Liderança comunitária

Onde estão os novos espaços de resistência? Quais e como se dão as novas formas de resistência e de luta? Essas são perguntas que, continuamente, interpelam o corpo e a imaginação de ativistas (esses seres da ação e da insistência), que sempre se impõem a tarefa de encontrar alternativas, táticas, abordagens e modos de viver mais capazes de realizar as transformações que tanto pretendem e que dão sentido à sua existência. Essas são as inquietações permanentes que animam o devir-ativista – e que atravessam a luta concreta de gente tão diversa como Amália Garcez, Carlos Augusto Ramos, Léo DCO, Sarah Marques e Tipuici Manoki, cujos depoimentos compõem as páginas seguintes, e Luciana Ferreira, em comentário-síntese ao fim desta seção.

Eu tenho 39 anos, sou mulher negra, mãe solo de Rafael e Juliana, gêmeos adolescentes. Sou nascida e criada em Caranguejo Tabaiares. Meus pais se conheceram e se casaram aqui, tiveram dois filhos, eu e meu irmão, Sócrates. Meu pai foi liderança comunitária, assim como toda minha família. Meu tio participou da construção da sede da União de Moradores e meu pai foi se envolvendo. Fomos criados nesse meio de trabalho pela comunidade.

Desde os meus 11 anos de idade eu já me reunia com mulheres e crianças da comunidade na Associação de Moradores. Lembro-me bem das filhas e netas de Seu Arlindo e das festas que fazíamos: Dia das Crianças, Dia das Mães, São João. Quando eu tinha 14 anos, a Etapas (ONG contratada pelo Sebrae) chegou aqui na comunidade para fazer uma pesquisa com o objetivo de levantar os problemas enfrentados pela comunidade. Eles queriam ouvir as donas de casa, as mulheres e homens desempregados, mas muitas de nós, jovens da comunidade na época, também nos envolvemos e participamos dessa pesquisa. Foi aí que me aproximei do trabalho com ONGs e, então, fui crescendo nesse meio.

A MINHA COMUNIDADE

Eu acredito no fazer político e no trabalho comunitário, que aprendi trabalhando em ONGs, em gestões municipais e quando fui filiada em partido político. Eu refleti e resgatei minhas memórias e minha história e me lembro do meu pai no final de semana jogando futebol (o futebol está diretamente ligado às origens da comunidade e à criação de sentido coletivo e de união), minha mãe preparando comida para os eventos da comunidade, e isso foi me levando a compreender o que significa defender esse território e a acreditar de verdade. Todo esse povo de fora, do capital, do dinheiro, fica tentando fazer com que nós acreditemos que viver bem é sinônimo de sair das comunidades.

Aqui, quando se é pequena, se brinca na lama. Mas quando você cresce, vai pra uma entrevista de emprego, vai para a escola (que geralmente não é no seu bairro quando você mora numa comunidade), essa mesma lama que você gostava de brincar é a lama, quando você chega nesses lugares, sobre o que as pessoas falam: “Chegou o cheiro de lama! É fulana que mora em Caranguejo!” Isso começa a mexer com você. Eu, por exemplo, moro na margem do canal. Hoje sei e entendo que é um dos canais mais importantes da cidade, que deságua no Rio Capibaribe, que traz toda a drenagem da água, impedindo o alagamento e salvando a cidade que fica abaixo do nível do mar. Quando esse canal chega aqui dentro da comunidade, essa água já está suja — e o poder público permite isso, faz isso, para que nós tenhamos vergonha e medo. Esse poder do capital, o poder do governo, que deveria estar defendendo a gente, prefere retirar as famílias que moram às margens desse canal. Dessas compreensões é que me vejo não apenas como uma liderança comunitária, mas também como uma defensora do território — porque um dia eu já tive muita vergonha de dizer que morava aqui, mas hoje não tenho mais.

A FORMAÇÃO DA LUTA

Esse é o despertar de uma defensora de território, de uma defensora de histórias: a minha história; a história de Dona Maria, de Norma, minha mãe, de Siraquitan, meu pai, que foi  liderança; as histórias de mulheres que aterraram esse chão, como Dona Gilda, que sustentou seus filhos, construiu com as próprias mãos casas pra eles aqui na comunidade; as histórias que vão tecendo essa rede de gente que se conhece, que se cuida. Quando me descubro defensora, me descubro defendendo inclusive isso, não apenas o canal sujo. Muitas vezes somos atacadas, com acusações de que queremos continuar perto de um canal sujo, de uma comunidade suja, sem saúde… Porque aqui temos um único posto de saúde para quase cinco mil pessoas, uma única dentista para quase cinco mil pessoas… Mas isso não é porque somos pobres, isso é porque o governo não investe em nós; não investe porque quer que a gente sinta vergonha, porque não quer que gente de pele preta, com essa cara que eu tenho e todos daqui têm (caras bem parecidas, aliás), tenham acesso a um território que, por exemplo, vale 6 mil reais o metro quadrado e que, quando a prefeitura vem querendo comprar, paga cento e poucos reais o metro construído. No momento em que se atina pra isso, quando a gente se descobre fazendo parte dessa comunidade, a gente consegue trazer mais gente pra luta, formar mais gente pra luta. Nos formamos na luta e formamos muita gente, juntos.

PODER

Essa ideia de novos espaços de resistência é algo que sempre passa pela minha cabeça. Onde estão as novas formas de resistência? Penso que podem até haver novas formas, mas não lugares novos. Sempre digo que quando nascemos mulheres pretas, faveladas, não  temos escolha: ou lutamos ou morremos. Esse lugar está posto pra nós, sempre esteve, o lugar de luta. Agora, o que nasce em nós, o que aparece, o que desperta em nós é a compreensão sobre a defesa do território, de nossa história quando começamos a entendê-la. Para aquelas que conseguem, esse despertar aparece também no momento em que nos sentimos livres.

Parece contraditório defender um território e ser livre, mas estou falando da liberdade de não ter amarras políticas, falo da liberdade de poder escolher quem te representa de verdade.

Eu acredito que o poder público dá a nós formas e ferramentas para executar algumas coisas, mas, se não tivermos representatividade nos Poderes, não conseguimos executar nada. Mas, quando me vi livre, sendo apoiada, quando comecei a estudar a minha história de verdade, tudo o que eu vivi dentro dessa comunidade; quando olho para como era a vida dos meus pais, que dividiam até as tábuas pra fazer os barracos, a areia, as telhas, para que todo mundo pudesse ter sua casa; pensei em outro tipo de poder. Falo sobre conhecer outros espaços de poder que podem nos apoiar, que não estão atrelados às politicagens concentradas nas mãos dos políticos.

COLETIVO CARANGUEJO TABAIARES, RESISTE!

Em 2018, formamos o Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste, em resposta a uma comissão montada no Ministério Público com as nossas denúncias. A ideia do Coletivo era trazer para a comunidade os debates que estavam acontecendo lá dentro do Ministério, já que apenas o representante poderia participar. O poder público, em princípio, não queria aceitar que eu fosse a representante da comunidade nessa comissão, porque eu não tinha sido votada e não estava em nenhum grupo formalizado, mas foram as próprias pessoas daqui que escolheram e disseram que queriam que eu participasse. Então criamos o Coletivo e, ai, eu participei da comissão, e ainda fizemos os cine-debates na comunidade, levando de rua em rua o debate político e social, a luta comunitária, as histórias das pessoas que defendem seus territórios, as vozes da comunidade, a educação e a prática política com muitas formações, apoiados por várias organizações.

Daí surgiu o Brega Protesto e o curso de audiovisual. Trouxemos pra comunidade o debate sobre esse tema: Quais são as formas de luta? Onde estão essas novas formas? Apesar de estarmos no mesmo lugar, conseguimos ter acesso a algumas formas que meu pai e minha mãe não tiveram, como, por exemplo, as mídias digitais e o audiovisual, e isso nos ajudou muito. As pessoas da minha geração, quando iam procurar emprego, tinham vergonha de dar o CEP de Caranguejo, porque, quando dizíamos que morávamos em Caranguejo, principalmente quem morava mais para dentro da comunidade, as vagas de emprego eram negadas. Diziam que cheirávamos a lama, que era um lugar que enchia de água no tempo de chuva e que íamos faltar ao trabalho por causa disso, que era um lugar de pessoas que não eram boas.

Quando os jovens de Caranguejo fizeram o Brega Protesto, nós vimos que isso estava se transformando. Os jovens de hoje não tem essa vergonha e defendem seu território. Na letra do brega eles dizem: “Sou do Caranguejo! Prazer! Satisfação! Esse é meu lugar, daqui não saio não!” Isso é muito forte, mudamos a cara de Caranguejo Tabaiares para o mundo. Hoje temos muita gente que quer defender o território, que fala sobre isso. Que fala sobre sua comunidade com dignidade, quando fala em Caranguejo, fala em Caranguejo Tabaiares Resiste, fala nome e sobrenome da sua comunidade.

PANDEMIA

Quando nos vimos no meio da pandemia de Covid-19 e do lockdown, já sabíamos que o Caranguejo passaria por enormes dificuldades. Aqui, a maioria das famílias é chefiada por mulheres, mulheres negras, que trabalham de maneira informal. Muita gente vive vendendo coisas no semáforo, fazendo faxina, preparando a alimentação em restaurantes que seguiram atendendo por delivery. Mas seguiram porque as cozinheiras continuaram saindo de suas casas e a trabalhar na rua, com todo o perigo de se contaminar. Quando vimos que a primeira vitima fatal do vírus foi uma empregada doméstica de 65 anos, a gente se viu representada ali, e digo vimos porque o Coletivo conversa muito sobre isso.

O Coletivo não nasceu para distribuir cestas básicas, nasceu para fazer discussões sobre políticas públicas. Mas entendemos que estarmos alimentados, sobretudo nesse momento, é fazer política pública local; então ajudamos a alimentar nosso povo. Fizemos várias campanhas e arrecadamos muitas coisas, tivemos o envolvimento de muitas pessoas, mais de 200 lives, com cantores famosos, professores universitários, pessoas de fora do Brasil, que ajudaram nas mobilizações e doações. Com isso, também aumentamos nossas redes internas e descobrimos muitas outras mulheres defensoras de territórios aqui na região, e assim nossa rede foi aumentando. Mas não foi fácil, porque o governo trabalha com a estratégia da divisão, da desunião, pra nos enfraquecer. Ainda assim, conseguimos nos unir para nos mantermos vivos e vivas, sempre solidários, redescobrindo sempre como nosso trabalho é importante.

Imagina se hoje, nesse contexto, nós não tivéssemos lutado por esses tetos, se não tivéssemos resistido? Várias famílias estão reocupando as suas casas aqui, casas que haviam sido desocupadas pela prefeitura, pessoas que estão desempregadas e que, sem pagar aluguel, conseguem sobreviver do que arrecadam nos semáforos. Foi dessa maneira que conseguimos mostrar para o mundo nossa luta.

LUTA NA COMUNIDADE

Antes da pandemia fizemos eventos enormes aqui, como o Festival Terra Prometida. Esse nome vem do fato de que nessa terra deveria ser construído um conjunto habitacional. Quando fizemos o evento, foi para mostrar que esse lugar ainda existe, está aqui, a promessa não cumprida também, e não vamos abrir mão dela. Com isso, essa mulher negra aqui, que para muita gente não tem o valor estético, que tem essa imagem que muitas pessoas não querem ver falando, discutindo, defendendo seus direitos, que foi evoluindo junto com a comunidade e hoje está ocupando diversos espaços, não vai parar e nem essa comunidade vai parar. Queremos mostrar para o Brasil que Recife foi o primeiro lugar a ter Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social) (1) e não pode ser o primeiro a destruí-las, ainda que agora tenha sido votada uma lei que pretende fazer isso (2). Quando se acaba com as Zeis, todo mundo é afetado, e estamos na luta para mostrar para todos os bairros e comunidades que é muito importante a lei das Zeis e que quando estão mexendo com uma comunidade, estão mexendo com todas.

RELIGIOSIDADE E TRADIÇÃO

Somos uma comunidade centenária, pesqueira, festeira e bem religiosa, hoje com muita influência evangélica, mas temos na nossa tradição muitos padroeiros, como Nossa Senhora dos Remédios, que dá nome à nossa igreja matriz, e figuras religiosas que ajudaram essa comunidade a crescer, construir escola, posto de saúde. Temos também como padroeiro São José e Santo Antônio, por conta da Pesca de Santo Antônio. Também Cosme e Damião, porque, mesmo que a vida esteja muito dura, sempre mantemos a pipoca e o confeito no dia deles! Queremos passar isso para os nossos filhos, porque isso mostra que temos uma origem, uma história, somos uma rede, que todos nos conhecemos e nos ajudamos.

CORPO

O corpo de Sarah Marques hoje sabe que é todo resistência, e nem preciso dizer, pois quem vê uma mulher negra, gorda, à frente e com ações, se incomoda. As pessoas não estavam acostumadas com esse corpo na luta, com esse corpo sendo desejado, sendo bonito e sempre à frente de várias discussões. Então, o lugar que ocupa o corpo de Sarah Marques é lugar de resistência. Todos os dias acordar e ter que resistir a várias provocações e ameaças, mas, também, tendo a oportunidade de ver nos olhos da comunidade o brilho quando estamos juntos, nos ajudando, desde a sobrevivência em um momento como a pandemia, e que não se resume apenas a alimentação e álcool gel, mas colocando poesia e música na comunidade, pra lembrar as pessoas que temos de resistir para manter nossas casas. Esse corpo pulsa isso, quer e ama estar nessa luta, e o Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste está nisso, nesse corpo e   essa resistência.

Quando digo o Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste é porque estou nele e ele em mim também. Hoje somos seis membros que estão mais à frente, conversando com a população, articulando as redes, mas o Coletivo Caranguejo Tabaiares Resiste é também toda a comunidade, mesmo aquelas pessoas que politicamente foram ou seguem sendo usadas contra a resistência, elas sabem do poder, da coragem e do efeito disso tudo. É essa junção que não vai deixar que os nossos direitos sejam retirados, não sem muita luta. Estamos resistindo e sempre chamando mais gente da comunidade pra estar à frente disso. Estamos sempre também pensando no cuidado, cuidado para que possamos seguir no nosso território, que foi aterrado pelos nossos avós, continuado pelos nossos pais, agora nós seguimos vivendo aqui e criando e cuidando das próximas gerações, que estão chegando. Nosso grande desejo é melhorar essas comunidades, ter o direito à liberdade, que é também o direito à moradia com saneamento básico e saúde pública. Se já era difícil em outros governos, porque de verdade nunca olharam para as nossas pautas, hoje, com o atual governo federal, fica muito mais difícil. E agora, com esse inimigo invisível, esse vírus que ainda não tem cura, o cuidado se torna ainda mais central e cada vez mais difícil.

CUIDADOS

Não posso deixar de dizer que, ainda que essa luta seja, sim, absolutamente coletiva, tenho brigado muito para lembrar às pessoas que nós, lideranças comunitárias, somos pessoas, e muitas vezes preciso lembrar isso para mim mesma e para fora também. Com isso tenho brigado muito porque estou aprendendo a dizer Eu. Apesar da coletividade, às vezes preciso dizer Eu, porque eu sou essa sujeita coletiva, com esse corpo coletivo, uma mulher que chega carregada da comunidade, e sou uma mulher, uma pessoa. Porque costumam nos colocar, nós, lideranças comunitárias, principalmente as mulheres, num lugar em que não somos pessoas, que não temos sentimento, que não precisamos de cuidado. Eu acho que o lugar do cuidado na resistência hoje é o maior desafio. Enquanto digo que as pessoas não nos veem como mulher, como um indivíduo que tem seus desejos, fraquezas e vontades, a gente também esquece que tem, às vezes. E vai pra cima, vive só a luta! E nisso, o cuidado tem que ser aquele cuidado que de fato faz bem pra nós. Não é aquele cuidado padronizado, do corpo padronizado, as meditações, malhações, natações etc que a gente vê tanto por ai… Aqui temos várias formas de cuidado, como sentar na calçada e conversar, arrecadar alimentos e cozinhar juntos. Isso pra gente também é autocuidado. Escutar um samba, tomar uma cerveja, isso também é se cuidar, é estar bem e ver que estamos vivas. Isso é muito importante para nós, porque no nosso cuidado e na nossa felicidade está também o lugar da resistência.

Notas:

1 A Zona Especial de Interesse Social – ZEIS – é uma categoria específica dentro do zoneamento da cidade. Esse tipo de área específica requer a aplicação de normas especiais de uso e ocupação do solo diferentes daquelas adotadas para o restante da cidade, em especial o reconhecimento da forma da ocupação, a fim de impedir a especulação imobiliária e a expulsão da população de baixa renda dos territórios.

2 https://recifedeluta.org/2020/07/25/proposta-do-plano-diretor-do-recife-quer-liberar-as-zeis-para-omercado-imobiliario/

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