Formas de ação que têm na prática de cozinhar, comer e conviver sua base e sua expressão

BANQUETAÇO

Os ingredientes básicos são: um local público, uma grande mesa com comida boa e gratuita, pessoas. Está criado um espaço de vivência e aprendizagem que reúne, numa só situação, a denúncia, o protesto, a conscientização e a demonstração de novos modos de viver e conviver. O banquetaço é este tipo de ação múltipla, de várias faces, que se presta a várias funções no âmbito de uma estratégia política e que é, em si mesma, uma experiência transformadora de quem participa dela.

Como em toda prática que tem o alimento como seu eixo central, o ato de comer (e cozinhar) juntos na rua convoca o corpo a perceber e experimentar uma profusão de sensações, sentidos e afetos; realiza uma ação demonstrativa que supera em teor comunicativo o mero uso de materiais de campanha, os cartazes, as cartilhas, as palavras de ordem das manifestações. Num banquetaço, esses recursos são necessários e estão todos lá, mas são potencializados pela interação entre as pessoas em torno de uma mesa de comida.

No Brasil, o banquetaço tornou-se não só um método de ação mas também um movimento

pela soberania e a segurança alimentar, que articula desde agricultoras e agricultores familiares, agroecologistas e o MST até organizações de atendimento à população de rua, movimentos de moradia e direito à cidade, passando por profissionais da gastronomia, especialistas em nutrição e em saúde pública.

Em novembro de 2017, um ato realizado em São Paulo ajudou a pressionar o então prefeito João Dória a suspender o projeto de fornecer, para a rede escolar e grupos vulneráveis, uma farinha ultraprocessada feita de sobras do varejo e da indústria alimentícia (que em compensação receberiam benefícios e isenções fiscais). Nesse banquetaço, duas mil refeições gratuitas foram distribuídas, feitas com alimentos doados e outros que seriam descartados.

Em 27 de fevereiro de 2019, mais de 40 banquetaços (1) ocorreram em todo o país em protesto contra o fim do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), que acabou extinto por meio de sucessivas medidas provisórias assinadas por Jair Bolsonaro.

A BELEZA DA XEPA         

O banquetaço não é só um ato de protesto em que se usa comida. É um espaço de (re)educação alimentar, de combate ao desperdício e de conscientização sobre a produção de desigualdade, pobreza e doença dos circuitos capitalistas do agronegócio e da indústria alimentícia.

O resgate da “xepa” é um elemento-chave desse processo de conscientização. A xepa é um jeito popular de designar os alimentos do fim de feira ou aqueles descartados por terem pouco valor comercial, feios, assimétricos, machucados ou simplesmente fora dos padrões estéticos do mercado.

Nas Disco Xepas realizadas pelo movimento Slow Food, pelo menos 80% dos ingredientes dos banquetes públicos e gratuitos vêm das “sobras” de feiras e supermercados que iriam parar no lixo sem necessidade. O restante é de produtos doados e de plantas alimentícias não-convencionais (Pancs) cultivadas ou coletadas nas ruas e quintais da cidade. Nesses eventos, a parte “disco” é também essencial: música, apresentações artísticas e festa compõem o combo metodológico da ação (2).

COMER É ARTE

O coletivo de arte relacional Opavivará (3), criado no Rio de Janeiro em 2005, constrói algumas de suas intervenções como experiências imersivas em torno da cozinha, da comida e do alimento. Algumas se assemelham às práticas do ativismo alimentar, outras apontam caminhos estético-políticos ainda não aproveitados em sua potência máxima pelos ativistas.

O projeto das intervenções denominadas Cozinha Coletiva, realizadas no Rio de Janeiro (2012) e em Vitória/ES (2016), lembram em muitos aspectos os banquetaços: há comida gratuita, e também são instalados bebedouros, tanques para lavagem de alimentos e da louça usada, forno e fogão a lenha, mesas e bancos e espreguiçadeiras para descanso. A população se apropria do espaço, dos utensílios e da proposta de ação. No projeto Parabéns pra Você, Mercadão de Madureira, realizado em 2010 no Rio de Janeiro, os participantes também comem: comida (bolos de festa) – e imagens junto com a comida.

Durante a fase de pesquisa, o coletivo Opavivará fez registros fotográficos de lojistas do mercado. As fotos foram impressas em papel de arroz e depois dispostas na superfície dos bolos, emolduradas com glacê. Durante a festa de comemoração, as pessoas convidadas, inclusive os próprios lojistas fotografados, comeram seus retratos coloridos.

MASSA E PODER

Se depender da artista e poeta Laís Velloso (4), a mensagem política é a própria comida. No sentido literal. Laís produz massas estampadas – e ideias impressas em “tecidos gustativos”.

Há raviólis e capelettis antifa. Numa mídia social, um texto explica a tática:

“A massa vai congelada ou pronta para comer?

– Vai congelada!

– Por quê?

– Para que as pessoas se lembrem de que as grandes revoluções acontecem junto ao fogo. Ao fogo do fogão de suas casas.”

É comer e lutar.

ACABAR COM A FOME

Nesta edição, que chega a público num cenário de genocídio e terra devastada, é impossível falar do alimento, da comida, do comer e do cozinhar como base das formas de agir sem dizer da fome e da insegurança alimentar como motivo e motor de toda luta. Para isso, valem e precisam valer todas as táticas, todos os métodos de ação, sem descanso. Como nesta ação de distribuição de alimentos pelo Coletivo Papo Reto no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, durante a pandemia.

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