Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
A bicicleta e as mulheres: mobilidade ativa, gênero e desigualdades socioterritoriais em São Paulo
Por Marina Kohler Harkot
“As mulheres nas cidades têm um tempo social impossível” – Jéssica Barbosa, Action Aid
Essa pesquisa parte de reflexões de cunho bastante pessoal, e teve suas primeiras questões e hipóteses levantadas a partir da vivência cotidiana de uma jovem mulher ciclista e as interações com o urbano em diversas cidades no Brasil e fora dele.
Ao ter a oportunidade de experimentar usar a bicicleta como modo de transporte em lugares com contextos bastante diferentes entre si – Santos/SP; Stade, uma cidade de 40 mil habitantes na região metropolitana de Hamburgo, Alemanha; Paris, na França; Zurique, na Suíça; no Rio de Janeiro; na Cidade do México; em Recife e, logicamente, em São Paulo – ficou evidente, a partir de uma experiência individual, que havia uma série de aspectos envolvidos, influenciavam e eram influenciados por “variáveis” que formam as identidades de cada indivíduo, dentre as quais gênero certamente parecia uma das mais importantes.
Discutir a intersecção entre gênero e o uso da bicicleta em São Paulo parece uma questão bastante específica, um fenômeno que dificilmente poderia ser extrapolado e interessar a pessoas que não usam a bicicleta como meio de locomoção. Entretanto, o título “A bicicleta e as mulheres: mobilidade ativa, gênero e desigualdades socioterritoriais em São Paulo” fornece algumas pistas sobre a ampla dimensão do assunto aqui tratado: não se está falando apenas sobre ou só da bicicleta, mas sobre a interação com a metrópole paulistana de maneira ampla, utilizando gênero e outros aspectos da construção da identidade e da subjetividade dos sujeitos como aspectos essenciais, que influenciam o que o campo de estudos em transportes normalmente entende simplesmente como “escolha modal”. Assim, minha pesquisa utiliza uma abordagem sociológica do transporte (VASCONCELLOS, 2001) para tentar articular a discussão sobre a manifestação das desigualdades de gênero no urbano, em um contexto latino-americano, e os fatores que fazem com que uma pessoa opte pela utilização de determinado modo de transporte influenciem e sejam influenciados pela maneira como a cidade está estruturada, mas também pela raça, classe, localização no território, idade e a subjetividade que constroem, por fim, as experiências únicas de cada sujeito.
Na primeira parte da pesquisa “As mulheres e a cidade” busco definir o que entendo por “gênero” e como a discussão desse conceito se articula com o urbano. Por que usar a bicicleta como elemento chave para compreender a relação das mulheres com a cidade, a partir de seu uso e da maneira como se dá a apropriação dos espaços públicos urbanos através dela, especialmente no caso de São Paulo? Como a bicicleta se apresenta enquanto um desafio nesse cenário – tanto por conta dos significados que ela carrega em seu uso por mulheres, à luz do contexto dos usos e papéis diferentes que homens e mulheres desempenham nos espaços urbanos, quanto no seu uso em cidades de tradição rodoviarista como São Paulo?
A BICICLETA COMO UMA FERRAMENTA DE ACESSO DAS MULHERES À CIDADE
Jane Jacobs (1961/2011), em “Vida e Morte das Grandes Cidades”, discorre sobre o planejamento e desenvolvimento das cidades americanas modernas e as escalas nelas praticadas. Ao abordar as dinâmicas das cidades reais e o que está nelas implicado, Jacobs recupera importantes noções de urbanismo que parecem ter ficado esquecidas junto com a utopia da cidade racional e de planejamento ortodoxo: uma das principais delas, e que mais encontra eco no estudo aqui proposto, é a escala humana, a escala da rua, a exposição à cidade e as suas dinâmicas. Ao pensar na maneira como as desigualdades de gênero se expressam no espaço urbano, especialmente em São Paulo, é inevitável pensar no papel exercido pela escala da cidade.
Nesse contexto, a bicicleta carrega um potencial imenso. Illich (2005) distingue “o trânsito das pessoas que usam a sua própria força para transladar-se de um ponto a outro e o transporte motorizado” (ILLICH In: LUDD, 2005, p.42), o que considero uma das principais características da mobilidade por bicicleta: ser um veículo movido a propulsão humana.
A simplicidade da estrutura metálica da bicicleta, a exposição dos corpos quando pedalando, apenas sentados no selim, a baixa velocidade média que atinge nos percursos na cidade e que possibilita contato fácil com o entorno, com as pessoas nas calçadas, com as fachadas do comércio… A bicicleta é capaz de estabelecer uma lógica diferente daquela do funcionamento das cidades modernas e rodoviaristas, por imprimir um ritmo e velocidade mais democráticos, justamente porque são alcançáveis sem a necessidade de motor.
Em se tratando da mobilidade das mulheres, os modos ativos podem desenvolver um papel fundamental nas suas viagens cotidianas, aumentando seu raio de deslocamento, as possibilidades de destino, economia de recursos, a prática de exercícios físicos, entre outros, especialmente em um contexto no qual a pobreza feminina é mais a regra do que a exceção, e no qual as mulheres dispõem de menos recursos financeiros, incluindo aí padrões do caso brasileiro tais quais as desigualdades salariais históricas e a grande ocorrência de famílias monoparentais chefiadas por mulheres.
Além disso, mesmo em famílias nas quais as restrições financeiras não são tão extremas, ou seja, nas famílias em que os gastos com a tarifa de ônibus não necessariamente comprometem boa parte da renda familiar, é fenômeno conhecido nos estudos de “mulheres e transportes” que nas famílias de casais heterossexuais que possuem um automóvel, geralmente seu uso é feito pelo homem do casal (HANSON, 2010). Em São Paulo, as mulheres são o gênero que mais faz viagens a pé, porém, o que menos faz viagens em bicicleta, não ultrapassando os 12% do total das viagens contabilizadas pela Pesquisa de Mobilidade do Metrô de 2012 (LEMOS et al.,2017).
Não é meu objetivo discorrer sobre as barreiras encontradas pelas mulheres ao andar a pé, (SIQUEIRA, 2015) (1) mas acreditamos que, ao discutir o (baixo) uso da bicicleta pelas mulheres, conseguiremos também dar conta de vários aspectos do andar a pé, já que ambos modos envolvem a exposição dos sujeitos ao ambiente da rua, mesmo que com diferentes especificidades.
MULHERES, CORPOS E DOMESTICIDADE: O PAPEL DA BICICLETA
A popularização da bicicleta, cuja origem remonta ao século XIX, teve impactos além dos óbvios: ela foi fundamental para mudar o modo de vestir das mulheres e aproximá-lo ao que vemos na contemporaneidade. De acordo com Santucci e Figueiredo (2015), o vestuário feminino se desenvolveu em cima de uma estrutura bastante conservadora – mantendo sua “ornamentação, constrição do corpo e peso” (SANTUCCI e FIGUEIREDO, op. cit., p.21) – ao passo que os trajes masculinos foram se desenvolvendo de modo a tornarem-se cada vez mais simples, mais parecidos com o que conhecemos hoje em dia já a partir do século XVIII. O uso de trajes bifurcados e calças, apesar de ter sido iniciado com as operárias em seus locais de trabalho para facilitar as suas atividades – e não como forma de rebeldia (CRANE apud SANTUCCI e FIGUEIREDO, op. cit.) – só foi parcialmente possível a partir da sua adoção pelas mulheres de elite para a prática esportiva na virada do século XIX para o XX, em especial para a prática do ciclismo.
O papel exercido pela bicicleta nas mudanças no vestuário feminino caminhou lado a lado com o movimento pelos direitos das mulheres nos Estados Unidos. Amelia Bloomer, importante ativista da causa, foi responsável por propor reformas no guarda-roupa feminino e introduzir as calças turcas presas aos tornozelos por debaixo das saias – e que ficou conhecido como Bloomer (SANTUCCI e FIGUEIREDO, 2015, p.24). O movimento pelo sufrágio feminino nos Estados Unidos, apesar de seu claro recorte de classe e raça, de e para mulheres brancas, excluindo as mulheres negras e a luta antirracista de suas principais reivindicações (DAVIS, 2016) (2), também desenvolveu uma importante relação com a bicicleta. Frances E. Willard (1997), importante figura do movimento sufragista feminino, publica em 1895 o livro A Wheel Within a Wheel, no qual narra como aprendeu a andar de bicicleta com 53 anos de idade.
Seu relato autobiográfico, apesar de ter sido escrito em um contexto completamente diferente do momento contemporâneo, traz reflexões sobre as quais nos baseamos para os argumentos desenvolvidos nessa pesquisa. Willard traça, por exemplo, paralelos sobre as relações entre gênero, corpo, vestimentas, restrição da circulação feminina e o espaço reservado às mulheres a partir da perspectiva de uma mulher burguesa, do final do século XIX, de maneira que não poderia ser mais atual:
Vivendo no interior, longe das restrições e convenções às quais a maior parte das meninas são limitadas das atividades que desenvolveriam uma boa forma física e dotadas da companhia de uma mãe que me permitiu seguir as minhas próprias vontades e desejos, eu “circulei livremente” até meu décimo-sexto aniversário, quando as longas e dificultosas saias foram inseridas na minha vida, acompanhadas de corseletes e salto-alto; meus cabelos foram domados com grampos e eu me lembro de escrever no meu diário, no primeiro episódio de desilusão amorosa de um jovem potro humano tirado de seu pasto prazeroso. ‘De modo geral, eu reconheço que a minha profissão se foi.
(…)
Meu trabalho então mudou do meu amado e ventilado mundo ao ar livre para o reino interno do estudar, escrever, falar, e assim seguiu praticamente sem interrupção ou dor até o meu quinquagésimo terceiro ano de vida, quando a dor da perda da minha mãe acentuou a tensão desse longo período no qual as vidas mental e física estavam fora de balanço, e eu caí numa forma leve do que é conhecido como desgaste nervoso do paciente e é tida como prostração nervosa por aqueles que estão ao redor. Então, violentamente lançada para fora das minhas tradicionais reações e maneiras de viver o meu ambiente, e ansiando por conquistar novos mundos, eu determinei que aprenderia a andar de bicicleta.
Um marinheiro me disse uma vez, depois de ele mesmo aprender a andar de bicicleta, “vocês mulheres não fazem ideia da nova esfera de felicidade que a bicicleta trouxe para nós homens”. (WILLARD,1997, p.10-11 – tradução nossa).
Esse trecho do livro de Willard mostra algumas das dimensões simbólicas da criação das mulheres, que permeiam seus imaginários e que podem ajudar a explicar essa “dificuldade” em andar de bicicleta.
Apesar da relação extremamente imbricada entre as variáveis que impactam o (não) uso da bicicleta pelas mulheres e, por isso mesmo, a tarefa de tentar isolar-se, senão hercúlea, impossível, busco justamente olhar para os fatores não tão óbvios que impedem ou desestimulam que mulheres adotem a bicicleta como meio de transporte.
Uma cidade com mulheres pedalando costuma ser vista como uma cidade onde o uso da bicicleta é mais seguro: as mulheres que usam a bicicleta são vistas como um “indicador” de segurança no trânsito (SINGLETON e GODDARD, 2016; LACERDA, 2014). Tal correlação acaba atuando como um discurso simplista no qual as mulheres teriam “mais medo” do que os homens de pedalar e do trânsito e que, por “naturalmente” se arriscarem menos do que os homens, precisariam necessariamente de infraestrutura cicloviária ou de medidas de acalmamento de tráfego mais amplas para darem o passo inicial em adotar a bicicleta como modo de transporte. Procuro demonstrar que não existe nada de “natural” na relação entre os gêneros, nem que não há nada que seja biológico ou intrínseco à natureza das mulheres, porque gênero é
(…) uma categoria que estrutura as relações sociais através da generificação da divisão do trabalho e das atividades; acesso a recursos; e da construção das identidades dos sujeitos. O poder é exercido em cada uma dessas esferas. As relações de gênero também fornecem um código simbólico através do qual itens e atividades são impregnadas de significados. (LAW,1999, p.575 – tradução nossa)
Os corpos femininos são, desde cedo, domados – domesticados, no sentido mais literal da palavra, querendo dizer voltar-se ao doméstico, à domesticidade. Young (2005), em “Throwing Like a Girl: A Phenomenology of Feminine Body, Comportment, Motility, and Spatiality”, analisa a partir de uma chave de interpretação fenomenológica o desenvolvimento e a consciência corporal de meninos e meninas, buscando desconstruir a ideia de que as mulheres teriam simplesmente menor força ou que não teriam habilidades físicas para desenvolver atividades que envolvem o uso do corpo. Tais diferenças seriam, segundo a autora, em certa medida reais, mas não simplesmente por causa da força física bruta de cada um dos gêneros, mas sim por conta da maneira como cada um deles usa o corpo. Willard menciona a sua posição diferenciada em relação às outras meninas, na qual teria podido se desenvolver livremente, mas ressalta o papel da transição da infância para a vida adulta, sobre o qual escreve Young:
Na maior parte das vezes, às meninas e mulheres não é dada a oportunidade de usar sua capacidade corporal plena na interação livre e aberta com o mundo, e nem tampouco elas são tão incentivadas quanto os meninos a desenvolverem habilidades corporais específicas. As brincadeiras das meninas são mais sedentárias e enclausuradas do que as brincadeiras dos meninos. Nas atividades escolares e extra-curriculares as meninas não são incentivadas a se envolverem com esportes, através do uso controlado de seus corpos visando atingir metas bem-definidas. Além disso, as meninas têm pouca prática em “brincar” com as coisas e, assim, desenvolver maiores habilidades na lida com o espaço. Finalmente, as meninas não são frequentemente solicitadas a desenvolver tarefas que demandem esforço físico e força, ao passo que enquanto os meninos crescem, eles são demandados a fazer mais e mais. (…)
Existe um estilo específico de comportamento e movimento positivos do corpo feminino, que é ensinado às meninas quando elas entendem que elas são meninas. Uma menina pequena apreende hábitos muito sutis do comportamento corporal feminino – andar como uma menina, virar a cabeça como uma menina, ficar em pé e sentar como uma menina, gesticular como uma menina – e assim em diante. A menina aprende ativamente a dificultar seus próprios movimentos. Ela ouve que ela deve ser cuidadosa para não se machucar, para não se sujar, para não rasgar suas roupas, ela aprende que as coisas que ela deseja são perigosas para elas. Dessa forma, ela desenvolve uma timidez corporal que aumenta com a idade. Ao se assumir enquanto menina, ela é levada a se tornar frágil. (YOUNG, 2005, p.43–tradução nossa)
Ainda traçando um paralelo com Davis (2016) e em relação às várias mulheres e ao que lhes é possibilitado, levando em consideração um recorte de gênero, raça e classe, Perrot aponta:
Diferenças sociais consideráveis marcam a condição das jovens. A liberdade da jovem solteira aristocrata, que monta a cavalo, pratica esgrima, tem um preceptor ou uma governanta, como seus irmãos, e aprende rudimentos de latim, contrasta com a vigilância exercida sobre a jovem solteira burguesa, educada por sua mãe, iniciada às atividades domésticas e às artes de entretenimento (o indefectível piano), refinada por alguns anos de estudo ou de colégio interno e submetida aos rituais de ingresso no mundo social, que visam ao casamento. A filha das classes populares é posta para trabalhar muito cedo, geralmente em serviços domésticos. Serviçal de propriedade rural (como a Marie Claire, natural do Berry, retratada por Marguerite Audoux), ela é quase sempre exposta a trabalhos pesados e constrangida à promiscuidade; criada doméstica “para todo serviço” na cidade, é exposta aos riscos da educação. Outras são admitidas como aprendizes em oficinas de costura ou numa fábrica. (PERROT, 2007, p.45-46)
Também, de acordo com Young, o que ocorre é uma completa falta de confiança das mulheres em seus corpos – e que o medo de se machucar seria maior entre as mulheres do que entre os homens. Ao mesmo tempo que as mulheres prestam atenção em seus movimentos, elas também estariam preocupadas em evitar se ferir, já que elas são ensinadas que seus corpos são antes um local de fragilidade do que como uma maneira de atingir as metas que eles próprios nos possibilitam atingir (YOUNG, 2005, p.34).
É inegável que pedalar necessariamente envolve amplo envolvimento corporal daquelas pessoas que se engajam nessa atividade, seja como prática esportiva3, seja através do uso da bicicleta como modo de transporte. Estar em cima de uma bicicleta em meio ao trânsito de veículos envolve colocar seu corpo na rua, por isso a insistência em ressaltar (também) esses aspectos do ato de pedalar na cidade, antes mesmo de discutir o uso da bicicleta per se em São Paulo e em cidades similares do Brasil e da América Latina. Estudos específicos sobre as particularidades do uso da bicicleta por mulheres vêm sendo desenvolvidos principalmente em países do Norte Global há alguns anos, normalmente buscam entender a relação entre gênero e o uso da bicicleta a partir de uma perspectiva que envolve a relação direta com a análise da infraestrutura cicloviária. Aldred et al. (2016) apontam como, em um contexto mais amplo da Europa Ocidental, é possível encontrar variações substanciais na participação de mulheres nas estatísticas ciclísticas. Nos países onde há altos índices de uso da bicicleta, o que normalmente acontece é que as diferenças não existem ou não são tão substanciais assim em relação ao gênero e à idade dos ciclistas: nesses países, inclusive, o que acontece é que mulheres e pessoas mais velhas geralmente estão sobre-representadas. Entretanto, os autores constatam que em locais como o Reino Unido, da mesma forma como acontece em outros países de língua inglesa e de baixos índices de uso da bicicleta, as taxas de desigualdade de gênero e idade são relativamente altas, com mulheres e pessoas mais velhas sub-representadas. Os autores também pontuam que nos países nos quais as políticas de incentivo ao uso da bicicleta ocorreram mais recentemente, ciclistas homens são a maioria.
As políticas de incentivo ao uso da bicicleta são divididas pelos autores em dois grupos: fatores de push (“empurrão”) e de pull (“puxão”). Aqueles referentes à primeira categoria de fatores, os de push, envolvem, por exemplo, o chamado Peak Car — hipótese que aponta que a distância percorrida em viagens feitas em veículos a motor em alguns países desenvolvidos atingiu seu pico e que, a partir de agora, cairá. Ela está intimamente associada a uma mudança modal e de cultura, com a diminuição da posse e uso de automóveis pela população urbana. Já os fatores de pull seriam aqueles que ressaltam a confiabilidade e vantagens da bicicleta em relação ao tempo de viagem em cidades com altos níveis de congestionamento viário e transporte público lotado (ALDRED et al., 2016, p.30).
O mesmo artigo, em uma breve revisão da literatura sobre o tema, elenca três grandes categorias de motivos que podem explicar tais diferenças de gênero no uso da bicicleta: aqueles relacionados às características das viagens; às normas culturais e às preferências de infraestrutura. Sobre as características das viagens, as mulheres apesar de tradicionalmente fazerem viagens mais curtas do que os homens (4), também fazem viagens que não são as mais comuns entre os “ciclistas típicos” – que viajam sozinhos e geralmente direto da origem até o destino.
As viagens “femininas” normalmente são viagens que servem passageiros; viagens com múltiplos destinos; viagens em cadeia; viagens com crianças; viagens carregando objetos pesados que não são potencialmente transportáveis numa bicicleta, o que tornaria o pedalar menos atraente para elas (ALDRED et al.,2016, p.31).
Nesta pesquisa, discordo de apontamentos que colocam a bicicleta como menos apropriada para a realização de viagens com múltiplos destinos ou em cadeia, já que é justamente nessa praticidade da liberdade de movimento — sobretudo se comparado com o transporte público – que a bicicleta tem um potencial positivo enorme.
Aldred et al. (2016) apontam a incoerência desses argumentos ao se pensar no contexto holandês de uso da bicicleta e nos manuais sobre infraestrutura cicloviária utilizados no país, que adotam medidas para minimizar alguns impactos que tais dinâmicas familiares e/ ou preferências de cada gênero podem ter ou não sobre a opção ou não pela bicicleta. Entre as medidas possíveis, os autores mencionam aspectos como a alta qualidade do pavimento utilizado nas infraestruturas cicloviárias ou a prioridade dos ciclistas sobre os automóveis nos cruzamentos, o que impactaria positivamente as mulheres e quaisquer outras pessoas transportando crianças ou cargas, por exemplo.
Em relação às normas culturais que dificultariam a adoção da bicicleta por mulheres, os aspectos identificados pelos autores seriam especialmente as tradições culturais; maior aversão a risco pelas mulheres em comparação aos homens; a tolerância ao risco e ao nível de atividade esportiva envolvidos em pedalar em contextos de baixo uso da bicicleta; e, finalmente, a intersecção entre experiências daquelas pessoas que não fazem parte do grupo de ciclistas “tradicionais” e como elas acabam sendo marginalizadas, o que pode acabar excluindo ainda mais grupos sub-representados. Outros fatores explicativos possíveis têm relação com infraestrutura e ambientes cicloviários: haveria crescente consenso entre os autores que as pessoas tenderiam a preferir pedalar em condições mais seguras e com menor interação como tráfego motorizado e que essa preferência seria ainda maior entre as mulheres.
É interessante notar, entretanto, como a literatura, especialmente aquela oriunda dos países europeus em que a bicicleta é amplamente adotada como meio de transporte há algumas décadas, se preocupa em investigar os grupos sociais dentre os quais são encontrados baixos índices de ciclistas. Este é o caso, por exemplo, do trabalho de Van der Kloof (2015) sobre migrantes em especial, mulheres na Holanda, e sua experiência em aprender a andar de bicicleta que tem um significado importantíssimo para além do pedalar em si: a prática torna-se uma maneira de adaptar-se ao país e de perceber-se pertencente àquela cultura que lhes é estrangeira. Adotar a bicicleta como transporte cotidiano, quebrando barreiras oriundas de seus países e culturas de origem, tem impacto além de seus benefícios “óbvios” e tradicionais da bicicleta, auxiliando na sua integração no país e socialização com outros grupos de pessoas que estão fora de seus círculos sociais.
Todavia, é em países com mais recentes políticas de incentivo à mobilidade por bicicleta que questões acerca de minorias são investigadas com maior frequência. Historicamente os Estados Unidos são um país onde desigualdades raciais e sociais são bastante acentuadas – já citamos anteriormente Davis (2016) e sua discussão sobre as opressões vividas pelas mulheres negras no país.
Embora vivenciadas de maneira diferente, outros grupos sociais e, especialmente, mulheres, não estão isentos de sofrer tipos de discriminação semelhante: pessoas de origem ou ascendência latina e asiática, por exemplo, vivem contextos de opressão bastante específicos, o que abre um vasto campo de possibilidade de estudos que interseccionam questões de gênero e outras características identitárias como (baixo) uso da bicicleta por esses sujeitos (EMOND et al., 2009; SINGLETON e GODDARD, 2016). Ainda, considerando o papel que o ambiente construído e desenvolvimento urbano têm sobre as dinâmicas populacionais no território, a literatura também relaciona processos de gentrificação, raça, gênero, classe e o não uso da bicicleta por mulheres em cidades como Portland (LUBITOW e MILLER, 2013). Em todos os estudos citados, aspectos identitários e de construção da subjetividade dos indivíduos têm um papel determinante nos porquês para usar ou não usar a bicicleta, bem como a maneira que esses sujeitos o fazem e as barreiras enfrentadas para tal.
É na infância que acontecem, possivelmente, alguns dos processos de aculturação determinantes para o uso da bicicleta. Trazendo a discussão para o Hemisfério Sul, ainda que em um contexto muito diferente do latino-americano, embora também situado no Sul Global, Muralidharan e Prakash (2017) analisam o impacto de um programa implementado no estado indiano de Bihar visando diminuir a diferença de gênero nas matrículas no Ensino Médio e a evasão escolar entre garotas. O programa consiste em fornecer uma bicicleta a cada menina que não abandona os estudos após a conclusão do Ensino Fundamental e segue matriculada, frequentando a escola durante o próximo ciclo de ensino. A bicicleta funcionou de maneira tão eficiente em melhorar o acesso das meninas em idade escolar aos estabelecimentos de ensino que a diferença de gênero nas matrículas foi reduzida em 40% e o desempenho escolar das meninas também aumentou.
Além disso, o estudo verificou que a efetividade do programa em aumentar a matrícula de meninas no Ensino Médio é tanta que é tão ou mais comparável a outros programas com o mesmo objetivo no Sul Asiático, mas que para tal se baseiam essencialmente em políticas de transferência de renda. Trabalho semelhante ao programa estatal indiano é aquele realizado pela ONG World Bike Relief, que atua no Continente Africano doando bicicletas para mulheres em comunidades rurais, tornando um pouco mais leves e fáceis as atividades cotidianas que antes eram um pesado fardo de ir à escola, até buscar água em fontes distantes e que antes envolviam horas de caminhada sob o sol quente. Com isso, o raio de deslocamentos possíveis para essas mulheres aumentou enormemente.
O contexto latino-americano traz expressões das desigualdades de gênero bastante locais. As grandes cidades da região, cujo rápido crescimento nas últimas décadas as tornou quase indomáveis, começaram a experimentar apenas na última década políticas mais consistentes voltadas à promoção da mobilidade por bicicleta, apenas depois que se provou a nsustentabilidade, em vários aspectos, no sistema de mobilidade urbana das cidades. Entre as grandes capitais latino-americanas, Buenos Aires, Cidade do México, Bogotá e Santiago tiveram seu momento de concepção e suas políticas públicas para bicicleta executadas a partir da década de 2000, não apenas através da implantação de ciclovias e ciclofaixas, mas também através de redes de bicicletários públicos e sistemas de bicicleta compartilhada que compuseram o chamado sistema cicloviário. No Brasil, o caso de São Paulo a partir de 2014 é referência para todo o país, mas cidades como Curitiba, Santos e Fortaleza também são casos frequentemente lembrados.
Apesar da América Latina ser uma região historicamente desigual, com grandes bolsões de pobreza e histórico do uso cotidiano da bicicleta tradicionalmente pela classe trabalhadora, em muitas das grandes cidades do continente e, em especial, São Paulo, essa prática sempre foi mais masculina. Tal fenômeno levanta questões para este e futuros estudos sobre o tema na América Latina: Quais os porquês para tal divisão? Haveriam diferenças regionais que estabelecem barreiras para a adoção da bicicleta pelas mulheres latino-americanas e, notadamente, pelas mulheres paulistanas? Como se entremeiam, localmente, questões de gênero, identidade, herança sociocultural, formação e desenvolvimento da cidade a fim de fazer com que sejam tão baixos os índices de uso da bicicleta por mulheres em São Paulo?
Notas:
1 No Brasil, essa intersecção entre gênero e andar a pé foi discutida especialmente por Siqueira (2015), a partir de investigação da percepção das mulheres ao caminhar no centro do Recife – em especial, seu sentimento de medo, componente importantíssimo na construção dessa “equação”.
2 Trazer essa informação é extremamente importante já que, com alguma frequência, o movimento cicloativista estabelece um vínculo entre o movimento sufragista e a liberdade que a bicicleta proporcionou para as mulheres. Essa correlação é inegável, mas acredita-se ser também objetivo fundamental desse trabalho a decolonização e interseccionalidade do debate, jogando luz sobre questões de raça e classe que estiveram muito presentes durante todo processo de luta pelo sufrágio feminino nos Estados Unidos. A bicicleta serviu sim, na virada do século XIX para o XX, como um instrumento de liberdade para mulheres – mas para as mulheres brancas e, especialmente, burguesas. Davis (2016) discute em “Mulheres, Raça e Classe”, o racismo das lideranças do movimento sufragista e o (não)papel desenvolvido pela devastadora maioria delas na luta antirracista e pelos direitos civis estadunidense. Assim, não se pode deixar de lembrar o papel da bicicleta para as sufragistas e as suas falas sobre isso, porém sem continuar a romantizar essa referência.
3 Sobre a dimensão da prática esportiva em relação ao gênero, Lessa (2005) aponta “Mas por que tanta falta de investimentos nas práticas desportivas femininas? Podemos dizer que isso faz parte de uma tradição de controle sobre o corpo e o comportamento das mulheres, de um imaginário coletivo no qual a passividade, o sacrifício, a submissão e a maternidade seriam dons privilegiados das mulheres, dons esses que nada combinam com os atributos exigidos para prática de esportes.” (LESSA, 2005, p.165)
4 Embora, ao pensar sobre as características das viagens “femininas”, a maior realização de viagens curtas e em cadeia seria um motivo ainda mais forte para a adoção da bicicleta como modo de transporte por elas, já que tem potencial de simplificar, tornar mais rápida e baratear a mobilidade cotidiana especialmente nesse contexto.
BIBLIOGRAFIA CITADA
ALDRED, Rachel et. al. Cycling provision separated from motor traffic: a systematic review exploring whether stated preferences vary by gender and age. In: Transport Reviews, 37:1, 29-55, 2016. Disponível em: <http:./dx.doi.org/10.1080/01441647.2016.1200156>. Acesso em: 25 fev. 2018.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
EMOND, Catherine R.; TANG, Wei; HANDY, Susan L. Explaining Gender Difference in Bicycling Behavior. In: Transportation Research Record: Journal of the transportation Research Board, n. 2125, 16-25, 2009.
HANSON, Susan. Gender and mobility: new approaches for informing sustainability. In: Gender, Place & Culture: A Journal of Feminist Geography, 17:1, 5-23, 2010.
ILLICH, I. Energia e equidade. In: LUDD, N. (Org.). Apocalipse motorizado: a tirania do automóvel em um planeta poluído. São Paulo: Conrad, 2005. p. 33-72
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
LACERDA, João. As cidades precisam de mais mulheres em bicicleta. Transporte Ativo, 4 nov. 2014. Disponível em: <http:./transporteativo.org.br/wp/2014/11/04/as-cidades-precisam-de-mais-mulheres-embicicleta.>. Acesso em: 23 fev. 2018.
Law, R. (1999). Beyond “women and transport”: towards new geographies of gender and daily mobility. Progress in Human Geography, 23(4), 567–588. doi:10.1191/030913299666161864
LEMOS, Letícia Lindenberg; HARKOT, Marina Kohler; SANTORO, Paula Freire; RAMOS, Isis Bernardo. Mulheres, por que não pedalam? Por que há menos mulheres do que homens usando a bicicleta em São Paulo, Brasil? In: Revista Transporte y Territorio, Buenos Aires, n. 16, p. 68-92,2017.
LESSA, Patrícia. Mulheres, corpo e esportes em uma perspectiva feminista. In: Motrivivência Ano XVII, n. 24, p. 157-172, jun. 2005.
LUBITOW, Amy; MILLER, Thaddeus R. Contesting Sustainability: Bikes, Race, and Politics in Port-landia. In: Environmental Justice, New Rochelle, v.6, n.4, p. 121-126, 2013.
Muralidharan, Karthik, and Nishith Prakash.Cycling to School: Increasing Secondary School Enrollment for Girls in India. American Economic Journal: Applied Economics, 9 (3): 321-50.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Editora Contexto, 2007.
SANTUCCI, Natália de Noronha; FIGUEIREDO, Joana Bosak de. O feminino, o masculino e a bicicleta: paradigmas de gênero construídos no vestuário ocidental. In: Competência, Porto Alegre, RS, v.8, n.1, p. 17-33, jan./jul. 2015
SINGLETON, Patrick A.; GODDARD, Tara. Cycling by choice or necessity? Exploring the gender gap in bicycling in Oregon. In: Transportation Research Record: Journal of the Transportation Research Board, p. 110-118. Transportation Research Board of the National Academies, 2016
SIQUEIRA, Lucia de Andrade. Por onde andam as mulheres: percursos e medos que limitam a experiência de mulheres no centro do Recife. Dissertação de mestrado, UFPE, Recife, 2015.
VAN DER KLOOF, Angela. Lessons learned through training immigrant women in the Netherlands to cycle. In: COX, P. (ed). Cycling Cultures. 1ª ed. Chester: University of Chester Press, p. 8-105. 2015.
VASCONCELLOS, Eduardo A. Transporte urbano, espaço e eqüidade: análise das políticas públicas. São Paulo: Annablume, 2001.
WILLARD, Frances E. A Wheel within a Wheel. New York: F.H. Revell, 1997
YOUNG, Iris Marion. Throwing Like a Girl: A Phenomenology of Feminine Body, Comportment, Motility, and Spatiality. In: On female body experience : “Throwing like a girl” and other essays. Oxford: Oxford University Press, 2005.
“Uma ideia não pode ser morta”: a luta palestina – e global – por meio do boicote, desinvestimentos e sanções
Por Juman Asmail
tradução: Carolina Munis
O ano de 1948 é celebrado por Israel como sua “independência”. O ano de 1948, no entanto, é o ano da Nakba – a Catástrofe Palestina: luto pela limpeza étnica, pelas atrocidades e pela expulsão forçada. A limpeza étnica, enquanto ferramenta primordial para o colonialismo de ocupação, não é nova. Os povos indígenas do Brasil enfrentaram o mesmo crime durante a colonização portuguesa na América do Sul. Parece que o mundo não avançou muito desde 1500. É século 21, e no entanto Israel continua a cometer tais crimes à luz do dia, exceto que o faz com técnicas e tecnologias “inovadoras” que são comercializadas como “inovações Testadas em campo” e exportadas para o resto do mundo (1). A militarização é, assim, empregada em cada contexto local para oprimir e marginalizar um determinado grupo, como as práticas historicamente racistas contra a população negra no Brasil.
MOMENTO DECISIVO
Quando fui chamada para escrever uma contribuição, com foco na Palestina, para a Tuíra, não recuei. Fiquei entusiasmada em compartilhar mais sobre a luta, minha e de mais de 12 milhões de palestinas e palestinos – o povo indígena (2) da Palestina –, pela libertação frente à colonização, ao apartheid e à ocupação militar em curso. Porém, mais do que isso, eu estava ansiosa para me conectar com a luta dos povos indígenas do Brasil e aprender mais sobre ela, bem como a luta mais ampla contra o racismo e a ascensão de poderes de direita no Brasil. Espero, neste artigo, compartilhar algumas ideias sobre o boicote e o desinvestimento como táticas usadas pelo movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) liderado pelos palestinos e o impacto que elas têm. Talvez mais importante, também espero colocar questões sobre a mobilização conjunta, além-fronteiras, que pode aproximar nossa luta coletiva contra a opressão.
Um momento decisivo emerge: sento-me para realmente escrever este texto e, de repente, sinto o ímpeto da responsabilidade… A responsabilidade de me engajar em uma questão tão importante quanto “o que é transformação real para o ativismo?”(3). Percebi que, se soubesse a resposta, provavelmente não estaria escrevendo. Pelo que sei, é nossa responsabilidade coletiva continuar a nos fazer perguntas. Continuar duvidando de nossas respostas. E, então, buscar responder novamente às nossas dúvidas e seguir com este processo. Percebi que a verdadeira mudança reside na continuidade do acontecimento da mudança. Ou talvez, a continuidade do vir a ser – como o vir a ser de Tuíra…
AMEAÇA ESTRATÉGICA
Depois da Segunda Intifada, a situação na Palestina estava sombria: colônias israelenses em expansão, continuidade da limpeza e ocupação étnica e um impasse no assim chamado “processo de paz”. Nesse contexto, mais de 170 federações e coalizões que representam centenas de grupos políticos, sindicatos, organizações culturais e ONGs locais lançaram e manifestaram apoio à convocação do BDS. A sociedade civil palestina convocou pessoas conscientes em todo o mundo a boicotar, desinvestir e impor sanções a “Israel” até que cumpra o direito internacional. A convocação foi feita em 9 de julho de 2005, um ano após a data da Opinião Consultiva da Corte Internacional de Justiça (CIJ), que considerou ilegal o muro de Israel. O movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) estabelece três demandas visando três direitos básicos dos palestinos: o retorno dos refugiados para suas terras natais, o fim da ocupação e o fim do apartheid (4). Em 2012, o movimento havia ganhado apoio popular internacional. Em 2015, Israel declarou oficialmente que considera o movimento uma “ameaça estratégica” (5) e lançou contra ele uma ofensiva, que se estende da adoção de políticas e legislações internas até a pressão por mudanças na política internacional, numa tentativa de reprimir o movimento, seus membros e seus apoiadores tanto na Palestina quanto no exterior.
Por que uma entidade tão poderosa, dotada de recursos efortemente militarizada quanto Israel veria um movimento pacífico e de base como uma “ameaça estratégica”?
FORÇA DE UM BATALHÃO
O avanço inédito que o movimento BDS liderou estava menos na execução da tática em si e mais na escala de seu impacto. O boicote como uma tática tem sido empregado por lutas em todo o mundo, da Índia à África do Sul, aos Estados Unidos. E tem sido usado de maneira organizada como uma ferramenta para a resistência na Palestina desde pelo menos 19226, à época em resposta aos sistemáticos ataques armados contra os palestinos cometidos por colonos europeus durante as primeiras formações de colônias sionistas (7). Junto com as greves gerais, também foi usado para resistir às políticas britânicas de “mandato” que facilitaram a transferência em massa, acelerada pela ascensão do nazismo, de colonos judeus europeus para a terra palestina. O boicote passou, então, a ser usado em toda a luta palestina, inclusive, e mais substancialmente, em 1929-1948 e durante a Primeira e a Segunda Intifadas (Levantes).
Durante a última década, contudo, o BDS teve um sucesso singular em influenciar um espectro de apoiadores em escala global, o que pode ser melhor compreendido através de uma análise do espectro de aliados (8). Mais pessoas e instituições que antes eram neutras em relação à situação na Palestina estão se tornando aliadas passivas, e mais agentes do campo da oposição passiva estão se tornando neutros. Isso se reflete no aumento do número de resoluções do BDS que foram adotadas entre sindicatos de estudantes, associações acadêmicas, sindicatos de trabalhadores e partidos políticos, muitos dos quais enfrentaram oposição minoritária em seu eleitorado. O número de artistas e personalidades culturais que estão explicitamente cancelando seus eventos em Israel ou implicitamente evitando tais conotações com o regime israelense também está aumentando. Em 2018, Gilberto Gil cancelou seu show em Tel Aviv após telefonemas de grupos do BDS no Brasil e de artistas palestinos. Outros notáveis exemplos recentes incluem os cancelamentos feitos por Lana Del Rey, Shakira e Lorde, para mencionar apenas alguns. Da mesma forma, a seleção nacional de futebol da Argentina abandonou seu jogo amistoso com Israel após as reivindicações de times de futebol palestinos e grupos do BDS em todo o mundo. Os múltiplos níveis de ações permitidas pelo boicote enquanto tática oferecem outro nível de compreensão e análise de uma determinada forma de mudança: aquela em que apoiadores passivos são habilitados a se tornarem apoiadores ativos por meio de chamadas para a ação específicas e realizáveis.
O BDS, embora seja um conceito orientado para a ação, é no final das contas uma ideia que foi adotada por massas de pessoas conscientes em todo o mundo. Enquanto nós, como pessoas, somos mortais, uma ideia não pode ser morta. Isso talvez seja aquilo que mais vem preocupando Israel. O aparato militar pode matar ou encarcerar pessoas, mas não pode destruir um pensamento. Sinto-me compelida, aqui, a mencionar o assassinato pelo Mossad (9) de um dos mais renomados romancistas e escritores palestinos, Ghassan Kanafani, em 1972. Lendas populares contam que Golda Meir, então Primeira Ministra de Israel, disse que a literatura de Kanafani era equivalente a um batalhão – uma unidade militar de 300 a 800 soldados. Em resposta à ampla difusão e apoio ao BDS a nível global, Israel lançou uma campanha anti-BDS sob a bandeira de Brand Israel (10). É uma tentativa de retratar com uma imagem mais favorável a sua realidade opressora. Em 2016, o regime israelense alocou 26 milhões de dólares de seu orçamento anual para combater as atividades do BDS e formou uma unidade dentro do Ministério de Assuntos Estratégicos responsável por coordenar os esforços contra o movimento (11). Além das medidas internas, o lobby sionista no exterior, especialmente no Reino Unido, na Europa continental e nos Estados Unidos, buscava veementemente criminalizar essa campanha de solidariedade não violenta por meio de lobby com políticos e parlamentares. Além disso, houve processos contra ativistas e tentativas de infiltração em grupos – todas, táticas de intimidação.
MÚLTIPLOS ALVOS
Ao passo em que o boicote tem sido usado há muito tempo no contexto da luta palestina, o desinvestimento é uma tática relativamente nova e amplamente inspirada nas campanhas de desinvestimento durante a histórica luta contra o apartheid na África do Sul. Os primórdios dos esforços de desinvestimento contra Israel foram liderados por estudantes palestinos e árabes que estudavam no exterior no final de 1999 e início de 2000, na esteira de lutas interseccionais pela justiça social e contra o avanço de políticas neoliberais em todo o mundo. No centro das campanhas do BDS, como explica Noura Erakat, está uma “estratégia tripartite enraizada na lógica econômica”. Isso é particularmente importante no contexto do desinvestimento, porque a hipótese na qual se baseia o sucesso dessas campanhas é de viés corporativo. Elas identificam Israel como um alvo primário, poderoso demais para que seus mecanismos internos de decisão sejam influenciados pela pressão externa direta. Em seguida, identifica alvos secundários que facilitam, ativam ou lucram com os crimes de Israel e são menos poderosos e/ou mais responsivos à pressão externa do que o alvo principal. Essas miras secundárias incluem corporações multinacionais que investem bilhões de dólares na economia de Israel e ainda dependem da obtenção de clientes, contratos e investidores a nível global. Se um número suficiente de alvos secundários retirar seus investimentos, o mercado israelense se tornaria financeiramente sobrecarregado, o que comprometeria sua capacidade de sustentar seu sistema de opressão. A equação final vem a ser, portanto, que as corporações devem chegar a uma decisão interna de que investir em Israel é ruim para seus negócios em nível global. Isso acontece através do ataque a contratos e investimentos locais em dezenas de países simultaneamente. Esses clientes e investidores são alvos terciários e são ainda mais suscetíveis à pressão do que os alvos secundários, podendo frequentemente cancelar seus contratos com os alvos secundários por causa de seu ethos moral.
Tomemos como exemplo a campanha Stop G4S (”Pare o G4S”) . O Grupo 4 Securicor (G4S) é a maior empresa de segurança do mundo e a terceira maior corporação mundial, depois do Walmart e da Foxconn. Foi cúmplice da ocupação de Israel através da prestação de serviço para as prisões e centros de detenção israelenses, o muro do apartheid, os assentamentos e, mais recentemente, a Academia de Polícia. Ativistas do BDS em todo o mundo pressionaram, fizeram lobby e convenceram uma ampla gama de clientes a encerrarem seus contratos com a G4S ou venderem suas participações na empresa-mãe – de agências das Nações Unidas a uma rede local de waffles na Colômbia, bem como investidores tão variados quanto a Fundação Bill e Melinda Gates e o Fundo de Segurança Social do Kuwait. Como resultado dessa campanha intensiva do BDS, a G4S perdeu bilhões em contratos e aplicações, o que eventualmente forçou a retirada de 80% de seus investimentos em Israel. Mas, em seguida, esse efeito se multiplicou: Orange, Veolia (12) e CHR são todas corporações multinacionais gigantes que também removeram seus investimentos de Israel devido à pressão do BDS. Gradualmente, mais corporações estão entendendo que investir em Israel, que significa lucrar com crimes, é ruim para os negócios. Em 2014, o Relatório Mundial de Investimentos da ONU descobriu que o investimento estrangeiro direto na economia israelense caiu 46% em relação a 2013. Segundo os autores do relatório, o aumento das campanhas de boicote é parte da razão por trás dessa queda (13).
Poeta Ghassam Kanafani
SOLIDARIEDADE INTERSECCIONAL
Mas a história sobre a G4S estaria incompleta sem menção à interseccionalidade. Em seu livro A liberdade é uma luta constante, Angela Davis explica que o modelo econômico neoliberal, enraizado na privatização, permitiu que a coerção estatal alcançasse o lucro por meio da privatização do encarceramento e da guerra. Através de suas operações internacionais, a G4S estava lucrando não apenas com violações na Palestina, mas também com prisões de que ela possuía e geria em caráter privado, centros de deportação de imigração e abusos trabalhistas. A interseccionalidade identifica uma sobreposição entre as fontes de opressão enfrentadas pelos grupos marginalizados com base em seu sexo, gênero, raça, classe social e outras bases, convocando possibilidades de ação conjunta que transcendem esses limites. A campanha Stop G4S construiu conexões com múltiplos setores afetados pelos delitos da empresa, como grupos lutando por moradia, asilo e direitos trabalhistas. Havia todo um rol de injustiças, como mostrava o caso de Jimmy Mubenga, um migrante angolano que foi morto pelas mãos de guardas da G4S durante a deportação forçada do Reino Unido, ou as violações trabalhistas enfrentadas pelos trabalhadores da empresa, especialmente no Malawi e Moçambique, ou os maus tratos aos requerentes de asilo por guardas de segurança no centro de detenção de Papua-Nova Guiné.(14)
Davis descreve a Interseccionalidade como uma estrutura que nos permite pensar sobre o que podem parecer lutas transnacionais dramaticamente diferentes como lutas muito semelhantes passíveis de resposta coletiva (15). A sede por justiça aproximou palestinos e brasileiros em 2016, quando ativistas brasileiros convenceram o estado da Bahia a encerrar seu acordo corporativo com a Mekorot, a companhia de água israelense que implementa as políticas de apartheid de Israel contra o direito dos palestinos de acessar a água. Sob uma ótica similar, a privatização da água não é novidade para o Brasil e tem sido motivo de preocupação para a luta pela justiça da água no país desde pelo menos 1996. Arte e cultura são outros aspectos importantes da nossa existência que poderiam ser usados para resistir à injustiça. Em 2018, a cantora, performer e ativista trans-negra brasileira Linn da Quebrada cancelou sua participação no Festival Internacional de Cinema LGBT de Tel Aviv, já que Israel usa esses festivais como uma forma de pinkwashing para cobrir seus crimes (16). Linn recebeu pedidos e cartas para cancelar sua participação de diferentes pessoas ao redor do mundo, inclusive de Angela Davis, que não apenas escreve sobre a interseccionalidade, mas também a pratica de maneira significativa.
A solidariedade interseccional deu às campanhas do BDS uma proeminência muito maior no universo da justiça social do que inicialmente se poderia imaginar. E, a partir daqui, talvez seja apropriado reconhecer que a fonte de opressão que permite a impunidade de Israel não é tão diferente daquela que permite os avanços racistas de Jair Bolsonaro. Isso foi recentemente capturado por uma declaração conjunta da sociedade civil palestino-brasileira (17) de dezembro de 2018 sobre a internacionalidade de nossa luta coletiva por justiça social, dignidade e liberdade em todo o mundo, na sequência do anúncio dos planos de mover a embaixada brasileira para a Jerusalém ocupada. Da militarização nas favelas à repressão dos movimentos sociais, as tecnologias que são usadas contra os brasileiros e brasileiras não são muito diferentes daquelas que Israel constrói, exporta e utiliza para oprimir a nós, palestinas e palestinos (18). De certa forma, o BDS fornece uma plataforma não apenas para combater o projeto colonialista de ocupação de Israel na Palestina, mas também para resistir à opressão a nível local.
Em um contexto político de limpeza étnica e atrocidades contínuas na Palestina, será que o crescimento mundial da base de apoiadores dos direitos palestinos conta como mudança real? A retirada de megacorporações da economia israelense é uma mudança real? Talvez, talvez não, ou talvez ainda não… Mas talvez o mais importante é que esses resultados foram possíveis devido ao mantra muito simples, mas um tanto difícil, que repetimos seguidamente: juntos, somos mais fortes. Então, talvez a questão que se segue seja: como podemos trabalhar coletivamente de maneira mais inclusiva e melhor organizada para impactar o desequilíbrio global que existe nas estruturas de poder e permite a opressão?
NOTAS
1 Inclusive, o Brasil tem sido um benfeitor de tais produtos. Para um exemplo disso, veja: https://www.stopthewall.org/2014/12/03/bds-successelbit-systems-loses-key-brazildeal-over-palestine-protests
2 No original, indigenous. Em inglês, o termo “indígena” é mais explicitamente entendido como “nativo” – tanto é que os indígenas nos EUA são chamados de Native Americans. Já em português ele evoca mais instaneamente os povos indígenas, sem remeter tão diretamente ao fato de que eles são, afinal, os autóctones. Optou-se por deixar a tradução como “indígena”, e não “nativo”, para aludir à raiz da palavra. A conexão com os indígenas brasileiros logo será feita, algumas linhas adiante.
3 Questão abordada em Tuíra #2.
4 Convocação do BDS https://bdsmovement.net/call
5 Peter Beaumont. “Israel brands Palestinian-led boycott movement a ‘strategic threat’”. The Guardian, 3 de junho de 2015. Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2015/jun/03/israel-brandspalestinian-boycott-strategicthreat-netanyahu
6 Fadi Asleh. História doBoicote na Palestina. Khazaaen Archives, 2017. Disponível em: https://khazaaen.wordpress.com/2017/11/25
7 Nur Masalha. Expulsions Of The Palestinians. The Concept of “transfer” in Zionist Political Thought, 1882-1948. Institute for Palestine Studies, 1992.
8 Leia mais sobre o Espectro de Aliados aqui: https://beautifulrising.org/tool/spectrum-of-allies
9 A agência de inteligência de Israel.
10 Asa Winstanley. The failure of Brand Israel. Middle East Monitor, 2017. Disponível em: https://www.middleeastmonitor.com/20170330-the-failure-ofbrand-israel/
11 Nathan Thrall. BDS: How a controversial non-violent movement has transformed the Israeli-Palestinian debate. The Guardian, 2018. Disponível em: https://www.theguardian.com/news/2018/aug/14/bds-boycott-divestmentsanctions-movement-transformedisraeli-palestinian-debate
12 Mais informações: https://beautifulrising.org/tool/dump-veolia-campaign
13 Moshe Glantz. Foreign investment in Israel cut by half in 2014. Ynet News, 2019. Disponível em: https://www.ynetnews.com/articles/0,7340,L-4672509,00.html
14 Mais informações: https://bdsmovement.net/stop-g4s
15 Angela Davis. A Liberdade é uma Luta Constante. Boitempo, 2018. Tradução livre
16 Mais informações: ttps://bdsmovement.net/news/afterbds-pressure-brazilian-provincecancels-cooperation-agreementisrael%E2%80%99s-mekorot
17 Declaração disponível em: https://bdsmovement.net/news/palestinians-and-brazilians-calljoint-struggle-against-israelbolsonaro-alliance
Para o preparo de uma TEORIA POLÍTICA GERAL DA COZINHA ou como insistir nos feitiços contracoloniais
Se uma parte significativa da imaginação política progressista contemporânea está amarrada às ficções imperiais e masculinas sobre poder, conquista, identidade, unidade e maioria, as cozinhas abrem as apostas sobre uma outra política
Por Alana Moraes
QUEM TEM MEDO DA COZINHA?
Toda cozinha tem um cheiro, uma forma própria de organizar seus temperos e panelas, um segredo sobre o fogo e suas modulações, sobre como fazer render e aproveitar o que se tem de disponível, sobre simpatias e curas. Cheiros, truques, memórias e gestos: as cozinhas são compostas por elementos nem sempre tão imediatamente visíveis, mas que nos exigem intuição, atenção ao mundo que habitamos e um senso muito aguçado de cuidado. Ao nos tornarmos feministas da periferia do mundo, entre quebradas e subúrbios, passamos a reconhecer em nossas cozinhas as zonas de confluência contracolonial que existem nos cruzamentos entre os poderes e as resistências, entre os feitiços e os sofrimentos, entre o ordinário e o extraordinário, entre as palavras, mas também entre os silêncios – o que não pode ou não precisa ser dito, o que escapa do discurso.
O pensamento que emerge nas cozinhas é, sem dúvida, um pensamento que investiga as atuações possíveis em um mundo saturado de poder e violência colonial. Investiga os modos pelos quais podemos ainda habitar as ruínas, todas elas e nos defender. Um pensamento que atua pela diferença e singularidade, nunca pela homogeneização. Mas essa constatação nem sempre se fez evidente. Muitas de nós, traçando trajetórias escolarizadas e inevitavelmente influenciadas por um certo feminismo embranquecido, aprendemos a associar a cozinha ao lugar de subalternização e nada mais. Atormentadas pelo fardo doméstico sustentado por nossas mães e avós, as cozinhas – e o trabalho gratuito que elas propiciam – nos pareciam um lugar em relação ao qual era preciso escapar. Por um lado, havia o menosprezo dos homens (cis-heterossexuais) pela cozinha e todo seu universo, assim como a valorização dos trabalhos considerados masculinos, daqueles que podiam se livrar da cozinha por uma fantasia de independência e autossuficiência. Por outro lado, as ideias de liberdade e emancipação, dentro da matriz de pensamento euro-americana, nos conduziam a um horizonte de desejo que estava sempre muito distante do cheiro de refogado e do feijão de molho. Aprendemos que o mundo é dividido entre dominação e autodeterminação; sujeição e esclarecimento – e nessa grande cisão, o mundo tumultuado da cozinha entre sensações, misturas, fugas e jogos de cintura parecia, inevitavelmente, tombar para o lado das opressões.
Também é possível reconhecer em nossas histórias, geração após geração, o trabalho feminino doméstico gratuito ou mal-remunerado erguendo a infraestrutura oculta do capitalismo em nossos fogões. Histórias sobre infelicidades, sonhos interrompidos, sobre não reconhecimento, adoecimento e solidão.
O Brasil é o país com mais empregadas domésticas do mundo, e, como lembra Vergés, “sobre essas vidas precárias e extenuantes para o corpo, essas vidas postas em perigo, repousam as vidas confortáveis das classes médias e do mundo dos poderosos” (1) Essa é ainda uma das expressões mais vivas da nossa colonialidade, um lugar difícil que ainda me faz constantemente pensar sobre o porquê da minha mãe ter guardado para si, como quem resguarda um segredo perigoso, o fato da minha avó, sua mãe, ter sido empregada doméstica. No entanto, a cozinha é também o lugar onde se sobrepõem os muitos cruzamentos entre poder e perigo, intimidade e domínio, o que nos destrói e o que nos vinga. Pela cozinha, aquelas que ocupam posições subalternizadas também “desenvolvem um conhecimento acerca do·a·s dominantes que constitui um arquivo de seu poder absoluto fenomenal”, como lembra Elsa Dorlin (2).
Se, por um lado, fomos aprendendo a confrontar o destino atualizado pelo patriarcado de que “lugar de mulher é na cozinha”, por outro lado, também entendemos que a cozinha é o lugar que suscita muitas cumplicidades. Na cozinha torna-se possível falar sobre o marido ou o patrão e confabular sobre as pequenas resistências de todos os dias, negociar e fabricar alianças dentro das nossas comunidades, vizinhanças. Uma espacialidade relacional na qual podemos cruzar nossas histórias e produzir inéditas coalizões entre os corpos feminilizados – aqueles que se conformaram bem demais e a um alto custo às ordenações cis-heterossexuais domésticas – e aqueles outros dissidentes que não podiam se conformar tão bem assim. Como recorda Lugones, pela cozinha podemos reconhecer que “a subjetividade que resiste com frequência expressa-se infrapoliticamente em vez de em uma política do público, a qual se situa facilmente na contestação pública” (3).
Nas cozinhas aprendemos a fazer remédios que curam, mas também venenos e vinganças; preparamos as refeições de todos os dias, mas também as conspirações silenciosas e os banquetes que sustentam as festas que finalmente abrem nossas cozinhas para vizinhas, amores secretos, para o sagrado e aos encontros inesperados que perfazem também uma erótica da convivialidade aquecida pelo fogo e pelo prazer da mistura. Nas cozinhas que se abrem para quintais, a terra e as plantas nos fazem ainda insistir na aliança com o mundo vivo, nos lembram que nos compomos com o mundo quando comemos e preparamos nosso alimento, fazemos nosso corpo, como bem sabem, por exemplo, as cozinhas Guarani.
Pela cozinha passa toda história do capitalismo colonial racializado, é verdade. Mas ao mesmo tempo é pela cozinha que somos feitas como gente, entre cheiros, memórias e segredos sobre o que os corpos não aguentam mais e do que eles desejam ser, ainda. As histórias de cozinhas são bem anteriores ao evento colonial e em muitos sentidos os modos pelos quais pessoas cultivam (ou coletam) e preparam seus alimentos expressam também os modos pelos quais elas se organizam politicamente. Na cozinha também circulam as histórias da terra e das plantas, saberes sobre substâncias que acalmam e que excitam – uma metafísica do sensível que experimenta a variação dos corpos quando o prazer e a dádiva tornam-se ainda possíveis nos interstícios do mundo da mercadoria, seus fracassos e solidões.
“Ter que estudar pra não terminar na cozinha” é o que ouvimos como conselho das nossas próprias mães e avós – mas não mais as culpamos. Sabemos o que quer dizer essa aposta para mulheres que não tiveram muitas alternativas além de ter que acolher em suas cozinhas todos aqueles que vez ou outra são expulsos dos seus trabalhos, perdem direitos a bens coletivos, adoecem. Mas entramos na universidade ou nos formamos pela luta coletiva – muito graças a elas – e encontramos com bell hooks, Audre Lorde, com Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento (4), com as histórias revolucionárias que sustentavam quilombos, terreiros e aldeias entrelaçando todo um território e suas práticas de liberdade entre combates e cuidados. As cozinhas criam e tecem uma infrapolítica composta por memórias ancestrais, conhecimentos autônomos transmitidos por gerações e sem os quais não sobreviveríamos.
Talvez o perigo da cozinha, aos olhos dos poderes coloniais, esteja na incontornável constatação da nossa amefricanidade, que Lélia Gonzalez intuía como prática existencial e categoria filosófica-política de contrafeitiçaria ao mundo colonial e seus muitos dispositivos de denegação (5). A amefricanidade sempre esteve presente “nas revoltas, na elaboração de estratégias de resistência cultural, no desenvolvimento de formas alternativas de organização social livre”, diz Lélia, também nas cozinhas e suas muitas formas de experimentação de fugitividade e proteção. Tudo começa na cozinha e termina na cozinha, a cozinha é o espaço de transmutação e transformação da mercadoria em dádiva, da fuga em resistência, do profano e do sagrado, da vida que se faz sem governo. Por que a cozinha não seria também o lugar de experimentações revolucionárias, conspirações e sustentação de outros mundos possíveis quando tudo parece desmoronar?
POR UMA POLÍTICA DE COZINHA
As cozinhas sempre foram lugares no quais misturam-se festas e resistências. No Rio de Janeiro, no final do século 19, uma das principais incursões de repressão da polícia era contra as “casas de angu”, espaços de festas sustentados por pessoas negras que se libertavam da escravidão. “Nos dicionários brasileiros, os termos angu ou zungu apresentam sentidos pejorativos: desordem, sujeira, esconderijo. O angu alimento constitui-se também em “metáfora da cultura popular de origem negra-africana: heterogênea, confusa, díspar […].”(6)
No começo do século 20, em São Paulo, as “casas palacetes” das elites brancas constituíam-se em oposição aos chamados cortiços. Enquanto o principal “atributo” dos palacetes era a separação bem delimitada entre cozinha e o resto da casa, nos cortiços populares era muito comum que as cozinhas fossem abertas e compartilhadas. Tal configuração espacial certamente foi decisiva para articular as “Ligas de Bairro”, formas populares de organização que lograram construir a grande greve geral de 1917 na cidade de São Paulo. Para os Panteras Negras, um dos grupos de ação revolucionária mais importantes na história recente do movimento negro, as cozinhas tornaram-se espaços centrais de cuidado e combate. A organização criou um programa de ação direta no final dos anos 1960 chamado de “Programa Café da Manhã Grátis para Crianças”. As cozinhas criavam espaços de convívio nos territórios, fortaleciam as alianças intergeracionais e chamavam atenção para o fato de que não era possível ação revolucionária que não passasse pela cozinha e seu trabalho cotidiano de fazer pessoas e conspirações.
Em grande medida, as importantes greves do começo dos anos 1970 e 1980 em São Paulo e na região do ABC paulista foram asseguradas por redes de mulheres das periferias que, muitas vezes junto à igreja católica, ativavam circuitos de doação de alimentos e mesmo marmitas para que os grevistas seguissem firmes no combate do chão da fábrica. Nos anos 1980, o movimento de luta contra a carestia era articulado entre mulheres das periferias e suas cozinhas no intuito de denunciar a alta do preço dos alimentos e a farsa do “milagre econômico” criado pela ditadura militar no Brasil.
As cozinhas são espaços centrais em quilombos e aldeias, acampamentos de refugiados, ocupações, assentamentos, casas coletivas criadas e mantidas por pessoas dissidentes do regime de sexo-gênero. As longas filas dos dias de visita em penitenciárias são compostas por mulheres que lutam contra a desumanização continuadamente produzida por aquele espaço – e o fazem pelo preparo de comidas que infiltram a força de suas cozinhas e temperos para que seus amores confinados tenham força diante das torturas normalizadas por nossa sociedade encarceradora. As ocupações sem-teto de luta por moradia são fundadas pelas cozinhas, e as mulheres que as sustentam detêm uma habilidade incomparável na atuação de fazer alianças e tecer, pela inteligência anfitriã, uma política de cozinha por onde circulam prestígios e lealdades e que recostura mundos despedaçados pela política de extermínio do Estado, fabrica novos parentescos.
Ainda assim, nem sempre as tradições socialistas e comunistas foram capazes de perceber a força da cozinha como espacialidade contracolonial de luta e resistência. A política revolucionária imaginada majoritariamente pelos homens tem a ver com cenas de ruptura, excepcionalismos individuais e heroicos, comando e performance discursiva sobre o poder de “mobilizar as massas”. Nas cozinhas, ao contrário, ninguém procura convencer ou mobilizar. Ninguém está interessado em “salvar” ninguém – preparar uma boa comida não tem a ver com hegemonia, mas com uma inteligência sensível, prática e ao mesmo tempo aguçada para efetuar composições surpreendentes: “não são as razões que fazem as revoluções, são os corpos”(7). A cozinha coletiva é um espaço poroso no qual se trata de criar e fortalecer uma existência coletiva, onde a experimentação é bem mais importante do que a representação ou o discurso, as boas histórias são mais importantes do que as bandeiras. A fama de uma boa cozinheira se faz por um conjunto de habilidades que tem a ver com o poder de afetar e ser afetada, com uma disponibilidade estética e ética para compreender seu entorno e favorecer suas possibilidades – saber sentir o que se passa nos registros do invisível, cultivar uma atenção permanente para a qualidade das relações que sustentam um coletivo, sustentam o combate.
Perrone-Moisés lembra que foram os arqueólogos aqueles que resgataram o papel do “banquete” e da comensalidade como matriz relacional, mas também fonte de prestígio e produção política nas sociedades ameríndias. É a partir desse movimento que a antropóloga toma a festa como matriz e a relação anfitrião-convidado como modelo político: “saber cantar e dançar, ser ‘detentor’ de objetos de festa, simplesmente saber fazer festas etc. É na Festa, também obrigação de chefe índio, que as qualidades do ‘cargo’ aparecem”(8) Todas essas características compõem o clássico modelo discutido por Pierre Clastres de um “chefe sem poder”, quer dizer, um chefe sem autoridade. O chefe indígena (tal como as tias e suas cozinhas) ostenta uma grande generosidade que, nas palavras de Clastres, “parece mais do que um dever, mas uma servitude”. “Chefe é o que recebe, o que acolhe, o que dá de comer” (9), resume o antropólogo.
As cozinhas foram sendo docilizadas e interpretadas com condescendência alegórica e folclórica mesmo nos círculos militantes. A luta política, compreendida por essas tradições, seria um lugar que nos exigiria esforço e sacrifício, o abandono de qualquer espaço que envolve dependência, cheiro de refogados – a “classe em si” estaria para a cozinha como a “classe para si” estaria para os palanques. Mas mesmo do ponto de vista da crítica ao capitalismo, a cozinha nos apresenta imagens bem mais efetivas. A cozinha é um lugar que nos exige tempo, autonomia, intuição e encontro – todas as coisas que não cabem na ficção do indivíduo autossuficiente inventado pelo capitalismo, nem mesmo na virilidade heterossexista reproduzida por muitos militantes comunistas. A cozinha não precisa ser doméstica. Em tempos de alta do preço dos alimentos, pense em uma cozinha móvel, ágil, que se instala na linha de frente de uma manifestação com todos os seus aparatos transformando-se em instrumentos de combate, com suas substâncias neutralizando o gás lacrimogêneo e com sua infraestrutura aberta e imprevisível diferente dos insistentes carros de som que só falam a língua do poder e do comando.
Pelas cozinhas, nós lamentamos e odiamos juntas a vida que estamos obrigadas a viver. E por isso mesmo a cozinha foi perseguida e temida: da “caça às bruxas”, que inaugurou o capitalismo na Europa durante os séculos 16 e 17, à perseguição permanente de terreiros contemporâneos, quilombos, aldeias e ocupações, vemos um circuito integrado de poder que articula velhos e novos dispositivos de perseguição e punição contra corpos e territórios que conjuram os poderes e chantagens do Estado e da propriedade privada, dos regimes de governo sexo-político que insistem a todo custo em domesticar as nossas cozinhas e fazer dela o último bastião de sustentação do casamento heterossexual. A cozinha é também, ao contrário de sua codificação dominante pelo gênero, um espaço de confluência de dissidências às normas dominantes do gênero. Entre temperos e temperaturas, os experimentos de transmutação e transe também são preparados nas cozinhas.
Não é à toa que mais recentemente os neoliberais disseminaram a expressão “não existe almoço grátis” como emblema. Para eles é mesmo impossível (e perigoso) imaginar que ainda exista um espaço no qual o conjunto de interesses não está subordinado à “racionalidade” de maximização de ganhos individuais. Nas cozinhas coletivas, dar é receber: os circuitos de prestígio estão associados à habilidade de boa anfitriã, de nunca cobrar pelo que se oferece. A maior ofensa que pode acontecer em uma cozinha é quando se recusa receber o que lhe é oferecido – boas cozinheiras exigem bons comensais, e a melhor retribuição é a demonstração elogiosa e pública de prazer pelo que se come, pelo momento que se compartilha – quase tudo que funciona pelo prazer compartilhado é imbatível.
COZIDOS, MEXIDÕES, MOQUECAS, FEIJOADAS, MUNGUNZÁS: A ARTE DE COMPOSIÇÃO DE UMA POLÍTICA POR VIR
A cozinha guarda poder e perigo, prazer e também segredos sobre combates e fugas. Não apenas como resistência, mas as cozinhas coletivas são capazes de fabricar uma política que torna visível um outro mundo que já existe e está entre nós. É a cozinha que ainda conecta aldeias, quilombos, ocupações, vizinhanças – a cozinha aberta e coletiva desativa as cercas da propriedade privada e celebra a persistência de paixões não proprietárias que as sustentam; celebra a política como festa e técnicas de composição entre diferenças e nos convida a pensar sobre o encontro afro-indígena que nos constituiu longe das cercas e da vigilância, desafiando também o pensamento colonial cujo centro repousa em estratégias continuadas de separação: o corpo da consciência; a festa da política; a assembleia da cozinha. São espacialidades de fugitividade que possibilitam, inventam e sustentam refúgios – a cozinha é a vida ela mesma produzida por uma ontologia da mistura onde tudo é sempre incompleto, sempre aberto, que nos exige uma atenção permanente ao que se passa entre os corpos, seus desejos e aflições – sempre inconstâncias, porque tudo está em cozimento.
Se uma parte significativa da imaginação política progressista contemporânea está amarrada às ficções imperiais e masculinas sobre poder, conquista, identidade, unidade e maiorias – as cozinhas abrem as apostas sobre uma outra política. Se olharmos bem, a experiência coletiva e comum mais permanente entre os mais pobres ao longo dos séculos tem muito mais a ver com cozinhas do que com fábricas ou com o trabalho assalariado. Durante muito tempo as esquerdas pensaram a cozinha como uma “fase inferior” do trabalho operário, um lugar ligado às necessidades nutricionais do trabalhador, mas nunca um lugar de criação e luta.
Nossas culturas alimentares – insistentemente ameaçadas pela monocultura e pela indústria de alimentos –- nos oferecem mais do que “subsistência”, mas um deslocamento ontológico. Nas cozinhas coletivas dos acampamentos sem-teto, por exemplo, emerge uma noção de pessoa feita entre cheiros, sabores e um renovado circuito de prazer e curas na qual “ser um é tornar-se com muitos” (10). São interdependências táticas que deslocam o ordenamento doméstico e generificado do neoliberalismo para experimentar uma espacialidade feita da confusão entre corpos, sabores e saberes, do que circula entre nós e do que podemos sustentar por nós mesmos sem pedir permissão. Misturas heterogêneas – como nas feijoadas ou cozidos – que resistem às sínteses e depurações – escapando assim da escassez imaginativa daqueles que pensam a classe trabalhadora sempre como “falta”, nunca como excesso e esbanjamento.
Em um momento difícil no qual vemos a reorganização de forças neocoloniais que ameaçam a vida na terra – de humanos e outras criaturas –, sobrou pouca coisa na qual ainda podemos nos apoiar para procurar saídas. Vivemos uma crise sem precedentes das formas tradicionais de representação: os partidos e organizações de esquerda parecem girar em torno dos mesmos lugares de concentração de poder controlado por poucas lideranças que insistem em querer nos esclarecer, emancipar, mostrar um caminho de salvação que, coincidentemente, nunca passa pela cozinha. Como convocaram recentemente os zapatistas, diante do fim desse mundo que vivemos e de tudo que ainda tem que acabar, nos resta afirmar uma política pela vida. Não aceitaremos a vida regulada, conduzida, uma vida que nos resta nesse latifúndio pandêmico, desejamos a vida em todas as suas possibilidades. Uma política pela vida atua contra a obstrução coletiva na capacidade de imaginar outras formas de existência coletiva – aqui e agora. Como nos convoca também Denise Ferreira da Silva, é urgente pensar uma outra política que recusa a herança colonial e que “exige que libertemos o pensamento das amarras da certeza e abracemos o poder da imaginação para criar a partir de impressões vagas e confusas, ou incertas, que Kant (1724-1804) postulou serem inferiores às produzidas pelas ferramentas formais do Entendimento” (11)
E SE NÓS VOLTÁSSEMOS A PENSAR PELA COZINHA?
QUAIS IMAGENS SOBRE LUTA, POLÍTICA E VIVER JUNTO SE ABRIRIAM?
Por fim, que também é um começo, queremos lançar um convite – como nos bons aperitivos que abrem o apetite entre cachaças, torresmos ou bolinhos de arroz feitos com o que já temos. O convite é para uma cartografia aberta e experimental que se divirta para compor uma coleção de teses presentes em nossas cozinhas – ou nas cozinhas que ainda desejamos fazer. São lições, receitas alteradas e abertas, segredos e intuições, conspirações e sabotagens que aprendemos durante nossa vida nas cozinhas e que podem nos ajudar a imaginar essa outra politica – uma política de cozinha para os tempos de catástrofe.
Deixaremos aqui algumas pitadas iniciais para ativar o calor do pensamento.
Seguiremos recolhendo ingredientes em formas de aforismos neste email: conspire@tramadora.net
- Só picar uns alhos nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Toda pessoa tem um jeito próprio de descascar e preparar o alho para um refogado. Imaginem uma reunião ou assembleia na qual, a pessoa que pede a palavra, teria que descascar e picar alguns alhos enquanto fala ou faz uma proposta. Desconfie de quem não consegue realizar essa tarefa. A luta de classes se faz, afinal, pelas herdeiras das picadoras de alho contra os herdeiros daqueles que sempre se livraram e terceirizaram essa prática.
- Ouse provar. Não há hipótese, orientação, programa ou nenhuma grande ideia que surja sem a disposição para a experimentação. Como lembrou uma bruxa belga, Sapere Aude (ousar saber), o famoso slogan iluminista reverberado por Kant, vem, na verdade, de um verso do poeta romano Horácio no qual Sapere sugere mais “sabor” do que “saber”, ou melhor, aponta para a indissociabilidade entre saber e experimentar, conhecer e saborear.
- Ser alquimista. Tanto na cozinha como nos laboratórios, o primeiro aprendizado é o de que não se trata de impor forma à matéria, mas de reunir muitos materiais e elementos, combinando, experimentando, redirecionando seus fluxos na expectativa do que pode surgir. Na cozinha, na maioria das vezes, temos que criar uma refeição a partir dos ingredientes que estão ali disponíveis. Não existe aqui uma grande revelação de ruptura com o mundo que temos; ao contrário, nossa revolução será experimentada a partir desses corpos e ingredientes que já temos, de uma fina arte de composição de mundos que foram despedaçados. Arte da catálise, da alteração. Ao invés de utopias distantes, as cozinhas são lugares de fazer aqui e agora com o que temos disponível – às vezes tudo que importa é a temperatura.
- Conjurar as receitas dos heróis. Sabemos que a cozinha é o lugar, por excelência, das práticas anti-heroicas. Cortar cebolas, engrossar o caldo de um ensopado, fazer render o feijão, nada disso parece épico ou suficientemente revolucionário. Mas a cozinha é o espaço que conhecemos onde mais se experimenta fazer coisas que favoreçam a vida compartilhada. Estar na cozinha é ter que realizar um feito e o sucesso desse feito-feitiço é conferido por aqueles e aquelas que fazem parte da comunidade sempre provisória entre cozinheiras e comensais. Ao contrário das fábulas de salvação dos heróis, na cozinha tudo é sempre sobre relações. Mais do que “esclarecer”, a cozinha nos exige uma atenção para todas as tarefas ordinárias e invisíveis que nos mantêm vivas. Toda reunião deveria, ao menos, ter como resultado imediato uma boa refeição preparada coletivamente e de forma improvisada, com cada um trazendo para o encontro um ingrediente que possa se compor com os demais sem ter que combinar anteriormente. Lembrar que os heróis podem, por descuido, acabar se tornando o prato principal.
- Aceitar os riscos e tudo aquilo que escapa dos planejamentos. Todo mundo sabe que, nas cozinhas, tudo sempre pode dar errado. O bolo que sola, o angu que empelota, a massa que desanda, o feijão que salga. É difícil corrigir uma desmedida de sal ou açúcar, mais difícil ainda é voltar atrás na quantidade de pimenta que, por impulso, deixamos escapar em demasia. Na cozinha, estamos sempre lidando com os imprevistos – e longe de querer controlá-los, administrá-los ou fazer de tudo para que eles não aconteçam, na cozinha precisamos elaborar uma inteligência do imprevisto; compor com a imprevisibilidade e articular saídas para os impasses sem ter que apelar para um ambiente totalmente controlado de medidas precisas. A boa cozinheira é sempre tentada em não seguir a receita de forma precisa, mas elaborar uma outra versão dela assumindo o risco do que pode ser.
- “Saber de olho” e cultivar uma inteligência intuitiva. Toda boa cozinheira gosta de vangloriar-se quando afirma não trabalhar com medidas exatas porque “sabe de olho”. Saber de olho é o resultado de uma experiência senciente, uma forma de saber que depende de uma confiança aguçada nos sentidos. Para tal feito é preciso abrir-se ao mundo, apostar em uma experimentação tateante que navega com destreza entre sabores, cheiros, densidades, texturas, cor, que sabe pelo corpo.
- Aprender a deixar espaço para o que escapa do discurso. As conversas de cozinha sempre acontecem de um modo mais ou menos impremeditado. Pode até ser que haja um assunto anterior que levou as pessoas até ali, mas em geral, as histórias se cruzam e vão produzindo um encadeamento próprio de questões, relatos e aberturas. Muitas vezes as conversas imprevistas são importantes para que nos desloquemos de questões que estamos obcecados. Frequentemente, em nossas reuniões, as conversas que antecedem a “pauta” são mais importantes e abertas do que aquelas que estão planejadas para acontecer. Isso porque as conversas de cozinha convocam relatos sobre a vida, sobre dores e sofrimentos, sobre nossas pequenas alegrias, elas são convidativas e dificilmente estabelecem hierarquias – tudo que permanece às sombras da “política que importa” e suas performances discursivas que acabam regulando o que é legítimo de ser dito ou não, reforçando assim uma ideia de “esfera pública” que não deixa ser infiltrada por corpos e suas marcas.
- Cultivar uma erótica da mistura. Uma cozinha cheia é povoada de esbarrões imprevistos. O calor do fogo e os temperos elevam os sentidos que tornam-se mais aguçados à presença do outro. Nas cozinhas, precisamos nos entregar a cheiros, temperaturas, tocar em consistências e superfícies; muitas vezes, trocamos salivas entre provas e talheres divididos. Por isso mesmo a cozinha é, em muitas circunstâncias, um lugar de intimidade no qual convida-se as visitas mais próximas, uma espacialidade em que a distância entre corpos diminui drasticamente. Audre Lorde (12) fala sobre a retomada do uso do erótico contra uma tradição política que o inscreveu no registro do feminino, superficial e inferior – o erótico é a interface sensível das experiências conjuntivas que ocorrem nas cozinhas. O erótico, conta Audre, é “energia criativa fortalecida”, uma forma de relação que supõe uma experiência de gozo compartilhado – estar junto, para além dos registros sexuais, inclusive.
NOTAS
1 Françoise Vé rges. Um feminismo decolonial. Tradução de Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. Sã o Paulo: Ubu, 2020
2 Elsa Dorlin. Autodefesa: uma filosofia da violência. Tradução: Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. Editora Ubu, 2020.
3 María Lugones. Rumo a um feminismo descolonial. Rev.Estud. Fem., Santa Catarina, v. 22, n. 3, set/dez, pp. 935-352, 2014.
4 bell hooks. Ensinando a transgredir: a educaç ã o como prá tica de liberdade. Traduç ã o de Marcelo Brandã o Cipolla. Sã o Paulo: Martins Fontes, 2013; Audre Lorde. Use of the Erotic: The Erotic as Power. Publicado em: Audre Lorde. Sister outsider: essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1984. Lélia Gonzalez. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Publicado em: Bianca Santana (Org.). Vozes insurgentes de mulheres negras: do século XVIII à primeira década do século XXI. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2019. Beatriz Nascimento. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. Revista Afro-diá spora, Sã o Paulo, v. 3, n. 6-7, p. 41-49, 1985
5 Lélia Gonzalez. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, pp. 69-82, jan/jun, 1988
6 Carlos Eugênio Líbano Soares. Zungu: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Rio de Janeiro, 1998.
7 Comitê Invisível. Motim e destituição agora. São Paulo: n-1 edições, 2017
8 Beatriz Perrone-Moisés. Festa e Guerra. Tese (Livre-Docência). São Paulo: FFLCH/USP, 2015
9 Pierre Clastres. A Sociedade contra o Estado – pesquisas de antropologia política. São Paulo: Cosac Naify, 2004
10 Donna Haraway. Entrevista concedida a Juliana Fausto, Eduardo Viveiros de Castro e Déborah Danowski. Exibida no Colóquio Internacional Os Mil Nomes de Gaia: do Antropoceno à Idade da Terra, 18 de setembro, 2014.
11 Denise Ferreira da Silva. Sobre diferença sem separabilidade. Catálogo da 32ª Bienal de São Paulo (2016)
12 Audre Lorde.
Leo DCO
Artista do graffiti
Onde estão os novos espaços de resistência? Quais e como se dão as novas formas de resistência e de luta? Essas são perguntas que, continuamente, interpelam o corpo e a imaginação de ativistas (esses seres da ação e da insistência), que sempre se impõem a tarefa de encontrar alternativas, táticas, abordagens e modos de viver mais capazes de realizar as transformações que tanto pretendem e que dão sentido à sua existência. Essas são as inquietações permanentes que animam o devir-ativista – e que atravessam a luta concreta de gente tão diversa como Amália Garcez, Carlos Augusto Ramos, Léo DCO, Sarah Marques e Tipuici Manoki, cujos depoimentos compõem as páginas seguintes, e Luciana Ferreira, em comentário-síntese ao fim desta seção.
Amália Garcez
Ativista do Fridays for Future
Onde estão os novos espaços de resistência? Quais e como se dão as novas formas de resistência e de luta? Essas são perguntas que, continuamente, interpelam o corpo e a imaginação de ativistas (esses seres da ação e da insistência), que sempre se impõem a tarefa de encontrar alternativas, táticas, abordagens e modos de viver mais capazes de realizar as transformações que tanto pretendem e que dão sentido à sua existência. Essas são as inquietações permanentes que animam o devir-ativista – e que atravessam a luta concreta de gente tão diversa como Amália Garcez, Carlos Augusto Ramos, Léo DCO, Sarah Marques e Tipuici Manoki, cujos depoimentos compõem as páginas seguintes, e Luciana Ferreira, em comentário-síntese ao fim desta seção.

SOBRE A GURIA
Sou Amália, nasci em 2003, sou de Porto Alegre (RS). Já morei no interior do Rio Grande do Sul, na capital, no Canadá e agora estou na Finlândia; primeiro, pelo trabalho dos meus pais e agora, por intercâmbio. Sou interessada em cultura, mas a causa ambiental me preocupa muito. Tive de escrever um artigo para a escola sobre experimentação animal e isso me levou de alguma forma ao vegetarianismo e, consequentemente, às mudanças climáticas. Já são quatro anos vegetariana, e neste período minha pesquisa só aumentou. Sempre ligada e vendo os protestos na Europa, eu me perguntava: por que ninguém faz isso no Brasil? Então uma amiga intercambista na minha escola me provocou a fazer alguma coisa, mergulhei na internet para saber do Fridays for Future (FFF)(1), da Greta Thunberg, e toda essa movimentação da juventude. Gosto de dançar, mas estava com o pé machucado, o que me deixou com uma semana inteira livre, então fui a um protesto na minha cidade e nunca mais parei. Entrei para o Fridays, conheci a menina que estava organizando os protestos e viramos uma dupla. O que fazer? Como chamar mais gente? Como convidar estudantes nas escolas? Assumimos uma espécie de coordenação dos protestos em Porto Alegre, toda sexta-feira estávamos na frente da Assembleia Legislativa. Todas as semanas estávamos lá… Assim começou minha história de ativismo. Fora isso, sou uma guria adolescente, faço coisas típicas de adolescentes, leio, vejo TV, frequento a escola, gosto de estudar. Com a pandemia, nossas ações acontecem no ambiente virtual. Postamos fotos e cartazes, textos para contextualizar nossa ação. No tempo do isolamento e com a superconexão, minhas ações se intensificaram principalmente para fora de Porto Alegre. Durante a pandemia eu desenvolvi com amigos ativistas um trabalho com o SOS Amazônia: arrecadamos mais de 900 mil reais (2) para os povos indígenas e projetos na Amazônia. Na Finlândia, eu desacelerei. Meu ritmo estava muito pesado, eram muitas ações no Brasil, e na Finlândia a vida exige outras posturas e outros comportamentos. Se, por um lado, a Finlândia já entendeu que as mudanças climáticas são reais, por outro lado, as pessoas daqui querem muito saber da Amazônia. Faz apenas um mês que estou aqui e, na medida em que vou me instalando melhor, também vou ampliando minha participação. Tenho apresentações marcadas para falar sobre o que está acontecendo na Amazônia.
SOBRE A CAMPANHA
No Brasil, o FFF Brasil tem um grupo geral com reuniões regulares. Vimos autoridades e lideranças da Amazônia mostrando as consequências da pandemia, especialmente nas comunidades indígenas sempre tão ameaçadas. Então o prefeito de Manaus fez um pedido de ajuda para a Greta. Nós, do FFF Brasil, apresentamos os detalhes da situação a ela e fizemos um vídeo pedindo ajuda aos líderes globais: “Por favor, ajudem as pessoas que estão protegendo uma biodiversidade imensa. É nossa responsabilidade, mas também é responsabilidade das lideranças globais assegurar proteção aos ativistas na Amazônia”. Inicialmente as lideranças não se manifestaram, mas muita gente ofereceu ajuda diretamente para nós. Decidimos fazer uma coisa nossa, jovem, e foi uma novidade porque corremos atrás de uma organização para fazer as ações, para viabilizar as entregas e tal. Fizemos contato com a FAS – Fundação Amazônia Sustentável (3), que prontamente topou, fizemos contato com a Weligth (4) de financiamento coletivo (nós somos um movimento social, não temos a formalidade jurídica). Papo vai, papo vem, a campanha aconteceu. Decidimos as comunidades que seriam beneficiadas, decidimos que as cestas básicas fossem adaptadas para as respectivas comunidades, obedecendo os hábitos alimentares e as necessidades de cada uma. Tem cara de ativismo ambiental porque ajudamos com energia solar e coisas assim, não ficando restrito a uma cesta básica. Nós ampliamos para energia e wi-fi numa tentativa de garantir às comunidades o acesso à telemedicina, contribuindo com o isolamento social e evitando que as pessoas das comunidades saiam ou que médicos cheguem às comunidades. Primeiro, porque demora muito mas também pelo risco de contaminação com covid-19. Estamos felizes por ajudar as pessoas que cuidam da biodiversidade, essas pessoas são muito importantes para o meio ambiente, para a nossa luta. A gente precisa delas. A campanha segue. Para quem quiser doar: <sosamazonia.fund>. Estou feliz com a campanha porque ela vai muito bem. Tudo que arrecadamos até agora (exceto a doação da Greta) foram doações individuais de pessoas que confiaram no Fridays for Future e quiseram ajudar. Isso é muito importante. Ver as fotos das entregas das cestas básicas é tipo: “gente… nós ajudamos, tem um pouquinho de mim nisso”. Veja: justiça climática é justiça social! Não dá para focar apenas nas mudanças climáticas, no meio ambiente, sem pensar nas áreas mais afetadas e, sobretudo, nas pessoas mais afetadas. Enfim, não se faz justiça climática sem justiça social, e penso que esta campanha também contribui com isso.
FRIDAYS: OS DESAFIOS DE SER JOVEM ATIVISTA NA ATUALIDADE
Ser jovem hoje é muito difícil. Num mundo ideal nós estaríamos nos preocupando com escola apenas, mas percebemos que nosso futuro corre risco, o mundo está acabando diante de nós e isso vai afetar a todos. Temos que lutar! O desafio é conseguir que as pessoas estejam conscientes disso, seja adultos ou jovens, que saibam que podem agir, que devem agir. O movimento ainda é um pouco elitizado; eu mesmo sou privilegiada, tenho tempo, tenho recursos para fazer pesquisa, para saber o que está acontecendo com o mundo, mas a maioria dos jovens não reúne essas condições e isso é um problema. Não podemos ser um movimento de elites. No Brasil, o pessoal está criando o Favelas pelo Clima que é muito legal, muito importante. Esses desafios estão aí. Inclusive com as pessoas que sabem o que é aquecimento global, que sabem o que está acontecendo mas não querem agir, não veem importância. Mais até que os negacionistas, essas pessoas são difíceis (acho). Ao mesmo tempo, percebo o nosso crescimento. Ainda vamos incomodar muita gente porque não vamos parar, não vamos nos silenciar. Não vejo cansaço no nosso movimento, pelo contrário, vejo a força, o vigor do movimento que vem da preocupação com tudo isso. Temos muito a fazer ainda.
NOVOS ESPAÇOS E NOVAS FORMAS DE RESISTÊNCIA
O que eu mais tenho visto é perceber a interseccionalidade das lutas. Acho que está presente um novo tipo de luta. Nós, por exemplo, vemos justiça climática articulada com justiça social e justiça social tem feminismos, tem a luta antifascista, tem a luta LGBTQI+, todas as lutas estão interligadas se queremos um mundo justo. Me parece que as lutas estão se aproximando cada vez mais, e as linhas que separam as lutas estão desaparecendo. Não dá para lutar isolado, não dá para falar de meio ambiente sem considerar as pessoas que serão afetadas porque estão em situação mais vulnerável. Não dá para falar de feminismos desconsiderando que tem mulheres ainda mais afetadas pelo machismo e pelo racismo. Eu, por exemplo, não posso dizer que seja a mulher mais afetada pela injustiça social, mas preciso lutar em favor das mulheres que são. Essa aproximação dos movimentos é muito poderosa, isso vai mexer com muita coisa, porque a gente não tem mais os protestos de meio ambiente apenas com ambientalistas. As pessoas vão para as ações e carregam as suas causas. É como se tudo estivesse compondo na luta pela vida.
Eu gostaria muito de ter espaços na política brasileira para discutir as coisas sem uma polêmica desnecessária e agressiva. Acho que a gente vai conquistar isso porque estamos aumentando nossos espaços de influência política. Estamos conquistando espaços desde a casa, com a ampliação do diálogo na família, nas escolas e outros espaços também. O mundo é nosso agora para discutir e, se tudo der certo, para salvar o que está ruim.
SOBRE A CAUSA ANIMAL
Penso que, idealmente, todo mundo possa ser vegano. Eu optei pelo vegetarianismo quando descobri que, para a indústria alimentícia, um animal deixou de ser um animal e passou a ser um objeto, um produto. Isso não é sustentável nem para o animal nem para o planeta, além do sofrimento desse ser vivo animal. Cada vez mais gente percebe essa lógica nefasta, o que tem provocado uma consciência do que estamos consumindo. O simples fato de reduzir o consumo de carne animal já é uma grande contribuição. Eu sei que não é tão acessível, eu sei que demanda tempo para planejar, para cozinhar, tempo e dinheiro, mas quem pode fazer esses cortes, e tem consciência disso pode agir. Agir é mudar a relação com o consumo de carne animal. Bá, o mundo está meio que acabando e a gente precisa fazer alguma coisa.
TUDO SE RELACIONA NO ATIVISMO AMBIENTAL
Eu quero muito ir para Amazônia, quero conhecer os lugares que ‘conheci’ nas conversas com a FAS. Eu gostaria muito de conhecer as pessoas com quem trabalhei para viabilizar a campanha e, sobretudo, as comunidades que foram atendidas. Essa campanha me fez aprender muita coisa sobre a Amazônia. Mas devo dizer que nunca fui para a Amazônia, nenhum dos meus colegas do ativismo no Sul foram para lá. Historicamente, o Sul fez muito ativismo ambiental. Me parece que a luta climática e ambiental no Sul foi mais interna, mais focada no desmatamento, questões mais pontuais, mas a gente começou a olhar para a Mata Atlântica… Acho que agora está se ligando, tem a interseccionalidade, não vemos mais separado em ‘a Amazônia’, ‘o Pantanal’, ‘o Cerrado’, vejo as partes e as relações porque uma coisa tem impacto na outra. É isso que eu tenho sentido e por isso tenho feito meu ativismo, porque as lutas estão juntas independentemente das pessoas estarem distantes. Apesar da distância, estamos todas vinculadas nos ideais e nas lutas. O diálogo proporciona isso e, neste aspecto, as redes sociais ajudam. Mas eu adoraria tomar um banho no rio Negro. É necessário lutar do jeito que for possível, mas é claro que eu quero muito sentir esses lugares, tomar banho de rio para sentir com o corpo tudo o que já me encanta ao estudar, ao pesquisar, ao conversar com ativistas queridas que venho conhecendo.
Notas:
1 https://www.fridaysforfuturebrasil.org/
2 Exatamente R$ 926.322,24 (1733 doadores) conforme o site da campanha em 5/nov/2020.
3 https://fas-amazonas.org/
4 https://welight.co/
Carlos Augusto Ramos
Engenheiro florestal do Estuário do Rio Amazonas
Onde estão os novos espaços de resistência? Quais e como se dão as novas formas de resistência e de luta? Essas são perguntas que, continuamente, interpelam o corpo e a imaginação de ativistas (esses seres da ação e da insistência), que sempre se impõem a tarefa de encontrar alternativas, táticas, abordagens e modos de viver mais capazes de realizar as transformações que tanto pretendem e que dão sentido à sua existência. Essas são as inquietações permanentes que animam o devir-ativista – e que atravessam a luta concreta de gente tão diversa como Amália Garcez, Carlos Augusto Ramos, Léo DCO, Sarah Marques e Tipuici Manoki, cujos depoimentos compõem as páginas seguintes, e Luciana Ferreira, em comentário-síntese ao fim desta seção.

TRAJETÓRIA
Sou engenheiro florestal, nascido em Portel, na mesorregião do Marajó, registrado em Belém (PA), mas criado nas matas do Jari, divisa entre o Pará e o Amapá. Juntando todas essas regiões, posso dizer que sou do Estuário do Rio Amazonas. Isso diz muito da minha ideia de floresta. Portel ainda é um dos municípios mais madeireiros da Amazônia. Belém tem a relação urbana e periurbana; e o Jari, o maior plantio de eucalipto da região Norte. Ou seja, estão presentes a floresta, a anti-floresta (digamos assim, porque um plantio de eucalipto é uma floresta artificial) e, também, pela minha infância viajando para Breves, o extrativismo do ribeiro e da ribeira, que é a origem da minha mãe. Desde criança trago a visão do que é a floresta e suas contradições.
TEIMOSIA
Ontem eu recebi a notícia de que minha dissertação de mestrado está finalmente na biblioteca da UFRA (Universidade Federal Rural da Amazônia), onde devia ter estado há 20 anos. Fiz o mestrado em 2000, fui aprovado, mas, pela minha teimosia, eu me neguei a entregar um artigo. Eu me matei para fazer a dissertação e não admitia que um artigo me impedisse de ter o título. Eu teimei, e essa teimosia se arrastou por anos e anos. Foi polêmica minha defesa: enquanto um professor me deu nota 10, outro queria me reprovar “porque eu enfrentei a banca” (a fala da época). A discussão durou mais de duas horas e foi tumultuada. Gerou um certo trauma em mim. Sentia que o próprio sistema acadêmico nos oprimia. Enquanto isso eu vivia a minha vida de ativista: fui trabalhar na organização não-governamental FASE, no Marajó, sem usar jamais o termo “mestre”, porque eu não me julgava merecedor se eu não tivesse o diploma. Em 2018, minha filha, minha esposa e amigos me convenceram de enviar o artigo: “envie, porque você vai poder ajudar a formar pessoas dentro da academia” – e isso bateu num ponto fraco meu, a juventude amazônida. Estou recebendo finalmente o diploma. Mas foi uma batalha pela minha ideia de educação popular da floresta e não de educação da academia. Uma coisa não impedia a outra, eu sei. Mas eu não queria ter aquelas amarras, eu queria sair a campo e fazer o que eu fiz. Hoje estou tranquilo para escrever artigos com base na minha vivência, com a minha visão de mundo, pronto a repassar o que eu vi e os ciclos que eu já vivenciei.
BALIZAS
A pesquisadora Ana Euler e eu escrevemos um artigo sobre o resultado de uma das etapas do projeto Bem Diverso, executado pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O resultado foi uma análise do uso da terra, do uso da floresta, em 35 anos de luta no município de Afuá, um dos 16 municípios do Marajó – o que me ajuda muito a pensar sobre onde estão os novos espaços e as novas formas de resistência. Vou dar esse exemplo porque vai nos ajudar a raciocinar. Em 1984, cria-se o Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Afuá. O lema era lutar pela terra. Havia muita gente expulsa, muita ameaça dos coronéis. O pessoal se juntou e fez um trabalho de base muito bom. Neste artigo – “A quarta baliza do agroextrativismo”—, definimos na linha do tempo que o primeiro marco ou a primeira baliza no caso de Afuá seria a criação do sindicato e o assassinato de uma liderança chamada Bira, triste evento que mobilizou e organizou as pessoas para a criação da entidade. Em 2007, nós identificamos a segunda baliza: a criação dos assentamentos agroextrativistas de Afuá, uma permanência daquela luta que começou em 1984 e que teve fundamentais lideranças para esse resultado como Erivelton Miranda – que nos deixou recentemente –, Manoel de Nazaré, Maria Oleide, Manoel Maria, Zé Maria, Dona Verônica, José Amorim, Vitoriano, Vanda e muitas outras. Eu entro nessa história em 2000, com muita luta, muita mobilização, muita sensibilização dos profissionais do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) à época.
“MONSTROS!”
A terceira baliza é 2019. É o momento da supremacia do agroextrativismo. Até então, porque eu costumo verificar os números do ordenamento territorial no Marajó, eu não tinha certeza de quanto era a reforma agrária que havia sido conquistada em Afuá. Não havia tecnologia. Afuá tem uma baía no meio, mas eu não sabia o quanto de água tinha o município. Foi quando surge o MapBiomas (1), plataforma de mapeamento dos recursos naturais no Brasil, que mostra também os corpos hídricos. Cerca de 30% do município é água, o restante é área habitável. Então fomos para a soma da reforma agrária: 95% das áreas habitadas de Afuá são assentamentos agroextrativistas! Foi um espanto. Apresentamos a descoberta para Afuá. Tenho muita vontade de falar sobre isso e até hoje me surpreendo. A juventude então olhou para o pessoal de 70 anos, que fez a luta em 1984, e disse: “Vocês foram monstros! Você são lenda!”. Agora temos os números dessa lenda. Você veja outros municípios: Gurupá, com 91%, e São Sebastião da Boa Vista, com 96% de assentamentos agroextrativistas.
Só que havia outra questão que a gente precisava responder, pergunta que eu me fazia quando andava por lá e via o pessoal ter placa solar nas casas, ter internet, ter não uma simples canoa, mas uma rabeta, uma voadeira, uma casa digna, casas aliás muito melhores do que casas de Belém. O que aconteceu? Nós fizemos um diagnóstico numa ilha chamada Ilha do Meio. Entrevistamos 30% dos moradores, dentre 470 famílias, e vimos uma situação que confirma uma frase de um amigo, Jorge Pinto: “Afuá e Gurupá conseguiram domar o capitalismo”. Mas era uma impressão dele, ele não tinha números. Nós chegamos à conclusão que a renda per capita proveniente do açaí nessa ilha por mês era de 446 reais. Isso é bom ou ruim? Comparamos com o investimento federal por habitante em Afuá, que era de 135 reais/mês. O açaí colocava três vezes mais. Jorge Pinto estava certo. Ao contrário de Portel e Melgaço, em que a situação é paupérrima, em Afuá as pessoas passaram a ter uma situação de dignidade, digamos assim, mesmo com todas as carências em políticas públicas. Enquanto isso, naquelas cidades, Portel e Melgaço, a atividade madeireira expropria o recurso natural, ela realmente é predatória – e quando o recurso é das famílias, da comunidade, quando ele é mais horizontal, você vê a circulação da riqueza mais presente entre as pessoas. Isso me faz lembrar da quarta baliza: o limiar do Bem-Viver. Ou seja, a capacidade dos direitos territoriais e de uso da terra de trazer junto os direitos universais que nos são tirados, por exemplo, educação, saúde, saneamento básico. Se você pega o orçamento geral da União, há 0,02% do investimento do Brasil em saneamento básico, um absurdo – e você observa o pessoal tendo, com a riqueza do açaí, a possibilidade de tentar diminuir esse atraso num item essencial da vida. Mas é um processo de 35 anos de luta de um município inteiro em sua zona rural. É importante você trabalhar com a comunidade e ela perceber que dá para pegar o recurso do açaí e aplicar em tecnologia de comunicação, em internet, no banheiro, na ponte da escola, na alimentação básica para o aluno merendar e poder se transformar em cidadão etc. Hoje o Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais continua forte e mantém uma estrutura de 90 delegados sindicais (que deveria existir em todo sindicato, mas da qual muitos abrem mão) atuando em Afuá. São 90 lideranças que circulam pelo município e discutem políticas públicas pelo sindicato. Geralmente essa ideia de colegiado se perde nos municípios, ainda mais em comunidades tradicionais. Quem faz isso de ir a todos os cantos é a igreja, a educação, mas organização social é muito raro. Os delegados andando pelo município, se informando, fazendo os esclarecimentos, metodologicamente, fazem toda a diferença: não deixa, por exemplo, que pastores neopentecostais e suas muitas atitudes que distorcem até mesmo a Bíblia ganhem força, pois o sindicato está ali presente para fazer o contraponto. Já em Portel, os pastores de má fé ganharam muita força e a situação é mais complicada de enfrentar. Gurupá e Afuá conseguiram fazer bem seu dever de casa.
SOBERANIA
Isso faz pensar nos novos espaços. Um novo espaço é o da juventude conectada – mas com soberania de comunicação (do mesmo modo como falamos, para além da “segurança” alimentar, de soberania alimentar). É você trazer as pessoas, para elas não serem mais invisíveis, para elas poderem falar o que elas pensam e da sua vida, mas, como diz o Chico Science, com “a antena fincada na lama” (2). A juventude florestal cada vez mais vai tomar consciência disso. Como sou uma pessoa de meia-idade – não estou na casa dos 60 nem na casa dos vinte-e-poucos –, minha posição é de transição, meu lugar de fala é da transição de gerações. E eu preciso pensar em como ajudar a nova geração a ter esse espaço comunicacional. Como esse espaço pode evitar, por exemplo, a venda de crédito de carbono sem o conhecimento das comunidades? Isso está acontecendo em Breves (tem até uma ação na Justiça) e em Portel: a comunidade da Gleba Jonas Peres 2 já se rebelou contra aqueles que foram fazer Cadastro Ambiental Rural (CAR) para doar terra, sendo que já moram no assentamento, e depois se descobriu que era para especular em cima de crédito de carbono, sobre as cotas de reserva ambiental. Se essas pessoas não têm internet e comunicação como direito, elas vão ficar às cegas, elas não vão poder enxergar o que está acontecendo. O teste maior foi o próprio Cadastro Ambiental Rural, que considero que não foi uma política pública, mas uma política de desigualdade da regularidade ambiental: quem tinha internet e conhecimento, quem tinha grana, fez; quem não tinha, nem soube e hoje tem muita dificuldade de realizar seu registro. E mesmo que tenha sido feito de maneira institucional, como no caso dos assentamentos do Incra, que têm um CAR coletivo, há casos de gerentes de banco que não aceitam o CAR coletivo porque acham que precisa um CAR individual. Nós fizemos o Banco da Amazônia se posicionar, mas a prática dos gerentes das agências é de não aceitar, e isso divide a comunidade. Os novos espaços passam pela inclusão digital para que se possa explicar para a opinião pública o valor dos territórios dos povos da floresta. Uma amiga, adepta de Paulo Freire, questiona a tecnologia da educação à distância, pois afirma que as pessoas têm de estar próximas. Por outro lado, você não tem como evitar a comunicação online. Se a gente não fizer a ocupação desse espaço, prevalecerão aqueles que espalham fake news e novas formas de colonização. Os jovens precisam aprender como se posicionar. É uma versão 2.0 da “antena fincada na lama”. O Chico Science disse isso nos anos 1990; agora tem de criar um novo lema: “o wi-fi andando de rabeta”, para as pessoas poderem dizer “estou aqui, eu vivo do açaí, ele é um produto que alimenta”. Isso tem de chegar até em quem está na Europa, pois você não pode especular com o açaí, o açaí é alimento. Não posso transformar o açaí numa commoditie como o arroz. Neste período em que o arroz ficou caro, é o açaí nas comunidades que vale o rango junto com o peixe.
A VELHA ESPECULAÇÃO
É preciso também frisar sobre o termo “bioeconomia”, que já nasceu capenga, porque você tira o sufixo “sócio” e tem uma grande e proposital negligência de semântica. Temos de lembrar que houve uma ressonância positiva do sufixo “bio” na expressão sociobiodiversidade, que já é um tema gravado pelas populações tradicionais e pelas políticas públicas. O Brasil vinha avançando nos últimos 15 anos com o uso do termo sociobiodiversidade. Isso não pode ser jogado na lata do lixo porque apareceu uma “coisa nova”, que é a bioeconomia. As palavras têm força. Por exemplo, desenvolvimento sustentável: “Vamos fazer desenvolvimento sustentável e isso vai salvar o mundo!” – não salvou. Neste momento chegam para dizer que agora é bioeconomia. Mas a tal bioeconomia é o cara fazer o Cadastro Ambiental Rural e oferecer no mercado da Bolsa de Valores e a comunidade não ser escutada sobre o que está acontecendo? É necessário fazer um confronto de ideias até com gente que julga ser grande defensora da floresta. Eu estou na linha de pensar que a bioeconomia chegou sem ser convidada: fala de ativos, fala de mercado especulativo. É desconfortável. Eu olho o orçamento geral da União e vejo a dívida pública comida pelos bancos privados em 40%. O mercado especulativo se apossou do Brasil. Você então vem com uma proposta “revolucionária” em que o mercado especulativo tem o espaço para ele? Isso não é mudança.
Não mudou nada, apenas acelerou, porque hoje é tudo acelerado; como diz o Mário Sérgio Cortella, essa é uma situação simultânea, global e veloz. E as estruturas das nossas políticas públicas de cidadania ainda estão num nível de persistência, paciência e resistência. Há um descompasso. A gente precisa não passar pano mais nas coisas. A bioeconomia é uma espécie de negociação com o capitalismo, tipo “topa colocar aqui um bio?”. Não adianta enrolar mais, mudar nome mas não mudar a forma, e a espécie humana levar o planeta para a cucuia…
CONVERSA INTERGERACIONAL
Não é à toa que surgem uma Greta Thunberg, uma Alice Pataxó ou uma Bianca Barbosa — jovem quilombola marajoara —, uma nova geração, que num salto evolutivo, vem dizer: “Vocês estão enrolando; nós estamos em risco mesmo; nós vamos morrer.” Essa geração entre 14 e 20 anos já está alertando, com uma maturidade impressionante. Só que essa geração impressionante que vem para os novos espaços precisa entender alguns conceitos e princípios que, por causa de sua tenra idade, não passaram pela experiência. Daí a importância da nossa geração de transição, de dar a mão para essa geração, mais forte, com mais vontade e mais atitude pública, para ajudá-la a entender como algumas coisas acontecem, porque também nós somos repassadores da história viva. Se eles aceitarem escutar a gente, vamos ter muita chance de reverter a destruição. A gente fala muito de luta de classes, mas a gente deveria olhar mais para os aspectos geracionais também. Um novo espaço diz muito sobre: eu quero ser veloz, mas quero estar incluído; eu quero ser simultâneo, mas quero estar incluído; eu quero ser global, mas quero estar incluído.
REDE DO AÇAÍ
Outro dia estava pensando na precariedade da uberização: o entregador está levando comida e está com fome. Ao contrário, aqui em casa, eu peço açaí pelo Whatsapp ou pelo aplicativo da lojinha do batedor de açaí, que tem seu próprio entregador. Você tem o circuito do açaí, que ainda é do povo, e ele precisa manter as relações próximas entre quem movimenta a economia. O Uber é um processo algoritmizado, no qual você não consegue ter relação com aquele que te contrata. Você vai reclamar para quem? Como você vai reivindicar o direito a EPI (equipamento de proteção individual) e a um adicional de periculosidade, se tudo está na nuvem? No caso do açaí, a relação entre o entregador e o batedor de açaí ainda é humana, digamos assim, e eu espero que isso não mude. Faço inclusive a defesa de que há alternativas de usar tecnologia e manter as relações. Assim: quem está na floresta manda um whatsapp para quem está no barco; quem está no barco pega o açaí e manda uma mensagem para quem está no porto; quem está no porto manda para o batedor; aí o batedor bate o açaí e manda mensagem para o entregador. Eu fiz o pedido ao batedor para o entregador trazer. Ou seja, apesar da tecnologia, eu mantive a relação humana do processo, uma situação em que ainda se pode reivindicar um melhor açaí para o batedor; em que o entregador pode reivindicar que lhe paguem melhor salário; o batedor pode reivindicar que diminua o custo do transporte desse atravessador; que se pode reivindicar que quem está na floresta possa manejar a floresta; e quem maneja a floresta pode reivindicar que não seja arrebentado por um preço ruim do atravessador. A cadeia do açaí ensina muito para a gente. As relações humanas precisam ser mantidas. É uma forma de resistência. O Papa Francisco diz que a gente não pode ser serva do dinheiro, o dinheiro tem de trabalhar para a gente. O algoritmo não pode ser nosso patrão, ele deve ser utilizado como ferramenta.
PRESTAR ATENÇÃO
Uma coisa que o pessoal do estuário faz muito é escutar rádio. Prestar atenção no que o outro está falando, se preparar para escutar, isso é uma cultura do rádio, muito presente na região do Marajó – que estimula sua mente a imaginar o outro falando, a imaginar as cenas, um exercício mental muito interessante. Um pacote de vídeo pronto deixa tudo mastigado, não precisa da sua imaginação. O áudio faz você montar desenhos e figuras na cabeça, prestar atenção. Uma coisa é eu falar que dá errado, mas a nova geração não quer “acreditar”, ela quer saber, ela quer experimentar. Como você comunica e cria as bases para, por exemplo, uma pessoa não pegar numa combóia, saber que se trata de uma cobra venenosa? Isso vale para o enfrentamento aos fascistas, porque passamos anos dizendo que essa cobra venenosa matava e há gente que não acredita nisso. Há um problema comunicacional, de resposta política, de cidadania, para que as pessoas percebam também que há o que perder. Imagine: um fator responsável por tudo o que estamos passando é o fundamentalismo religioso. Muitas pessoas foram seduzidas por ele porque não estavam encontrando ou recebendo nada do Estado e da política brasileira. “Deus vai resolver”, dizem; pensam a prosperidade a partir de Deus. A gente precisa profundamente analisar onde falhamos nesse quesito. O fundamentalismo foi avançando, avançando, e é a mesma coisa que esse presidente, que se sente impune, faz, cuja tendência é só radicalizar. Tudo isso até o momento em que tudo pode virar uma grande carnificina. Essa é a situação perigosa. Como o Brasil é muito grande, diz aquela frase de Conceição Evaristo: “é tempo de aquilombar-se”. Eu acredito que é possível que as comunidades amazônicas e os espaços dos quais faço parte, ativistas, socioambientalistas, possam se perceber assim. Precisamos nos proteger, fazer o debate coletivo (porque não se sabe mais o que é público e o que é privado, mas precisamos realmente entender o que é o coletivo). O coletivo é uma saída para a gente tentar resistir, proteger os fundamentos que ainda geram dignidade.
Notas:
2 Uma antena parabólica enfiada na lama é uma das imagens-símbolo do movimento cultural e musical Manguebeat, surgido em Pernambuco nos anos 1990, que combinava ritmos regionais tradicionais, como o maracatu e o coco, ao rock, hip hop e música eletrônica, com forte viés crítico à desigualdade brasileira. Chico Science, morto em 1997, foi o principal nome do movimento, junto da banda Nação Zumbi. Também integrantes do manguebeat: Mundo Livre S/A, Mestre Ambrósio, Sheik Tosado, entre outras.
Sarah Marques
Liderança comunitária
Onde estão os novos espaços de resistência? Quais e como se dão as novas formas de resistência e de luta? Essas são perguntas que, continuamente, interpelam o corpo e a imaginação de ativistas (esses seres da ação e da insistência), que sempre se impõem a tarefa de encontrar alternativas, táticas, abordagens e modos de viver mais capazes de realizar as transformações que tanto pretendem e que dão sentido à sua existência. Essas são as inquietações permanentes que animam o devir-ativista – e que atravessam a luta concreta de gente tão diversa como Amália Garcez, Carlos Augusto Ramos, Léo DCO, Sarah Marques e Tipuici Manoki, cujos depoimentos compõem as páginas seguintes, e Luciana Ferreira, em comentário-síntese ao fim desta seção.

Eu tenho 39 anos, sou mulher negra, mãe solo de Rafael e Juliana, gêmeos adolescentes. Sou nascida e criada em Caranguejo Tabaiares. Meus pais se conheceram e se casaram aqui, tiveram dois filhos, eu e meu irmão, Sócrates. Meu pai foi liderança comunitária, assim como toda minha família. Meu tio participou da construção da sede da União de Moradores e meu pai foi se envolvendo. Fomos criados nesse meio de trabalho pela comunidade.
Desde os meus 11 anos de idade eu já me reunia com mulheres e crianças da comunidade na Associação de Moradores. Lembro-me bem das filhas e netas de Seu Arlindo e das festas que fazíamos: Dia das Crianças, Dia das Mães, São João. Quando eu tinha 14 anos, a Etapas (ONG contratada pelo Sebrae) chegou aqui na comunidade para fazer uma pesquisa com o objetivo de levantar os problemas enfrentados pela comunidade. Eles queriam ouvir as donas de casa, as mulheres e homens desempregados, mas muitas de nós, jovens da comunidade na época, também nos envolvemos e participamos dessa pesquisa. Foi aí que me aproximei do trabalho com ONGs e, então, fui crescendo nesse meio.
A MINHA COMUNIDADE
Eu acredito no fazer político e no trabalho comunitário, que aprendi trabalhando em ONGs, em gestões municipais e quando fui filiada em partido político. Eu refleti e resgatei minhas memórias e minha história e me lembro do meu pai no final de semana jogando futebol (o futebol está diretamente ligado às origens da comunidade e à criação de sentido coletivo e de união), minha mãe preparando comida para os eventos da comunidade, e isso foi me levando a compreender o que significa defender esse território e a acreditar de verdade. Todo esse povo de fora, do capital, do dinheiro, fica tentando fazer com que nós acreditemos que viver bem é sinônimo de sair das comunidades.
Aqui, quando se é pequena, se brinca na lama. Mas quando você cresce, vai pra uma entrevista de emprego, vai para a escola (que geralmente não é no seu bairro quando você mora numa comunidade), essa mesma lama que você gostava de brincar é a lama, quando você chega nesses lugares, sobre o que as pessoas falam: “Chegou o cheiro de lama! É fulana que mora em Caranguejo!” Isso começa a mexer com você. Eu, por exemplo, moro na margem do canal. Hoje sei e entendo que é um dos canais mais importantes da cidade, que deságua no Rio Capibaribe, que traz toda a drenagem da água, impedindo o alagamento e salvando a cidade que fica abaixo do nível do mar. Quando esse canal chega aqui dentro da comunidade, essa água já está suja — e o poder público permite isso, faz isso, para que nós tenhamos vergonha e medo. Esse poder do capital, o poder do governo, que deveria estar defendendo a gente, prefere retirar as famílias que moram às margens desse canal. Dessas compreensões é que me vejo não apenas como uma liderança comunitária, mas também como uma defensora do território — porque um dia eu já tive muita vergonha de dizer que morava aqui, mas hoje não tenho mais.
A FORMAÇÃO DA LUTA
Esse é o despertar de uma defensora de território, de uma defensora de histórias: a minha história; a história de Dona Maria, de Norma, minha mãe, de Siraquitan, meu pai, que foi liderança; as histórias de mulheres que aterraram esse chão, como Dona Gilda, que sustentou seus filhos, construiu com as próprias mãos casas pra eles aqui na comunidade; as histórias que vão tecendo essa rede de gente que se conhece, que se cuida. Quando me descubro defensora, me descubro defendendo inclusive isso, não apenas o canal sujo. Muitas vezes somos atacadas, com acusações de que queremos continuar perto de um canal sujo, de uma comunidade suja, sem saúde… Porque aqui temos um único posto de saúde para quase cinco mil pessoas, uma única dentista para quase cinco mil pessoas… Mas isso não é porque somos pobres, isso é porque o governo não investe em nós; não investe porque quer que a gente sinta vergonha, porque não quer que gente de pele preta, com essa cara que eu tenho e todos daqui têm (caras bem parecidas, aliás), tenham acesso a um território que, por exemplo, vale 6 mil reais o metro quadrado e que, quando a prefeitura vem querendo comprar, paga cento e poucos reais o metro construído. No momento em que se atina pra isso, quando a gente se descobre fazendo parte dessa comunidade, a gente consegue trazer mais gente pra luta, formar mais gente pra luta. Nos formamos na luta e formamos muita gente, juntos.
PODER
Essa ideia de novos espaços de resistência é algo que sempre passa pela minha cabeça. Onde estão as novas formas de resistência? Penso que podem até haver novas formas, mas não lugares novos. Sempre digo que quando nascemos mulheres pretas, faveladas, não temos escolha: ou lutamos ou morremos. Esse lugar está posto pra nós, sempre esteve, o lugar de luta. Agora, o que nasce em nós, o que aparece, o que desperta em nós é a compreensão sobre a defesa do território, de nossa história quando começamos a entendê-la. Para aquelas que conseguem, esse despertar aparece também no momento em que nos sentimos livres.
Parece contraditório defender um território e ser livre, mas estou falando da liberdade de não ter amarras políticas, falo da liberdade de poder escolher quem te representa de verdade.
Eu acredito que o poder público dá a nós formas e ferramentas para executar algumas coisas, mas, se não tivermos representatividade nos Poderes, não conseguimos executar nada. Mas, quando me vi livre, sendo apoiada, quando comecei a estudar a minha história de verdade, tudo o que eu vivi dentro dessa comunidade; quando olho para como era a vida dos meus pais, que dividiam até as tábuas pra fazer os barracos, a areia, as telhas, para que todo mundo pudesse ter sua casa; pensei em outro tipo de poder. Falo sobre conhecer outros espaços de poder que podem nos apoiar, que não estão atrelados às politicagens concentradas nas mãos dos políticos.
COLETIVO CARANGUEJO TABAIARES, RESISTE!
Em 2018, formamos o Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste, em resposta a uma comissão montada no Ministério Público com as nossas denúncias. A ideia do Coletivo era trazer para a comunidade os debates que estavam acontecendo lá dentro do Ministério, já que apenas o representante poderia participar. O poder público, em princípio, não queria aceitar que eu fosse a representante da comunidade nessa comissão, porque eu não tinha sido votada e não estava em nenhum grupo formalizado, mas foram as próprias pessoas daqui que escolheram e disseram que queriam que eu participasse. Então criamos o Coletivo e, ai, eu participei da comissão, e ainda fizemos os cine-debates na comunidade, levando de rua em rua o debate político e social, a luta comunitária, as histórias das pessoas que defendem seus territórios, as vozes da comunidade, a educação e a prática política com muitas formações, apoiados por várias organizações.
Daí surgiu o Brega Protesto e o curso de audiovisual. Trouxemos pra comunidade o debate sobre esse tema: Quais são as formas de luta? Onde estão essas novas formas? Apesar de estarmos no mesmo lugar, conseguimos ter acesso a algumas formas que meu pai e minha mãe não tiveram, como, por exemplo, as mídias digitais e o audiovisual, e isso nos ajudou muito. As pessoas da minha geração, quando iam procurar emprego, tinham vergonha de dar o CEP de Caranguejo, porque, quando dizíamos que morávamos em Caranguejo, principalmente quem morava mais para dentro da comunidade, as vagas de emprego eram negadas. Diziam que cheirávamos a lama, que era um lugar que enchia de água no tempo de chuva e que íamos faltar ao trabalho por causa disso, que era um lugar de pessoas que não eram boas.
Quando os jovens de Caranguejo fizeram o Brega Protesto, nós vimos que isso estava se transformando. Os jovens de hoje não tem essa vergonha e defendem seu território. Na letra do brega eles dizem: “Sou do Caranguejo! Prazer! Satisfação! Esse é meu lugar, daqui não saio não!” Isso é muito forte, mudamos a cara de Caranguejo Tabaiares para o mundo. Hoje temos muita gente que quer defender o território, que fala sobre isso. Que fala sobre sua comunidade com dignidade, quando fala em Caranguejo, fala em Caranguejo Tabaiares Resiste, fala nome e sobrenome da sua comunidade.
PANDEMIA
Quando nos vimos no meio da pandemia de Covid-19 e do lockdown, já sabíamos que o Caranguejo passaria por enormes dificuldades. Aqui, a maioria das famílias é chefiada por mulheres, mulheres negras, que trabalham de maneira informal. Muita gente vive vendendo coisas no semáforo, fazendo faxina, preparando a alimentação em restaurantes que seguiram atendendo por delivery. Mas seguiram porque as cozinheiras continuaram saindo de suas casas e a trabalhar na rua, com todo o perigo de se contaminar. Quando vimos que a primeira vitima fatal do vírus foi uma empregada doméstica de 65 anos, a gente se viu representada ali, e digo vimos porque o Coletivo conversa muito sobre isso.
O Coletivo não nasceu para distribuir cestas básicas, nasceu para fazer discussões sobre políticas públicas. Mas entendemos que estarmos alimentados, sobretudo nesse momento, é fazer política pública local; então ajudamos a alimentar nosso povo. Fizemos várias campanhas e arrecadamos muitas coisas, tivemos o envolvimento de muitas pessoas, mais de 200 lives, com cantores famosos, professores universitários, pessoas de fora do Brasil, que ajudaram nas mobilizações e doações. Com isso, também aumentamos nossas redes internas e descobrimos muitas outras mulheres defensoras de territórios aqui na região, e assim nossa rede foi aumentando. Mas não foi fácil, porque o governo trabalha com a estratégia da divisão, da desunião, pra nos enfraquecer. Ainda assim, conseguimos nos unir para nos mantermos vivos e vivas, sempre solidários, redescobrindo sempre como nosso trabalho é importante.
Imagina se hoje, nesse contexto, nós não tivéssemos lutado por esses tetos, se não tivéssemos resistido? Várias famílias estão reocupando as suas casas aqui, casas que haviam sido desocupadas pela prefeitura, pessoas que estão desempregadas e que, sem pagar aluguel, conseguem sobreviver do que arrecadam nos semáforos. Foi dessa maneira que conseguimos mostrar para o mundo nossa luta.
LUTA NA COMUNIDADE
Antes da pandemia fizemos eventos enormes aqui, como o Festival Terra Prometida. Esse nome vem do fato de que nessa terra deveria ser construído um conjunto habitacional. Quando fizemos o evento, foi para mostrar que esse lugar ainda existe, está aqui, a promessa não cumprida também, e não vamos abrir mão dela. Com isso, essa mulher negra aqui, que para muita gente não tem o valor estético, que tem essa imagem que muitas pessoas não querem ver falando, discutindo, defendendo seus direitos, que foi evoluindo junto com a comunidade e hoje está ocupando diversos espaços, não vai parar e nem essa comunidade vai parar. Queremos mostrar para o Brasil que Recife foi o primeiro lugar a ter Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social) (1) e não pode ser o primeiro a destruí-las, ainda que agora tenha sido votada uma lei que pretende fazer isso (2). Quando se acaba com as Zeis, todo mundo é afetado, e estamos na luta para mostrar para todos os bairros e comunidades que é muito importante a lei das Zeis e que quando estão mexendo com uma comunidade, estão mexendo com todas.
RELIGIOSIDADE E TRADIÇÃO
Somos uma comunidade centenária, pesqueira, festeira e bem religiosa, hoje com muita influência evangélica, mas temos na nossa tradição muitos padroeiros, como Nossa Senhora dos Remédios, que dá nome à nossa igreja matriz, e figuras religiosas que ajudaram essa comunidade a crescer, construir escola, posto de saúde. Temos também como padroeiro São José e Santo Antônio, por conta da Pesca de Santo Antônio. Também Cosme e Damião, porque, mesmo que a vida esteja muito dura, sempre mantemos a pipoca e o confeito no dia deles! Queremos passar isso para os nossos filhos, porque isso mostra que temos uma origem, uma história, somos uma rede, que todos nos conhecemos e nos ajudamos.
CORPO
O corpo de Sarah Marques hoje sabe que é todo resistência, e nem preciso dizer, pois quem vê uma mulher negra, gorda, à frente e com ações, se incomoda. As pessoas não estavam acostumadas com esse corpo na luta, com esse corpo sendo desejado, sendo bonito e sempre à frente de várias discussões. Então, o lugar que ocupa o corpo de Sarah Marques é lugar de resistência. Todos os dias acordar e ter que resistir a várias provocações e ameaças, mas, também, tendo a oportunidade de ver nos olhos da comunidade o brilho quando estamos juntos, nos ajudando, desde a sobrevivência em um momento como a pandemia, e que não se resume apenas a alimentação e álcool gel, mas colocando poesia e música na comunidade, pra lembrar as pessoas que temos de resistir para manter nossas casas. Esse corpo pulsa isso, quer e ama estar nessa luta, e o Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste está nisso, nesse corpo e essa resistência.
Quando digo o Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste é porque estou nele e ele em mim também. Hoje somos seis membros que estão mais à frente, conversando com a população, articulando as redes, mas o Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste é também toda a comunidade, mesmo aquelas pessoas que politicamente foram ou seguem sendo usadas contra a resistência, elas sabem do poder, da coragem e do efeito disso tudo. É essa junção que não vai deixar que os nossos direitos sejam retirados, não sem muita luta. Estamos resistindo e sempre chamando mais gente da comunidade pra estar à frente disso. Estamos sempre também pensando no cuidado, cuidado para que possamos seguir no nosso território, que foi aterrado pelos nossos avós, continuado pelos nossos pais, agora nós seguimos vivendo aqui e criando e cuidando das próximas gerações, que estão chegando. Nosso grande desejo é melhorar essas comunidades, ter o direito à liberdade, que é também o direito à moradia com saneamento básico e saúde pública. Se já era difícil em outros governos, porque de verdade nunca olharam para as nossas pautas, hoje, com o atual governo federal, fica muito mais difícil. E agora, com esse inimigo invisível, esse vírus que ainda não tem cura, o cuidado se torna ainda mais central e cada vez mais difícil.
CUIDADOS
Não posso deixar de dizer que, ainda que essa luta seja, sim, absolutamente coletiva, tenho brigado muito para lembrar às pessoas que nós, lideranças comunitárias, somos pessoas, e muitas vezes preciso lembrar isso para mim mesma e para fora também. Com isso tenho brigado muito porque estou aprendendo a dizer Eu. Apesar da coletividade, às vezes preciso dizer Eu, porque eu sou essa sujeita coletiva, com esse corpo coletivo, uma mulher que chega carregada da comunidade, e sou uma mulher, uma pessoa. Porque costumam nos colocar, nós, lideranças comunitárias, principalmente as mulheres, num lugar em que não somos pessoas, que não temos sentimento, que não precisamos de cuidado. Eu acho que o lugar do cuidado na resistência hoje é o maior desafio. Enquanto digo que as pessoas não nos veem como mulher, como um indivíduo que tem seus desejos, fraquezas e vontades, a gente também esquece que tem, às vezes. E vai pra cima, vive só a luta! E nisso, o cuidado tem que ser aquele cuidado que de fato faz bem pra nós. Não é aquele cuidado padronizado, do corpo padronizado, as meditações, malhações, natações etc que a gente vê tanto por ai… Aqui temos várias formas de cuidado, como sentar na calçada e conversar, arrecadar alimentos e cozinhar juntos. Isso pra gente também é autocuidado. Escutar um samba, tomar uma cerveja, isso também é se cuidar, é estar bem e ver que estamos vivas. Isso é muito importante para nós, porque no nosso cuidado e na nossa felicidade está também o lugar da resistência.
Notas:
1 A Zona Especial de Interesse Social – ZEIS – é uma categoria específica dentro do zoneamento da cidade. Esse tipo de área específica requer a aplicação de normas especiais de uso e ocupação do solo diferentes daquelas adotadas para o restante da cidade, em especial o reconhecimento da forma da ocupação, a fim de impedir a especulação imobiliária e a expulsão da população de baixa renda dos territórios.
2 https://recifedeluta.org/2020/07/25/proposta-do-plano-diretor-do-recife-quer-liberar-as-zeis-para-omercado-imobiliario/
Tipuici Manoki
Liderança indígena
Onde estão os novos espaços de resistência? Quais e como se dão as novas formas de resistência e de luta? Essas são perguntas que, continuamente, interpelam o corpo e a imaginação de ativistas (esses seres da ação e da insistência), que sempre se impõem a tarefa de encontrar alternativas, táticas, abordagens e modos de viver mais capazes de realizar as transformações que tanto pretendem e que dão sentido à sua existência. Essas são as inquietações permanentes que animam o devir-ativista – e que atravessam a luta concreta de gente tão diversa como Amália Garcez, Carlos Augusto Ramos, Léo DCO, Sarah Marques e Tipuici Manoki, cujos depoimentos compõem as páginas seguintes, e Luciana Ferreira, em comentário-síntese ao fim desta seção.

PROFESSORA
Eu sou Tipuici Manoki (1), sou do povo Manoki (2). Somos do noroeste do Mato Grosso, a segunda divisão mais populosa em termos de povos indígenas. Comecei lutando pela demarcação do nosso território Manoki e a participar dos movimentos quando eu tinha entre 15 e 16 anos. Era uma época em que apenas os mais velhos participavam das lutas, mas eu fui me engajando… Vi as dificuldades na área da saúde, fui conselheira distrital (distrito de Cuiabá) e trabalhei como agente de saúde. Em 2009, encerrado o ensino médio, fui para a área da educação e em 2010 ingressei no curso de ciências sociais na Universidade Federal do Mato Grosso. Hoje estou na minha comunidade, Trabalho desde 2018 dando aulas para ensino fundamental e médio, sempre trazendo a questão cultural do povo, a questão da renda e a sustentabilidade. As disciplinas que trabalhei estão voltadas ao conhecimento tradicional e alimentação (como agroecologia), inclusive a partir dos trabalhos que os alunos já fazem em seus artesanatos, por exemplo.
OS DESAFIOS DA REGIÃO E DO POVO
O povo Manoki está dividido em duas Terras Indígenas (TI) – a TI Irantxe e a TI tradicional Manoki. As nossas lutas principais são por homologação do Território que hoje está apenas demarcado e continua sendo invadido por fazendeiros, e ultimamente sofre grandes ameaças com as leis que estão surgindo neste estado e no Brasil. O que mais ameaça nosso povo são as usinas hidrelétricas. Nós não conseguimos saber onde vai ser construída, quando vai começar… é difícil acompanhar, seja por falta de informação ou pela estrutura da ANEEL (3) na fase de estudos e levantamentos técnicos, para saber da geração de energia, do potencial dos rios ou para pedir a liberação das obras. Quando ficamos sabendo, o processo já está muito adiantado sem nenhuma consulta ao nosso povo. Uma está funcionando desde 2010 sem nosso conhecimento, estamos cobrando nossos direitos porque sequer fomos consultados. Agora, depois de prontas, conseguimos fazer parte do estudo do componente indígena dessas três usinas no Rio do Sangue, próximo ao território Manoki. Além disso, onze Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e uma hidrelétrica de grande porte que estão previstas para o entorno do nosso território (Manoki e Irantxe), comprometendo o Rio do Sangue, Rio Membeca e o Rio Cravari. É assim: quando a gente percebe, já está acontecendo uma audiência pública, já estão fechando o negócio para início das construções. Foi assim o caso da PCH Bocaiuva que foi construída e depois nos consultaram.
A LUTA É DAS MULHERES
Na luta pela liberdade dos rios e do nosso povo, vemos um maior engajamento das mulheres, principalmente na proteção do território. Nosso acompanhamento se dá em três fases diferentes: o monitoramento, a fiscalização e a expedição, nesta última há grande participação das mulheres na preservação do nosso território, trabalhando na geração de uma economia solidária e voltada para viver bem e não esta economia que derruba a mata, que acaba com os recursos hídricos e nos deixa sem nada. Estamos falando de uma economia nossa, local, que traga benefícios para a comunidade e para as famílias.
As mulheres indígenas têm assumido espaços importantes. Veja a Alessandra Munduruku que sempre foi contra essa forma de empreendimentos que tiram a liberdade dos rios, do mercúrio que as mineradoras jogam nos rios. Temos a Nara Baré (4) e a Sonia Guajajara (5) que são exemplos de mulheres que estão lutando e ocupando espaços de tomada de decisão ajudando a fazer valer os nossos direitos.
DIFICULDADES E POSSIBILIDADES NA PANDEMIA
Toda sociedade brasileira e principalmente os povos indígenas estão enfrentando muitas dificuldades com a pandemia, desde o início de 2020. As primeiras declarações do atual presidente já apontavam para as ameaças e retiradas de direitos. A posse dele fortaleceu muitos dos nossos adversários a agir contra os povos indígenas. A Normativa 09 da FUNAI, por exemplo, flexibilizou a entrada de pessoas que invadem os nossos territórios. Logo, a FUNAI, que deveria trabalhar a favor dos indígenas, deu uma força para os invasores e, com isso, o governador do Mato Grosso, Mauro Mendes, criou o Projeto de Lei 1720/20. Temos o Marco Temporal no Congresso que retira as terras indígenas dos povos que não estivessem nos territórios em 1988, e muitos povos estarão prejudicados. No Mato Grosso, a gente conseguiu retirar do PL 1720/20 a regularização das fazendas dentro de territórios indígenas, porque o governo queria flexibilizar o licenciamento ambiental retirando a obrigatoriedade da consulta aos povos indígenas, o que foi um ataque aos nossos direitos. O presidente (da República) declarou que os povos indígenas não eram considerados grupo de risco de infecção comunitária na circunstância da pandemia. Como não? Pela nossa forma de viver em comunidade, nos expõe ao risco de contágio mas não tivemos amparo dos órgãos competentes de governo, não tivemos apoio para enfrentar a pandemia e, infelizmente, perdemos muitas lideranças, muitas crianças. No Mato Grosso, o povo Xavante foi o que mais teve mortes na pandemia. E demorou demais para chegar o socorro para esses povos, isso nos dá muita tristeza.
CIRCULAR ENTRE MUNDOS
A nossa resistência é pela vida! Resistimos a tudo o que vem sendo colocado, mas também ao que já nos foi colocado pelos nossos governantes, inclusive pelos que já passaram por Brasília, seja de esquerda ou de direita, os povos indígenas são contra este modelo. O governo que entra sempre se alia ao empresariado, ao agronegócio, às grandes empreiteiras, se alia ao poder econômico e, desta forma, não atende às pautas das consideradas minorias, que na verdade são a maioria da população. Nossa resistência é, como eu disse, pela vida. Quando os povos indígenas resistem a uma hidrelétrica que vai matar um rio, por exemplo, estamos lutando pelos povos indígenas e por todas aquelas vidas. É o caso do debate das mudanças climáticas que o mundo todo está sofrendo com isso e nós resistimos ao desmatamento, lutamos pela demarcação e preservação dos nossos territórios e, com isso, contribuímos com essa luta pela vida.
Veja, logo os povos indígenas que são considerados como um “atraso” por muitos, são os que estão resistindo nos seus territórios e, preservando a vida, lutando contra as mudanças climáticas que afetam todo o planeta. Eu acredito que a nossa resistência faz muita diferença. Temos muito a ensinar àqueles que só pensam em consumir e possuir bens, que pensam em guardar dinheiro, sejam os empresários, o pessoal do agronegócio e das empreiteiras. Esses não olham para o rio, para as matas, para os territórios como olham os indígenas. Muito pelo contrário, eles só enxergam o lucro que eles vão ter e não pensam nas consequências, não enxergam que eles estão provocando o aquecimento global, que estão mudando o clima do planeta e isso afeta a todos, inclusive a eles mesmos. A gente tem um conhecimento da plantação de lavoura, a gente tem um conhecimento de quanto eles já perderam com isso, mas eles próprios não conseguem olhar para isso porque eles querem derrubar tudo e nem prestam a atenção em mais nada, não pensam nas consequências.
MUDANÇAS CLIMÁTICAS
O tempo, o clima e as chuvas, têm mudado muito aqui no nosso território nos últimos anos, e não é só aqui. Veja: este ano começou a chover na segunda semana de dezembro; tivemos um novembro seco (isso está acontecendo de 7 anos para cá) e isso prejudicou muito a nossa roça, o que nos preocupa muito. Nossa resistência é isso, porque nossa forma de ver o mundo é diferente. Acreditamos num modelo de sustentabilidade e de renda mais coletiva, uma divisão justa nos territórios indígenas, acreditamos que podemos retirar o nosso alimento da nossa terra. Os povos indígenas são conhecedores da agroecologia muito antes de usarem este nome. Sempre trabalhamos com a terra sem agredi-la, veja as queimadas… Nós sempre trabalhamos com roça de toco e nunca produzimos uma devastação como vimos com as queimadas. Existe uma grande diferença e nós podemos contribuir com alimentos. Durante a pandemia, nosso povo tem feito bastante reflexão referente à alimentação saudável… Porque a pandemia é causada justamente por isso, pela forma como o ser humano está vivendo mas, mesmo assim, o ser humano não consegue fazer uma reflexão a respeito disso, principalmente aqueles que detém o dinheiro e o governo, que, ao invés de incentivar a economia solidária e a agroecologia, se omite. Acredito que nós temos muito a contribuir com a nossa forma de geração de renda e a nossa forma de plantação, de trabalho coletivo que desenvolvemos dentro do nosso território.
Penso que nós temos conseguido articular bastante em relação às usinas hidrelétricas aqui na nossa região, e articular não apenas os indígenas… Somos os indígenas, os ribeirinhos, assentados, pescadores, formando uma rede de resistência e pela continuidade dos rios, liberdade dos rios e a preservação do meio ambiente para todos. São muitos não indígenas que começaram a entender essa pauta porque as dificuldades são as mesmas, as retiradas de direitos são as mesmas. Nós estamos articulando agora para além das regiões, estamos no Brasil e fora do Brasil. Porque, quem são as empresas que estão produzindo aqui? Quem são as pessoas que compram os grãos produzidos em cima de sangue indígena, em cima de sangue de quilombola, em cima de sangue de ribeirinho, de assentado, de extrativista, de pescadores, né? Quem são as empresas que estão destruindo nossos rios, que estão roubando nossas riquezas com a mineração? Quem são essas empresas?
Nós temos articulado essa denúncia de forma global porque estamos sofrendo muito com isso. Eu penso que a economia precisa melhorar muito, porque não somos apenas nós que vamos sofrer com isso. Para onde vão essas pessoas depois que acabarem com a Terra? Para a Lua, para Vênus, Marte? Para onde elas vão? Só existe este planeta Terra para a gente viver! Então, é preciso uma reflexão global e, principalmente, por parte daqueles que exploram sem olhar as consequências, essas pessoas que consideram o dinheiro como a única riqueza. Nós consideramos outras as riquezas… Então a gente tem ocupado esses espaços de luta que têm trazido algumas soluções positivas para nós. Temos conseguido articular, temos conseguido amparar nossos direitos nas leis existentes apesar da pandemia e das tantas dificuldades. Continuamos, a partir de nossas aldeias, fazendo essa resistência pelos nossos direitos e pelos direitos daqueles que não conseguem acessar esses espaços.
Notas:
1 https://pib.socioambiental.org/pt/Not%C3%ADcias?id=183719
2 https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Iranxe_Manoki
3 Agência Nacional de Energia Elétrica <https://www.aneel.gov.br/>
4 https://amazoniareal.com.br/acoes-da-funai-e-da-sesai-para-combater-o-coronavirus-sao-confusas-etendenciosas-diz-nara-bare-da-coiab/
Onde estão os novos espaços e as novas formas de resistência
Luciana Ferreira

Quando me coloquei a escrever sobre a pergunta Onde estão os novos espaços e as novas formas de resistência?, imediatamente me veio a lembrança um alerta de Hannah Arendt: “A educação é a posição em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumir a responsabilidade por ele e, pela mesma razão, salvá-lo da ruína que, a não ser pela renovação, a não ser pela vinda do novo e dos jovens, seria inevitável” (1). Sou uma educadora e vejo o mundo a partir deste lugar do entre: de um lado o passado, de outro o futuro. E quando imagino os novos espaços de resistência neste mundo velho, caquético, que dá sinais de esgotamento e cansaço, recorro à capacidade imaginária de inventar mundos, própria da infância.
A criança é sempre o novo que chega. É corpo e afeto antes de tudo. É movimento e intensidade repleta de forças que as formas tentam enquadrar. Um pensamento sem o esquadrinhamento produzido pela disciplina, pela linguagem, pela casa, pela escola. Quando um novo chega, nós que aqui estamos há mais tempo criamos meios para que ela aprenda o essencial para sobreviver. De algum modo, nós nos modificamos nesta investida de explicar e traduzir o mundo a elas. É um movimento muito bonito e importante para o mundo e todos os seres que aqui vivem.
Creio que as palavras infância e resistência são sinônimas, pois as infâncias produzem um modo de existência que, de tão simples e necessário, não cabem no mundo do capitalismo cognitivo. Atividades como brincar, dormir e sonhar, comer, cantar, sorrir, andar por aí, fazer nada, fazer muita bagunça, preparar bugigangas, bolinhos de barro, passar um tempo olhando para uma planta, para a parede, desenhar… são ações de resistência na atualidade onde se exige produção em praticamente todos os setores da vida humana, e cada vez mais sem limite de idade para começar ou acabar.
Tomo distância daqueles que determinam que uma geração é mais ou menos produtiva que a outra. Ou mesmo que um modo de existência possui mais força do que outro. Pelo contrário, com Soriau, acredito que não há potência de existir maior ou menor, “o tênue vapor levemente róseo no céu azulado da tarde não possui menos existência do que a plenitude sólida e iluminada de uma nuvem esplêndida e perfeita, glória de uma bela tarde” (2). No caso das infâncias, existe em Soriau um convite para enxergarmos as existências mínimas. Um ponto de vista de um mundo outro, que em geral nós, adultos, não percebemos. Não notamos porque estamos sempre muito ocupados, fazedores de muitas coisas, de muita produtividade, atentos ao mundo exterior, àquilo que nos empurra para coisas grandiosas, numa perspectiva macro.
Trata-se então de uma provocação das infâncias para uma certa redução. Reduzir para fazer ver o que não é perceptível. Talvez nesta empreitada de fazer-nos ver aquilo que está invisível consigamos suspender aquilo que está no campo dos pressupostos evidentes no mundo velho que, como camadas de poeira, nos impedem de enxergar o novo e a renovação.
Aos olhos da criança, um desenho tem mil ações, um bolinho de barro tem cheiro de comida feita na hora! Uma pipa não é apenas um amarrado de varetas, é o próprio corpo dela ali desbicando no azul infinito do céu. Aos olhos dos povos indígenas um rio é muito mais do que um recurso, uma montanha é parente. E vai por aí…
Que os mais diferentes pontos de vista e os mais diferentes modos de existências nos façam ver, ampliem a nossa capacidade de olhar. Os textos presentes neste Mosaico apresentam um pouco dessa ideia. Pessoas de lugares diferentes, se ocupando de múltiplas lutas, traçam linhas paralelas sobre novos espaços de resistência e, a partir desta pergunta-provocação, buscam elaborar em sua experiência modos de vida e existência inspiradores.
Amália Garcez expressa uma preocupação importante com o mundo. Da Finlândia, ela olha para o Brasil e, junto dos finlandeses, se preocupa com a Amazônia. Encontra na palavra Intersecção possibilidades para o ativismo — justiça climática, justiça social, feminismos se articulando com a luta antifascista. “Não dá para lutar isolado, não dá para falar de meio ambiente sem considerar as pessoas que serão afetadas porque estão em situação mais vulnerável. Não dá para falar de feminismos desconsiderando que tem mulheres ainda mais afetadas pelo machismo e pelo racismo. Eu, por exemplo, não posso dizer que seja a mulher mais afetada pela injustiça social, mas preciso lutar em favor das mulheres que são”. Nessa relação entre os que aqui lutavam e os novos que chegam, vemos ressoar em Amália as palavras de Paulo Freire: “aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas sobretudo, com eles lutam”(3).
Carlos Augusto, engenheiro florestal com uma relação muito particular com o mundo das florestas entre Marajó, Belém e o Jari no Estado do Pará, expõe seu modo de pensar a partir de uma educação popular das florestas. Carlos revela sua história e militância junto ao município de Afuá e seus 35 anos de luta popular pelo direito à terra. Percebo com Carlos que a luta e os espaços de resistência podem ser criados a partir de um acontecimento, de fatos trágicos, mas a resistência está diretamente ligada à sobrevivência e, no caso das comunidades rurais e da luta pela reforma agrária, o tempo não se configura como um aliado. Talvez pela resistência dessas famílias é que escutamos de Carlos a frase de seu amigo: “Afuá e Gurupá conseguiram domar o capitalismo”. Será? Como? Os espaços de resistência estão na conexão da juventude florestal que a cada dia descobre o poder da comunicação e da tecnologia para ampliar seu movimento junto com a história e a luta por garantia de direitos básicos conquistados pela geração anterior. Carlos se encontra na conexão: “não estou na casa dos 60 nem na casa dos vinte e poucos, minha posição é de transição, meu lugar de fala é da transição de gerações”. Carlos Ramos cita algumas vezes o cantor e compositor Chico Science, olindense, um dos idealizadores do movimento cultural Manguebeat, que revela no manifesto “Caranguejo com Cérebro”, de Fred Zeroquatro, uma imagem símbolo do movimento: uma antena parabólica enfiada na lama.
Diretamente de Recife, mais precisamente de Caranguejo Tabaiares, Sarah Marques se apresenta como essa parabólica. Mulher, negra, mãe, herdou dos pais o apreço pelo trabalho comunitário, que realiza-se na intersecção do fazer político, ora institucional, e sempre na base, junto de seu povo: “aqui, se brinca na lama, mas quando você cresce, vai pra uma entrevista de emprego, vai para a escola, que geralmente não é no seu bairro, essa mesma lama que você gostava de brincar é a lama que quando você chega nesses lugares, as pessoas já falam: ‘Chegou o cheiro de lama! É fulana que mora em Caranguejo!’”. Sarah demonstra que a vida se faz na luta, e a luta territorial acompanha a sobrevivência. Quando se têm um lugar, pode-se dizer que é possível sentir-se livre: “sou do Caranguejo! Prazer! Satisfação! Esse é meu lugar, daqui não saio não!”. Entre Bregas Protesto, formação comunitária de audiovisual, cines e muito debate, surge o Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste! que a cada dia descobre novas formas de energizar a luta iniciada pela geração anterior à de Sarah. Falar em resistência com Sarah significa falar dela própria.
Lutas entre as cidades e a floresta, no Brasil e fora dele, resistências que se apresentam muito antes de aqui estarmos. Os povos indígenas que aqui vivem têm na palavra resistência um modo de existência.
Tipuici Manoki, do povo Manoki, vive no noroeste do estado do Mato Grosso, na região da bacia do Rio Juruena, um lugar muito especial, pois o Juruena é considerado o único rio “selvagem” do Brasil, por não ter uma “grande” usina hidrelétrica instalada. Tipuici detalha o modo traiçoeiro com que projetos grandes e pequenos se instalam, e considera que o modo que encontraram de resistir se deve também à saída de alguns jovens para estudar, para entender o universo “branco” e traçar possibilidades junto com seu povo. Seja em contato com as crianças da aldeia ministrando aulas, seja na universidade, seja na escuta atenta dos mais velhos, Tipuici revela em seu discurso a sabedoria de quem está neste lugar do entre: “Nossa resistência é essa, porque nossa forma de ver o mundo é diferente. Acreditamos num modelo de sustentabilidade e de renda mais coletiva, uma divisão justa nos territórios indígenas, acreditamos que podemos retirar o nosso alimento da nossa terra, os povos indígenas são conhecedores da agroecologia muito antes de usarem este nome”.
Muitas paisagens subjetivas apareceram neste Mosaico. São expressões, linguagens, marcas de existência e modos de resistência. Finalizamos então com arte. Um artista das ruas, do graffiti, que, inspirado pelos OSGEMEOS ainda na adolescência e no skate nos anos 1990, espalha imagens com a técnica realista nos muros e quadros no Brasil e fora dele. Leo DCO nos enviou sua arte na forma de imagens para compor os novos espaços de resistência que, para ele, se revelam a cada dia, a cada situação, a cada obra concluída.
A arte se insere no acontecimento: “Vidas Negras Importam”, grita um de seus quadros. “A arte é e sempre será um canal de resistência na realidade, sobretudo o graffiti, ele age junto com os movimentos sociais e é uma manifestação política. Gosto das minhas obras, a última é sempre a preferida!” Pensamos com Leo DCO no sentido de obra oferecido por Hannah Arendt: “a obra de nossas mãos distintamente do nosso corpo, que produz e literalmente ‘opera em’, fabrica a infinita variedade de coisas cuja soma total constitui o: artifício humano”(4). Por onde passamos deixamos algo: as obras são a materialização da nossa ação e do nosso trabalho. Nas obras de Léo, visualizamos a força nesta atividade de fabricação que tem começo, meio e fim. E que cada coisa produzida pelas mãos humanas pode ser também destruída por elas.
Vimos com Amália, Carlos, Sarah, Tipuici e Leo esse movimento de não se deixar fabricar. De resistir ao projeto de mundo que se orienta pela morte, pela destruição e, ao contrário, constituir para si e para seu coletivo espaços de escuta qualificados daqueles e daquelas que construíram o mundo com as suas mãos e, de posse deste mapa, se organizam para renová-lo.
Notas:
1 Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 247.
2 Etienne Soriau. Les diférentes modes de existence. PUF, 2009, p. 106.
3 Paulo Freire. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra, 2014.
4 Hannah Arendt. A condição humana. Forense, 2014, p. 169
Alimentar a luta
Formas de ação que têm na prática de cozinhar, comer e conviver sua base e sua expressão
BANQUETAÇO
Os ingredientes básicos são: um local público, uma grande mesa com comida boa e gratuita, pessoas. Está criado um espaço de vivência e aprendizagem que reúne, numa só situação, a denúncia, o protesto, a conscientização e a demonstração de novos modos de viver e conviver. O banquetaço é este tipo de ação múltipla, de várias faces, que se presta a várias funções no âmbito de uma estratégia política e que é, em si mesma, uma experiência transformadora de quem participa dela.
Como em toda prática que tem o alimento como seu eixo central, o ato de comer (e cozinhar) juntos na rua convoca o corpo a perceber e experimentar uma profusão de sensações, sentidos e afetos; realiza uma ação demonstrativa que supera em teor comunicativo o mero uso de materiais de campanha, os cartazes, as cartilhas, as palavras de ordem das manifestações. Num banquetaço, esses recursos são necessários e estão todos lá, mas são potencializados pela interação entre as pessoas em torno de uma mesa de comida.
No Brasil, o banquetaço tornou-se não só um método de ação mas também um movimento
pela soberania e a segurança alimentar, que articula desde agricultoras e agricultores familiares, agroecologistas e o MST até organizações de atendimento à população de rua, movimentos de moradia e direito à cidade, passando por profissionais da gastronomia, especialistas em nutrição e em saúde pública.
Em novembro de 2017, um ato realizado em São Paulo ajudou a pressionar o então prefeito João Dória a suspender o projeto de fornecer, para a rede escolar e grupos vulneráveis, uma farinha ultraprocessada feita de sobras do varejo e da indústria alimentícia (que em compensação receberiam benefícios e isenções fiscais). Nesse banquetaço, duas mil refeições gratuitas foram distribuídas, feitas com alimentos doados e outros que seriam descartados.
Em 27 de fevereiro de 2019, mais de 40 banquetaços (1) ocorreram em todo o país em protesto contra o fim do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que acabou extinto por meio de sucessivas medidas provisórias assinadas por Jair Bolsonaro.
A BELEZA DA XEPA
O banquetaço não é só um ato de protesto em que se usa comida. É um espaço de (re)educação alimentar, de combate ao desperdício e de conscientização sobre a produção de desigualdade, pobreza e doença dos circuitos capitalistas do agronegócio e da indústria alimentícia.
O resgate da “xepa” é um elemento-chave desse processo de conscientização. A xepa é um jeito popular de designar os alimentos do fim de feira ou aqueles descartados por terem pouco valor comercial, feios, assimétricos, machucados ou simplesmente fora dos padrões estéticos do mercado.
Nas Disco Xepas realizadas pelo movimento Slow Food, pelo menos 80% dos ingredientes dos banquetes públicos e gratuitos vêm das “sobras” de feiras e supermercados que iriam parar no lixo sem necessidade. O restante é de produtos doados e de plantas alimentícias não-convencionais (Pancs) cultivadas ou coletadas nas ruas e quintais da cidade. Nesses eventos, a parte “disco” é também essencial: música, apresentações artísticas e festa compõem o combo metodológico da ação (2).
COMER É ARTE
O coletivo de arte relacional Opavivará (3), criado no Rio de Janeiro em 2005, constrói algumas de suas intervenções como experiências imersivas em torno da cozinha, da comida e do alimento. Algumas se assemelham às práticas do ativismo alimentar, outras apontam caminhos estético-políticos ainda não aproveitados em sua potência máxima pelos ativistas.
O projeto das intervenções denominadas Cozinha Coletiva, realizadas no Rio de Janeiro (2012) e em Vitória/ES (2016), lembram em muitos aspectos os banquetaços: há comida gratuita, e também são instalados bebedouros, tanques para lavagem de alimentos e da louça usada, forno e fogão a lenha, mesas e bancos e espreguiçadeiras para descanso. A população se apropria do espaço, dos utensílios e da proposta de ação. No projeto Parabéns pra Você, Mercadão de Madureira, realizado em 2010 no Rio de Janeiro, os participantes também comem: comida (bolos de festa) – e imagens junto com a comida.
Durante a fase de pesquisa, o coletivo Opavivará fez registros fotográficos de lojistas do mercado. As fotos foram impressas em papel de arroz e depois dispostas na superfície dos bolos, emolduradas com glacê. Durante a festa de comemoração, as pessoas convidadas, inclusive os próprios lojistas fotografados, comeram seus retratos coloridos.
MASSA E PODER
Se depender da artista e poeta Laís Velloso (4), a mensagem política é a própria comida. No sentido literal. Laís produz massas estampadas – e ideias impressas em “tecidos gustativos”.
Há raviólis e capelettis antifa. Numa mídia social, um texto explica a tática:
“A massa vai congelada ou pronta para comer?
– Vai congelada!
– Por quê?
– Para que as pessoas se lembrem de que as grandes revoluções acontecem junto ao fogo. Ao fogo do fogão de suas casas.”
É comer e lutar.
ACABAR COM A FOME
Nesta edição, que chega a público num cenário de genocídio e terra devastada, é impossível falar do alimento, da comida, do comer e do cozinhar como base das formas de agir sem dizer da fome e da insegurança alimentar como motivo e motor de toda luta. Para isso, valem e precisam valer todas as táticas, todos os métodos de ação, sem descanso. Como nesta ação de distribuição de alimentos pelo Coletivo Papo Reto no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, durante a pandemia.
Notas:
1 Saiba mais sobre o Banquetaço do Consea – https://www.abrasco.org.br/site/noticias/movimentossociais/banquetaco-mobilizou-mais-de-40-cidades-pela-alimentacao-saudavel-e-pelo-retorno-doconsea/39816/
2 Um guia de como fazer uma Disco Xepa: https://slowfoodbrasil.org/wp-content/uploads/2016/05/slowfoodbrasil.com_documentos_guia-pratico-para-organizar-umadisco-xepa.pdf
4 https://www.instagram.com/lais.velloso/






