por um Rei ou uma Assembleia. A obediência será agora a métrica da política, já que somente com um organismo estatal absoluto, que faça valer a lei punindo o dissenso, haveria paz civil – trata-se do preço da autopreservação, da manutenção da vida dos homens.
O lobo mau. A natureza selvagem. Imagens recorrentes, figuras fortes que nos interpelam constantemente até hoje – ambos devem ser domesticados.O homem é o lobo do homem. A ausência do Estado indica o estado de natureza, a anarquia, a guerra, o caos, a desordem. De forma sintomática, esse estado de natureza subsistia, para Hobbes, em algumas áreas do planeta, onde vivem os “povos selvagens” presentes na América. São decisivos, aponta Carolyn Merchant, [2] os elos entre submissão da natureza e das mulheres no programa científico dito moderno (no qual Hobbes se encaixa), assim como dos povos considerados inferiores (inclusive os camponeses europeus).
[2] Carolyn Merchant. The death of nature: women, ecology, and the scientific revolution. San Francisco, Harper & Row, 1980.
O surgimento deste modelo de conhecimento hipermasculinizado busca “uma relação epistemológica com o mundo mais limpa, mais pura, mais objetiva e disciplinada”. [3] A quem se opõe essa nova ciência? Como já dizia em 1893 Matilda Joslyn Gage, existem “provas abundantes que as pretensas ‘bruxas’ estavam entre as pessoas mais profundamente científicas do seu tempo”. [4] Gage defende que o sentido original de “bruxa” era de mulher sábia e os primeiros médicos da Europa cristã eram mulheres que possuíam o domínio das ervas. O alquimista e físico Paracelso, considerado um dos fundadores da medicina, compilou, como o admitiu, esses conhecimentos (das bruxas) em suas obras. O ataque desse emergente aparelho estatal foi também contra as organizações comunais das quais esses conhecimentos eram parte. Um ataque contra sua autonomia (inclusive a sua ciência). Bruxa, feiticeira, curandeira, mágica – esses xingamentos atravessaram os séculos e ainda são usados hoje. Seu objetivo? Controlar a desordem expressa pelos corpos rebeldes, seus saberes e suas alianças. Dominar as mulheres, a natureza e os lobos. Na caça às bruxas que marca o início desse período histórico, uma minoria de condenados era de homens. Qual era a acusação? Eram lobisomens! [5]
[3] Mona Chollet. Sorcières: la puissance invaincue des femmes. La Découverte, 2018, p. 190.
[4] Matilda Joslyn Gage. Woman, Church and State. The original exposé of male against female sex. 1893, p. 100.
[5] Janaina Wagner. Licantropia, 2019.https://vimeo.com/344611234/3a84b5cf6b
Rosa Luxemburgo enfatizava o papel subversivo da Antropologia, ao afirmar que, no decorrer do século XIX, “uma abundante documentação surgiu, abalando de forma séria a velha noção do caráter eterno da propriedade privada e de sua existência desde o começo do mundo, para logo a destruir completamente”. [6] Essas pesquisas ajudaram a derrubar certas verdades eternas do momento (como a família, o Estado e a propriedade), já que muitos povos não as conheciam em sua forma burguesa. Abre-se, aqui, um paralelo com certa biologia contemporânea: a famosa frase, já citada duas vezes, não só compõe uma imagem equivocada do lobo, como também “insulta um dos mais gregários e leais cooperadores do reino animal. Tão leal, de fato, que nossos ancestrais sabiamente o domesticaram. Os lobos sobrevivem derrubando presas maiores do que eles, animais como renas e alces, e fazem isso com trabalho em equipe”. Esses distribuem a caça, “regurgitam a carne para as mães lactantes, os filhotes e às vezes os velhos e doentes que ficaram para trás”. Em seu meio, “a competição existe, mas os lobos não podem se dar ao luxo de permitir que ela siga seu curso. Lealdade e confiança vêm primeiro. Comportamentos que solapam o alicerce da cooperação são reprimidos para impedir a erosão da harmonia, a base da sobrevivência”. [7]
[6] Rosa Luxemburgo. Introduction à l’économie politique. Smolny, 2008 [1925], p. 189.
[7] Frans de Waal. Eu, primata: por que somos o que somos. Companhia das Letras, 2005, p. 266
Um contra-Hobbes foi elaborado por autores malditos do pensamento político (La Boétie, Espinosa, Marx, Clastres) e, sobretudo, por uma multiplicidade de práticas. E essas não constituem um privilégio humano, atingindo também as amplas esferas do dito não humano. Uma política animal, uma política vegetal. Ara Reté no barco pirata em Para-ty pensa o que pode ser a política (palavra que não existiria em Guarani) e fala de aty guasu – grande conversa. [8] Assembleia com mulheres, homens, pessoas trans, mas também espíritos, fungos, árvores, polvos, grandes primatas e muitas outras. Frente à política convencional depurada, mas também redutora, falsa e conservadora, um diálogo com a biologia, que vem contribuindo para enriquecer concepções de política, como Piotr Kropotkin, [9] mais de um século atrás já havia elaborado.
[8] Ara Reté Guarani Nhandewa. Debate “A descolonização do poder” com Zé Celso (Teatro Oficina) e Ara Reté (-Paraty). Festa Literária Pirata das Editoras Independentes, 13 de julho de 2019.https://www.youtube.com/watch?v=UEBmSTvxdME
[9] Piotr Kropotkin. Mutual aid: a factor of evolution. Freedom Press, 1987 [1902].
Isso sustentou a compreensão de que os “processos da Terra eram tão vastos e poderosos que nenhuma força poderia modificá-los. Que as cronologias humanas eram insignificantes comparadas ao vasto tempo geológico”. [10] Mas conseguimos e nos tornamos, destruindo as florestas e queimando combustíveis fosseis, agentes geológicos. Fundamos o antropoceno, ou, de forma mais precisa, o modo de produção tornou-se agente geológico: emerge o capitaloceno. Esse predomínio do Homem sobre a Natureza põe em risco a vida humana e sua sobrevivência depende agora de ouvir os antes considerados não modernos cujos relatos sempre levaram em conta as atividades de todos os seres vivos, humanos e não humanos. Muitas das que estavam fora do estatuto de Homem impuseram sua presença; pelas lutas, passam a ser imprescindíveis e, agora que estamos nos livrando do Homem e da Natureza, os “entrelaçamentos inter espécies que pareciam coisa de fábulas são agora material para debate sério entre biólogos e ecologistas, que mostram como a vida requer a interação de vários tipos de seres. Humanos não podem sobreviver pisoteando todos os outros”. [11]
[10] Déborah Danovski e Eduardo Viveiros de Castro. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Instituto Socioambiental, 2014, p. 26
[11] Anna Lowenhaupt Tsing The mushroom at the end of the world: on the possibility of life in capitalist ruins. Princeton University Press, 2015, p. vii.
Um planeta mais vivo e bem mais interessante. Esses novos ventos adentram os debates científicos e políticos e uma ampla literatura sobre esses temas irrompe. Uma questão óbvia para tantos povos passou a ser considerada: “para nós, que, retrospectivamente, nunca fomos modernos, o estado de natureza já não é o que era”. Dessa forma, “a lei da competição teve de se curvar perante uma saudável dose de cooperação, cujas contribuições cruciais para a evolução são agora amplamente conhecidas, com a simbiose sendo aceita como a origem da vida multicelular”. Logo, “colocar a simpatia em igualdade de condições com a agressão como um fator na natureza não é mais algo impensável”. [12]
[12] Brian Massumi. O que os animais nos ensinam sobre política. N-1 edições, 2017, p. 9.
Se antes tínhamos um estado de natureza hobbesiano onipresente, agora imagens mais justas ganham eco. Olhávamos sobretudo para o chimpanzé como nossa herança biológica, apesar de Charles Darwin já ter colocado que “nossas características humanitárias [solidariedade e empatia] baseiam-se em instintos sociais que temos em comum com outros animais”. Essa poderosa compreensão do animal egoísta e avesso à cooperação – em suma, a lei da selva – se liga a uma determinada perspectiva política e econômica. Concomitante aos tempos de “Ronald Reagan e Margaret Thatcher pregando que a ganância era benéfica à sociedade, à economia”, a biologia entrou na onda em “O gene egoísta, de Richard Dawkins, [que] ensinava como a evolução ajuda quem se ajuda”, argumentando que “o egoísmo devia ser visto como uma força indutora de mudança, e não uma falha que nos arrasta ladeira abaixo. Podemos ser primatas perversos, mas isso é explicável e benéfico para o mundo”. [13] Daí leituras reiteradamente equivocadas sobre Darwin e a teoria da seleção natural, pois este não era darwinista social…
[13] Frans de Waal, 2005, p. 35-36.
A ciência contemporânea tem, assim, desmontado esse relato ideológico, falso. De Waal testemunha os conflitos violentos e de sangue entre os chimpanzés, mas também faz referência a outros como os bem mais pacíficos, solidários e sexuais bonobos, “descobertos” somente no século XX. E se tivéssemos, pergunta o primatólogo, conhecido antes o bonobo que ignora a guerra letal e o predomínio do macho? Isso se liga, também, às “últimas descobertas da neurociência. Especialistas examinaram imagens do cérebro de pessoas enquanto elas resolviam problemas morais propostos por eles” e perceberam “que tais dilemas ativam centros emocionais antigos, profundamente embutidos no cérebro. Em vez de ser um fenômeno superficial em nosso neocórtex expandido, a tomada de decisões morais parece ter por base milhões de anos de evolução social”. [14]
[14] Idem, p. 48.
O que nos dizem nossos parentes próximos, os grandes primatas? Que “a compaixão não é uma fraqueza recente que contraria a natureza, mas um poder formidável, um poder que, assim como as tendências competitivas que a compaixão procura superar, é parte de quem e do que somos”. Os humanos teriam tanto facetas de chimpanzés quanto de bonobos, aliás, acentuando ambas – nossas guerras excedem as dos primeiros em violência e morte e nossas relações de empatia seriam mais elaboradas e ricas que as dos segundos. Mais brutais e mais cooperativos: não faz sentido, assim, “a tentativa de considerar apenas um pólo em detrimento do outro. No entanto, é o que o Ocidente tem feito há séculos, retratando nosso lado competitivo como mais autêntico do que nosso lado social”. [15]
[15] Idem, p. 209; 265.
Isso se manifesta na organização política dos grandes primatas e um ponto lhe chama a atenção: “entre os chimpanzés, a hierarquia permeia tudo”. Em contraponto a estes, liderados por machos, nos bonobos, “uma longa história de vínculos entre fêmeas, expressos em muitas sessões de grooming e sexo, fez mais do que minar a supremacia dos machos: virou a mesa. O resultado é uma ordem fundamentalmente diferente”, pois “as fêmeas bonobos aperfeiçoaram a solidariedade feminina latente em todos os grandes primatas africanos”. De Waal relaciona essa diferença fundamental ao que os psicólogos definem como a “personalidade HE (hierarchy-enhancing, acentuadora da hierarquia) [que] apoia a lei e a ordem e defende medidas drásticas para manter todos sob controle” e a “personalidade HA (hierarchy-attenuating, atenuadora da hierarquia) [que], por sua vez, procura nivelar as posições de todos”. [16]
[16] Idem, p. 72; 83; 290.
Haveria, assim, um confronto antigo entre hierarquias e suas subversões. O que de Waal sustenta a respeito das políticas dos grandes primatas, a partir de um longo trabalho de investigação, Peter Wohlleben faz de modo similar tendo como base sua experiência de engenheiro florestal na Alemanha. As árvores são seres sociais e compartilham nutrientes com outras, suas eventuais concorrentes. Isso permite a existência de um ecossistema com temperatura e umidade reguladas, além de proteção contra o vento e tempestades. Apesar de cada espécie desejar sua própria sobrevivência e poder ser impiedosa, se produz uma certa igualdade: “não importa se têm o tronco grosso ou fino: todos os espécimes produzem a mesma quantidade de açúcar por folha. Esse nivelamento acontece nas raízes. No subterrâneo ocorre uma troca ativa, segundo a qual que tem muito cede e quem tem pouco recebe ajuda”, [17] via fungos e sua extensa rede que redistribui os nutrientes; esses atuam, assim, como “assistentes sociais” e “mecanismos de proteção” ao temperarem possíveis desigualdades perigosas para a coletividade.
[17] Peter Wohlleben. A vida secreta das árvores: o que elas sentem e como se comunicam. Sextante, 2017 [2015], p. 20.
Stefano Mancuso vai além ao elaborar uma democracia vegetal. Desprezadas, as plantas, nossas parentes antiquíssimas (o último ancestral comum seria encontrado nas águas há 600 milhões de anos), apresentam outras (e engenhosas) políticas. Para o neurobiólogo, “nossa única ideia de vida complexa e inteligente corresponde à vida animal”. Ao não encontrar “nas plantas as características típicas dos animais, nós as catalogamos como passivas (justamente, ‘vegetais’), negando-lhes quaisquer habilidades típicas de animais, do movimento à cognição”. Entretanto, as plantas são um sucesso – “não há ambiente neste planeta que não seja colonizado por plantas”, sendo que “pelo menos 80% do peso de tudo que está vivo na Terra é composto de vegetais”. [18]
[18] Stefano Mancuso. “Democracias verdes: as plantas podem ensinar aos seres humanos como agir de maneira cooperativa, descentralizada e não hierárquica”. Revista Piauí, n.154, julho de 2019.
Tomamos – plantas e animais – caminhos opostos. Aquelas não têm órgãos únicos ou duplos e “distribuem por todo o corpo as funções que os animais concentram em órgãos específicos”. Uma tecnologia cuja palavra-chave é a descentralização: “as plantas respiram com todo o corpo, veem com todo o corpo, sentem com todo o corpo, calculam com todo o corpo e assim por diante”. Isso as torna extremamente
resistentes à predação, pois suportam perder parte do corpo e seguir vivendo. Tampouco existe um cérebro como sistema central; sua “arquitetura [é] modular, cooperativa e distribuída, sem centros de comando, capaz de suportar perfeitamente predações catastróficas e repetidas”. Uma política distribuída na qual “as oligarquias são raras, as hierarquias, imaginárias e a chamada lei da floresta, um reles disparate”. Além disso, e ponto fundamental, essas organizações “sem centros de controle, são sempre as mais eficientes. Os recentes avanços da biologia no estudo dos comportamentos grupais indicam, sem sombra de dúvida, que as decisões tomadas por um grande número de indivíduos são quase sempre melhores que as adotadas por poucos”.
Conclui, Mancuso, colocando que a “ideia de que a democracia é uma instituição contrária à natureza, portanto, permanece apenas como uma das mais sedutoras mentiras inventadas pelo homem para justificar a sua antinatural sede de poder individual”. Também somos plantas, em seu potencial subversivo e criatividade democrática? Essa democracia das plantas pode se conectar a toda uma democracia dos corpos coletivos e suas organizações dissidentes, historicamente reprimidas pelos poderes (aldeias, quilombos, conselho de trabalhadores, círculos feministas, coletivos artísticos, embarcações piratas e muitas outras). Em diálogo com essa entrada em cena dos não humanos em certos debates, tenta-se pensar uma política do cultivo, percorrendo uma ciência selvagem, traçando uma presença vegetal em 1968 e um devir-indígena de certas lutas-vidas contemporâneas.
CIÊNCIA SELVAGEM
Pensar, investigar, buscar, experimentar nos termos trabalhados acima envolve ouvir e ler, dialogar e aprender de outras cientistas, habitualmente excluídas desse âmbito. Um caminho possível é retomar o acontecimento ainda em curso – para a ciência e a política –, provocado pela aparição de duas moléculas e suas implicações revolucionárias.
A primeira, a dietilamida do ácido lisérgico (LSD, na sigla em alemão), sintetizada por Albert Hofmann, em 1938, quando trabalhava para a farmacêutica suíça Sandoz. Não foi aproveitada naquele momento, mas ficou armazenada. Cinco anos depois, o químico volta a essa molécula psicoativa extraída do esporão-de-centeio (fungo usado por muito tempo por parteiras); num dia de abril de 1943, em plena segunda guerra mundial, Hoffman teve um “pressentimento particular”, simpatizou com a “estrutura da molécula do LSD” e resolveu repetir o experimento. Ao fazê-lo, deve ter absorvido algo da substância pela pele, pois passou a ser tomado por sensações inabituais. Foi pra casa, deitou e fez a primeira viagem de LSD. Dias depois repetiu o procedimento e, por conta da altíssima dosagem, viveu a primeira bad trip – “Hofmann voltou da viagem convencido, em primeiro lugar, de que o LSD o havia encontrado e não o contrário, e, em segundo lugar, de que o LSD um dia teria grande valor medicinal, em especial na psiquiatria”. [19]
[19] Michael Pollan. Como mudar sua mente: o que a nova ciência das substâncias psicodélicas pode nos ensinar sobre consciência, morte, vícios, depressão e transcendência. Intrínseca, 2018, p. 31-33.
O segundo composto químico, conhecido há milhares de anos por vários povos do México e da América Central na forma de um cogumelo marrom, sendo usado em ritos religiosos (chamado em Azteca de carne dos deuses), será posteriormente conhecido como psilocibina. Em 1955, Gordon Wasson, banqueiro e micologista amador norte-americano, o experimentou em Oaxaca, no sul do México, publicando dois anos mais tarde um longo relato na revista Life. Pela primeira vez, a notícia de sua existência e efeitos chegava a um grande público (a descoberta anterior de Hofmann ainda estava restrita a pequenos setores da comunidade científica).
Na mesma década, cientistas ligam a composição química de alucinógenos à serotonina, que cumpre o papel de mensageiro entre células do cérebro, sendo também um dos principais hormônios. Desse modo, “o advento do LSD pode ser ligado à revolução na neurociência”, com a descoberta tanto de “receptores cerebrais” quanto “da substância química endógena (a serotonina) que os ativa com uma chave-mestra”. [20] Duas décadas depois, será descoberto que a dimetiltriptamina (DMT) é segregada naturalmente pelo cérebro, sendo produzida pela glândula pineal e cumprindo um papel de ansiolítico. O DMT está também presente no leite materno, no sangue e outras partes do corpo e é ativado em alguns momentos particularmente importantes da vida humana: ao nascer de parto “normal”, ao morrer e, mais quotidianamente, ao sonhar.
[20] Michael Pollan, 2018, p. 12; 32.
Certas plantas (ou fungos) e a serotonina são como chaves que logram abrir uma mesma fechadura no interior do cérebro humano. O corpo está preparado para isso – são substâncias que ele próprio produz – psilocibina e serotonina (neurotransmissor natural) são muito parecidos – regulam o humor, produzem sensação de bem-estar. Essas descobertas na neurologia levaram até a uma especulação e reinterpretação da evolução a saber que o “consumo de cogumelos contendo triptaminas por hominídeos ancestrais foi uma das forças evolutivas que forjaram o desenvolvimento do neocórtex”. [21] Chamada igualmente de “teoria do macaco chapado”, teria um papel potencialmente decisivo na evolução e no desenvolvimento da linguagem e imaginação.
[21] Pedro Luz. Carta psiconáutica. Rio de Janeiro, Dantes, 2015.
Em meados dos anos 1980, um jovem cientista canadense vai fazer um trabalho de campo com os Ashaninka na Amazônia peruana. Jeremy Narby quer estudar a questão do território e fazer uma análise econômica, cultural e política, pretendendo indicar o uso racional, pelos Ashaninka, da floresta. Pensando em sua pesquisa como constituindo um apoio às lutas pelo reconhecimento de suas terras, ele acaba, no entanto, confrontado pela presença constante (e que ia contundentemente contra seu argumento) dos alucinógenos. Ao ouvir pela primeira vez que o conhecimento das propriedades medicinais das plantas se faz ao consumir um bebida psicoativa, pensa se tratar de uma brincadeira. No entanto, os Ashaninka insistem que seu aprendizado vem da ayahuasca, que constitui a principal fonte de saber. Narby acaba sendo, assim, crescentemente interpelado por uma ciência selvagem e esta passa a ser o tema de sua investigação antropológica.
Os conhecimentos dos povos indígenas acerca das plantas espantam os etnobotânicos. A composição química da ayahuasca indica a combinação de duas plantas: uma contém DMT, que é habitualmente inibido por uma enzima do aparelho digestivo se consumida por via oral, e outra, possui substâncias que impedem esse ataque da enzima. Daí o efeito alucinógeno poder durar algumas horas em vez de poucos minutos. Como os Ashaninka sabem disso se não possuem conhecimentos químicos para encontrar uma solução de ativação de um alcaloide, pergunta Narby. Por tentativa e erro? Mas existem oitenta mil espécies de plantas. Como juntar duas que se combinam de forma tão eficaz (permitindo o bloqueio de uma enzima específica)? Ele também narra o exemplo do curare – um paralisante muscular que mata sem envenenar a carne. Essa anestesia é obtida depois de sofisticado trabalho químico, que modifica sua estrutura molecular. Os Ashaninka conhecem 40 tipos de curare, compostos por 70 espécies vegetais diferentes. Para seu preparo, é necessário combinar várias espécies e cozinhá-las por três dias e não respirar seus vapores. Tem-se como resultado uma pasta, que se ativa somente por via subcutânea (caso toque a pele ou seja engolido, não faz efeito). Como caçadores da floresta desenvolveram essa solução intravenosa? Ao serem questionados, invariavelmente as origens são míticas – o criador do universo inventou e ofereceu a eles essa substância.
É esse ponto-cego que Narby vai buscar desatar, trabalhando a dificuldade para a Antropologia de aceitar uma origem do saber não racional, não científica nos seus moldes clássicos. É possível levar a sério que certas plantas são seres inteligentes, capazes de se comunicar e de ensinar? Para os Ashaninka, seres invisíveis, osmaninkari, se encontram nos animais, plantas, montanhas, rios e certos cristais. Esses seres, que podem ser vistos após ingestão de tabaco ou ayahuasca, também constituem fontes de conhecimento. Narby confessa que, para ele, inicialmente, se tratava somente de uma mitologia inútil mesmo se, ao mesmo tempo, o impressionava o saber empírico Ashaninka.
Esse dilema se relaciona com certa hipocrisia tanto de muitas empresas quanto de parte da ciência, já que “74% dos remédios ou das drogas de origem vegetal utilizados na farmacopeia moderna foram descobertos por sociedades ‘tradicionais’”. [22] Pode-se contar uma longa (e sinistra) história da expropriação de conhecimentos e riquezas amazônicos, mantidos ao longo de séculos pelos povos indígenas (e seus cientistas). Na cadeia dos produtos advindos dessa ciência selvagem, tudo é remunerado, salvo o desenvolvimento original. Narby cita o exemplo do extrato de um arbusto que serviu para um remédio para tratar de glaucoma. Um saque profundamente injusto de saberes e existências, mais perverso ainda pelo desprezo de suas origens, que seriam “irracionais” e “extravagantes”.
[22] Jeremy Narby. A serpente cósmica: o DNA e a origem do saber. Rio de Janeiro, Dantes, 2018 [1995], p. 45.
Daí se produz um belo momento de ruptura para o antropólogo ao perceber que, para investigar esse contra-senso, seria preciso inverter um adágio: não mais ver para crer, mas crer para ver– “foi provavelmente uma das coisas mais importantes que aprendi ao longo do meu trabalho: vemos aquilo em que acreditamos, mas não o seu contrário. Para mudar o que vemos, às vezes é preciso alterar nossas crenças”. [23] Admitir a possibilidade de outros mundos e corpos para compreender o que os Ashaninka insistiam em compartilhar; para estes, não havia nem mistério e tampouco contradição entre a realidade prática e o mundo invisível dos ayahuasqueros. O estado alucinatório de consciência é “normal” e dissolve o (suposto) impasse. Tais pesquisadores acessam informações empiricamente verificáveis sobre as plantas e seus usos e possíveis funções, que são adquiridas em uma longa formação científica (xamânica), semelhante à universitária, com largos períodos de estudos (sonhos controlados, jejuns prolongados, isolamento na floresta, ingestão de plantas), especialistas e escolas de pensamento, transmitidas desde tempos imemoriais.
[23] Idem, p. 143-144.
Ao seguir esse caminho, Narby vai perceber surpreendentes confluências entre laboratórios da floresta e dos centros urbanos, entre perspectivas Ashaninka e a ponta da biologia molecular. Se os xamãs insistem a respeito da existência de essências animadas comuns a todas as formas de vida, “isso foi posteriormente corroborado pelo DNA. A molécula da vida é a mesma para todas as espécies e a informação genética necessária à elaboração de uma rosa, bactéria ou ser humano está codificada numa linguagem universal de quatro letras A, G, C e T”, esses “quatro compostos químicos formando a dupla hélice do DNA”. [24] O que em várias cosmologias ameríndias é visto como a serpente emplumada, o gêmeo magnífico ou a corda entrelaçada (temas xamânicos por excelência) se conecta à dupla hélice do DNA. Quando Narby mostra pinturas de visões de ayahuasqueros(para estes, escadarias em zigue-zague, cipós entrelaçados, serpentes retorcidas) a um pesquisador de biologia molecular, este enxerga colágeno, DNA, cromossomo…
[24] Idem, p. 68.
Relacionando-se com o que vimos acima, de uma ciência moderna atrelada à certa perspectiva de masculinidade, Narby cita Joseph Campbell que propõe ter havido “duas quebras na trajetória mitológica da serpente cósmica”. A primeira durante o “patriarcado dos hebreus, no jardim do Éden: a serpente antes venerada vira vilã e árvore”; e a segunda na “Mitologia grega com Zeus” que submete a serpente Tífon, filha de Gaia e que encarna as forças da natureza, derrotada com ajuda de Atenas, a razão. Desse modo, uma opção por Deuses patriarcais e masculinos rompeu com o princípio vital. Porém, a “parte da humanidade que se separou da serpente cósmica a reencontrou depois de três mil anos pela ciência, em laboratório”. [25]
[25] Jeremy Narby, p. 72-73.
Michael Pollan lembra de uma frase de William Blake que “concilia bem o caminho do cientista com o do místico: ‘o verdadeiro método do conhecimento é a experiência’”. [26] Xamã e cientista. Essa ciência menor dialoga com um antigo protocolo de pesquisa – o princípio de auto-cobaia. Paul B. Preciado conta que “até o final do século XVIII, (…) o pesquisador devia, por preceito ético, correr o risco de sofrer efeitos desconhecidos no próprio corpo antes de ordenar qualquer teste sobre o corpo de outro ser humano”. Isso vai mudar quando, “apoiando-se na retórica da objetividade, o sujeito do saber científico buscará progressivamente gerar conhecimento exterior a si, livrando o próprio corpo das agonias da autoexperimentação”. [27] O inventor da homeopatia, Samuel Hahnemann, tomou doses altas de quinino em seu percurso inventivo. Sigmund Freud e Walter Benjamin, por sua vez, ingeriam cocaína e haxixe no contexto de suas pesquisas (embora isso tenha sido um tanto apagado de suas trajetórias).
[26] Michael Pollan, 2018, p. 92.
[27] Paul B. Preciado. Testo Junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. N-1 edições, 2018 [2008], p. 368.
Preciado se engajou nesse caminho de pesquisa consumindo testosterona e insiste que um pensamento “que não utiliza seu corpo como plataforma ativa de transformação tecnovital está pisando em falso. Ideias não bastam”. Nesse sentido, “toda filosofia é forçosamente uma forma de autovivissecção – quando não de dissecação do outro. É uma prática de corte de si, de autocorte, de incisão na própria subjetividade”. No momento em que “os entusiastas da vivisecção escapam dos próprios corpos e cabeças para os corpos dos outros, o corpo da coletividade, o corpo da Terra, o corpo do Universo, a filosofia torna-se política”. Essa, então, “pode tomar a forma de uma gestão tanatológica da espécie (como no caso da proliferação das tecnologias da guerra) ou de uma terapia universal utópica autoimune (religiosa, democrática ou científica)”. [28]
[28] Idem, p. 377.
Uma compreensão supostamente predominante e sempre reiterada nos diz que universal é querer um Estado e ser governado, ser individualista e obcecado pela competição. Como disse, há quase quarenta anos, Carolyn Merchant, criticando a transição do organismo para a máquina como a metáfora dominante que relaciona cosmos, sociedade e pessoas, “o mundo precisa novamente ser virado de ponta-cabeça”. [29] O uso de psicoativos é tão antigo quanto a história humana (e de vários de seus parentes: primatas e outros mamíferos, até insetos). Não há registro de povo que não usasse substâncias para alterar a consciência, com exceção dos Inuit (nenhuma substância cresce no Ártico, depois conheceram alguma e passaram a consumir). Esse desejo é então sim universal, embora os usos variem no tempo e no espaço e todos os povos escolham pelo menos uma substância e repilam outras.
[29] Carolyn Merchant, 1980, p. 295.
Fazer uma “história natural da religião iria mostrar que a experiência humana do divino tem raízes profundas em fungos e plantas psicoativas (Karl Marx teria acertado em outro sentido ao chamar a religião de ópio do povo)”. Por sua vez, uma “história natural da literatura e da filosofia” indicaria também a influência do ópio, cannabis e outras mais, desde os filósofos gregos aos românticos europeus, passando por várias vanguardas artísticas. [30] Curar-se, descobrir-se, transformar-se – enriquecer a imaginação coletiva. Foi disso que tratou a explosão mundial de 1968, que colocou a urgência de “transformar esse conhecimento minoritário [feminismo, libertação negra, teoria queer e transgênero] em experimentação coletiva, em prática coletiva, em prática física, em modos de vida e formas de convivência”. [31]
[30] Michael Pollan. The botany of desire: a plant's-eye view of the world. New York, Random House, 2002, p. 144-145.
[31] Paul B. Preciado, 2018 [2008], p. 367.
Um vírus da desobediência contagiou todo o planeta: Paris, Senegal, Japão, Vietnã, Cidade do México, Praga, Estados Unidos, Palestina, Itália, dentre outros pedaços. Uma explosão de vida. A palavra-chave: experimentação. Novos desejos, aspirações e conexões brotam e desabrocham em todos os cantos do mundo. Um novo espírito do tempo, tempo do mundo. O que parecia sólido se desmanchou no ar, o que parecia estável vazou (ainda que somente por alguns dias, semanas, meses – mas os efeitos ainda nos atingem).
Colonialismo, patriarcado, supremacia branca, capitalismo e socialismo autoritário bambearam. Ou pereceram ou se reorganizaram – e continuam sendo questionados por inúmeras ações. Apesar da diversidade de situações e países, um elemento comum: o anticonformismo – seja encarando uma ditadura militar, poderes coloniais, sociedades capitalista ou socialista. Tratou-se de uma irrupção em defesa do direito de discordar, da multiplicação de vozes, da polifonia.
1968 é também, e sobretudo, uma insubordinação anticolonial nos países da periferia (Argélia, Vietnã, Angola, Cuba…) e nos do centro (panteras negras e muitas outras nos EUA e outras partes). O Vietnã (e sua heroica resistência de camponeses pobres contra o maior Império) constituiu um poderoso catalisador das imaginações subversivas. Abrir as portas dos asilos, das prisões e das escolas foi outro lema-pixo forte. Ninguém mais quis cumprir seu papel social habitual, embarcando num êxodo de libertação e busca de novas vias: operários (ocupando fábricas e locais de trabalho), estudantes (tomando universidades), artistas e criadores (dando outros significados para seus espaços e práticas), camponeses (se levantando), negros (se sublevando), mulheres, gays, lésbicas e trans (afirmando novos corpos). Fuga do trabalho e busca da vida. Isso tudo já vinha ocorrendo, mas em 68 se acelerou e se reforçou, encontrou e produziu novos caminhos, pessoas, coletividades. Todas as autoridades foram questionadas e hierarquias postas em xeque: patrões, professores, pais, chefes, tiranos, colonizadores, padres, pastores, rabinos, imãs, representantes culturais e midiáticos… Uma viralidade do dissenso, um deslocamento das dominações e opressões e uma afirmação das singularidades. Desejos de autonomia, de novas vidas: o levante de uma nova geração político-existencial. Político e existencial: quem separou um dia essas esferas? Política e vida. Política e jogo, política e humor, política e festa, política e prazer, política e psicoativos. [32]
[32] Esses dois parágrafos retomam trechos do artigo 1968, revoltas no Brasil e no mundo: a barricada fecha a rua, mas abre caminhos, publicado no Blog do Dragão (3 de maio de 2018).
Ocorre uma dissolução de relações arraigadas – mudanças antes impensáveis passam à esfera do possível. Tudo pode se transformar. E já. Poderiam certas substâncias “inverter hierarquias na mente, promover pensamento não-convencional e potencial para remodelar as atitudes dos usuários em relação a autoridades de todos os tipos; isto é, os compostos ter um efeito político?” [33] Alguns apostam que o LSD cumpriu essa função nos subversivos anos 1960. É nesse contexto que Timothy Leary vai defender a entrada, no rol dos direitos humanos, do direito de expansão da mente. O professor de psicologia de Harvard fazia um trabalho nos presídios administrando LSD aos encarcerados, com resultados iniciais promissores (mas que será criminalizado a partir de 1966). Como o cérebro é uma rede bio-químico-elétrica, haveria a possibilidade de receber e criar uma série de realidades adaptativas e o LSD poderia auxiliar num tipo de reprogramação das mentes. De acordo com Leary, “a real revolução dos anos 1960 foi neurológica – informação, comunicação, cibernética”, [34] com questionamento das instituições e princípios morais.
[33] Michael Pollan, 2018, p. 324.
[34] Timothy Leary. Neuropolitique. New Falcon Publications, 1977.
Essa ruptura tem uma faceta político-existencial, de mudar a si mesmo e sua percepção de mundo: as viagens psicodélicas geram uma dissolução do ego, relacionando-se, por exemplo, com concepções budistas de “que há muito mais na consciência além do ego, e que podemos enxergar isso se ao menos conseguirmos calá-lo”. Isso traz variadas consequências políticas. Pode, por um lado, ter se refletido na emergência do movimento ambientalista por meio de reelaboração por parte de uma geração do que seria a natureza, já que a dissolução do ego refuta a tese de que estamos separados do ambiente. Ganha força, nesse contexto, a perspectiva de que a Terra constitui um organismo vivo (também às vezes chamada de hipótese de Gaia); uma concepção óbvia para muitos povos, mas então com pouca ressonância em determinadas sociedades. Acompanha essa dissolução, por outro lado, “invariavelmente uma noção mais ampla, sincera e altruísta daquilo que importa na vida” e se liga ao que vimos acima acerca dos grandes primatas e certa ideologia. Pollan compartilha, assim, uma mudança vivida a partir das suas pesquisas: se antes, ele pensava que o espiritual se opunha ao material, pensando-os numa chave metafísica, agora ele situa o antônimo de espiritual no egoísmo. [35]
[35] Michael Pollan, 2018, p. 399.
Isso dialoga com uma talvez surpreendente percepção da espiritualidade por Michel Foucault, que argumenta se tratar de uma “prática pela qual o homem é deslocado, transformado, transtornado, até a renúncia da sua própria individualidade, da sua própria posição de sujeito”. Este não seria mais um “sujeito em relação a um poder político, mas sujeito de um saber, sujeito de uma experiência, sujeito também de uma crença”. Para o filósofo, pensando isso a partir da revolução iraniana do fim da década seguinte, isso se vincula a um “tornar-se outro do que se é, outro do que si mesmo”, compreendendo as mudanças e levantes, em geral, “a partir de um movimento que foi um movimento de espiritualidade”. [36] Judith Butler, ao pensar a vulnerabilidade no contexto atual, aproxima-se dessa abordagem, na medida em que esta “pode ser uma função da abertura, ou seja, de estar aberto a um mundo que não é completamente conhecido ou previsível”. Tal postura envolve, influenciada por Espinosa e sua leitura por Deleuze, “se abrir para o corpo de outra pessoa, ou de um conjunto de outras pessoas, e por essa razão os corpos não são o tipo de entidades fechadas em si mesmas”. [37]
[36] Michel Foucault. O enigma da revolta: entrevistas inéditas sobre a Revolução Iraniana. N-1 edições, 2019, p. 21.
[37] Judith Butler. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para um teoria performativa de assembleia. Civilização Brasileira, 2018 [2015], p. 163.
Não se está falando, evidentemente, de um novo individualismo (embora haja tentativas da perspectiva dominante de se reapropriar disso, por exemplo na atual onda – empresarial – de mindfulness [38] ), mas de outras relações. “Não é um sinal de boa saúde estar adaptado a uma sociedade doente”, nos diz Krishnamurti – essa revolução psicodélica inverte outra compreensão habitual de curar os “doentes e desajustados”. Trata-se, na contramão, de empregar essas drogas para “tratar a sociedade em si como se ela estivesse doente e transformar os pretensamente saudáveis em indivíduos rebeldes”. Isso é de uma atualidade ainda mais contundente atualmente, se pensarmos que estamos vivendo uma epidemia de doenças mentais; a depressão atinge quase um em cada dez estadunidenses e é a principal causa de afastamento do trabalho. Além disso, o número de suicídios alcança o número de 40 mil por ano nos EUA. [39] A sociedade pode ser compreendida como enferma, numa crítica ao capitalismo que se aproxima da antropologia reversa de Davi Kopenawa – somos o povo da mercadoria, enfeitiçados por elas. [40]
[38] Mindfulness, ou a prática da “atenção plena” da mente ao momento presente, por meio do uso da meditação e de outras técnicas.
[39] Michael Pollan, 2018, p. 224; 344.
[40] Esse ponto está mais trabalhado no livro Marx selvagem(Editora Autonomia Literária, 2019, 4a edição) e no cordel marx indígena, preto, feminista, indígena, operário, camponês, cigano, palestino, trans. selvagem (n-1, 2019).
Conectado ao que vimos acima, o médico Robin Carhart-Harris coloca que “um cérebro feliz é um cérebro elástico e flexível (…); depressão, ansiedade, obsessão e as vontades do vício são o resultado de um cérebro que se tornou excessivamente rígido ou que tem caminhos e ligações muito arraigados – um cérebro com um grau maior de ordem do que seria saudável”. Têm desabrochado hoje, numa segunda onda (após a dos anos 1960), tratamentos com compostos psicodélicos – com sucesso, no Brasil e no mundo. Isso tem a ver com sua “capacidade de temporariamente aumentar a entropia num cérebro inflexível, tirando o sistema de seus padrões usuais”. Numa “metáfora do recozimento na metalurgia: os psicodélicos introduzem energia no sistema, dando a flexibilidade necessária para que ele possa ser moldado e, assim, se modifique”, [41] permitindo o florescimento de novas possibilidades de pensar e agir.
[41] Michael Pollan, 2018, p. 398.
A revolução global de 1968 se relaciona com uma experiência de setores (sobretudo da juventude) com plantas e substâncias antes desconhecidas nas sociedades não indígenas, sendo um marco de uma política do cultivo. [42] Em suma, “O LSD era de fato um ácido, dissolvendo quase tudo aquilo com que entrou em contato, começando com as hierarquias da mente (superego, ego e inconsciente) e seguindo para as várias estruturas de autoridade da sociedade e para limites de todo tipo inimaginável: entre pacientes e terapeutas, pesquisa e lazer, doença e saúde, eu e outro, sujeito e objeto, espiritual e material”. [43] Os psicodélicos como parte de um amplo movimento de contestação (contracultura, levante negro, rebelião feminista, revoltas operárias, manifestações dos pacifistas), que, em seu conjunto e confluências, estavam minando o consenso estadunidense do ponto de vista dos negócios, do controle político, mas também dos valores. Essas substâncias liberaram elementos dionisíacos e ingovernáveis que questionaram as tradições apolíneas das sociedades com suas hierarquias, dualidades, conservadorismos.
[42] É interessante notar que boa parte dos problemas relacionados ao mau uso dessas substâncias poderia ter sido evitado caso consultados os especialistas indígenas cujas “sociedades tinham uma longa e produtiva experiência com os compostos psicodélicos”, aprendendo com eles, já que “remédios poderosos são perigosos – tanto para o indivíduo quanto para a sociedade – quando não têm um recipiente social robusto: um conjunto definido de rituais e regras – protocolos – governando seu uso, e o envolvimento crucial de um guia, a figura que se costuma chamar de xamã” (Michael Pollan, 2018, p. 225). Leary mesmo alertou contra a heroína e pregava um uso responsável de LSD e maconha, pensando em possíveis licenças para uso – a repressão impediu sua elaboração e concretização.
[43] Michael Pollan, 2018, p. 224.
Foi, assim, percebida como ameaça aos bons costumes (puritanos, fortes desde o início da colonização estadunidense) – de dominação e opressão. Essa disrupção é, então, seguida por violentas reações, com repressão por todos os lados. No fim da década, os alucinógenos são declarados ilegais (até então as pesquisas eram absolutamente legais nos EUA, contando inclusive com suporte público). Richard Nixon lidera a contrarrevolução para reimpor a velha autoridade pelos meios do poder de polícia: chama, em 1971, Timothy Leary de “o homem mais perigoso dos Estados Unidos” e vai “debelar a contracultura atacando sua infraestrutura neuroquímica”, [44] avaliando que essa criou (ou incentivou) a rebelião. Como coloca Daniel Vidart, uma droga “é uma substância que o Estado define como tal”, [45] recordando que na Roma antiga o vinho era proibido para homens de menos de 30 anos e para todas as mulheres, que o czar determinou ser um crime tomar café na Rússia e os jesuítas na Região das Missões, que a erva mate era coisa do diabo.
[44] Michael Pollan, 2018, p. 68.
[45] Daniel Vidart. Marihuana, la flor del cáñamo: un alegato contra el poder. Ediciones B, 2014, p. 18.
INFRAESTRUTURAS DA VIDA E DEVIR-INDÍGENA DAS LUTAS
Os poderes constituídos viram um excesso de democracia (onde ela existia minimamente) e de demandas sociais e existenciais que comprometiam os arranjos do pós-Segunda Guerra Mundial. A economia, também se reorganizou, buscando capturar a inventividade expressada (a Apple sendo um dos inúmeros exemplos). A partir desses dois movimentos articulados, as desigualdades entraram numa perigosa espiral de aumento generalizado, tendo o Chile como o primeiro laboratório desse novo modelo (neoliberalismo). Hoje vivemos num planeta de desigualdades gritantes e aberrantes sob qualquer ponto de vista ético (a renda de 8 pessoas sendo equivalente à metade da população do planeta mais pobre – segundo a Oxfam) e é nesse contexto (e da maior crise financeira desde os anos 1930), que estoura um novo ciclo de lutas.
Judith Butler reflete sobre nosso momento político-econômico sob o signo da precariedade. Esta é compreendida como a “situação politicamente induzida na qual determinadas populações sofrem as consequências da deterioração de redes de apoio sociais e econômicas mais do que outras, e ficam diferencialmente expostas ao dano, à violência e à morte”. Desse modo – e relacionando-se com o que vimos antes – ocorre “uma guerra contra a ideia de interdependência, contra (…) uma rede social de mãos que busca minimizar a impossibilidade de viver uma vida vivível”. [46] As lutas presentes, essa década de insurreições democráticas, buscam o revés dessa precariedade, ou seja, a constituição dessa interpendência – das infraestruturas da vida contra essas políticas da morte.
[46] Judith Butler, 2018, p. 40; 76.
Tais movimentos frutificam, concretamente, numa forma-ocupação territorial dessas insurgências contemporâneas nas praças: ocupar, dormir e garantir a vida em seus mais variados aspectos. No coração das cidades, levantar barracas, organizar assembleias para deliberação coletiva, biblioteca, segurança e proteção, centro de mídia, cozinha e alimentação, tenda médica e limpeza. A ocupação como prática do viver juntos em outra chave, ocorrendo uma aproximação com o cotidiano, economia doméstica, cuidado e a chamada esfera da reprodução. Esses corpos presentes, coletivamente, expressam eloquentes declarações políticas e é nesse sentido que Butler pensa a performatividade – “agir a partir da precariedade e contra ela”, [47] buscando uma reformação das redes de interdependência dos organismos vivos.
[47] Idem, 2018, p. 65.
Criação de espaços libertos; omnia sunt communia, [48] cujo lema nos remete ao período de transição trabalhado no início. Além dos protestos de rua e de ocupações mais “fugazes”, existem e são fundamentais as mais “perenes”. Pode-se apreender essas mobilizações como criadoras de elos coletivos, como a ZAD (zona a defender) de Notre-Dame-des-Landes (NDDL), que derrotou o projeto de aeroporto no Oeste francês e agora busca as formas de viver junto nesse novo contexto, e o No Tav no Vale de Susa no norte italiano, combatendo um projeto de linha de trem de alta velocidade que vai rasgar o vale onde já existem estradas e linha de trem. Um cultivo de comunidades onde dormir, acolher quem chega, se reunir, cozinhar e comer, plantar e se cuidar em espaços construídos coletivamente. Existe uma outra cartografia mundial que percorre o bairro anarquista de Exarcheia em Atenas (ameaçado de aniquilação pelo novo governo grego), centro sociais italianos e na península ibérica, nas comunidades curdas e zapatistas e numa miríade de retomadas por toda parte, inclusive no Brasil (territórios indígenas, ocupações rurais e urbanas, terreiros e quilombos, escolas livres, articulações mil, teatros e espaços culturais).
[48] “Tudo é comum” ou “Tudo é de todos”.
Infraestruturas coletivas fortes, nas quais a noção e prática de habitar territórios é chave. A floresta emerge como inspiração, essa sendo compreendida como “um povo que se insurge, uma defesa que se organiza, imaginários que se intensificam”. [49] Luta como criação, construção de lugares permeados de cumplicidades e composições. A expropriação dos comuns, citada antes, não é somente material, mas ética, da vida, das suas condições, dos vínculos existenciais costurados, das vidas em comum, o território é constituído pela “tecitura mesmo dos elos”. [50] Pensando nessa questão dos cercamentos (enclosures), condição do surgimento do capitalismo, a destruição que estas causam não se situa unicamente no meio de vida e subsistência dos muitos povos, mas principalmente numa “inteligência coletiva concreta, ligada a esse comum do qual todos dependiam”, [51] numa riqueza comum de criações coletivas.
[49] Jean-Baptiste Vidalou. Être forêts: habiter des territoires en lutte. La Découverte, 2017, p. 13.
[50] Asaradura. Notes de voyage contre le TAV: été 2011-printemps 2015. s/e, 2015, p. 10.
[51] Isabelle Stengers. Au temps des catastrophes: résister à la barbarie qui vient. La Découverte, 2009, p. 108.
Essas lutas contemporâneas não são somente políticas, mas também cósmicas, cosmopolíticas. São lutas-floresta, que manifestam um devir-indígena de práticas coletivas contra o Estado, uma política das plantas e do cultivo, política dos ritos e cuidados. Em sua primeira grande manifestação em março de 1996, os No Tav se auto-intitulam os “indígenas do vale”, pois tal “projeto representa a extinção do seu modo de vida”. Curiosamente, os habitantes da NDDL vão se chamar de povo da lama (por conta da vegetação da região, o bocage), [52] remetendo à declaração zapatista ao fim de histórica marcha vinda do sudeste mexicano até o Zócalo na capital: somos a cor da terra. [53] Não por acaso, um consultor estadunidense em estratégia militar vai dizer em dezembro de 2006 que “historicamente, os polos mais tenazes de resistência à civilização (e não falo somente da civilização ocidental) e das cruzadas religiosas (jihad no Oriente) se constituíram num quadro que sempre evocou a tradição e a magia, falo da floresta”. Nesse contexto, continua o especialista, “temo fortemente que, de Karachi a Marselha, as zonas urbanas onde se concentram populações humilhadas e com raiva, onde se juntam estrangeiros e indesejáveis, tenham se tornado as novas florestas do mundo”. [54]
[52] collectif mauvaise troupe. Contrées: histoires croisées de la zad de Notre-Dame-des-Landes et de la lutte No Tav dans le Val Susa. l’éclat, 2016, p. 57; 109.
[53] “Palabras del EZLN el día 11 de marzo de 2001 em el Zócalo de la Ciudad de México”. Disponível em:http://submarcos.org/zocalo.html
[54] Jean-Baptiste Vidalou, 2017, p. 135.
Voltemos aos lobos. Baptiste Morizot reflete, no contexto de volta dos lobos selvagens à França (onde tinham sido extintos) e seus debates, sobre “o que pensamos ser nossas florestas e nossas montanhas são habitadas por grandes predadores que colocam em questão nosso sentimento e certeza de sermos proprietários desses espaços”. O que nos dizem os lobos nesse âmbito? “Que devemos reaprender quem somos e nossas relações constitutivas em relação ao vivo em nós e fora da gente”. O lobo é, assim, um “whistleblower[denunciante] a respeito das estruturas ecológicas e ontológicas mais arquitetônicas dos Modernos” [55] e nos indicam uma mudança de tempos.
[55] Baptiste Morizot. Les diplomates: cohabiter avec les loups sur une autre carte du vivant. Wildproject, 2016, p. 303-304.
Uma política do cultivo envolve, também, alianças e contaminações para sobreviver e re-existir. Pergunta Anna Tsing “como uma reunião se transforma num acontecimento, isto é, maior que a soma das partes? Uma resposta é a contaminação. Somos contaminados por encontros; eles mudam quem somos e como dar lugar para outros”. Disso, novas mesclas, direções e mutualidades podem emergir; “a pureza não é uma opção”. [56] Isso dialoga diretamente com Primo Levi, que pensava a química como “inerentemente antifascista”, por sua “valorização da impureza das combinações de elementos, em aberto contraste com a obsessão fascista de pureza. É bem provável que esse antifascismo o tenha conduzido a uma concepção da química como reserva de resistência”. [57]
[56] Anna Lowenhaupt Tsing, 2015, p. 27.
[57] Renato Lessa. “Primo Levi transformou em arte relato sobre horror de Auschwitz”. Folha de S. Paulo, 27 de julho de 2019.
Continua Tsing, afirmando o caráter decisivo da precariedade, pois nos remete ao ensinamento básico de que a sobrevivência depende de se adaptar criativamente às novas circunstâncias e questionando o que significa essa sobrevivência. Num novo elo com o discutido na primeira parte, esse conceito tem um sentido recorrente, nas fantasias estadunidenses dos programas de TV ou das histórias de alienígenas (mas também nas perspectivas de pesquisadores que se baseiam em interesses individuais como na economia neoclássica ou na genética) de se salvar lutando contra outros. A antropóloga, porém, a partir de sua investigação sobre um mundo em ruínas a partir de um cogumelo (matsutake), propõe que “permanecer vivo – para todas as espécies – requer colaborações vivíveis. Colaborações significam trabalhar através da diferença, que leva à contaminação. Sem colaborações, todos morremos”. [58] Daí a urgente necessidade de aprender com mestres do cultivo. Na contramão da empobrecedora (e antes celebrada) dita “revolução verde”, se situam os povos indígenas no Brasil, cuja ação foi e é decisiva para o “o enriquecimento da cobertura e dos solos da floresta”, mantendo “por conta própria, por gosto e tradição, as variedades em cultivo e [observando] as novidades”. Como no caso do curare para os Ashaninka, existem na Amazônia uma centena de variedades de mandioca e dezenas de batatas-doces, favas e pimentas cultivadas pelos Kaiapó, Wajãpi, Baniwa e outros povos que “mais do que selecionadores de variedades de uma mesma espécie”, são, “de fato, colecionadores”. [59]
[58] Anna Lowenhaupt Tsing, 2015, p. 27-28.
[59] Manuela Carneiro da Cunha. “Povos da megadiversidade: o que mudou na política indigenista no último meio século”. Revista Piauí, n.148, janeiro de 2019.
Somos compelidos a criar alianças cultura-natureza. A sobrevivência comum em vários sentidos. Contaminação e composição. Quando tantos insistem em pensar-fazer as lutas de classe apartadas das interseccionalidades, temos o exemplo da Aliança dos Povos da Floresta nos anos 1980, que reuniu seringueiros e sindicalistas revolucionários com lideranças indígenas. As práticas das lutas espantam perspectivas restritivas e insistências em se desconectar de uma riqueza de existências coletivas, de mundos vivos: “quando os seringueiros suprimiram os patrões encontraram os índios”. [60] Uma política de associação – “o termo queer não designa identidade, mas aliança”. [61] Uma bruxaria universal, encontrada em todos os povos (até mesmo nos que tentaram de todos os modos apagá-las em suas infindáveis caças).
[60] Ailton Krenak. Encontros. Organização de Sergio Cohn. Azougue, 2015.
[61] Judith Butler, 2018, p. 79.
Em sua potente narrativa cosmopolítica, Davi Kopenawa mescla “mitos e relatos de sonhos, visões e profecias xamânicas, discursos e exortações, autoetnografia e antropologia comparativa”. Uma crítica da insanidade capitalista desde a mata: “no silêncio da floresta, nós, xamãs, bebemos o pó das árvores yãkoana hique é o alimento dosxapiri. Eles levam então nossa imagem no tempo do sonho. É por isso que somos capazes de ouvir seus cantos e de contemplar suas danças durante nosso sono”. Como vimos antes, esse é parte do processo de formação xâmanica, a “escola para realmente conhecer as coisas. Omama não nos deu livro onde estão traçadas as palavras de Teosi como o dos brancos. Ele fixa suas falas no interior de nosso corpo”. Isso envolve uma outra concepção de política – cósmica, pois a floresta é viva e habitada por espíritos, contendo uma trama de coordenadas sociais e intercâmbios cosmológicos que garantem sua existência. Nesse contexto, Davi zomba de nós ao dizer que “os brancos, eles, não sonham tão longe quanto a gente. Eles dormem muito, mas só sonham com eles mesmos. Seu pensamento permanece obstruído e cochilam como antas ou tartarugas. É por isso que não logram compreender nossas palavras”. [62]
[62] Davi Kopenawa e Bruce Albert. La chute du ciel: paroles d'un chaman yanomami. Plon, 2010, p. 25; 52; 412. Tradução livre.
Num universo capitalista no qual falta tempo para dormir e sonhar, onde o sono se torna até parte de uma indústria da saúde, [63] o sonho como cura, oráculo e premonição, trabalho sobre si e visões oníricas – experimentar como caminho de sobrevivência e invenção de conexões. Imaginação política, sonhos de liberdade e libertação, do clássico discurso de Martin Luther King de 1963 aos sonhos proféticos de dignidade comum para a rede de seres vivos. Sonho-luta. Como vimos, “alguns dos frutos mais brilhantes da cultura humana têm de fato raízes na terra negra, com plantas e fungos”. [64] Escrevendo no ano da Comuna de Paris, paradigma da revolução proletária, Nietzsche clama, em O nascimento da tragédia, por uma outra vertente de reviravolta e subversão, da energia inventiva (natureza-cultura) da embriaguez, na “alegre necessidade da experiência onírica”. [65] Rios que podem confluir? Viagens, ritos, políticas dionisíacas.
[63] Sidarta Ribeiro. O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho. Companhia das Letras, 2019.
[64] Michael Pollan, 2002, p. 178.
[65] Friedrich Nietzsche. O nascimento da tragédia. Companhia das Letras, 2015 [1872].