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Histórias de senhas

Sarah escrevia suas senhas como se fossem histórias para lembrar melhor delas. Suas antigas senhas-histórias eram algo como: 

A BURGUESIA NÃO USA BUFFETS

ELES SÃO EXPERTS EM COMIDA

ELES CONSIDERAM BUFFETS REPUGNANTES

APERITIVOS, POR EXEMPLO, NEM SÃO SERVIDOS

ENTÃO A BURGUESIA VAI À TCHECOSLOVÁQUIA

Ela construía suas senhas-histórias com palavras escritas de maneira errada, estrangeirismos, ou com palavras esquisitas como termômetro e presbiteriano. Seu raciocínio era de que hackers mal-intencionados ficaram tão dependentes do autocorretor que eles não saberiam como escrever bacharelado mesmo que isso os chutasse no cóccix.

Sua senha-história mudava a cada três anos por medidas de segurança. A mudança não era para ser uma grande coisa, entretanto, tendia a coincidir com um grande acontecimento em sua vida. Sua última senha-história havia terminado há dois anos, junto com um relacionamento que tinha durado tanto quanto a senha-história.

Sarah não gostava de pensar que o mundinho interno de suas senhas-histórias estava conectado ao mundo exterior. Isso significaria conexão e Sarah não gostava de conexão porque conexão significava profundidade e Sarah não caminhava bem por profundidades. Sarah queria que a vida fosse como a língua rosa de um cachorro feliz. Mas pensar que a vida seguia aquela língua rosa para dentro de processos profundos e obscuros era devastador.

Sua senha-história atual estava se desenrolando assim:

OS RINOCERONTES PRECISAM DE VIGILÂNCIA

SEU TERRITÓRIO BEIRA O DO GNU

O GNU NÃO É NECESSARIAMENTE VOYERISTA

MAS SEUS MESTRES ELFOS SÃO E

OS ELFOS USAM DACHSHUNDS COMO PRAGA

PARA DENTRO DE LUGARES APARENTEMENTE IMPENETRÁVEIS

DESTE MODO DIMINUINDO O OUTRORA VANTAJOSO TAMANHO

DE UM RINOCERONTE

Ela gostou. Continha todos os marcadores de uma boa história-senha: respeitável e bem cuidada; como roupa íntima limpa: se fosse para ela morrer e ser examinada por estranhos, isso falaria a seu favor postumamente. 

O único problema com o processo da senha-história era trazer novas senhas à existência. Sarah não queria escrever uma senha-história ruim. Ela nunca havia escrito uma senha-história ruim na vida. Por mais que ela temesse um ataque malicioso de um hacker, ela temia mais escrever uma senha-história ruim. 

Mas a dificuldade de criar novas senhas havia aumentado desde que Sarah foi morar com Kevin. Kevin apoiava a ideia de uma internet livre. Ele apoiava tanto a ideia de uma internet livre que ele se recusava a pagar por qualquer coisa. Por isso, Kevin não apenas assinava novos serviços o tempo todo, como ele também renovava essas assinaturas, criando novas contas antes que o período de trinta dias de teste expirasse. O fardo disso era enorme, e caiu sobre ambos igualmente, mas Sarah sentiu de forma mais intensa porque ela se fixava nos altos padrões de uma senha-história bem escrita. 

E então subitamente era março. A monotonia das semanas de inverno havia se intensificado como a neve, e se transformado em um rosto rochoso e escorregadio que fez Sarah tropeçar através do tempo. Ela havia tropeçado de outubro para segunda e para domingo e para março sem saber como havia chegado lá. Ela se sentia bloqueada e o fio da história de sua senha deixava isso aflitivamente claro. As senhas pareciam estar canalizando o estresse de sua autora. Apenas na semana passada, Sarah abriu quatro novas contas, que a deixaram com a seguinte composição: 

OS ELFOS TINHAM TOTAL CONTROLE SOBRE

OS RINOCERONTES, AS PRAGAS E OS DACHSHUNDS

E OS COLOCARAM UNS CONTRA OS OUTROS

PARA DISTRAÍ-LOS DO INEVITÁVEL…

Foi a elipse que a espantou. Ela quase cancelou a assinatura de HelloFresh para a qual ela criou a senha. Ela nunca usou elipse em suas senhas. A palavra ‘reticências’ poderia ser útil, mas gramaticalmente empregar uma elipse que deixasse uma senha-história em suspense mostrava uma falta de controle. Seu controle sobre sua senha-história interior estava afrouxando. Ela conseguia ver isso em sua acelerada falta de cuidado. Ela era como um cachorro assistindo malas se acumulando na sala de estar: algo estava prestes a acontecer e não havia nada que sua doce passividade pudesse fazer a respeito.
 
 Então a festa. Todos amontoados ao seu redor. Eles queriam uma playlist de Lady Gaga, sem comerciais. Alguém precisava criar uma conta paga no Spotify, e era seu computador, sua festa, e seu namorado incitando o pedido:
 
 “Amor, nós precisamos fazer isso”, ele disse.  

Mas sua mente estava inebriada. Ela não conseguia lembrar onde havia parado em sua senha-história. Eles já haviam feito a coisa inevitável? Ou ainda estavam esperando? 

Ela se sentou diante do computador. Um impulso expandiu seu peito. Ela abriu a boca para bocejar, encontrou-se à beira de um grito, fechou a boca e redirecionou o impulso para seus dedos. 

“Meu Deus,” ela sussurrou, encarando o resultado na tela. “Isso é violento.” 

Ela se virou para a festa. Eles a observavam como em um aquário. Ela se sentiu como um peixe. 

“O quê? Sarah? O quê?”

Ninguém conseguia ler aquela horrível incriminação. A senha não estava visível, só apareciam os asteriscos. Ela estava protegida dos julgamentos. Ela se voltou para a senha. Graças a Deus. Asteriscos. Oh, merda. Asteriscos. O que era mesmo? 

“O quê? Sarah! O quê?”

Alguém no fundo da sala pediu Bad Romance.

“Eu não sei!”, ela gritou. 

Kevin foi até lá e terminou de preencher as informações de Sarah. Bad Romance berrava. Ela dobrou suas mãos em seu colo e fingiu estar bêbada, mas o tempo todo ela pensava: merda. 

No próximo dia, domingo, a conta do Netflix do casal atingiu seu vigésimo nono dia de atividade, e foi pedido à Sarah que criasse uma nova.

Kevin estava ávido:

“Amor, precisamos fazer isso agora.”

Sarah se moveu automaticamente para o computador. Ela levou suas mãos ao teclado, esperando a sonata, quando ela se deu conta: merda.

NADA — ela pensou — AQUI NÃO TEM NADA

Ela se levantou em um sobressalto.

“Vou tomar banho primeiro.”

Ela ligou o chuveiro e se confinou no banheiro, observando o vapor inundar o espelho e tentando evitar imaginar a mesma coisa acontecendo dentro de seu cérebro.

“Merda,” ela sussurrou.  “O que eu escrevi?”

Ela recapitulou a noite: havia vinho. Ela bebeu o vinho. O rótulo era lindo e ela queria apreciá-lo mais, então ela continuou bebendo. Depois, ela foi para a sala de estar. Uma tranquilidade. Eles se voltaram para ela e ela se sentiu como um peixe e então:

“Merda!”

O espelho embaçou. Ela desenhou dois olhos e sobrancelhas franzidas.

“Violência,” ela sussurrou repentinamente.

Ela correu para o computador:

OS ELFOS CORTARAM MEMBROS E SOLDARAM FERIDAS

Negado. 

Ela adicionou um ponto de exclamação. 

Negado. 

Ela tentou um ponto final. 

Negado. 

Ela colocou ‘12345’ depois. 

Negado. Tudo era negado. A vida era negada. 

“Amor, você está fazendo a conta?”

“Não!”

Ela voltou para o banheiro. 

“Que coisa, Sarah,” ela sussurrou para o espelho. “Por que você teve que ficar bêbada ontem e bancar a heroína? Violência. Alguma vez usamos violência? Quando? Como vou recuperar isso?” 

Suas senhas-histórias nunca haviam sido violentas. Sua opção por elfos foi mais romântica do que violenta. Na época, ela vinha sofrendo com a falta de romance, e elfos magicamente entraram em sua mente. Ela estava abrindo uma conta do Paypal. Depois, ela foi morar com Kevin. 

Mas aquilo tinha sido de uma violência absoluta. O que houve? Seu apetite por romance havia se transformado nisso? Isso iria ficar sexual? Ela deveria avisar Kevin? 

Essas eram as perguntas profundas que ela abominava e evitava. 

“Merda.”

Depois do banho ela voltou para a cozinha. Quesadillas da noite anterior estavam ainda em um prato. Seu estômago encolheu. Quesadillas nunca deveriam ficar frias. Muito pouco separa uma quesadilla fria de uma pizza fria e, ainda assim, os princípios que dividem suas comestibilidades se estendem além de oceanos. Era nojento. Ela franziu a testa.  

Kevin entrou: 

“Você fez?”

“Quem pediu quesadillas?”

“Você.”

“Eu não.”

“Você as fez.”

“Do que você está falando? Eu nunca faço quesadillas. Eu odeio quesadillas.”

“Você fez ontem à noite.”

“Merda.”

Sarah bateu no duro mármore da pequena cozinha. Kevin amontoou suas sobrancelhas como amontoa suas cuecas, ou pelo menos, neste momento, é como Sarah interpretou. 

“Você fez?”, ele perguntou. 

“Você acabou de dizer que eu fiz!”

“A conta, Sarah. Você fez a conta?”

“Não posso agora.”

“Olha,” ele disse, “você precisa tomar um Advil.”

“Não me fale isso. Você sabe que eu odeio quando as pessoas me dizem o que eu preciso tomar.”

“Amor, eu não posso fazer a conta. Se eu fizer a conta, eu terei que fazer um endereço novo de e-mail e eu já tenho e-mails demais.”

“Apague alguns.”

“Isto é impossível. Eu teria que separar um dia inteiro para resolver quais guardar e quais jogar fora e hoje é domingo. Então, ou eu gasto nosso domingo fazendo isso, ou nós podemos curtir o dia juntos. Você decide.”

“Que merda, Kevin.”

“Me fala quando você tiver feito a conta.” Ele pegou o prato de quesadilla. “Eu não sabia que isso seria um problemão.  

Ele arregalou seus olhos ao falar problemão, um claro antagonismo, que Sarah absorveu. Ela absorveu muitos antagonismos. Absorver antagonismos permitia a ela tolerar mais chateações do que as pessoas geralmente toleram — algo que ela achava fazê-la uma pessoa Zen e ela gostava de se imaginar Zen. Mas ela não era boa em liberar as coisas que absorvia. Elas tinham a tendência de inflamar. Então, ao invés de envelhecer lentamente como uma princesa Buda de expressão tranquila, ela se sentia lentamente inchando, virando um peixe balão. 

Ela bateu no mármore duro da pequena cozinha novamente. 

“Merda.”

Ela se sentou em frente ao computador. Ela odiava seu computador. Era como um primo do gato de Alice no País das Maravilhas em forma de caixa, sempre com um sorriso dentado ostentando seus segredos, uma cornucópia de fruta moderna, flutuando em éter— merda— merda— merda. 

OS RINOCERONTES EMPALARAM ANALMENTE OS ELFOS

Negado.

AS PRAGAS SENTARAM NOS DACHSHUNDS

Negado.

AS PRAGAS CAGARAM NOS DACHSHUNDS

Negado.

BESTIAL TODO MUNDO FICOU BESTIAL 12345

Negado. 

“Que merda!”

“Você está fazendo a conta?”, veio a voz de Kevin. 

“Não! Por que violência?!”

Violência nunca esteve em questão. Que influência a havia levado a escolher violência? Ela tinha visto algo que não sabia que viu? Ela estava com raiva? O que estava acontecendo? 

Kevin entrou na sala: 

“Você fez?”

“O que eu acabei de te dizer, Kevin? Eu disse não.”

“Jesus.”

Ele bateu a porta. 

Isso era ruim. Se Sarah não conseguisse lembrar isto, então ela teria que escrever uma nova senha-história do zero. Ela teria não apenas que passar por todo o arame farpado emocional de mudar anos de informação de contas e mais incontáveis frivolidades de Kevin, como teria também que pensar em uma história inteiramente nova para contextualizar tudo, de modo que ela se lembraria depois. Ela não estava pronta para isso. Isso significava merda profunda. Isso significava mudar. 

“Merda. Merda. Merda. Merda.”

Ela foi para a varanda e pegou seu tapete de yoga. Ela fez a posição de Lótus. Ela tentou ficar Zen — Gaga— Bad Romance estava vindo alto da sala de estar. 

“Como você está ouvindo isso?”, ela disse, correndo para dentro. 

“Amor, é Gaga,” Kevin respondeu, “Quem não está ouvindo isso?”

“Não, a conta! Como você voltou para a conta do Spotify!?”

“Eu não voltei. Nós estávamos nela o tempo todo.”

“Nós não desconectamos?”

“Nós nunca desconectamos. Você sabe disso.”

“Então, já estamos conectados,” ela empurrou Kevin para fora da cadeira. “Por isso nada funcionou quando eu digitei hoje de manhã. Nós já estávamos logados com este e-mail. Meu Deus— espera. Então, eu posso apenas… pedir para mudar de senha? 

AMOR ENTRE DIVERSOS

Feito. A senha foi modificada. Ela imediatamente abriu o site do Netflix: 

AS CRIANÇAS DO AMOR ENTRE DIVERSOS 

Outras senhas vieram como dominós para uso futuro: 

MELHORARAM AS RELAÇÕES ENTRE AS ESPÉCIES DE MODO QUE

OS RINOCERONTES, AS PRAGAS E OS DACHSHUNDS

SE TORNARAM UMA ESPÉCIE DE SUPER AMOR

ISSO SUBSTITUIU A SUPREMACIA DOS ELFOS

E A PAZ REINOU COM PULSO DE FERRO

 

Eles passaram o resto do domingo com uma alegria caseira. Sarah se sentiu bem. Mas, uma vez de volta à cozinha, ela viu o prato de quesadilla vazio e seu estômago encolheu: ela não havia corrigido seu erro. Ela apenas teve sorte. E sorte não muda uma pessoa. Apenas muda a direção de uma pessoa. A violência de sua indiscrição bêbada era um resultado de algo que ela ainda possuía. A única diferença é que agora ela sabia que estava lá. Isso era bom ou ruim?

“Merda.”

Ela se sentou no sofá e tremeu.

“Com frio, amor?”

Kevin pegou um cobertor e esparramou sobre eles. Ela o beijou na bochecha. Eles iniciaram uma série nova.

E A PAZ REINOU COM PULSO DE FERRO. 

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