Escola de Ativismo

Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

Ruas ativistas – A disputa pelo protagonismo nas manifestações

A Escola de Ativismo realiza a série “10 anos de ativismos” analisando e debatendo as mudanças nas lutas políticas durante seu tempo de existência.

 Por Mario Campagnani (colaborou Velot Wamba)

Durante a Copa do Mundo de 2014, enquanto manifestantes eram atacados na Praça Saens Peña, torcedores de camisa da CBF tiravam fotos com a PM em frente ao Maracanã. Quem estaria nas manifestações de direita anos depois?

A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres... A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas”.

A mais igualitária e niveladora das obras, como descreve o cronista João do Rio no início do Século XX, segue até hoje com seu poder, glória ou mesmo tragédia de forma inabalável. Milhões de comentários do Twitter, stories do Instagram, textos ou textões do Facebook têm sua importância na medição de certa (in)satisfação da sociedade, mas é no encontro de corpos com sua obra que se conjura uma força que a “realidade virtual” – termo por si só contraditório – ainda ou talvez nunca dará conta. Em 29 de maio deste ano, as ruas voltaram a ser ocupadas por todo o país, e não mais manifestações de apoio à morte, à opressão, mas na luta pela vida. O lado oposto, todavia, não pretende abandonar esse espaço tão facilmente, como mostram as manifestações previstas para 7 de setembro, nas quais os dois lados estarão claramente definidos, numa reafirmação do protagonismo desse espaço na disputa política.

Porque se é certo que ela é de todos, é mais que justo admitir que ela não tem lado. Que está acessível para ser tomada por aqueles que estiverem dispostos a ocupá-la ou a resistir a isso, seja pela força de massas humanas ou de tanques e armas.  Na última década, as pautas, corpos e cores que ocuparam espaços foram variados e, diversas vezes, completamente antagônicos. Revisar  e analisar o que ocorreu é uma forma de compreender processos em andamento hoje, mas também de entender que um certo grau de incerteza é uma constante.

Um marco não apenas dos últimos dez anos, mas de todo o novo século certamente foram as famosas Jornadas de Junho, que a bem da verdade, começaram em abril de 2013 e foram até julho de 2013. O que começou inicialmente como manifestações pontuais contra mais um aumento de passagem do transporte público na cidade de São Paulo convocadas pelo Movimento Passe Livre (MPL), logo eletrificaram a insatisfação popular a esquerda e a direita, frequentemente para além dos partidos políticos estabelecidos. Pra se ter uma ideia da magnitude desse movimento multitudinal, no dia 20 de julho, a manifestação na cidade de São Paulo amealhou entre 1,25 milhão e 1,55 milhão de manifestantes. Durante as jornadas, inclusive, a Escola participou através de brigadas que contavam tanto com pessoas para registrarem os diversos pontos das imensas manifestações quanto com apoio jurídico e enfermeir@s para socorrer as pessoas vítimas da truculência policial. Com as Jornadas de Junho, inaugura-se um período onde tanto a esquerda – que tradicionalmente dinamizava as manifestações pós-Ditadura – quanto a direita vem tomando as ruas do país, com reivindicações das mais diversas.

Passados 8 anos daqueles protestos, o sentido do que as “Jornadas de Junho” representaram segue em debate. Para muitos, ali estava um “ovo” do que viria a ser o avanço da extrema-direita e a consequente eleição de Jair Bolsonaro. Essa responsabilização dos manifestantes que levantavam pautas progressistas – redução da passagem, os absurdos investimentos dos mega-eventos – pelo avanço da direita deixa de fora toda a complexidade sistêmica. Escutar os anseios e atender aos pedidos de então, que sim, não eram apenas por 20 centavos, poderia ter sido um caminho. A opção do governo federal, então sob controle do PT, assim como governadores e prefeitos, como Eduardo Paes no Rio e Fernando Haddad em São Paulo, foi outra, vide a defesa das empresas de ônibus, o crescimento das polícias militares estaduais e os retrocessos na legislação federal, com aprovações de medidas como a Lei Anti-terrorismo e dispositivos para facilitar a ocupação militar de territórios periféricos.

Junho de 2013. Fonte: Unisinos

Havia, é claro, pessoas de direita nas ruas então, mas as pautas protagonistas dos protestos eram de esquerda, indiscutivelmente. A análise de onde a direita se fortaleceu em 2013 não pode deixar de ver a responsabilidade das próprias instituições de Estado e daqueles que as controlavam. A lei da delação premiada, por exemplo, foi assinada por Dilma Roussef naquele ano.

A institucionalidade não foi criada para atender demandas diretas. Seus pesos e contrapesos tendem a manter o startus quo, algo inerente aos estados modernos. A criminalização das manifestações apenas seguiu o roteiro histórico. O que poderia ter sido uma oportunidade de uma “guinada à esquerda” acabou se tornando uma ampliação do Estado repressor, com seu viés direitista gritante.

Apesar dos duros ataques dos governos e da mídia, as manifestações continuaram em andamento, especialmente nas cidades-sede da Copa do Mundo de 2014. O Rio de Janeiro, em particular, sofreu mais que outros locais, pelos preparativos das Olimpíadas de 2016. A remoção de famílias pobres de comunidades como Vila Autodromo e Metrô Maracanã foi um dos principais motivos dos protestos nas ruas.

Se houve um 7×1 em campo, pode-se dizer que houve o mesmo nas ruas, mas com vitória “verde amarela”. Uma blitzkrieg (guerra relâmpago) que contou inclusive com detenções arbitrárias e criminalização de ativistas. A repressão certamente funcionou. O medo da brutalidade policial foi esvaziando cada vez mais a rua. A final da Copa ficou notabilizada pelo cerco da Praça Saens Peña, próxima ao Maracanã, onde manifestantes foram mantidos por horas encurralados, sendo atacados por bombas e tiros. Enquanto alguns eram bombardeados, havia aqueles, de camisa da CBF e ingressos na mão, que tiravam fotos com um Caveirão em frente ao estádio. Seriam ambos grupos de direita?

Junho de 2013. Fonte: Brasil de Fato

Os estudantes vão às ruas

A mobilização estudantil paulista de 2015, através de manifestações e ocupações de escolas, foi obra dos estudantes secundaristas em diversas regiões do estado de São Paulo (tiveram reflexo pontual em outros estados) entre outubro e dezembro do mesmo ano, tendo como objetivo protestar contra a reorganização do ensino público paulista, proposta pelo governador Geraldo Alckmin.

As manifestações alcançaram seu objetivo: a reorganização do ensino público foi suspensa e o então secretário de Educação, Herman Voorwald, foi tirado do cargo. Se o Brasil sentira a força das organizações autônomas em 2013, reviveu a experiência com a luta dos estudantes, que aconteceram, em sua grande maioria, para além do controle das organizações que representam os estudantes.

Não há vácuo na rua

Com grupos autonomistas varridos, estudantes sem estruturas nacionais de suporte e populações pobres, negras e periféricas cada vez mais vigiadas e assassinadas, a rua virou o espaço perfeito para ser ocupado por aqueles que já tiravam fotos com caveirões e policiais com fuzis.

Os protestos contra o governo Dilma Rousseff marcaram os anos de 2015 e 2016. As manifestações massivas ocorreram em diversas regiões do Brasil, no contexto da crise político-econômica iniciada em 2014, tendo como principais objetivos protestar contra o governo Dilma Rousseff e defender a Operação Lava Jato. Palavras de ordem fortes desse período foram “Lula preso” e “Fora PT”. Foram coroadas novas forças da direita brasileira, representada por grupos como o MBL e o “Vem pra rua”, por exemplo, com apoio direto de entidades conservadoras, como a FIESP.

As bases do golpe estavam plantadas nesses atos, com convocações públicas feitas pelos grandes grupos de mídia, inclusive. A manifestação de 13 de maio de 2016 é considerado o maior ato político na história do Brasil, superando as Diretas já. Houve até uma tentativa de atos de apoio à presidenta, mas o golpe, transvestido de impeachment, e a Lava Jato, operação jurídico-policial fraudulenta, já estavam consolidados. Se em 2013 as denúncias tendenciosas do Ministério Público e o uso de escutas serviam para criminalizar somente manifestantes, em 2016 até mesmo a presidenta era grampeada e tinha conversas divulgadas em rede nacional.

Fora Temer”

A mobilização estudantil no Brasil em 2016 foi formada por uma série de manifestações e ocupações de escolas secundárias e universidades brasileiras que se intensificaram durante o segundo semestre de 2016, realizadas por estudantes secundaristas e universitários em diversos estados do Brasil. As manifestações visavam barrar projetos e medidas dos governos estaduais e do governo do então presidente Michel Temer, como os projetos de lei da “PEC do teto de gastos”, a PEC 241, projeto “Escola sem Partido”, o PL 44 e da medida provisória do Novo Ensino Médio.
 
Muito espalhadas Brasil afora, contagiando grandes centros e o interior dos estados, teve inspiração da onda de mobilizações estudantis em São Paulo em 2015, e a organização se deu através das redes sociais nos grupos de ocupação. Taticamente, abriram mão de ocupações, com manifestações em frente às escolas e prédios públicos atacando medidas e reformas educacionais propostas pelos governos estaduais e federal.

As manifestações “Fora Temer” em 2016 e 2017 foram as primeiras tentativas do campo progressista de responder ao golpe aplicado à presidenta Dilma. Uma movimentação de alcance nacional, centrada na corrupção de membros do governo e do próprio presidente, assim como em alegações de que não havia justificativa suficiente para a configuração de “crime de responsabilidade” no processo de impeachment. Os pontos altos dessas manifestações se deram em agosto de 2016, no qual Temer foi vaiado aos gritos de “Fora, Temer” no início e fim dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, bem como na abertura dos Jogos Paralímpicos, e no dia da independência do Brasil, com protestos contra o governo Temer em 25 estados e no Distrito Federal.

Estudantes ocupam as ruas / Fonte: Agência Brasil

A greve geral no Brasil em 2017 aconteceu no dia 28 de abril, 100 anos depois da primeira greve geral, em junho de 1917, e a primeira greve geral desde os anos 1990. Foi um protesto contra as reformas das leis trabalhistas, que posteriormente foram aprovadas, e da previdência social, propostas pelo governo Michel Temer e em tramitação no Congresso Nacional. Segundo organizadores, a greve teve adesão de 40 milhões de trabalhadores.

Caracterizado por muitos como uma tentativa de locaute patronal, a greve dos caminhoneiros no Brasil em 2018, foi uma paralisação de caminhoneiros em todo o país iniciada no dia 21 de maio, durante o governo de Michel Temer, e terminou no dia 30 de maio, com a intervenção de forças do Exército Brasileiro e Polícia Rodoviária Federal para desbloquear as rodovias. Segundo a estimativa de diferentes setores, até o dia 27 de maio a paralisação já teria causado prejuízos de dez bilhões de reais, e talvez tenha sido o maior desafio ao governo Temer dentre todas as manifestações do período.

Ali também foi possível ver a força dos grupos de Whatsapp nas mobilizações, pois as análises até então se centravam especialmente no Facebook e no Twitter, onde é possível avaliar melhor as métricas de alcance e repercussão de temas. A malha de desinformação descentralizada do “zap” foi rapidamente dominada e inteligentemente usada pelos grupos de direita, já num prenúncio do que viria a ser a eleição de 2018.

#EleNão. Fonte: Agência Brasil

No Brasil, sempre pode piorar

Os criativos e animados protestos contra Jair Bolsonaro, conhecidos como Movimento #EleNão, foram manifestações populares lideradas por mulheres que ocorreram em diversas regiões do Brasil e do mundo, com o objetivo de protestar contra a candidatura à presidência da República do deputado federal Jair Bolsonaro. As manifestações ocorreram no dia 29 de setembro de 2018 e se tornaram o maior protesto já realizado por mulheres no Brasil e a maior concentração popular durante a campanha da eleição presidencial no Brasil em 2018.

Seguindo a “tradição” de 2013, os atos foram convocados pelas redes sociais, principalmente no grupo “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro” no Facebook, e as mais de 160 cidades que aderiram aos protestos foram motivadas pelas declarações misóginas do candidato e também por suas ameaças à democracia. Após essa convocação inicial pelas redes sociais, muitos movimentos sociais, grupos feministas e partidos também apoiaram e participaram das manifestações.

Não há possibilidade alguma de elogiar a extrema direita, mas é necessário reconhecer que sua estratégia foi vitoriosa nas eleições de 2018. Mesmo com atos importantes como os das mulheres, pode-se dizer que foi constituída o que seria uma “maioria silenciosa” (parafraseando o discurso conservador de Richard Nixon nos Estados Unidos), com Bolsonaro, um político medíocre com décadas de carreira, mas que conseguiu sequestrar o discurso da mudança, o de que ele seria diferente, o “outsider”, aquele que viria para mudar “tudo que está aí”.

Bolsonaro não sai das ruas

A primeira grande mobilização contra o governo Bolsonaro foram os protestos estudantis no Brasil em 2019, que aconteceram nos dias 15 de maio, 30 de maio, e 13 de agosto, contra os cortes na educação do ensino básico ao superior e congelamentos nas áreas de desenvolvimento de ciência e tecnologia. Houve diversas paralisações no ensino superior e básico, acompanhado de protestos liderados por estudantes e profissionais da educação. Foi o momento que, após um ciclo de lutas mais autônomas, as grandes entidades estudantis como União Nacional dos Estudantes (UNE), União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e sindicatos tomaram a dianteira do processo. No dia 13 de agosto, a UNE afirmou que houve 1,8 milhão de pessoas nas ruas em mais de 200 cidades de todos os estados do país e Distrito Federal.

Mas em um contexto de intensa polarização, as hordas da extrema-direita puxaram atos pró-Bolsonaro em 26 de maio e 30 de junho de 2019. Bem menores que os atos do campo progressista, foram os primeiros sinais que um núcleo duro de bolsonaristas defende irrestritamente as “conquistas” desse governo e que também estarão a postos a uma possível aventura golpista, possibilidade que vem se tornando mais clara com a redução das chances de vitória de Bolsonaro nas eleições em 2022.

Jair Bolsonaro também inicia um tipo de mobilização que pode ser analisada como uma campanha permanente. Mesmo com a conquista do carga máximo da nação, ele se coloca para sua base como um perseguido, que precisa de um apoio popular ativo nas ruas para manter sua posição. As manifestações da extrema-direita, então, começam a focar nos outros poderes, o Judiciário e o Legislativo, como aqueles que precisam ser combatidos.

Manifestação em defesa da Lava Jato. Fonte: Agência Brasil

Em 2019, uma nova greve geral aconteceu no dia 14 de junho, dois anos após a greve geral de 2017. Dessa vez, os protestos centraram as atenções contra a reforma da previdência do governo Jair Bolsonaro e contra cortes na educação. Menores do que as movimentações de 2017, alcançaram 189 cidades de 26 estados e o Distrito Federal. Com a classe trabalhadora nas cordas, infelizmente as reformas trabalhistas continuaram, afetando milhões de brasileiros de forma negativa.

2020 marcou o ápice do acirramento das forças de direita e esquerda que marcaram toda a década. Manifestações populares ocorreram em diversas regiões do país, no contexto da pandemia de COVID-19 no Brasil. Em 15 março de 2020, aconteceram manifestações em apoio ao presidente Jair Bolsonaro, alvo de várias investigações, e, mais bizarro de tudo, contra as medidas de isolamento impostas pelos governos estaduais. A partir de 31 de maio, aconteceram protestos contrários ao presidente, envolvendo também pautas como o antirracismo e o antifascismo, com resultados variados. Essas manifestações tiveram como dado distintivo o fato de serem puxadas por membros de torcidas organizadas, entre elas dos clubes Corinthians, Palmeiras e Flamengo.

Se a direita estava soberana desde o golpe contra Dilma Rousseff, a rua parece voltar a ser um espaço mais à esquerda em 2021. A massa apoiadora do atual presidente vem se reduzindo, apesar de haver um “núcleo duro” de apoiadores que seguirão com ele, mesmo com todos os escândalos de seu governo. Mas, este núcleo parece cada vez mais constrangida de mostrar apoio público. Por outro lado, no dia 29 de maio se iniciaram protestos contra o governo Bolsonaro, que se espalharam por todo o país, com uma manifestação massiva na capital paulista, por exemplo. Membros de grupos sindicais e torcidas organizadas, unidos a partidos de esquerda, dinamizaram os protestos de rua em pelo menos 85 cidades, com pautas como a volta do auxílio emergencial em R$600, repúdio ao negacionismo, críticas ao incentivo do uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra o novo coronavírus e o apoio às campanhas de vacinação, além de pautas como o corte de verbas na educação, a repressão policial contra a população negra, usando o contexto da Chacina de Jacarezinho e o apoio a CPI da COVID-19.

Manifestantes a favor da prisão de Lula. Fonte: Agência Brasil

Elas seguem acontecendo com força. Com máscaras, tentativas de manter distanciamento social e pautas anti-Bolsonaro, o movimento tem causado um certo curto circuito nos grupos mais conservadores, como a mídia tradicional, que entrou em clara oposição ao presidente e agora precisa de um certo acordo tácito com aqueles que vêm protestando contra o presidente desde antes da eleição. Da mesma maneira, movimentos como o MBL, que romperam com o presidente, têm reclamado das dificuldades de estarem nas ruas agora por não serem bem-vistos pelos demais manifestantes.

Considerando que 2022 é ano eleitoral e que Bolsonaro não faz questão alguma de esconder que tentará um golpe – talvez a única forma de ele se manter no poder depois de um governo tão desastroso -, as ruas seguirão como protagonistas da história, com talvez uma única grande diferença. Depois de uma pandemia global que fez as pessoas se recolherem e evitarem contatos, teremos um ano onde, salvo alguma má surpresa, haverá um desejo enorme de voltar a encontros, cruzamentos e ações. Resultados imprevistos, como sempre.

Signal com número secundário

Signal com número secundário

Por Gus | Originalmente publicado em seu Blog

Os principais aplicativos de mensagens como WhatsApp, Telegram e Signal vinculam a conta do serviço ao número de telefone. Embora esse método de autenticação facilite a descoberta e encontro da sua agenda de contatos de forma bastante imediata, há muitas razões para ter uma conta secundária nesses aplicativos. Se você é um/a jornalista, ativista, defensor/a de direitos humanos ou apenas uma pessoa querendo mais privacidade nas suas comunicações, já se deparou com situações em que gostaria de ter um canal seguro de conversa com uma pessoa, porém não gostaria de ceder o seu número de telefone particular. O Signal está implementando outras formas de identidade e isso pode diminuir a exposição do seu número para terceiros, o que resolveria a questão da privacidade em alguns casos que descrevemos.

Separar os contatos da vida profissional e privada, evitar o doxxing e o assédio online, não vincular a sua localização física ao seu número de telefone ou ainda tornar mais custoso ou impossibilitar um ataque de SIM swap são alguns exemplos e motivações. Mas manter dois ou mais aparelhos de telefone é um trabalho grande e, além do mais, mal damos conta de ter um aparelho com a última atualização de segurança devidamente aplicada.

Este guia ajudará você a comprar um novo número secundário e a registrar com uma conta no Signal. Ter um número secundário ajudará a compartimentar as suas comunicações e a manter contas nos aplicativos desvinculadas ao seu número de telefone privado. Possivelmente será necessário um treinamento de segurança digital para aprender a operar as suas identidades digitais.

De forma resumida, as etapas para criar a conta secundária no Signal:

  1. Obter um novo número de telefone através de um serviço de Voz sobre IP (VoIP).
  2. No serviço de VoIP vamos configurar para encaminhar as mensagens de SMS e as chamadas para o seu número de telefone principal.
  3. Por fim, utilizaremos o código para registrar a nossa nova conta no Signal.

E antes de começar:

  • Para iOS: será mais fácil usar um segundo dispositivo móvel para instalar o Signal, por exemplo, outro smartphone, um iPad ou um iPod Touch. É possível seguir o guia somente com um aparelho, mas neste caso será necessário temporariamente apagar o Signal para criar a nova conta.
  • Para Android: para criar um novo perfil de trabalho para o Signal, instale o aplicativo Shelter via Google Play ou F-Droid. Dica: há muitos aplicativos com o mesmo nome, clique no link acima para instalar ou se preferir, procure o aplicativo pelo nome do desenvolvedor.
  • Avançado: também é possível registrar o novo número no seu computador usando o signal-cli, porém, deduzo que se você opta por uma ferramenta de linha comando, você saberá o que está fazendo e pode seguir o seu próprio caminho autodidata. 😉

Número de telefone secundário

Há diversas formas para obter um novo número de telefone para registrar o Signal. É possível utilizar um telefone fixo, comprar um chip pré-pago na sua operadora favorita ou utilizar um serviço de VoIP. A vantagem do VoIP é que você pode comprar um número internacional, o que pode tornar um ataque de SIM swap mais trabalhoso, porém, não impossível. Uma outra vantagem é que o VoIP não estará vinculado à sua localização geográfica ou diretamente vinculado a uma operadora brasileira. De todo modo, é importante ressaltar que a sua conta VoIP estará associada a uma forma de pagamento, por exemplo, ao seu cartão crédito. Portanto, não estamos falando de uma comunicação anônima entre o VoIP e o seu número principal, na qual ninguém sabe quem é o proprietário daquele número de telefone, mas sim privada: a empresa de VoIP possui os dados cadastrais e de uso, mas só informará para as autoridades caso exista uma solicitação judicial.

Dito isso, toda a sua comunicação pelo Signal com os seus contatos estará criptografada e o número secundário será utilizado apenas para registrar a conta no aplicativo. Há uma funcionalidade de bloqueio de cadastro, em que uma pessoa não conseguirá registrar uma nova conta no Signal com o seu número de telefone (por exemplo, num ataque de SIM swap), se ela não souber o código PIN que você criou. Observe que o código PIN não é o mesmo código que você recebe via SMS ou chamada telefônica para criar uma nova conta. O código PIN é criado pelo próprio usuário(a). Neste guia utilizarei o Twilio, pois uso o serviço em outros projetos e a criação da conta exigiu uma quantidade pequena de dados pessoais. Fique a vontade para explorar outros serviços de VoIP e criar o seu próprio roteiro de aprendizado. É realmente importante que você compre e tenha controle do número de telefone, por exemplo, adicionando crédito para garantir que o número continue ativo. Ao não manter o número ativo, alguém poderá registrá-lo e tentar assumir a sua conta no Signal. Antes de ingressar no Twilio, leia a política de privacidade do serviço e saiba quais são os dados coletados. O endereço IP do(a) usuário(a), para qual número uma mensagem e/ou chamada telefônica foi encaminhada são exemplos de dados coletados pelo Twilio. A empresa também disponibiliza relatórios de transparência informando quantos pedidos de governos foram recebidos e quantos foram atendidos. Por exemplo, no segundo semestre de 2019, o governo brasileiro requisitou a informação de duas contas, porém os dados não foram fornecidos (não há maiores detalhes sobre).

Histórias de usuárias

Nessa hora é importante pensar no seu modelo de ameaça, entender os limites da solução proposta neste guia e o que estaremos protegendo. E ampliando um pouco, além do Signal, vamos imaginar algumas histórias de usuárias e como ter um número secundário pode ajudar na segurança da nossa comunicação.

  1. A jornalista investigativa Ana é uma jornalista investigativa e deseja ter duas identidades em aplicativos de mensagem, uma profissional e outra privada. Assim Ana segue esse guia e cria a sua conta profissional no Signal. Essa conta será usada para que as fontes entrem em contato de forma segura. Ela poderá divulgar o número Signal em seu site e nas redes sociais, já que esse número é exclusivo para esse uso. Ela usará o número de telefone privado para conversar com a família, as suas amigas e colegas próximos e também orientará essas pessoas que nunca compartilhem o seu contato privado. Usando o número público, Ana participa de grupos de discussão públicos.
  2. A organizadora de movimentos Luciana participa de vários grupos online em aplicativos de mensagens e ajuda ativamente na luta por mais direitos trabalhistas na sua profissão. Ela descobriu que os donos da empresa querem saber quem está liderando e para isso estão tentando identificar os números dos administradores do grupo do WhatsApp. Os donos solicitam ao RH verificar os números de telefone. Luciana seguiu esse guia e, então, a única informação que os donos terão será um número internacional e não está vinculado a nenhuma outra conta dela como as suas redes sociais.
  3. A ativista do #EleNão Julia é a figura pública e administradora de diversas páginas online e está preocupada com doxxing, a prática de exposição de dados pessoais online. Ela leu também que um dos ataques durante a campanha do #EleNão foi o SIM swap, em que páginas do Facebook foram sequestradas. Julia segue esse guia e cria dois números internacionais: um para as suas contas em serviços online (Facebook, Twitter, Instagram) e outro para as suas comunicações públicas. Os seus atacantes não terão acesso ao número usado para recuperar a senha nas redes sociais e também não terão acesso ao seu número de telefone privado.
  4. A trabalhadora sexual A. é uma garota de programa e já houve casos de assédio de clientes. Ao seguir esse guia, A. cria duas identidades nos aplicativos de mensagem e pode separar a sua comunicação online pessoal e do trabalho. Caso ocorra uma nova tentativa de assédio, ela poderá criar um novo número público facilmente seguindo esse guia.
  5. Uma pessoa comum Natália deu match num aplicativo de paquera. Ela estava sem tempo para fazer um background check no perfil e resolveu passar o número do seu WhatsApp de paquera. Passou uma semana e ela percebeu que o match era alguém com quem ela não queria se relacionar. Ela bloqueou, mas logo apareceu uma nova mensagem vinda de outro número, da mesma pessoa. Ela bloqueou e foi para o seu grupo de amigas com seu outro número:”Aconteceu de novo, gente. Vou mudar o meu número de paquera (de novo).”

Twilio: passo a passo

Para comprar um número no Twilio, o plano básico é de USD 1/mês por um número de telefone nos Estados Unidos e Canadá mais o que for consumido em serviços de texto e chamadas telefônicas. É necessário carregar um saldo de USD 20 na primeira vez. Para determinados países o valor do número de telefone pode ser um pouco mais caro e podem exigir um pacote regulatório. Independente do país que você escolher, é importante um número com suporte a mensagem de texto (SMS) e a chamadas telefônicas.

  1. Após criar a sua conta no Twilio, vamos criar um novo projeto chamado “Signal” no Console. Para conseguir um número de telefone será necessário fazer um upgrade na conta. Após o login, clique em “Upgrade” no canto superior da tela. É possível que o Twilio conceda USD 15 de crédito no período de teste (de 1 mês).
  2. Confirme o seu e-mail e também o seu número de telefone principal. Não há problema do número ser do Brasil.
  3. Pule o processo de onboarding (‘Skip to dashboard) e clique para comprar um novo número. Para comprar um novo número, as duas funcionalidades que você vai precisar são: voz e SMS. Se você optar por um número no Brasil, o valor será de USD 4/mês, não poderá receber SMS e ainda precisará preencher todo o pacote de regulamentação para ter o número de telefone. Portanto, sugiro comprar o número de países como Estados Unidos e Canadá que não é necessário essa documentação extra. Atenção: ao clicar em ‘buy’ será descontado USD 1 da sua carteira e a partir daí será feito um pagamento recorrente mensal de USD 1 ou até você cancelar (liberar) o número.
  4. Após comprar o número, para fazer o telefone secundário funcionar, vamos criar as ações de encaminhamento de voz e texto. Clique em “TwiML Bins“. Dica: é mais fácil clicar nesse link do que encontrar na interface.
  5. Para adicionar um novo Twiml Bins clique no botão de  +
  6. Agora é necessário criar dois scripts para encaminhamento das chamadas telefônicas e as mensagens de texto:

Twiml Bins de chamada telefônica

Em “Friendly name” defina como “call-home-signal” e cole esse script:

<?xml version="1.0" encoding="UTF-8"?>
<Response> <Dial> +16479316420 </Dial> </Response>

Substitua o número “+16479316420” pelo seu número de telefone principal. Lembre de adicionar o código do país, +55 no caso do Brasil, e também o código da sua cidade.

Clique em “Create”.

 

Twiml Bins de mensagem de texto

Precisamos repetir o passo acima. Clique em “Twiml Bins” na barra laterial, em seguida em + e repita o processo para as mensagens de texto.

Em “Friendly name” defina como “txt-home-signal” e cole esse script:

<?xml version="1.0" encoding="UTF-8"?>
<Response>
<Message to="+16479316420">
{{From}}: {{Body}}
</Message>
</Response>

Substitua o número “+16479316420” pelo o seu número de telefone principal. Lembre de adicionar o código do país, +55 no caso do Brasil, e também o código da sua cidade.

Encaminhando as mensagens do seu número secundário

Após criarmos as duas ações de encaminhamento, nós precisaremos associar esses scripts ao novo número que acabamos de comprar.

  1. Na barra lateral do Twilio, clique em “Phone Numbers” e clique no seu novo número.
  2. Desça até a seção opção “Voice & Fax”. Em “A call comes in”, clique no primeiro drop down, que está marcando “Webhook” e selecione a opção “TwiML Bin”. No menu ao lado, clique no drop down e selecione “call-home-signal”.
  3. Agora desça até a seção “Messaging”. Em “A message comes in”, clique no primeiro drop down, que está marcando “Webhook” e selecione a opção “TwiML Bin”. No menu ao lado, clique no drop down e selecione “txt-home-signal”. Finalmente, clique em “Save”.

Parabéns! Agora o seu novo número internacional está plenamente configurado para encaminhar as mensagens de texto e as chamadas telefônicas para o seu número de telefone principal.

Registrando o Signal

Para Android

  1. Instale o aplicativo Shelter via Google Play ou F-Droid para criar um novo perfil de trabalho para o Signal. Dica: há muitos aplicativos com o mesmo nome, clique no link acima para instalar ou se preferir, procure pelo desenvolvedor.
  2. Após instalar, abra o Shelter e procure o app Signal, toque e selecione a opção “Clone to Shelter (Work profile)” e depois “Instalar”.
  3. Um ícone do Signal com uma maleta vermelha aparecerá no menu principal de apps. Utilize esse Signal para registrar o novo número.
  4. Ao abrir o Signal com a maleta vermelha, ele solicitará o número para instalar. Selecione o país do nosso número secundário e adicione o seu novo número. O código do Signal chegará por SMS e, se não funcionar, solicite o código por ligação internacional.
  5. Pronto, agora você possui um Signal com um número VoIP no mesmo aparelho do seu número principal, mas sem que este número VoIP esteja atrelado à sua localização física.

Para iOS

Importante: Se você não utilizar um aparelho secundário nesse processo, o Signal vai adicionar os contatos da sua agenda na sua nova conta.

  1. No seu dispositivo secundário instale o Signal da App Store. Se você não possui um dispositivo secundário e o Signal já está instalado no seu celular, você precisará desinstalar e com isso todas as informações serão apagadas. Atenção: Não há como recuperar as mensagens apagadas e os seus contatos receberão uma mensagem informando que você mudou de chave.
  2. Se você optou por apagar o Signal, agora instale-o novamente. Toque para abrir o Signal e ao solicitar o número para registro da nova conta, adicione o seu novo número secundário. O código do Signal chegará por SMS e, se não funcionar, solicite o código por ligação internacional.
  3. Pronto, agora você possui um Signal com um número VoIP que não está atrelado a sua localização física!
  4. Se você possui apenas um dispositivo, instale o Signal Desktop no seu computador. Se você já possui Signal Desktop com o seu número primário, é possível criar mais uma conta Signal instalando a versão beta do Signal Desktop. Outras opções: criar uma nova usuária no sistema operacional ou uma máquina virtual.
  5. Para recuperar a sua conta Signal principal, você precisará repetir os passos acima e, ao invés de adicionar o número secundário, você utilizará o número principal.

Finalizando

Após finalizar o registro da sua conta Signal, você deve desativar as chamadas de voz e de texto no Twilio. Como o consumo desses serviços tem um custo (cada chamada ou mensagem encaminhada), alguém poderia utilizar o seu número público para gastar o seu crédito. Para desabilitar, volte na seção deste guia Encaminhando as mensagens do seu número secundário. No Twilio entre na seção “Phone Numbers”, selecione o seu telefone e altere de Twiml Bins para Webhook nos dois scripts que adicionamos anteriormente e salve a nova configuração. Posteriormente se você precisar usar o SMS ou a chamada telefônica será necessário habilitar esses scripts, por exemplo, em alguns serviços que exigem a autenticação em dois passos (2FA) via SMS.

Você pode usar esse mesmo guia para criar números de telefones únicos para a recuperação de contas online de redes sociais ou mesmo para outros aplicativos de mensagem. Ataques de SIM swap contra VoIP serão mais difíceis, pois o atacante precisará primeiro descobrir o número e, no caso do VoIP internacional, será mais difícil tentar se passar por outra pessoa para conseguir o acesso ao número. Essa matéria da Vice mostra o tamanho do problema atual com as operadoras de telefonia e o ataque de SIM swap. Se você estiver com muitas dificuldades em acompanhar o guia e precisa de um número secundário, entre em contato.

Referências

Esse guia foi elaborado e baseado a partir dos artigos abaixo:

Sob cerco do Estado e do garimpo, Mundurukus se organizam para proteger o Tapajós

Indígenas organizam fiscalizações autônomas e tentam pressionar poder público para reverter invasão; suas terras estão entre as mais devastadas do país

Por Pedro Ribeiro Nogueira (Publicada em Agosto de 2021)

“Sou inimigo de garimpeiro e contra o garimpo na nossa terra. Eu quero a terra livre, [viver] em paz, [ter] uma vida sossegada.”, disse Faustino Kabá, em vídeo gravado durante a Assembleia da Resistência. O encontro reuniu mais de 200 Mundurukus de 47 aldeias, em dezembro de 2020 na aldeia Waro Apompu, no rio Cururu, região do Alto Tapajós, na Terra Indígena Munduruku e Sai Cinza para encarar o problema da explosão do garimpo na região e organizar a defesa de seu território.

Da Assembleia de Resistência, além de uma carta com posicionamento e reivindicações, surgiram uma série de expedições autônomas de fiscalização dos Munduruku contra a mineração clandestina. Capitaneadas por 7 associações do povo e encarando a negligência dos órgãos estatais, as fiscalizações levaram homens, mulheres e crianças para tentar conter o avanço da destruição de seus territórios. 

Em março, dezenas de Munduruku foram impedir balsas que levavam tratores para o igarapé Baunilha, porta de entrada do Cururu, a “última fronteira da exploração mineral na TI Munduruku – a área próxima à foz do Rio Cururu”, segundo a nota técnica “O Cerco do Ouro – Garimpo ilegal, destruição e luta em terras Munduruku”, do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, escrito pelas pesquisadoras  Ailén Vega, Laize S. C. Silva, Luísa Molina e Rosamaria S. P. Loures, com base em comunicados, entrevistas, estudos, vivências e documentos das organizações indígenas. Enquanto agiam no território para frear fisicamente a destruição, também notificaram os órgãos responsáveis e pediram que as forças de segurança federais impedissem a continuidade da intrusão dos garimpeiros.

Fiscalização autônoma do território (Igarapé Mapari, TI Munduruku, 2018) > fotos retiradas do relatório

 

“Vamos continuar independentes na proteção de nosso território. Mesmo se não tivermos resposta, vamos continuar guerreiras, guerreiros, caciques e pajés. Seguimos nossa luta com ajuda dos nossos espíritos que nos guiam e dos nossos pajés, nossas organizações do povo Munduruku que estão juntas na defesa do território. Defendemos nosso território porque os nossos espíritos são relacionados com a terra, rio, floresta, animais e peixes, além disso existe uma grande farmácia aberta para os tratamentos de diversas doenças. Terra protegida também é o Grande professor para aprender tudo que tem nela”, disseram, em carta.

Os Munduruku, que se autodenominam Wuy Jugu (“nós somos pessoas”) ressaltam em suas falas, ações e comunicados que é assim que se resolvem e que funcionam enquanto povo: decidindo e agindo coletivamente. Não tem uma organização que responda por todos, nem vereador, nem liderança. 

O Protocolo de Consulta, documento elaborado coletivamente pelo povo em 2014, deixa bem claro: antes de qualquer aventura dos de fora no território, “devem ser consultados os sábios antigos, os pajés, os senhores que sabem contar história, que sabem medicinas tradicionais, raiz, folha, aqueles senhores que sabem os lugares sagrados. Os caciques (capitães), guerreiros, guerreiras e as lideranças também devem ser consultados”.

Resistência ancestral 

“Os pajés nos ensinaram que os espíritos precisam ser consultados antes da retiradas deles sobre qual o melhor lugar para ir”, reforça Alessandra Korap, da Associação Wakoborũn, formada por mulheres Munduruku, ao lembrar da ação em 2019 que resgatou doze urnas funerárias, retiradas à revelia dos Munduruku, de lugares sagrados durante a construção das barragens hidrelétricas de São Manoel e Teles Pires, em 2010. Cerca de 70 indígenas ocuparam o Museu de História Natural em Alta Floresta, no Mato Grosso. 

O blog Ativismos conversou com Alessandra Korap Munduruku, quando ela estava voltando do Levante Pela Terra, em Brasília, uma mobilização que juntou mais de mil indígenas de 45 povos ao longo de junho em um acampamento para lutar contra o PL 490, que inviabiliza novas demarcações e permite mineração em Terras Indígenas, e pressionar o Supremo Tribunal Federal que irá decidir sobre o destino da TI Xokleng, em Santa Catarina, e sobre a tese ruralista do Marco Temporal, que também visa impedir a criação de novas TIs.

Para chegar em Brasília, muitos dos Munduruku tiveram que enfrentar obstáculos poderosos: capangas de garimpeiros furaram os pneus e ameaçaram o motorista que os levaria até a capital. Chegando no Levante pela Terra, foram reprimidos ao tentar uma reunião com a Funai para tratar das invasões em seus territórios.

“Quem defende de fato o meio ambiente somos nós, os indígenas, que enfrentam de corpo e alma os ataques de garimpeiros e nos preocupamos com a floresta. São as áreas mais preservadas e não é à toa”, diz Korap, ressaltando a presença cada vez maior das mulheres na luta. “A gente bate de frente com o garimpo, apesar das ameaças e perseguições cada vez maiores. A situação piorou muito recentemente, com esse governo federal anti-indígena. No começo eu achava que ele não gostava só da gente. Mas, a gente percebeu que ele não gosta de ninguém”, diz.

Se os desafios e ameaças são grandes, as frentes de luta são muitas: educação, comunicação, escrever cartas, protestar, fiscalizar e bater de frente e, também, gerar renda. Recentemente, as mulheres Munduruku abriram uma loja de artesanato em Itaituba, conforme Korap anunciou em seu Twitter.

 

Alessandra também foi uma das responsáveis por pressionar para que a Fiocruz fizesse uma pesquisa na região para avaliar a contaminação do mercúrio vindo do garimpo. O metal pesado, uma vez na cadeia alimentar, causa uma série de doenças na população e afeta o modo de vida e a capacidade de auto-sustento dos Munduruku. O resultado do levantamento é assustador: 100% dos Munduruku apresentam níveis alarmantes de contaminação de mercúrio.

Os Munduruku do Médio Tapajós começaram também a realizar, em 2014, a autodemarcação da Terra Indígena Sawré Muybu. Expedições de indígenas, com auxílio de mapas, GPS e placas demarcando os limites da Terra Indígena, pressionaram os órgãos federais a acelerarem a publicação do relatório da Funai que já estava pronto desde 2013. As mobilizações foram importantes no processo que culminou na suspensão dos planos de construção do Complexo Hidrelétrico do Tapajós, que alagaria as terras indígenas em processo de regularização.

As expedições também atuam na expulsão de madeireiros e garimpeiros que cada vez mais invadem o território, derrubam suas matas e poluem os rios com mercúrio. “Os invasores estão matando a nossa vida e derramando o sangue da nossa floresta. A nossa vida está em perigo. Mas por isso, nós vamos continuar mostrando a nossa resistência e a nossa autonomia. Somos capazes de cuidar e proteger o nosso território para nossos filhos e as futuras gerações. Ninguém vai fazer medo e ninguém vai impedir porque nós mandamos na nossa casa que é nosso território”, disseram em carta os Munduruku após a quinta etapa de demarcação das TI, em 2019.

Apesar dos esforços, até hoje as TIs Sawre Muybu e Sawre Bapin ainda aguardam sua demarcação definitiva.

Rastro de destruição

No ano de 2020, as TIs Munduruku e Sai Cinza perderam mais de 2 mil hectares de floresta. Em 2019, foram 1835. A maior parte delas, para as atividades de mineração clandestina.

Falar em garimpo ou mineração clandestina muitas vezes não ajuda a dimensionar o tamanho do “inimigo”. São empreendimentos milionários, apoiados por lobistas em Brasília, vereadores, deputados, senadores, governadores, ministros e até o presidente. As ondas de superexploração do recurso na Amazônia, por exemplo, respondem às flutuações no mercado internacional do ouro. Os lucros, evidentemente, não ficam com os trabalhadores ou até mesmo indígenas aliciados, muitas vezes em situação de trabalho escravo, que são as pernas e braços das “corridas do ouro”. O que fica, depois da miragem do progresso, é a destruição das florestas e a poluição dos rios com mercúrio.

Desde 1747, sabe-se que a região do Tapajós é rica em ouro, mas apenas desde o final dos anos 1950 que a região começou a ser explorada. Entre os anos 1970 e 90, apoiado pelo estado, aconteceu a explosão da mineração na região que hoje abriga as terras indígenas.

“As comunidades locais contam, em seus inúmeros registros de cartas e manifestos, que os garimpos ilegais nunca deixaram de causar prejuízos e problemas nas terras indígenas devido à exploração descontrolada e ao aumento vertiginoso de pariwat garimpeiros no território. Poluição do rio, falta de peixes, doenças, violência contra as mulheres, presença de armamentos, infecções sexualmente transmissíveis, drogas e álcool, desentendimentos e conflitos internos no território são os principais elementos apontados como danosos nessa situação”, diz a nota técnica.

No entanto, nos últimos anos essa presença se intensificou. Entre 2017 e 2019, houve um aumento de 239% da atividade garimpeira. Em 2020, as TIs Munduruku e Sai Cinza somaram 60% dos alertas de desmatamento em territórios indígenas.

A pressão sobre os territórios cresceu muito durante a pandemia, quando o preço do ouro subiu e o governo federal aproveitou para “passar a boiada”. O ex-ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, inclusive visitou Jacareacanga (PA) e defendeu a atividade garimpeira. Na mesma época, a operação Pajé Brabo II, que tentava combater o garimpo, foi suspensa.

O governo federal também já usou aviões oficiais para levar Mundurukus aliciados pelo garimpo e empresários da mineração para Brasília para defender a atividade.

Ameaças além do ouro

A antropóloga, pesquisadora e ativista, Luisa Molina, afirma que a região do Tapajós e suas populações enfrentam um “mosaico de ameaças”. Segundo ela, a região é de grande importância logística para o agronegócio, enfrenta planos de hidrovias para transportes de grãos, portos que atropelam comunidades, construções de mega projetos, como hidrelétricas, o garimpo. 

São os “projetos de morte”, como denominam os indígenas, as ameaças à vida dos mais de 15 mil Mundurukus distribuídos entre o Alto e Médio cursos do Tapajós e do Teles Pires, que também vivem nos municípios de Itaituba, Novo Trairão e Jacareacanga, no Sudoeste do Pará. 

“Quando a gente fala da luta dos Munduruku a gente tem que levar todas essas frentes de resistência em consideração”, diz Molina.

Os Munduruku, segundo a história de criação do mundo contada por eles, foram incumbidos pelo demiurgo Karosakaybú, de proteger o rio Tapajós e suas florestas. “Eles têm que cuidar de onde moram os ancestrais, dos animais, dos rios. Em cada um desses lugares vivem os espíritos, todas as coisas são vivas, perigosas e demandam cuidado. E a luta é para garantir isso: a vida da terra para todos eles, uma perspectiva de futuro autodeterminado”, afirma a antropóloga. 

Para saber mais e apoiar:

“A primeira coisa é escutá-los”, diz Molina, citando não apenas os perfis nas redes sociais de Mundurukus, como Alessandra Korap, mas também os blogs e sites das associações, como o do movimento Ipereg Ayu, que também mantém um canal no Youtube. “Precisamos multiplicar o acesso às vezes, às cartas, os manifestos e notícias que eles mesmo produzem”.

Ela também destaca a importância de participar localmente de protestos contra os “projetos de morte”, como o PL 490, que poderá ser aprovado no Câmara dos Deputados, assim como fazendo parte das mobilizações online promovidas pelas organizações indígenas, como a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). E denunciar ataques contra organizações, territórios e lideranças dos povos, como quando a sede da Wakoborũn foi depredada.

“Quando estivermos na rua, temos que lembrar de defender os direitos indígenas. Eles dizem respeito a todos nós. Se o garimpo aumenta na terra indígena, todos que dependem do rio são prejudicados. Se há desmatamento, as tragédias climáticas se aceleram e todos sentem. Fora que o cerne do Bolsonarismo está ligado ao agronegócio e as disputas fundiárias. Quem se diz antifascista, não pode se afastar da pauta indígena e ambiental. Precisamos desse investimento coletivo para combater essas ameaças”, finaliza Molina.

Mais informações e leituras:

Nota técnica: O Cerco do Ouro

Governo Karodaybi: o movimento Ipereğ Ayũ e a resistência Munduruku

‘As mulheres Munduruku estão envenenadas por mercúrio e temos provas’, denuncia líder indígena

A resistência ao garimpo que o governo tenta ocultar

O ativismo como forma de cura – pela possibilidade de narrar e formular sobre a própria dor

Por Pedro Obliziner, coletivo Margens Clínicas

A pessoa que sofre uma ação violenta está, no momento no qual a violência ocorre, no ponto mais passivo frente a este acontecimento, com recursos reduzidos para escapar do que lhe acontece e, a partir daquele ato, sua vida se modificará de alguma forma, de formas mais ou menos drásticas. No instante seguinte à violência sofrida, a pessoa começa a retomar as rédeas de sua subjetividade. O primeiro passo para tal ocorre internamente enquanto ela escolhe como pode registrar aquela cena para si própria – o que vai se lembrar, o que vai esquecer, que interpretações dará a cada elemento -, em um segundo passo, ela ganha ainda mais controle sobre o passado quando narra o acontecido para outras pessoas, o que pode se desdobrar em outras ações possíveis, como reivindicações, mobilizações sociais, artísticas e afetivas.

Qualquer um desses passos, contudo, pode ser prejudicado por interditos sociais, bloqueios das narrativas efetuadas por uma moral vigente que é apoiada e apoia violências estruturais, como, por exemplo, as diversas formas que nossa sociedade tem para dizer que pessoas negras que morrem assassinadas pela polícia não devem ser mortes lamentadas pois seriam “bandidos” ou não seriam “pessoas de bem”. Estas formas de negar o que aconteceu interrompem o processo de se tornar ativo em sua própria história, arremessando a pessoa novamente para a posição passiva e subjugada, e, como nós, profissionais de saúde mental, podemos observar, constitui um impedimento para a elaboração do que ocorreu e um ponto decisivo para a instauração de fato traumático na subjetividade daquele sujeito.

É isto que levou o psicanalista húngaro, Sándor Ferenczi, a afirmar em 1931: “o pior é realmente o desmentido, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento” (em Análise de crianças com adultos, ed. Martins Fontes), ou seja, o que cria uma ferida no psiquismo do sujeito não é o ato violento em si, mas uma experiência social na qual a sua narrativa é desautorizada, negando a sua experiência.

Este reconhecimento negado pode se dar em diversas esferas, a) o déficit de reconhecimento pode ocorrer na esfera do amor, com pessoas que estimamos afetivamente, mas que passam a negar este amor frente a algo do qual discordam, vemos isso frequentemente em relações de pais e filhos, quando os pais passam a ver com maus olhos novas formas dos filhos se expressarem, seja em sua expressão de gênero, sexual, escolha profissional, etc.; b) este déficit de reconhecimento por ocorrer numa esfera legal, na qual somos vistos como sujeitos jurídicos detentores de certos direitos, mas, em algum momento, percebemos que uma lei que deveria ser universal é aplicada a um, mas não a outro; c) por fim, o déficit de reconhecimento pode se dar na esfera da coletividade cívica, na qual vemos um ao outro como parte de um todo, uma comunidade, as trocas aqui ocorrem por meio da solidariedade ao meu igual, o que também pode ser negado quando eu passo a dizer que aquele igual não é tão igual assim, que não deveria ser parte da minha coletividade do modo como a vejo.

A situação se agrava conforme mais destas esferas ficam comprometidas, de forma oposta, a preservação do reconhecimento em algumas destas esferas pode servir como alívio para uma violência sofrida em outro âmbito. Se sou expulso da casa dos meus pais por, por exemplo, ser homossexual, sofrerei de maneiras bem distintas se minha nação tiver leis consolidadas me beneficiando – o direito ao casamento com parceiros do mesmo sexo, adoção de crianças etc. – e se o restante da sociedade civil me apoia e não me discrimina do que se eu for expulso da casa dos meus pais e, ainda assim, viver em um país onde a violência heteronormativa for estrutural e pungente.

Estou me embrenhando nessa discussão sobre formas de reconhecimento por dois motivos. O primeiro é para demonstrar que as bases das violências políticas (nome mais amplo que utilizo para me referir a violências estruturais como racismo, transfobia, machismo, assim como diversas categorias de violências de Estado) são violências simbólicas que gerem formas de reconhecimento, mesmo que seja o reconhecimento de quem merece ou não ter acesso a recursos materiais, como saneamento básico. Recentemente, a cantora Elza Soares escreveu uma carta à mãe de Kathlen Romeu que exemplifica bem isto:

“A coisa é mais profunda do que querem nos fazer acreditar. Começa ali na falta de esgoto nas favelas e comunidades, na falta de escolas, de hospitais, de cultura e lazer para nossas crianças. Na criminalização dos ritmos musicais e das manifestações culturais que surgem no morro, como o samba, a capoeira, o funk e tudo que a gente produz. Começa na omissão do poder público na base, na educação dos nossos jovens.”

Elza Soares

O segundo motivo é demonstrar que as possibilidades de realização ou irrealização do reconhecimento condicionam nosso sofrimento. Sofremos mais ou menos, ou de uma forma outra, conforme vamos encontrando gramáticas de reconhecimento possíveis, o que exige um trabalho criativo de nossa parte. Dentre estas formas, uma muito potente é o encontro com outras pessoas que sofreram uma experiência similar a sua e que podem, então, se organizar enquanto uma pequena comunidade que passa a difundir a sua narrativa e suas reivindicações. O lema “do luto à luta” que vemos em familiares de pessoas assassinadas pela violência policial exemplifica bem este recurso. Um luto, antes impedido pelas formas de violência do Estado, que passa a ser impulsionado não só pela luta destas mulheres frente às injustiças, mas também pelo acolhimento e companheirismo que vai se formando entre elas.

Deixando de ser indivíduos para se tornar comunidade

A possibilidade de coletivizar – ou aquilombar-se – tem muitas repercussões na história de vida de uma pessoa, um deles é ampliação do horizonte de seu sofrimento. A psicanálise já constata que, no percurso de um tratamento, um passo fundamental é que o sujeito saia da percepção de que sua forma de sofrer é única, criada só para ele – o que Lacan chama de mito individual do neurótico -, para perceber que outros sofrem de maneira parecida. Isto muda a forma de expressão do nosso sofrimento, como falamos sobre ele, o que modifica o próprio sofrimento em si. Alguém pode sair de uma expressão de culpabilização como “não consigo me desenvolver profissionalmente porque sou incompetente” para uma expressão de injustiça social como “eu e outros negros do meu serviço não somos promovidos a cargos superiores por conta do racismo”.

Diferente de um senso comum que vê essa passagem como uma desresponsabilização e conformismo, como se eu não pudesse fazer nada a respeito já que é algo maior do que a minha capacidade, tanto esta mudança de percepção quanto uma necessidade de dar um endereçamento a sua dor pode convidar a pessoa ao engajamento, ao esforço de encontrar estas outras pessoas que sofrem disso e de se mobilizarem. Vemos um exemplo disto novamente na carta de Elza Soares:

“Com o tempo você aprenderá a suportar essa dor, a conviver com ela e com a revolta que ela causa em você e nos seus. Isso fará você cada vez mais forte e mais sedenta por justiça, e essa luta para que a justiça seja feita te dará um novo sentido para viver.

Foi assim comigo. Eu comecei a cantar para salvar meu filho da fome, para dar a ele o que comer, mas aquela batalha eu perdi. A partir dali começou a minha guerra, minha luta por cada uma de nós”

Elza Soares

O juntar-se a outras pessoas muitas vezes traz um alívio imediato que é fruto exatamente da mudança de cenário. Se antes a pessoa se via em um deserto árido, onde não encontrava um solo apropriado para sua história germinar, agora ela está em um grupo que a acolhe, entende a sua dor e suas motivações. Isto, contudo, não tem um caráter definitivo, já que logo os limites de atuação do grupo se tornam visíveis, as antigas violências são revividas e novas violências surgem, como podemos ver no alto índice de perseguição e repressão que ativistas sofrem em nosso país. Além disto, o próprio convívio em um coletivo ou organização não está livre de problemas de qualquer forma de socialização humana. Cria-se, no interior do grupo, um circuito próprio de reconhecimento, onde alguns podem se ver mais ou menos contemplados nas dinâmicas de poder ou nas demandas de amor advindas das formas de organização escolhidas, assim como apresentarem diversos níveis de satisfação ou culpa na realização das tarefas.

Ainda assim, o engajamento em grupo, o ativismo, permite a mudança da expressão que damos ao nosso sofrimento, desindividualizando-o e permitindo que ele recupere sua função de estabelecer vínculos sociais com os demais. Ele também vai além, gerando uma força de tensionamento das visões hegemônicas da nossa sociedade, ou seja, o ativismo também quer mudar como os outros membros da nossa comunidade se expressam sobre determinado sofrimento. Enquanto escrevo este texto, no meio de 2021, acontecem diversas manifestações que pautam a crise de saúde que vivemos com o covid-19 como genocídio, apontando as ações, e falta de ações, de diversos setores da nossa sociedade – como lobistas de empresas privadas, a mídia e comunicadores e, principalmente, o governo federal e nosso presidente Jair Bolsonaro – como responsáveis pelas já mais de 500 mil mortes. Atos que se colocam em oposição à narrativa de que seria uma tragédia natural.

Aqui, é importante um referencial de vermos a memória, o que implica aquilo que será transmitida aos outros, como memória coletiva. A memória coletiva envolve uma polifonia, diversas versões de um mesmo acontecimento que podem se chocar em oposição umas com as outras, mas que ainda assim continuam coexistindo, permitindo que as visões sobre um mesmo acontecimento continuem vivas e se modificando, aceitando os incômodos das contradições que existem entre essas diversas narrativas ao invés de ter que causar o silenciamento daquelas que se mostram inoportunas.

Muitas formas de ativismo e militância são resistências a este apagamento, por isso que muitas vezes apenas o ato de um sujeito mostrar que ele existe e ocupa uma posição social de difícil acesso a ele já é uma forma de resistência. As expectativas do ativismo, contudo, vão além da demonstração, buscam ações práticas como melhorias na qualidade de vida, acesso à saúde, educação, outras vezes indenizações financeiras e territoriais pelo que já foi retirado indevidamente.

Ainda que no início do texto, com o apoio de Ferenczi, foi apontado que a origem do adoecimento mental é um processo social de desautorização de uma experiência, os processos de reparação não podem ser apenas simbólicos. É importante frisar que, em investigações clínico-científicas, pode-se constatar que estas ações, para se tornar efetivas, devem combinar efeitos práticos e materiais com rearranjos simbólicos, como explicaremos a seguir.

Tanto o acesso a recursos materiais (indenizações na forma de dinheiro, moradia etc.) quanto de atos simbólicos (demonstrações públicas, mobilizações culturais etc.) podem significar tanto um freio para que a violência cesse quanto uma possibilidade de elaboração do que ocorreu no passado. Contudo, por vezes, estas ações se dão de forma parcial. No início das indenizações financeiras às pessoas violentadas pela ditadura militar, as famílias conquistaram, através de muita luta, ressarcimentos pelo Estado, mas, estas compensações financeiras não vinham acompanhadas de atos simbólicos, o que impedia que a comunidade tivesse conhecimento daquelas histórias, das violências sofridas e de seus efeitos através de gerações. O mesmo ocorre quando há apenas atos simbólicos sem a modificação da estrutura, quando, por exemplo, empresas fazem campanhas publicitárias exaltando a diversidade e tolerância, mas reproduzem internamente as lógicas de exclusão.

Estas lutas são por recursos materiais para a modificação das condições de existência, o que resulta na melhoria imediata da qualidade de vida, mas são também sobretudo lutas por reconhecimento, pois só assim elas podem romper a barreira do individualismo para afetar a coletividade, garantido que algo na sociedade seja reestruturado em direção a um futuro diferente.

Neste texto, então, vimos como diversos elementos envolvidos na mobilização social modificam nossas narrativas de sofrimento, transformando um adoecimento individual e alienado em possibilidade de comunhão e/ou disputa social. Um segundo texto fará outra análise de funcionamentos psíquicos envolvidos no ativismo, desta vez no ato de amparar pessoas violentadas e escutar suas histórias.

Como escutar sujeitos violentados? – por processos de acolhida que não causem ainda mais dor

Por Pedro Obliziner, coletivo Margens Clínicas

Arte de Noemi Martinelle

No texto “O ativismo como forma de cura”, procurei deixar em evidências algumas características importantes que o ativismo pode ter com relação à subjetividade daquela pessoa que inicia uma atuação de resistência e transformação social a partir de uma experiência de injustiça e violência. O ativismo, então, pode ser um ponto importante para ressignificar os eventos vividos, pois pode apresentar outras interpretações e modificar a percepção do sujeito não só quanto as causas do seu sofrimento, mas também sobre os caminhos possíveis para tratá-lo, algo muito evidenciado na frase já bastante conhecida “do luto à luta”. Neste texto, gostaria de propor um deslocamento de ponto de vista, colocando em foco o ativista que, como consequência de sua ação, entra em contato com inúmeras pessoas que vem lhe pedir ajuda.

Tenho, como característica de minha prática clínica, o fato de ter atendido e atender muitos ativistas e militantes de vários campos, o que me permitiu, com o tempo, reconhecer narrativas de sofrimentos comuns, que passam por questões semelhantes, ainda que preservando a particularidade da história de cada sujeito. Estes sofrimentos, muitas vezes, dividem os ativistas em dois grupos, aqueles que sofreram alguma violência e se mobilizaram para resistir e lutar por justiça e aqueles que se mobilizaram por convicções ética, políticas e de solidariedade. Esta divisão, em última instância, não faz sentido quando fazemos uma análise das violências enquanto violências estruturais, na qual cada um é afetado e tem um papel a cumprir a sua maneira, por exemplo, uma pessoa branca ainda sofre com o racismo ao constituir sua imagem como a de uma pessoa branca, ainda que esse sofrimento seja muito diferente dos indígenas e negros. Ainda assim, esta bifurcação de narrativas entre os ativistas geralmente marca diferenças importantes de classe, raça, gênero e sexualidade. Muitas vezes um ativista pode retornar a sua casa em um bairro rico ao final do dia de trabalho e se sentir mais afastado daquela realidade violenta, enquanto outros ativistas estão imersos na violência que combatem, seja porque moram em um local ameaçado ou têm a pele de uma determinada cor.

As intersecções de raça, gênero e classe vão influenciando as posições subjetivas que o ativista adota considerando o outro que ele encontra e se relaciona (transferência), como ele responde ao que estas pessoas ou sua organização lhe pede (demanda) e as soluções para os problemas que ele encontra (saber). Cada um destes eixos pode gerar respostas distintas: as violências estruturais são incessantes e massivas, o que causa uma demanda constante e sempre com o caráter de urgência, o que faz com que muitos militantes sejam impelidos a trabalhar mais e mais, ou a se frustrarem com a sensação de que estão “enxugando gelo”. O encontro com o outro também suscita uma série de reações em nós. Alguns podem se sentir culpados por ter mais recursos – materiais ou subjetivos – do que as pessoas que está lidando diariamente, outra pessoa pode se ver com raiva e tentando afastar alguém que demonstra agressividade em meio ao seu pedido de ajuda. Os diversos desafios das ações podem nos colocar em conflito com o saber, seja na impotência de achar que não se sabe nada ou na onipotência da ilusão de pensar que já tem a resposta.

Todas estas são angústias daqueles que estão do outro lado, o de alguém que está entrando em contato com pessoas violentadas. Iremos utilizar a prática da escuta como um percurso que visita todos estes dilemas. O texto “o ativismo como forma de cura” mostrou como o trauma frente às violências políticas é uma patologia da escuta e da fala –a escuta negada que silencia aquele que tinha algo a dizer –, sendo assim, a disponibilidade de escutar tais histórias reprimidas é um recurso importante para lidar com esses efeitos de adoecimento. É aqui que reside a relevância de que profissionais qualificados se disponham a atender estas pessoas, algo que eu e o coletivo do qual faço parte, Margens Clínicas, nos dedicamos há quase uma década.

Para além disto, é de nosso entendimento que há muitos outros profissionais da escuta, fora psicólogos e psicanalistas: professoras, enfermeiras, motoristas, porteiros, assistentes sociais, pessoas que passam boa parte do dia escutando aqueles que o rodeiam. Nesta posição também vemos diversos ativistas. A diferença destes para os terapeutas é que muitas vezes eles não sabem o que fazer com aquilo que escutam. São relatos difíceis de suportar, que muitos preferem ignorar a existência, e que afetam aquele que escuta de diversas maneiras. É pensando nessa atuação em rede e voltada para a criação e fortalecimento de políticas públicas que criamos o projeto Rede para Escutas Marginais (REM), uma formação visando o desenvolvimento da escuta destes profissionais e a criação de dispositivos de enfrentamento dos efeitos psicossociais das violências políticas. Tentarei transmitir aqui algumas das reflexões que nos movem.

Um dos princípios básicos é que, para exercer uma prática do cuidado, é preciso, antes de tudo, cuidar-se. É por isso que todo psicanalista faz não só a sua análise pessoal, como também supervisões. Enquanto a primeira tem o intuito de tratar daquilo que ele está sofrendo, seja angústias vindas da própria profissão, dos casos em que escuta, mas também dilemas pessoais, problemas de relacionamento, dificuldades de dormir, enfim, qualquer sintoma que mostre a sua dor. A análise é um tratamento e, assim sendo, não pode ser um meio para outra coisa, ninguém faz análise só porque quer virar psicanalista e atender outras pessoas. É preciso encontrar seus próprios motivos, “onde apertam os seus sapatos”, o desejo de transformar algo em suas vidas. Contudo, ela tem, sim, efeitos na prática profissional, já que aquela pessoa que está muito presa às suas próprias angústias fica surda às angústias do outro.

O outro dispositivo, as supervisões, tem um enfoque mais restrito à prática profissional, é um espaço onde levamos casos que estão nos inquietando e estas outras pessoas, mais afastadas e descoladas do caso que está sendo atendido, tem a capacidade de nos emprestar “ouvidos frescos”, menos tomados pelos afetos que o caso está mobilizando. Este último aspecto – como somos tomados emocionalmente pelo que lidamos – é chave para entender que uma boa supervisão não é uma mera orientação técnica, onde alguém que supostamente “sabe mais” vai te dizer o que fazer, mas uma possibilidade de acolher as dificuldades profissionais. A supervisão representa, acima de tudo, um espaço, uma pausa. Ali onde se pode parar para refletir, ao invés de simplesmente continuar reagindo às demandas que não param de chegar.

Não faço aqui uma defesa de que todos estes profissionais e ativistas devam se tornar psicanalistas, mas utilizo as “tecnologias” por nós criadas para apontar para coisas importantes, a necessidade do cuidado tanto com nós mesmos, seres cuidantes, quanto com a nossa prática cotidiana. Aqueles que vão lidar com a escuta da violência se beneficiariam da possibilidade de replicar estas condições, mesmo que com outros recursos.

Sendo o autocuidado a condição básica para escutar, podemos olhar para outras condições que envolvem endereçar o que foi dito pelo outro. Aquele que se mostra disponível é muitas vezes convidado pelo outro a “responder”, a dar uma sugestão, conselho ou até mesmo executar uma ação que poderia minimizar o sofrimento. Todas essas alternativas podem esconder armadilhas. É preciso refletir se a intervenção está potencializando a pessoa, sendo mais um passo dela em direção à mobilização, a transformação e a cura, ou se a intervenção, movida pela angústia, é uma tentativa de aplacar o desamparo.

Para Freud, experiências de desamparo nos remetem às nossas primeiras experiências enquanto bebês, nas quais dependemos de outros seres para continuar vivos, tanto sendo nutridos com o leite materno quanto protegidos de qualquer ameaça. Ver-se novamente desamparado faz com que o sujeito queira retornar a este estágio, ele aceita renunciar a sua autonomia em busca de segurança, é como uma proposta “aceito deixar de ser livre se você prometer me amar e me proteger”. É uma posição ética não aceitar essa proposta, apostando na autonomia de cada ser.

Respostas ao desamparo que transmitem a mensagem “fique calmo, você vai parar de sofrer”, “vai ficar tudo bem”, são um caminho rápido para algo pior, pois quem poderia tirar a dor de uma mãe que perdeu seu filho ou a dor de alguém que perdeu sua casa e seu modo de vida depois de um desastre ambiental-capitalista como o de Altamira e Brumadinho? O que foi perdido será sentido para sempre como falta. Muitas destas demandas não têm respostas mágicas, e se recusar a dar promessas de amparo causam novos sofrimentos próprios, o sofrimento do cuidante ao se deparar com a sua impotência, mas também o sofrimento daquele que suplicava ao ver a não-resposta do cuidante, frustrando-se por não ver a sua dor sendo levada embora.

Esta postura exige que sejamos capazes de suportar seus efeitos, o que passa pelo autocuidado, mas é sobretudo uma postura de humildade ao respeitar um outro princípio que a psicanálise aborda e que está relacionado à autonomia: aquele que fala sempre sabe mais sobre si do que aquele que ouve, o saber é do sujeito. Não importa se já atendi mil pacientes em minha vida, ainda não escutei aquela próxima história, ela é única. A escuta está fundada no nosso não-saber enquanto escutadores, afinal, se soubéssemos antes de escutar o outro, por que perderíamos tempo escutando?

Quando você quer saber demais sobre um outro que não é você, você certamente está adotando uma postura violenta e autoritária. Portanto, não escutar verdadeiramente, ainda mais quando se está em uma função de cuidado, é reproduzir diversas violências. Vemos isto com frequência em serviços do SUS e SUAS, serviços que devem beneficiar a população, mas que se veem emaranhados pelas mesmas violências estruturais que o resto da sociedade. Isto faz com que algumas de suas intervenções também sejam marcadas por ignorar as formas sutis que as violências ocorrem, os silenciamentos, isto faz com que serviços de cuidado acabem atuando como o braço não armado da violência de Estado.

Aqui, é importante a noção de que uma fonte de sofrimento não vai cessar só porque foi reprimida, ela vai sair pela culatra. Os sofrimentos não autorizados buscam outras formas de se exprimir e serem reconhecidos como necessidades, uma mensagem de “preciso ser cuidado” que não conseguiu vir à tona da forma original, o que deixa a verdadeira causa do sofrimento mais difícil de ser identificada. Por exemplo, uma mãe que perde seu filho pela fome ou pela bala pode começar a apresentar perturbações em sua pressão cardíaca, talvez até um ataque do coração que a leve até uma UBS para ser atendida. Uma vez lá, porém, seus sintomas vão ser tratados como uma disfunção no coração, será receitado a ela um remédio cardíaco para tomar diariamente e, novamente, a fonte de seu sofrimento não será escutada. Aqui, o serviço do SUS, que deveria cuidar, reforça uma violência e isto ocorre porque ele foi incapaz de acessar a causa do sofrimento.

Isto ocorreu porque a pessoa que estava ali como clínico, frente a sintomas que deveriam ser tratados, não teve a postura humilde de reconhecer que realmente não sabia o que se passava, este clínico hipotético acreditou que sabia que realmente a causa daquilo que ele viu como um resultado de 180/90 no marcador de pressão arterial e foi autoritário, o que talvez pudesse ter sido evitado se ele tivesse os recursos para perguntar “dona, por que a senhora acha que está tão nervosa?”. E esta recusa em assumir a posição de saber tem efeitos profundos, visto que disponibilizar a escuta para alguém é, no fundo, possibilitar que a pessoa escute a si mesma, como numa possível resposta “está difícil demais viver desde que perdi meu filho”. Se no primeiro texto falamos muito de reconhecimento, temos aqui um reconhecimento muito especial, quando o sujeito reconhece o seu próprio desejo, o que envolve também reconhecer as escolhas e renúncias que ele deve fazer para realizá-lo.

O respeito a palavra é também confiar que aquela pessoa pode se transformar, o que nos impede de dizer “fulana é assim”, sem nenhuma possibilidade de que ela seja outra coisa. Há sempre a esperança do novo, ainda que um novo que carregue a nossa história com ele. Achar outras palavras é modificar a experiência, literalmente modificando o passado, o que ocorreu e que memória temos dele, não só enquanto experiência individual, mas modificando aquilo que está ao nosso redor. É aqui que estão o meio e o fim de todos nós, ativistas e militantes.

Ocupar a política e construir na caminhada

Enquanto o Brasil vive o momento mais sombrio de sua história pós-redemocratização, a imaginação política parece ressurgir e se fortalecer com os mandatos coletivos

Por Ana Soares, Cora Lima, Isabela Cordeiro, João Pinto do Coletivo Baru

Com o intuito de “ocupar o espaço controlado há tanto tempo por latifundiários, herdeiros, lobistas, patriarcas e endinheirados que só legislam em causa própria”, como lemos no textão-manifesto da articulação Ocupa Política, surgem novas propostas de um fazer político democrático, cooperativo e afetivo no âmbito da política institucional. Diferentemente daqueles que sempre fizeram a maioria nos partidos e casas legislativas – tradicionalmente branca, masculina, cisheteronormativa e rica – estas pessoas são “mulheres, mães, famílias, negras e negros, trabalhadoras e trabalhadores, LGBTIQ, povos tradicionais, jovens, pessoas com deficiência, ativistas de muitas causas”, vindas “das periferias e dos centros urbanos, das zonas rurais, de quilombos e aldeias indígenas, de movimentos populares, praças, palcos e salas de aula”.

A ideia de ocupação da política, porém, traz os conflitos que necessariamente qualquer proposta de ocupação carrega. Se um espaço precisa ser ocupado, é porque sua estrutura vigente não dá conta das demandas, dos corpos e das perspectivas que estão entrando lá quase sempre pela primeira vez. Com os mandatos coletivos não foi diferente, e os desafios internos e institucionais enfrentados por eles apresentam perguntas que ainda precisam ser respondidas. A principal delas, de caráter pragmático, é a que diz respeito à regularização desta nova forma de fazer política.

Robeyoncé Lima, codeputada estadual das Juntas (PSOL), de Pernambuco, vê neste descompasso entre o sucesso eleitoral das candidaturas coletivas e sua não regulamentação um sintoma da falta de sintonia entre o povo e as instituições representativas. Para ela, entretanto, isso não deve ser encarado como derrota, mas como sintoma e combustível para encarar mudanças estruturais dentro e fora desses espaços. “A gente tem a legitimação popular das pessoas que votaram na gente, que votaram no projeto político, mas essa legitimação técnico-jurídica, digamos assim, ainda está pendente. Mas não impede que venha a acontecer num futuro próximo. E também, no fim das contas, é só um exemplo de o quanto a sociedade está mais avançada do que o próprio processo eleitoral, que anda a passos lentos”, comenta.

Robeyoncé Lima, codeputada estadual das Juntas (PSOL) / Crédito: divulgação

Como a legislação não “comporta” um mandato coletivo, a forma mais comum é uma pessoa representar o mandato e as demais ocuparem cargos de assessoria. Os desdobramentos dessa relação são alvo de críticas de opositores das  propostas de mandatos coletivos, que entraram com uma ação no Tribunal Superior Eleitoral para que se “reconheça” o que está previsto na lei.
 
Vale mencionar que corre um projeto de lei na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados para que se estabeleçam regras para essas candidaturas, que está parado desde 2017. A urgência de discutir este projeto, uma vez que estes mandatos são realidade, é necessária para entender e estabelecer como seria a divisão de funções e ocupações de cargos em comissões, por exemplo, a divisão de salários, a possibilidade de a candidatura nas eleições levar a foto de todos os participantes e não apenas da ou do representante do CPF nas urnas.

Robeyoncé avalia a mandata coletiva da qual faz parte como uma força que reestrutura a própria forma das instituições de se compreender internamente: “A presença das Juntas dentro desse espaço institucional forçou o parlamento a uma certa reconfiguração não só arquitetônica mas também no próprio trato com as codeputadas, no próprio referenciamento do que é um mandato, na própria simbologia de um mandato, que até então só se entendia como sendo um mandato individual, personalíssimo e intransferível, como diz a legislação eleitoral”

O embate entre a velha política institucional e essas novas propostas se dá constantemente, com claros sinais de que ainda há muito a avançar para tornar os mandatos coletivos uma realidade estabelecida. É o que vemos com a Bancada Ativista, que encontrou empecilhos para sua entrada na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) logo em seus primeiros momentos depois de eleita. Na diplomação de Mônica Seixas, codeputada que encabeça a Bancada, os codeputados que dividem com ela o cargo não puderam acompanhá-la no palco. No dia-a-dia isso não se dissolve, mas o mandato coletivo se afirma no espaço por meio da criatividade, como Caio Tendolini,  um dos idealizadores da Bancada Ativista, de São Paulo, pontua. Levar o vídeo de uma covereadora indígena para discursar sobre uma pauta na plenária onde ela não foi autorizada a entrar, por exemplo, foi uma das soluções encontradas para fazer essa presença ser ouvida.

Ocupar todos os espaços que forem possíveis e, naqueles em que não for possível, tentar ir cavando as brechas a colher, pra depois, quem sabe, a gente conseguir transformar os projetos de lei e os mandatos coletivos em uma realidade institucional”, diz Bella Gonçalves, co-vereadora das Muitas, mandato coletivo pioneiro em Belo Horizonte (MG).

Quando o ativismo encontra o gabinete

Das ruas aos gabinetes, ativistas que compõem os mandatos coletivos precisam fazer um delicado trabalho de “tradução”: suas demandas e formas de pensar a política, gestadas em movimentos sociais e experiências cooperativas, têm que ser atualizadas para a nova linguagem do espaço institucional, mais lenta e burocrática. É preciso um trabalho cuidadoso e por vezes desafiador para não deixar que os mecanismos das câmaras e assembleias domestiquem a vitalidade da militância. Nesse sentido, Caio aponta para a necessidade de sempre retornar aos territórios de base para arejar o fazer na esfera legislativa: “é uma disputa de quem está hackeando quem”.

É o que Bella Gonçalves também observa: “A ideia de ‘ocupar a política’ é sim um extravasamento do ativismo para o espaço legislativo e é um ato de confrontação e transformação, porque a gente ocupa não no sentido de estar lá e jogar as regras do jogo, mas a gente ocupa para confrontar, para apresentar lacunas, para fortalecer o que está fora, os movimentos populares”.

Neste jogo de forças, trazer o ativismo para dentro dos gabinetes sem capturá-lo nas amarras institucionais tem a ver com entender os tempos e necessidades de cada um dos campos. “Eu acho que o papel do ativismo é se mover mais rápido do que a política é capaz de se mover. E, ao se mover mais rápido, desenvolver novas tecnologias, novas formas de fazer, novas táticas, novas estratégias para atualizar a forma de fazer política. E conseguir a partir disso contaminar a política institucional”, observa Caio.

Esses mandatos coletivos, que se originam do ativismo em movimentos de base, não esgotam sua atuação original. Pelo contrário, se tornam mais um braço da militância, responsável por fazer avançar pautas urgentes e barrar projetos que violam direitos. “Mesmo que os mandatos coletivos tentem dialogar com esse colapso [dos arranjos institucionais] e tentem apresentar  alternativas, não são eles ‘A’ alternativa. Compreender-se enquanto mandato coletivo é compreender-se fora dessa ideia de vanguarda. A solução está na organização e na luta popular para além da institucionalidade”, defende Bella.

Mandato coletivo Juntas / Crédito: Divulgação

Com uma nova ideia de protagonismo, pensado na forma de um trabalho mútuo, os mandatos coletivos, para Robeyoncé, têm em sua essência, “além da crise de representatividade, essa ideia de protagonismo, de você ter o protagonismo da política pública que você deseja. De você ser protagonista daquilo que você quer ver de concreto em termos de política pública. No bom e velho português: eu faço, nós fazemos. O mandato coletivo se propõe a isso”. Dessa maneira, fazendo uso das estruturas de poder que regulam muito da nossa sociedade, transformam um cargo parlamentar em um cargo múltiplo, não mais com uma figura sozinha que tenta dar conta das diferentes demandas, mas com um conjunto de representantes que agem como porta-vozes de diversas  frentes de atuação política, a partir de uma só cadeira na câmara ou na assembleia.

Mais do que uma representação abrangente e plural, entretanto, o próprio fazer dos mandatos coletivos incorpora a noção de multiplicidade, tornando as ferramentas do ativismo seu modo de pensar. Para Robeyoncé Lima, “a própria multiplicidade de mãos permite que o mandato coletivo faça mais coisas, que na prática consiga alcançar ou atuar em mais espaços do que o mandato individual. Se multiplicam as mãos, multiplicam-se as cabeças. Há diálogo, há discussão, são decisões horizontais, onde se ponderam as opiniões de todas as pessoas que compõem o mandato coletivo, inclusive da própria equipe também. Então é um novo formato que surge, não só para fora como também para dentro da gestão do próprio mandato coletivo. Eu vejo muito como ampliação: múltiplas mãos, uma mão puxando a outra”.

O movimento inverso também é necessário quando a proposta é de abertura, diálogo e ventilação de instituições já muito cristalizadas. Retornar constantemente às bases, articular, escutar, propor, perguntar – estes verbos se tornam pilares do fazer político dos mandatos ao redor do Brasil. Para dar conta de refletir e colocar em prática a pluralidade que os caracteriza, é indispensável que não se perca aquilo de mais rico que têm para trazer aos novos espaços. É o que Caio Tendolini observa: “está na natureza do ativista um processo de tomada de decisão que envolve uma conexão com a realidade ou com realidades específicas mais viva, mais pulsante”.

É da vivacidade e da pulsão dos movimentos, atos, ocupações e coletivos que esses mandatos se alimentam, e a reciprocidade deve ser verdadeira: sem a rearticulação dos mandatos em direção às suas bases, sua atuação se esvazia e acaba sendo engessada. É preciso contar com a mobilização dessas bases, inclusive, para fazer avançar discussões no interior das plenárias, que contam com manifestações “do lado de fora” para fazer a pressão e o barulho necessários para que o povo e as minorias sejam ouvidas. Além disso, a linha direta de comunicação aberta por representantes de gestões coletivas permite que os movimentos sociais e ativistas tenham presença nesses espaços que poucas vezes foram ocupados por eles, ou onde tiveram suas ocupações minadas.

“Eu acho que a gente precisa estar em constante atualização nessa disputa, e o ativismo é esse lugar, é o lugar onde você consegue hoje fazer de um jeito e amanhã de um outro jeito um pouco melhor e ir incrementando. E é esse incremento que diferencia uma geração progressista que estava na política de outra”, analisa Caio. “Pra mim, o ativismo, nesse diálogo com a política, serve quase como uma fonte de inovação, no sentido de outras formas de fazer que atendam melhor aos propósitos, sejam mais potentes nas lutas e consigam levar essa potência para dentro da política institucional”.

Nesse mesmo sentido de sonhar e projetar uma outra forma de fazer política nas esquerdas, Bella Gonçalves defende: “Eu não acho que a gente vive uma crise na imaginação política das esquerdas. Eu acho que os exemplos disso (os movimentos feministas, o movimento negro, a resistência popular frente à pandemia) mostram que nós não estamos numa crise de imaginação política. O que nós vivemos é um momento de crise e desesperança, onde a gente tende a alçar muito mais as resistências e o enfrentamento àquilo que a gente não concorda do que ter fôlego para construir coisas novas. Mas nesse processo, automaticamente, surgem coisas novas. Grandes teias de combate à fome têm articulado novidades políticas nos territórios, a imaginação de novas formas de construção de poder popular pra fora daquele jargão também têm sido criados. Eu acredito que há muita criatividade nas novas formas de construção política atualmente, mas às vezes a nossa desesperança e nosso desespero são tantos que a gente deixa de olhar para elas e valorizá-las”.

Sonhar uma política possível e urgente é um mote dessas candidaturas e mandatos coletivos, que conclamam pela ousadia de propor outros fazeres, a partir de territórios e vivências políticas diversas, cooperativamente. Na contramão da descrença nas instituições e na possibilidade de mudança, este ativismo que ocupa tanto as ruas quanto os gabinetes tenta apontar para o caminho da imaginação, do sonho, dos desejos políticos – tanto como ponto de partida quanto como metodologia e prática.

Os mandatos coletivos nas urnas

 Desde 1994 – com as primeiras provocações, por exemplo, do deputado estadual Durval Ângelo do PT de Minas – até os sucessos eleitorais das eleições de 2020, é possível observar investidas cada vez mais sólidas rumo à concepção dos mandatos coletivos da forma como existem hoje. O que se apresentava no pleito municipal de 2016 apenas como ondulações num oceano de candidaturas transformou-se em um tsunami nas últimas eleições municipais, em 2020.

“A falência das instituições democráticas é muito evidente. Nós temos todo o arranjo institucional da Nova República colapsado. Em 2013, a gente já via esse sistema começar a convulsionar. Com o golpe de 2016, essa situação se aprofunda e, com a eleição do Bolsonaro, ela se consolida”, analisa Bella Gonçalves. “Já naquela época, os conselhos de participação popular não eram as formas mais democráticas de participação e as formas de mandato parlamentar não eram as mais avançadas para o que a gente precisava”, avalia.

Um fruto da avalanche de candidaturas compartilhadas de 2016 merece destaque: a eleição da atual deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG). À época, Áurea se candidatava à vereança em um mandato coletivo pelas Muitas. Pautas como o feminismo, a negritude, a luta contra a violência e a aposta em uma educação emancipatória faziam parte de seus discursos. Com expressivos 17.420 votos, a cientista social foi eleita vereadora, tornando-se a mulher mais votada da história de Belo Horizonte, e ainda levou a correligionária Cida Falabella para ocupar uma cadeira na Câmara Municipal, compondo com ela, a Gabinetona (gabinete compartilhado entre as vereadoras), experiência de sucesso de um mandato coletivo. Dois anos depois, nas eleições de 2018, Áurea marca mais uma vez a história de seu partido se tornando a primeira filiada do PSOL mineiro a ser eleita deputada federal. Eleita em 2020 também pelas Muitas, hoje a covereadora Bella Gonçalves ocupa uma cadeira na Câmara de Belo Horizonte, dando continuidade ao projeto da Gabinetona — que conta também com a deputada estadual Andreia de Jesus (PSOL-MG), eleita em 2018.

Gabinetona, em Minas Gerais / Crédito: Divulgação

Na mesma linha, em 2018 a Bancada Ativista é eleita com número recorde de votos para ocupar uma cadeira na Assembléia Legislativa de São Paulo, compondo uma mandata de nove pessoas, ativistas de diferentes pautas. Juntas, mas não sozinhas, as experiências conduzidas pelos mandatos coletivos de Minas Gerais e São Paulo se tornaram exemplo e motivação para a criação e eleição de candidaturas coletivas em todo o Brasil.

As eleições de 2020 vieram para confirmar a tendência de consolidação dos mandatos coletivos. Observa-se um aumento de 234% nos pedidos de registro de candidaturas coletivas em comparação com os últimos ciclos eleitorais, além da incorporação em massa da menção ao caráter compartilhado no “nome de urna”.

Dados coletados pela pesquisa do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em parceria com a CommonData demonstram que, nas eleições do ano passado, 21 dos 27 estados brasileiros (contando o Distrito Federal) somaram 327 propostas de candidaturas coletivas de “esquerda, direita e centro”. Os partidos de esquerda lideraram o ranking, concentrando 87% das candidaturas: 135 pelo PSOL; em seguida o PT, com 67. Dessas candidaturas, 24 foram eleitas e estão em andamento, todas à vereança [confira Box 2 – Mandatos coletivos eleitos em 2020].

“Dá bastante orgulho observar o fenômeno dos mandatos coletivos nas eleições do ano passado. Ver essas mais de 200 candidaturas coletivas, em diferentes formatos e lugares, dá uma sensação de que conseguimos, para além da vitória de 2018, influenciar o ‘imaginário político’”, comenta Caio Tendolini.

As Juntas Codeputadas são outro exemplo consumado do sucesso das candidaturas coletivas nas eleições de 2018. Eleitas pelo PSOL, o gabinete formado por cinco mulheres é a primeira mandata coletiva, feminista, antirracista e antilgbtfóbica na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe). Carol Vergolino, Jô Cavalcanti, Joelma Carla, Kátia Cunha e Robeyoncé Lima são as cidadãs que encabeçam as Juntas e ocupam os espaços tradicionais com radicalidade e representatividade.

Juntas, Codeputadas em Pernambuco

Construir enquanto caminha

“Construir enquanto caminha” é uma frase que tem sido repetida por representantes de mandatos coletivos Brasil afora quando indagados sobre os desafios e resultados de seus trabalhos nas casas legislativas espalhadas pelo país. Esse fenômeno, já localizado em âmbito municipal, estadual e federal, tem ampliado os debates no que concerne à ocupação dos espaços institucionais, à necessidade de uma reforma política gestada nas necessidades do povo e, por seu caráter disruptivo na estrutura e afetivo no gesto, demonstrado que há pelo menos uma (ou algumas) alternativa para o que alguns filósofos e cientistas políticos têm chamado de “necroestado brasileiro”.

Os mandatos coletivos, de um modo geral, operam de duas formas: coparlamentares em uma única candidatura, a exemplo das Juntas e da Bancada Ativista, em Pernambuco e São Paulo, respectivamente; ou candidaturas individuais que levam em seu nome as demandas de todo um conjunto de pessoas que constroem o coletivo, como as Muitas, de Minas Gerais, que compõem a Gabinetona. Individuais, porque não há legislação vigente que permita uma candidatura de mais de um cidadão em um mesmo pleito, sendo o registro do candidato feito via CPF. O que não significa que não haja um incansável trabalho de equipe em todo e qualquer projeto que envolva a política, muito pelo contrário. É a importância dessa consciência do coletivo que se evidencia na ebulição dessas novas formas de atuar na política e nas instituições.

Um mandato coletivo é caracterizado por abranger uma maior quantidade de representações dentro de uma única vaga nas casas legislativas, atravessadas por questões de gênero, classe e raça. Geralmente, as pessoas envolvidas nas candidaturas já possuem uma trajetória engajada nas lutas para as quais se propõem dar conta, o que facilita a atuação no coletivo, agregando propriedade às decisões e condutas políticas.

Para Robeyoncé, a crítica à representatividade está na própria constituição dos mandados coletivos, “no sentido de justamente tentar acionar essa crise de representatividade no cenário que não abre oportunidade de voz para muitas pessoas. O mandato coletivo surge como essa possibilidade de hackeamento, ainda que pequena, mas que amplia as vozes de mais pessoas nesses espaços institucionais”.

Vale mencionar uma outra semelhança nesses formatos que é a busca por troncos comuns de pensamento-ação, pré-estabelecidos em estatutos e termos de acordo registrados em assembleias. É uma das maneiras de perseverar no que alguns têm chamado de sociocracia, termo/método que abrange tecnologias de autogestão que prezam pela eficiência e inclusão nas tomadas de decisão. Para que essa inclusão realmente ocorra, se faz necessário desenhar planos de inclusão. Como garantir que, mesmo na divergência de opiniões a respeito de alguma questão, prevaleça a vontade do coletivo sem que alguém se sinta excluído? Uma dessas formas é a tomada de decisão por consenso/consentimento. Discussões são realizadas no âmbito do coletivo de modo a gestar e fazer convergir os entendimentos acerca do que é melhor tanto para o coletivo quanto para os cidadãos que se pretende representar. É um trabalho árduo, diário, mas o único possível para uma “democracia radical”, termo utilizado por ativistas e parlamentares desses mandatos.

Nascidos como resposta à propalada crise de representatividade, ao distanciamento (ou mesmo desligamento) da sociedade que as estruturas institucionais de poder acabam por estabelecer, os mandatos coletivos se orientam por uma prática que busca se contrapor à figuração de uma liderança una, carismática, típica do modo populista de fazer política –  tão presente na história brasileira.

Do representante sozinho ao coletivo articulado, os mandatos coletivos precisam de grandes doses de diálogo e transparência, tanto interna quanto externamente, para que o princípio de uma construção múltipla seja concreto. “Articular esses atores é um desafio que muitas vezes nos faz ter que mediar conflitos e egos, mas isso é difícil no mandato e em todos os movimentos populares no geral. Construir confluência é trabalhoso, exige incorporar o espírito de coletividade, não querer ganhar em cima do outro, mas crescer junto com o outro”, analisa Bella Gonçalves.

Diferentes de outros mandatos, no entanto, as experiências coletivas convergem na prática das lutas, onde conflitos muitas vezes se dissolvem em prol da defesa de minorias e na necessidade de enfrentar leis adversas. Carregando um traço marcante do ativismo das ruas para dentro das instituições, os mandatos coletivos não se resolvem apenas na prática, mas encontram nela a movimentação necessária para avançar. Como observa Bella, “as diferenças são superadas principalmente quando estamos falando da defesa prática das nossas causas. Quando a gente tem uma comunidade ameaçada, quando vemos um projeto de lei em votação… Aí os conflitos se dissipam e nossa possibilidade de confluência é o que garante a efetividade das nossas ações. A gente conflui é na prática e vamo que vamo”.

A dimensão “subjetiva” deste trabalho — que talvez seja de difícil compreensão para os que só conseguem conceber o formato liberal, individualista, competitivo e personalista de sociedade — passa por (e estabelece) uma relação ética, afetiva e de confiança entre as envolvidas, afinal de contas, apesar do mandato ser coletivo, é o CPF de apenas uma das pessoas que responde pela candidatura. O “balanço de mandato” também é uma prática comum, onde se reúnem participantes do coletivo, de movimentos sociais e ativistas. A sociedade civil como um todo é convidada a participar de um diálogo aberto, colocando em discussão o que está dando certo, o que não está e como superar esses desafios. Eis a construção na caminhada.

Gabinetona em ação / Crédito: Divulgação

Saiba mais

 

Muitas (PSOL-MG): mandato coletivo de vereança eleito em 2016, em Belo Horizonte, composto por Áurea Carolina, Cida Falabella e Bella Gonçalves. Juntas, elas formaram a Gabinetona. Em 2018, as Muitas levaram Áurea para o Congresso Nacional, como deputada federal, e Andreia de Jesus se elegeu deputada estadual. Bella Gonçalves foi eleita vereadora em 2020.

https://gabinetona.org/site/

https://www.instagram.com/as_muitas/

Bancada Ativista (PSOL e Rede-SP): eleita em 2018 para o cargo de deputado estadual, a mandata ativista é composta por nove ativistas paulistas. Seus nomes: Anne Rammi (Rede), Chirley Pankará (PSOL), Claudia Visoni (Rede), Erika Hilton (PSOL), Fernando Ferrari (PSOL), Jesus dos Santos (PDT), Monica Seixas (PSOL), Paula Aparecida (PSOL) e Raquel Marques (Rede). Foi a candidatura mais votada em São Paulo.

http://www.bancadaativista.org/

https://www.instagram.com/bancadaativista/?hl=pt-br

Juntas Codeputadas (PSOL-PE): mandata coletiva eleita como deputada estadual, em 2018. O gabinete é composto por cinco mulheres: Carol Vergolino, Jô Cavalcanti, Joelma Carla, Kátia Cunha e Robeyoncé Lima. É  primeira mandata coletiva, feminista, antirracista e antilgbtfóbica da Assembleia Legislativa de Pernambuco.

https://www.juntascodeputadas.com.br/

Mandatos coletivos eleitos em 2020

Mandata Coletiva Nossa Cara (PSOL). Fortaleza, CE

Mandato Coletivo Somos (PSDB), Lins, SP

Mandato Coletivo Nossa Voz (PT), Itajubá, MG

Mandato Coletivo Binho de Roque e Karol Barros (PP), Cabo de Santo Agostinho, PE

Mandato Coletivo das Gurias (PCdoB), Ijuí, RS.

Mandato coletivo das Mulheres por + Direitos (PSOL), São Caetano do Sul, SP.

Mandata Coletiva Bem Viver (PSOL), Florianópolis, SC.

Mandato Coletivo Nós (PT), São Luiz, MA.

Mandato Coletivo Popular (PT), Ribeirão Preto, SP.

Mandato Coletivo Popular (PSOL), São Carlos, SP.

Mandato Coletivo Permacultural (Rede Sustentabilidade), Alto Paraíso, GO.

Mandato Coletivo do PSOL (PSOL). Ponta Grossa, PR.

Mandato Coletivo AtivOz (PSOL), Osasco, SP.

Mandata Coletiva Pretas Por Salvador (PSOL), Salvador, BA.

Mandato ‘Coletiva de Mulheres’ (PT), Ribeirão Pires, SP.

Mandato DiverCidade (PT), Valinhos, SP.

Mandato Coletivo Todas as Vozes (PSOL), Ribeirão Preto, SP.

Mandato Coletivo Enfrente (PT), Ourinhos, SP.

Mandato Coletivo de Machado (PSB), Machado, MG.

Bancada Feminista (PSOL), São Paulo, SP.

Mandato Coletivo A Cidade é Sua (PV), Piracicaba, SP.

Coletiva (PT), Belo Horizonte, MG.

Mandato Coletivo Tamo Junto por Guaíra (CIDADANIA), Guaíra, SP.

Mandato Ativista (PT), São José do Rio Pardo, SP

Ativismo nosso de cada dia

Por Nivia Raposo

Em nossa casa, a resistência sempre foi uma palavra de ordem. Éramos uma família de gente preta e periférica que era consolidada num terreiro de candomblé. Filhas e filhos carnais de uma yalorisá e um ogã. Ogã esse que era um militar da Marinha que, segundo o próprio, tinha vocação para isso e não era “peixada” de ninguém. Portanto, quando não concordava com os comandos, simplesmente não acatava as ordens. Por isso, várias vezes ficava preso no próprio quartel. Gostava de dizer que “andava certo para ser mal criado”. Dessa maneira, levávamos essa frase como um mantra em nossas vidas. O terreiro chamado de ilé Balaxi D’Leoar era nosso quilombo num contexto urbano. Nossa base e estrutura familiar mantinham-se fortes com a manutenção das tradições afroindígenas dos meus pais, aliados ao sincretismo religioso que compõe o território fluminense.

Antes de iniciar minha história de luta é necessário explicar o que é a Baixada Fluminense. Composta por 13 municípios, alguns desses territórios são cercados por belezas naturais como: cachoeiras, muitas montanhas, serras, lugares com matas fechadas e até um vulcão; apesar das divergências, sim, temos um vulcão adormecido. Com tantas extensões de terras é preciso pensar que esse tipo de topografia corrobora um passado. Um passado/presente com terras que servem no sumiço de corpos com os cemitérios clandestinos. Além disso, temos um passado com a existência indígena e quilombola. Sendo o quilombo da “Hidra iguaçuana”, o mais conhecido por essas terras. Dessa forma, a Baixada carrega um passado de resistências e insistências sociais, que servem como referências de luta. Esses enormes quilombos foram diminuindo e se fragmentando com as ocupações dos territórios fluminenses.

No início de 2015, eu já tinha minha família e acreditava ter uma vida estruturada. Meus filhos estavam mais crescidos. O mais velho, Rodrigo Tavares, estava com 18 anos e Thiago, com 11 anos. Rodrigo estava entrando para o quartel, participando de todas as etapas e ficou feliz em continuar o legado da família na carreira militar.  Começou a servir no D.C.Armt, Departamento Central de Armamentos do Exército. Era um menino cheio de sonhos e planos, fazia coisas inerentes a sua idade. Era muito conhecido pelo sobrenome, porque foi promoter de festas para jovens. Não teve tempo de realizar o sonho de fazer uma tatuagem (uma coroa na costela). Essa tatuagem seria em minha homenagem, pois achava que mãe era sinônimo de rainha. Tinha uma liderança nata e gostava de se reunir com os jovens do bairro para jogar bola e conversar sobre a vida no quartel. Tinha uma gargalhada única. E gostava da vida que levava. Seu pai trabalhava como motorista de caminhão, e Rodrigo chegou a trabalhar como ajudante durante um tempo. Tinha um imenso amor pelo seu irmão caçula, Thiago, que estudava num colégio na mesma rua de casa. Eu estava na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), fazendo faculdade de História. Para completar nossa família, não posso esquecer de Bouster, um labrador preto que pertencia ao Rodrigo.

Nossa vida parecia a letra de uma música… Eu, você, dois filhos e um cachorro. Tudo ia muito bem, até outubro de 2015.  Num curto período de tempo, meu primogênito foi ameaçado e morto pela milícia no portão de casa. Foi morto enquanto conversava e fazia uma performance do passinho. Nesse momento, entendi da pior forma que a dor da perda é pior que a dor do nascimento… Não adianta acharmos que ter uma família estruturada é garantia de vida para meus filhos. Sempre seremos vistos como sujeitos matáveis, pois somos mais uma família preta e periférica, ou seja, seremos um alvo constante. Meu contrato social com o Estado foi quebrado. Posteriormente, compreendi que as leis desse contrato social, nunca foram para nos proteger.

O meu mundo caiu e senti que uma parte de mim morreu junto. Foi um golpe duro para muitos jovens que gostavam do meu filho e o enxergavam como um exemplo a ser seguido. Muitas mães desmaiando, amigos estupefatos e vizinhos perplexos. Não chorei, pois estava em choque. Estava com muito ódio, uma raiva que nunca havia sentido antes. Afinal, nenhuma mãe está preparada para enterrar seu filho. Eu só pensava que isso era um processo totalmente antinatural. A Polícia Militar logo chegou, por se tratar de um bairro totalmente militarizado, e posteriormente a Polícia Civil, que fez uma “perícia” no local, pegou alguns depoimentos e recolheu um vídeo… Vídeo que nunca tive acesso. 

Chegando na delegacia, inicia meu processo inquisitorial. A maioria das perguntas eram tendenciosas, tentando de todas as maneiras justificar a morte de mais um jovem preto. Enterrei meu filho sob chuvas de aplausos, com o cemitério lotado e com vários amigos vestindo as fardas do quartel. Após os insuportáveis sete dias, entendi que nunca mais veria meu filho. Foi como um soco na boca do estômago. No meu coração se instalou um vazio e a partir da minha tristeza comecei a separar as roupas do meu filho para doar. Foram dias de muito sofrimento. A missa na igreja católica foi muito bonita. Mas, meu filho teve diversos tipos de missas na sua intenção… Em igrejas evangélicas, nos centros espíritas, em rodas de capoeiras e em vários lugares em que era querido. 

Muito próximo à nossa casa, existe uma casa que é moradia de algumas freiras católicas. Essas vizinhas frequentavam as igrejas do bairro e sempre eram participativas nas comunidades. Uma das freiras chamava-se Valéria, irmã Valéria, e foi ao enterro do meu filho. Posteriormente, procuraram-nos para falar sobre Direitos Humanos. Me aconselharam procurar o CDH-NI (Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu)… Eu não sabia da existência do lugar. E acredito que muitos também não saibam. Nosso bairro, assim como vários territórios da Baixada, possuem muitas igrejas católicas. E elas sempre fizeram um trabalho à frente dos direitos humanos. Lá nesse espaço conheci irmã Yolanda, que me acolheu e me ouviu junto aos advogados do CDH. Lá fui sendo orientada e informada dos trâmites com o Ministério Público. Após algum tempo, irmã Yolanda passou meu contato para um produtor da Quiprocó Filmes, que mais tarde entrou em contato comigo para fazer um documentário chamado “Nossos mortos tem voz”, que falava sobre a violência do Estado na Baixada, com um recorte temporal de 2005 a 2015. Mostrando as falas de familiares da chacina da Baixada, ocorrida em 2005, e de outras mães com filhos igualmente vitimados pelo Estado, sendo mortos por execuções sumárias ou por desaparecimentos forçados. As datas mostravam que as ocorrências das violações continuavam, sobretudo quando o violador era o próprio Estado. Talvez a certeza da impunidade e a invisibilidade local colaborem para as ocorrências dessas violações. Lembrando que muito dos territórios fluminenses estão se milicializando, com uma frequência muito mais rápida que os antigos grupos de extermínios. Portanto, as violações continuarão a fazer parte do dia a dia. É possível perceber que esses grupos tem características próprias e são articulados politicamente. Contudo, a luta das mulheres periféricas sempre esteve presente, mesmo muito invisibilizada. A partir do documentário, me uni a outras familiares e começamos a levar nossos depoimentos em vários lugares, tanto na Baixada quanto fora dela. Inclusive, para fora do país. Assim começamos a fazer nossa incidência política através do diálogo.

Mural feito em homenagem às mulheres negras em Duque de Caxias foi vandalizado recentemente Fonte: G1

Infelizmente, nossas fileiras que fazem do luto a luta tem crescido exponencialmente. Nesses espaços conheci vários familiares que hoje considero minhas referências de luta. Compreendi que nossa dor é imensurável… Aprendi com a Silvania (mais conhecida como Nem) que uma irmã sente tanto a dor da perda quanto uma mãe, aprendi com Mônica Cunha que o encarceramento em massa de gente preta é um projeto do Estado para nos liquidar, aprendi com Rute Fiuza que existem os desaparecidos da ditadura e os desaparecidos da democracia, aprendi com a Débora Silva que o coletivo Mães de Maio é um projeto político perfeito e que as mães e familiares podem ser pesquisadoras, com a Ana Paula de Manguinhos aprendi a importância de um abraço acolhedor. A cada dia aprendo muito com todos os familiares. São ensinamentos que levo para a vida, nenhuma faculdade irá compreender. Todas as lembranças de luta, ato, caminhada, em que estou com as companheiras entoando a música de mano Teko… “Hoje o quilombo vem dizer, favela vem dizer, a rua vem dizer que é nós por nós”. E isso me faz acreditar que é possível “parir um novo Brasil” (mais uma lição aprendida com as mães). 

Com o tempo comecei a conhecer outros movimentos sociais e outras redes de mães. Hoje, faço parte de alguns movimentos sociais, fortaleço vários coletivos, acolho familiares, encaminho para atendimento psicológico, entrego cestas básicas, entrego cartões alimentação e faço parte de uma ONG chamada Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), onde temos feito um trabalho que fala sobre segurança pública pautada no racismo. Fazemos acompanhamentos de emendas e projetos de lei na Assembleia Legislativa do Rio, recebemos inúmeras denúncias que encaminhamos para o MP, produzimos artigos levando informações para a população preta, favelada e periférica usando uma linguagem mais popular, fazemos formações coletivas (hoje de forma on line), porque entendemos que todos nós aprendemos um com o outro. E por último, algo fundamental para quem perdeu um ente querido, construímos memoriais. Porque entendemos que o Estado quando culpado, sempre tenta apagar a memória das vidas vitimadas por ele.

O primeiro memorial foi o grafite do meu filho Rodrigo Tavares. Foi uma homenagem na semana de seu aniversário. Percebi que o grafite é funcional por ser esteticamente bonito, faz uma disputa de memória e transmite um valor simbólico aos familiares. Depois foi produzido o grafite do menino Fernando Ambrósio, para uma mãe chamada Paula Ambrósio, de Japeri. Em seguida, um grafite em homenagem a rede nacional e a pouco tempo um memorial com imagem de quem fazia e de quem faz resistência, o passado e o presente dividindo o mesmo espaço. A IDMJR fez esse memorial chamado “Nossos passos vem de longe”. Incluímos nesse grafite a figura de Marielle, mãe Beata e vovó Maria Conga, pois consideramos todas símbolos de luta contra o racismo estrutural. Fui uma das homenageadas juntamente com várias mulheres pretas de movimentos socias da Baixada Fluminense. Ficamos lisonjeadas e emocionadas com tal honraria. Essa homenagem está localizada em Duque de Caxias, local onde tenho como referência o quilombo de Hidra, sinônimo de resistência da Baixada.

Dessa forma, temos feito um trabalho que considero ser uma justiça afetiva. Pois, sei que nossa justiça é falha, sei que existe uma força contrária que insiste na manutenção do nosso status quo. Todavia, o amor pelos nossos filhos, por nossos entes queridos é muito maior do que qualquer armadilha criada por uma sociedade racista, classista e manipuladora. Aos poucos vamos articulando e ganhando força. E a cada vitória individual comemoramos como vitória coletiva. Sempre fazendo uma luta utilizando uma pedagogia não violenta e acreditando sempre na força do coletivo. Fazemos um trabalho de formiguinha, acolhendo e encaminhando ajuda necessária para esses familiares, pois entendemos que suas dores são nossas dores. 

Cada chacina ou morte violenta praticada pelo Estado é dolorosa para todos os familiares. Parece que revivemos nosso luto. O massacre ocorrido no Jacarezinho, a morte de menina grávida Kathllen Romeu e do menino Thiago da Conceição mexem com o psicológico de qualquer familiar. Parece que nossas lágrimas, lamúrias e gritos de socorro, valem menos que as das famílias classe A. Às vezes não nos reconhecemos como classe trabalhadora, porque a maioria das carteiras não tem assinaturas. Talvez porque na tal da interseccionalidade estamos sempre um passo atrás. O fato de ser mulher, ser preta, ser favelada, periférica e nascer num terreiro te coloca muito atrás na linha de partida. Perdemos o horizonte de expectativas… A linha de chegada fica cada vez mais distante. Porém, mesmo em meio a tantas dificuldades, nós nos articulamos para nos ajudar. 

Tendo em vista que estamos em meio a uma pandemia, ainda assim conseguimos, junto a vários coletivos e organizações sérias, uma pequena vitória chamada de  ADPF 635, que teoricamente proíbe operações policiais em territórios de favelas e periferias (salvo em casos de excepcionalidade). Mesmo assim, a juventude preta continua sendo massacrada… E na Baixada Fluminense o prognóstico não é dos melhores. Sabendo disso fica evidente que não podemos deixar de lutar. Continuaremos ocupando espaços e lugares que nos são de direito. Podemos e devemos estar nas cidades, nas ruas e principalmente produzindo políticas que atendam nossas demandas. 

Cabelaço – o trabalho dos povos de terreiro e comunidades tradicionais pela emancipação dos sujeitos

Por Luane Barbosa

Em 2011, uma frente de mulheres brasileiras reuniu-se em Brasília para debater sobre seus direitos no segundo encontro da Articulação de Mulheres Brasileiras. Marcado pela presença de uma diversidade de corpos de diferentes regiões, o evento possibilitou a elas a criação da campanha nacional “Solte Seu Cabelo e Prenda Seu Racismo”, responsável por desencadear uma série de ações focadas na população de mulheres negras em todo o país. Em Pernambuco, a iniciativa reverberou na construção de novas estratégias coletivas de enfrentamento político, como o surgimento do Coletivo Cabelaço PE, formado por mulheres negras comprometidas em repensar a sociedade a partir dos saberes ancestrais.

A ideia de formar o Cabelaço veio através de muita conversa sobre como e o que seria o grupo, de pensar o que é que tem na nossa filosofia, na nossa forma de agir e fazer a vida que podemos usar para pensar os direitos humanos assim como uma pessoa de direito faz?”, conta Jaque Martins, integrante do coletivo. Sobre o surgimento do grupo, Drica Mendes, também integrante do coletivo, compartilha que “passamos dois anos realizando encontros de autoconhecimento e formações internas até que a gente começou a ir para a rua e fazer campanhas na internet, discutimos bastante sobre os significados do que seria ‘soltar nossos cabelos’, pensando nossa identidade racial e ancestralidade”. Assim, sempre por meio do fortalecimento interno, elas conseguem pensar em estratégias para impactar tanto dentro de suas próprias comunidades como na sociedade em geral. “Eu acho que é preciso dizer também que é um aspecto importante do Cabelaço ter suas ações com um caráter político-artístico, pensando a cultura não apenas como algo isolado, mas utilizando-a pelo seu caráter formativo”, pontua Jaque.

Pedagogia do Axé

As ações e atividades realizadas pelo coletivo partem da utilização dos saberes dos povos de terreiro como meio para construir uma nova percepção social através de um processo educativo distinto. “Existe uma singularidade nos processos educativos de terreiro, assim como tem uma singularidade na escola indígena e quilombola, porque temos uma pedagogia que vem da experiência. No terreiro, não vai ter alguém que vai explicar, por exemplo, o que é Oxum, não é assim, conhecemos Oxum a partir de uma experiência com ela. Isso vem de algo que chamamos de pedagogia do axé.”, explica Jaque Martins.

O programa de rádio Oba Kò Só foi um dos trabalhos recentes do coletivo, que demonstra como esse processo educativo acontece. O projeto aborda em cada episódio uma temática social a partir da compreensão de um Orixá, que serve como fio condutor para conversa sobre dança, justiça ambiental, tecnologia, entre outros temas, sempre com a presença de pessoas convidadas de diferentes territórios. “A forma como articulamos o programa foi pensando para quando uma pessoa que não é de terreiro olhasse minimamente para o Orixá, ela pudesse ter uma mudança na sua percepção sobre ele em relação a um olhar que parte na maioria das vezes de um lugar racista”, conclui ela.

Dessa forma, elas conseguem construir estratégias de enfrentamento ao racismo e racismo religioso, partindo de uma lógica educacional que não está dentro dos currículos escolares e acadêmicos atuais. “Percebo que muita coisa que queremos falar não dialoga com os direitos humanos que está posto e que foi construído a partir de uma lógica europeia”, conta Jaque. Por isso, o Oba Kò Só corrobora com a ideia de quebrar esse caminho mais técnico e cristalizado. “Quando a gente propôs o programa, pensamos em realizar uma tentativa de uma reeducação que reconhecesse a produção de saberes e conhecimentos dos povos tradicionais como válidos e como capazes de emancipar e libertar os sujeitos, mesmo que esses saberes não estejam dentro dos parâmetros ocidentais de fazer ciência”, conclui Jaque.

Comunicação como fundamental na luta política

Historicamente, os veículos de comunicação hegemônicos endossaram perspectivas sociais baseadas em estereótipos sobre a população negra e de terreiro, sobretudo nos canais de rádio ligados às igrejas cristãs. Por isso, o setor da comunicação surge enquanto um lugar estratégico dentro do movimento na busca pela libertação e emancipação explicada por Jaque. Além disso, esse espaço também constitui-se enquanto fundamental para garantir visibilidade aos terreiros localizados em diferentes partes do Brasil. “A atuação dentro de veículos de mídia faz todo sentido para o coletivo, pois precisamos mostrar a história das pessoas de terreiros, porque muitas vezes uma pessoa nem sabe que existe um perto de sua casa”, destaca Angela Lopes, que também integra o Cabelaço.

Porém, nesses últimos anos, as leituras sociais presentes na mídia – que muitas vezes estão transvestidas em discurso de ódio – vêm pouco a pouco sendo confrontadas, principalmente, através da ocupação de espaços na TV e no rádio pela população negra. “A gente entende que é preciso enfrentar a mídia (corporativa) que atribui para si um lugar de centro e de que pode falar por nós. Então, a gente traz outras narrativas a partir da ocupação de espaços de comunicação pública e independente porque já passou o tempo da gente não falar”, explica Drica. Assim, Jaque coloca em perspectiva que “vê esse lugar de ocupação como um espaço para retomarmos uma autonomia não apenas em relação à fala, mas também uma autonomia na produção e difusão de conteúdos feitos por nós”. Dessa forma, essa autonomia “é parte tanto do processo de libertação coletiva como parte do processo de re-existência coletiva”, completa ela. Corroborando, portanto, na garantia de direitos tradicionalmente retirados dos povos de terreiro e comunidades tradicionais.

A rede de articulação social

Toda a capacidade de atuação do coletivo ocorre muito pelo fato delas acreditarem também na importância de atuar junto a outros movimentos sociais, potencializando projetos como o Oba Kò Só. “As ações do coletivo estão articuladas com pessoas, com amigas, lideranças locais e nacionais, que conhecem nosso trabalho. E por termos essa rede muito fortalecida na população de Pernambuco, conseguimos chegar em mais pessoas para entrevistar no programa de rádio”, explica Jaque. Além disso, esses processos resultaram em outros desdobramentos nos espaços acadêmicos. “Recentemente, uma amiga entrou em contato comigo para utilizar o Oba Kò So em uma formação de professores”, conta Drica. Elas receberam ainda um convite para participar de uma aula com estudantes da graduação de comunicação na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).

 O engajamento com diferentes setores sociais é fruto também do entendimento de que nos movimentos é preciso construir uma rede de solidariedade, que começa dentro de cada coletivo, como pontua Jaque, “o Coletivo Cabelaço por mais que ele tenha pessoas de ensino superior, temos muitas mulheres que têm muita dificuldade no autossustento financeiro. Temos uma discussão de que precisamos ajudar umas às outras, repartindo o que temos.” E, sobretudo, diante do cenário de crise sanitária e política vivido no Brasil nos últimos anos, a abertura de editais e convocatórias para ajudar coletivos da sociedade civil são extremamente cruciais para a manutenção do trabalho. “Numa época de pandemia foi muito importante os editais que conquistamos porque conseguimos não só fazer o programa, mas também pagamos pelos serviços, por exemplo, para realizar a prestação de contas.”, diz Drica. Além de realizarem uma ação de distribuição de equipamento de proteção individual, onde fizemos as máscaras com um coletivo de mulheres em Abreu e Lima e realizamos as entregas”, completa Jaque.

Programa Oba Kò So e outras ações

As ações que vêm sendo realizadas durante a pandemia incluem também uma atividade formativa para conscientização sobre o novo coronavírus nas comunidades de terreiro. “Realizamos a distribuição de uma guia de prevenção ao Covid-19 e junto com isso também distribuímos algumas cestas básicas, explica Drica. Para além disso, o grupo também atua por meio de formações e residências em parceria com outros espaços como o Mário de Andrade e a Associação do Sítio Agatha, Drica destaca que “mais recentemente atuaram na comunicação em rádio e na academia com a produção de textos para publicação em revistas”.

A amplitude de iniciativas que o coletivo consegue realizar mostra o impacto social e a importância dos coletivos de organização civil, especialmente, para mulheres negras. O Programa Oba Kò So serviu para potencializar ainda mais essa trajetória, desdobrando-se, inclusive, em uma produção de podcast em parceria com as Blogueiras Negras. Então, como Jaque fala “é como Angela Walker diz ‘nós mulheres negras não sobrevivemos umas sem as outras’”.

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O programa Oba Kò Só, conta com vinte e quatro episódios veiculados nas rádios Frei Caneca, Aconchego e na Rizoma Rádio Livre. O produto teve o apoio do Edital Mini EA – Periferias do Recife e está disponível aqui

Nota de Rodapé sobre as entrevistadas

 Jaque Martins

Filha de Maria de Fátima de Josenildo José Alves Correia. Ela é nascida e criada no Morro da Conceição (PE). Candomblecista, filha de Orixá Oyá Oxalá do terreiro Ilê Axé Oxalá Talabi em Paulista em Pernambuco. Formada em Direito pela Faculdade de Olinda é mestranda em Educação, Culturas e Identidades na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Integra o Coletivo Cabelaço, mas já passou por alguns outros coletivos como o Afronte e o Coletivo Mário de Andrade, onde atuou como assessora jurídica. Atualmente, trabalha também com comunicação, produção cultural e educação.

Angela Lopes

Alagoana, nascida em Maceió, trabalhou com direitos de pessoas indígenas e quilombolas, formada em Direito e trabalha como advogada. 

Drica Mendes

Recifense e sua família vem da cidade de Timbaúba, localizada na Zona da Mata de Pernambuco. Formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), faz parte do Coletivo Cabelaço e trabalha como produtora cultural e educadora social e também atua nas áreas de comunicação e audiovisual.

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Ref da pesquisa: Direito dos povos de terreiro.pdf (uneb.br)

Aplicativos de Mensagens Instantâneas

Aplicativos de Mensagens Instantâneas

Como escolher?

Whatsapp, Telegram, Signal, Messenger: já se perguntou qual o aplicativo de chat deve usar pensando na sua privacidade e segurança? Há uma série de critérios que nos ajudam a responder essa pergunta. Conhecê-los é importante para que possamos fazer uma análise e escolher com autonomia, já que novos aplicativos estão sempre surgindo, e os que já existem podem ser descontinuados ou modificados. Listamos alguns critérios que podem ser importantes na hora de decidir que aplicativo usar:

É Software livre?
Software livre são programas que permitem a usuáries que acessem, executem, modifiquem e redistribuam (modificados ou não) o seu código fonte. Ou seja, são programas que deixam seus códigos acessíveis, trazendo mais transparência aos usuáries. Qualquer pessoa pode auditar o código e verificar o que de fato o programa está fazendo. É como ter acesso, por exemplo, a receita de um bolo, e poder verificar o que de fato está comendo.

Possui criptografia ponta-a-ponta?
Para garantir que nossas conversas sejam lidas apenas por nós e pelas pessoas destinatárias de nossas mensagens e ligações, é importante que o chat seja criptografado ponta-a-ponta. Isso significa que a conversa estará protegida por criptografia e apenas as pessoas envolvidas nela possuem a chave. Quando não há criptografia ou a criptografia não é ponta-a-ponta, é possível que intermediários da conversa, como por exemplo quem desenvolve o aplicativo ou eventualmente até os provedores de serviços de Internet, possam ler, armazenar e analisar as conversas.

Permite autenticação de chaves?
Em um chat com criptografia ponta-a-ponta, cada participante da conversa recebe uma chave que fica armazenada em seu dispositivo. Essa chave, além de criptografar a conversa, permite também a autenticação dos dispositivos que estão se comunicando. A autenticação de chaves é importante para que possamos nos certificar de que o dispositivo com o qual estamos nos comunicando é realmente o da pessoa com quem queremos nos comunicar. As pessoas podem confirmar as chaves ao vivo, ou por outro canal de comunicação.

Permite autodestruição de mensagens?
Em alguns casos, é importante não manter conversas sensíveis no celular, e alguns aplicativos de chat permitem que você configure um tempo de expiração de mensagens em uma conversa. Ou seja, essa configuração passa a valer para todos os dispositivos envolvidos na conversa, seja ela em grupo ou conversas de um para um. Em cada dispositivo, o tempo de expiração começa a contar na hora que as mensagens são lidas. Passado esse tempo, as mensagens são autodestruídas. Caso algum celular envolvido na conversa seja roubado, ou alguém sem autorização tenha acesso a ele, a pessoa poderá ter acesso a apenas a um histórico reduzido de mensagens.

Sobre o recurso de autodestruição de mensagens é importante se atentar para alguns detalhes:

– Mesmo com o recurso ativado, as pessoas envolvidas na conversa podem tirar um print da tela ou uma foto e manter parte da troca de mensagens armazenada em outro lugar ou enviar para terceiros;

– Caso você utilize a configuração para download automático de fotos, imagens e vídeos, esses arquivos ficarão armazenados no seu celular, e não serão destruídos automaticamente;

– No caso de backups feitos antes que as mensagens se autodestruam, as mensagens serão mantidas e armazenadas no local em que o backup for feito.

Possui senha para entrar no aplicativo?
O uso de senha para os aplicativos é importante para preservar suas informações e mensagens trocadas caso alguém tenha acesso indevido ao seu celular. Ou seja, se alguém estiver de posse de seu celular, precisará de uma senha para acessar o aplicativo de mensagens.

Permite autenticação de dois fatores?
A Autenticação de dois fatores (2FA) ou confirmação em duas etapas é um processo de segurança em que usuáries devem fornecer dois fatores de autenticação diferentes para verificar sua identidade e acessar sua conta. Configurar o dois fatores de autenticação aumenta a proteção da sua conta e pode impedir que ela seja roubada por golpistas ou acessada por pessoas não autorizadas.

Na maioria dos aplicativos de mensagens, ao criar uma conta você precisa informar um número de telefone celular que esteja em sua posse. Ou seja, sua conta é vinculada ao seu número de telefone. Sempre que você precisar fazer login na sua conta (caso troque de celular, por exemplo), você deve informar seu número de telefone, e o aplicativo enviará um SMS com um código, que deve ser inserido no aplicativo para ter acesso a sua conta. Esse processo garante o primeiro fator de autenticação, ou seja, dessa maneira, o aplicativo consegue confirmar que você tem acesso ao CHIP relativo ao número que você informou.

Nos últimos anos, no entanto, esse primeiro fator de autenticação não tem sido o bastante para proteger as contas de usuáries de aplicativos de mensagens. Isso porque golpistas criaram maneiras de enganar as pessoas e ter acesso ao código enviado por SMS, mesmo não estando de posse do número de telefone vinculado à conta. Sendo assim, muitos aplicativos disponibilizaram uma configuração adicional (e essencial!) de segurança, possibilitando que usuáries criem um PIN (uma senha) como um segundo fator de autenticação. Ou seja, ao habilitar a configuração de autenticação em dois fatores, para ativar sua conta, além do código enviado por SMS, será necessário colocar uma senha.

Permite o sigilo do número de telefone?
Alguns aplicativos de mensagens permitem que você utilize um nome de usuárie para interagir com outras pessoas, em vez do seu número de telefone. Então pessoas que não tenham seu número cadastrado nos contatos do telefone, podem interagir com você, mas não podem ver o seu número. Proteger o seu número pode significar, também, proteger sua identidade, uma vez que todos os números de telefone no Brasil são registrados com CPF e outros dados pessoais nas operadoras de telefonia.
 

Analisando

Utilizando os critérios que escolhemos, analisamos quatro aplicativos de mensagens e criamos o quadro baixo:

Whatsapp
O Whatsapp afirma que possui criptografia ponta-a-ponta, mas como não é software livre, não é possível verificar seu código e garantir o que de fato o aplicativo faz. Além disso, ainda que os chats sejam criptografados, as informações sobre nossas conversas e sobre como usamos o aplicativo (chamados de metadados, ou seja, com quem falamos, em que grupo estamos, com quem trocamos mais mensagens e outras informações) não são criptogradadas, e estão disponíveis para o Whatsapp analisar. Essas informações revelam muito sobre nós, e podem ser cruzadas com informações coletadas em outras aplicações do Facebook, como o Instagram e o próprio Facebook, sendo valiosíssimas para a empresa.

A forma como o Whatsapp possibilita a realização de backups também é problemática, e faz com que a criptografia ponta-a-ponta vá por água a baixo. Isso acontece porque a efetividade da criptografia ponto a ponto se restringe ao momento da transferência das mensagens e não ao momento de armazenamento no aparelho. O Backup é feito no momento em que as mensagens estão “abertas”, ou seja, descriptografadas. Além disso, ele é armazenado não pelo Whatsapp, mas nos servidores do Google, se for um celular com Android, ou nos servidores da Apple, se for um celular com iOS. Ou seja, essas empresas, e mesmo terceiros, podem ter acesso ao conteúdo das suas mensagens se o backup estiver configurado. O Whatsapp nos deixa com uma escolha difícil: se você não habilitar o backup, pode perder o acesso ao seu histórico de conversas caso seu celular seja roubado, por exemplo. No entanto, habilitar o backup nos servidores do Google ou Apple elimina a confidencialidade das suas mensagens.

O Whatsapp não possibilidade a configuração de uma senha para bloquear o aplicativo, o que pode ser uma vulnerabilidade caso pessoas não autorizadas tenham acesso ao seu celular. Para o bloqueio do aplicativo é possível configurar apenas sua digital, no entanto, o uso de dados biométricos traz diversas questões de privacidade e segurança e, portanto, não é recomendável.

Recentemente o aplicativo habilitou a opção de autodestruição de mensagens. Ao ativar esse recurso, todas as mensagens de uma conversa ou grupo, a partir daquele momento, serão apagadas automaticamente ao completarem 7 dias. Essa é uma ótima funcionalidade! Infelizmente ainda não é possível alterar o tempo da autodestruição, como se verifica em outros aplicativos.
 Para configurar o Whatsapp e melhorar a privacidade e segurança da sua conta, siga este passo-a-passo.
 

Facebook Messenger
Assim como o Whatsapp, o Messenger é um aplicativo de bate-papo do Facebook. Apesar da empresa afirmar que o aplicativo possui criptografia ponta-aponta, ele não é software livre, ou seja, não é possível analisar o código e saber de fato o que ele faz ou deixa de fazer. Nesse caso precisamos confiar na palavra do Facebook, o que, convenhamos, não é uma coisa muito sábia a se fazer. Em todo caso, o aplicativo permite algumas configurações de privacidade e segurança, como a autodestruição de mensagens nas conversas secretas, e a autenticação em dois fatores. Diferente dos outros mensageiros, o Messenger permite o uso de diversos plugins, no entanto, tenha cuidado com as vulnerabilidades que esses plugins podem trazer junto.
 
Ao utilizar o Messenger (e também o Whatsapp!) é importante ter em mente que ele pertence ao Facebook, e que a empresa possui um modelo de negócios baseado na coleta de dados pessoais. Ou seja, é possível que para a empresa importe mais os lucros do que a privacidade das pessoas.
 

Telegram
O Telegram não possui criptografia ponta-a-ponta por padrão nos chats comuns e nos grupos, e para usar esse recurso é preciso que a pessoa inicie um “chat secreto”. Isso pode trazer confusão na hora de usar o aplicativo, e é preciso ter em mente que as conversas em grupos não são protegidas. Além disso, o aplicativo não é 100% software livre, ou seja, ele não disponibiliza todo o seu código para ser revisado, o que deixa a desejar em relação à transparência e segurança. Uma coisa boa do Telegram é que ele permite o sigilo do número de telefone, então é possível entrar em grupos e se comunicar com pessoas sem revelar seu número (ainda que a própria empresa tenha acesso a ele).
 

Signal
O Signal é software livre, possui criptografia ponta-a-ponta, possibilita a autenticação de chaves, permite o uso de PIN como autenticação em dois fatores e possui a configuração de autodestruição de mensagens. No Signal o recurso de autodestruição de mensagens permite a configuração de diferentes períodos até que a mensagem seja apagada automaticamente, ou seja, o tempo de expiração é personalizável. Todas essas configurações e funcionalidades tornam o aplicativo uma ótima opção de chat seguro, e o mais confiável dentre os analisados aqui. Um ponto de atenção é a utilização da versão do Signal para desktop: A aplicação para computador não tem a possibilidade de configuração de uma senha. Nesse caso, suas conversas podem ficar vulneráveis em caso de perda, apreensão ou roubo de seu computador, já que, nesse caso, o aplicativo armazena as mensagens sem criptografia. Além disso, infelizmente, o Signal ainda não permite ainda o sigilo do número de telefone.

Para configurar o Signal e aumentar a privacidade e segurança da sua conta, siga este passo-a-passo.

 

A tabela comparativa reflete as configurações e funcionalidades que os aplicativos possuem neste momento (Julho/2021). Como os aplicativos de mensagens estão em constante atualização, novos recursos e opções de configuração podem surgir e favorecer ou não a privacidade des usuáries.

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Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

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