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Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

Rede Jandyras: um enxame em luta pela natureza e pela democracia

Por Luiza Ferreira

Coletivo de mulheres coloca questão de gênero na dianteira no debate sobre o clima e organiza a resistência climática no Pará

A Rede nasceu em 2021 e hoje tem o seu trabalho focado na ampliação da discussão da elaboração de políticas socioambientais de maneira condizente com a realidade da população paraense l Foto: Arquivo Rede Jandyras

“São as mulheres que mais sofrem com os problemas ambientais e climáticos, como desastres naturais, desmatamento, poluição e com a falta de políticas socioambientais. É nítido que as mulheres estão na linha de frente de pautas importantes na sociedade, desempenhando um papel crucial na gestão e conservação dos recursos naturais, principalmente nas comunidades rurais e tradicionais”.

É assim que a ativista e educadora popular, Waleska Queiroz apresenta a magnitude do desafio encarado por ela e pela Rede Jandyras, do qual ela faz parte. A rede é composta por um grupo de mulheres dedicado a discutir os efeitos da crise climática na cidade de Belém, no estado do Pará. 

Antes mesmo de integrar a Rede Jandyras, Waleska já atuava com a Educação Ambiental. A importância da relação humana com a natureza e o meio ambiente sempre esteve presente no seu trabalho, ela explica. Waleska, que é natural de Terra Firme, periferia de Belém (PA), antes mesmo de ingressar na Universidade, já movimentava articulações em projetos aplicados em escolas e comunidades vulnerabilizadas do Pará.  

‘Não consigo falar de mim sem referenciar que sou filha de mãe solo e a primeira da família a ingressar no ensino superior e obter o título de bacharel em Engenharia Sanitária e Ambiental pela Universidade Federal do Pará”, explica, lembrando de sua longa trajetória de doze anos como voluntária de projetos socioambientais em diversas organizações. 

Surge um enxame

Atualmente as Jandyras são quase 30 mulheres que participam do projeto cada uma à sua maneira, com a missão de fortalecer a inserção das mulheres no debate político sobre questões socio-ambientais. A Rede nasceu em 2021 e hoje tem o seu trabalho focado na ampliação da discussão da elaboração de políticas socioambientais de maneira condizente com a realidade da população paraense, apontando os problemas locais e os reflexos da crise do clima. 

Em 2021, a ONG Mandi (antiga Ame o Tucunduba) promoveu uma formação online e gratuita com o nome de Jandyras – do tupi “abelha de mel” – que contou com a participação de 40 mulheres. Após a formação, as participantes foram convidadas a construir coletivamente a Rede Jandyras: esse enxame de 20 mulheres plurais da cidade Belém, de diversas idades, vivências e identificações, que toparam o desafio e hoje compõem uma rede dedicada a pensar maneiras de enfrentar a crise climática, de maneira interseccional. 

“Hoje incidimos diretamente nos espaços de tomada de decisão de Belém e almejamos que esses ambientes sejam cada vez mais ocupados por mulheres, ainda assim, acreditamos que há uma longa jornada de desafios pela frente”, comenta.

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 A Agenda Climática para Belém foi o primeiro projeto articulado pela Rede Jandyras, e consiste na sistematização de dados sobre problemas territoriais locais e no que tange à crise climática e seus impactos na cidade e na população local. O acesso à água e saneamento básico, direito à cidade e à habitação social, justiça racial e ambiental, infância e clima e mobilidade urbana são os principais eixos da Agenda.  

“Para esse primeiro projeto, contamos com o apoio de uma coalizão da HIVOS VAC (Vozes Pela Ação Climática) composta por três organizações: ONG Mandí, Clima de Eleição e Movimento Moara. A agenda climática foi entregue a todos os vereadores da câmara municipal de Belém e oito deles se comprometeram em implementar as propostas contidas na agenda”, acrescenta Waleska.  

Entre as propostas, está o Fórum Climático Municipal, que foi aprovado em dezembro de 2021, no orçamento do plano plurianual de Belém. Belém do Pará, que detém hoje os piores índices de acesso à água e saneamento básico, se configura como um território potencialmente vulnerável aos impactos das mudanças climáticas, como reforça a ativista. Por isso a urgência da promoção de debates que possam fortalecer a agenda climática.  

Em 2022, a Rede lançou a campanha “Fórum Climático Já”, para reivindicar transparência e participação de ONGs, coletivos, universidades e cidadãos interessados na pauta, no processo operacional de execução do Fórum, que está sendo trabalhado pela Rede em parceria com a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SEMMA). 

“Hoje incidimos diretamente nos espaços de tomada de decisão de Belém e almejamos que esses ambientes sejam cada vez mais ocupados por mulheres”, diz a ativista Waleska Queiroz l Foto: Arquivo Pessoal

Recorte de gênero

São muitas as consequências da crise climática global, e as mulheres estão entre os grupos mais vulneráveis às mudanças climáticas. Um relatório do Women in Finance Climate Action Group apresenta uma constatação dolorosa: 80% das pessoas deslocadas pelas mudanças climáticas são mulheres. Mesmo sendo a segunda maior metrópole da região Norte do Brasil, a cidade de Belém não possui nenhum plano para mitigar ou discutir soluções para a emergência climática. É nesse sentido que a Rede Jandyras surge como uma potencializadora da construção coletiva de políticas públicas que possam contemplar e direcionar o olhar para a realidade das mulheres paraenses.  

Para Waleska, é importante que as mulheres participem ativamente dos processos tomada de decisão, mas para além de ocuparem esses espaços, é preciso construir “novas perspectivas sob o olhar feminino no cenário político”, reforçando novas abordagens para a elaboração de políticas públicas de fato inclusivas e eficazes. 

No entanto, ela reconhece que esse é um processo longo, especialmente no Brasil, o que se deve a limitação da presença de mulheres na política ambiental brasileira. Esse se configura como um dos grandes desafios para a atuação da Rede Jandyras, visto que esses espaços políticos são usualmente dominados por homens. 

Entre outros desafios, está a falta de recursos financeiros e segurança, que acabam impactando na realização das atividades e na implementação de projetos importantes.  

“Continuamos lidando com as mesmas problemáticas que destaquei acima, mas acreditamos que a gestão atual do governo propicia um cenário mais oportuno para continuarmos atuando e pressionando os governantes a se comprometerem de forma efetiva com as pautas socioambientais e climáticas”, diz. 

A falta de acolhimento do ambiente político para as mulheres é um problema potencial, que desencoraja o engajamento feminino com as questões ambientais, muito embora sejam elas as mais afetadas.  Para Waleska, os desafios são diários. Superar essa situação só é possível “através da adoção de medidas que promovam a igualdade de gênero, ampliem a inserção de mulheres nos espaços de poder e assegurem o acesso à elas à tecnologias que promovam o seu engajamento em questões ambientais”, finaliza. 

Luiza Ferreira é jornalista.

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O que é o ativismo asiático e por que ele importa?

Por Vinicius Tamamoto

Grupo de pessoas asiáticas protestam na rua segurando placas com dizeres como "stop asian hate [parem de odiar asiáticos]

Incomodados com a representação estereotipada de pessoas asiáticas, descendentes se juntaram para formar coletivos | Foto: Kareem Hayes na Unsplash 

Eu devia ter uns cinco anos. Uma vizinha se aproximou e perguntou o que eu queria ser quando crescesse. Não lembro minha resposta, mas ela sentenciou: “Vai abrir um restaurante de sushi”. Deve ter sido um dos primeiros momentos em que percebi que havia algo diferente em mim. Na escola, desde a primeira série, o momento da chamada era angustiante. Torcia para que a professora só chamasse os alunos pelo primeiro nome, já que seria zuado pelo sobrenome. Tamagoshi, xing ling, jaspion e japa eram alguns dos apelidos que me faziam ter vergonha de minhas origens, ainda que meu pai, de ascendência okinawana, tivesse se afastado (talvez pelos mesmos motivos) de toda a cultura asiática que experimentou na infância. 

Em casa, meus hábitos eram de uma criança 100% brasileira de uma cidade da periferia de São Paulo. Não havia ao meu redor qualquer outra pessoa de “olhos puxados”. Por isso, era impossível andar pelas ruas com a minha mãe sem que as pessoas destacassem minhas características físicas. Alguns puxavam os olhos, outros falavam qualquer coisa ininteligível na tentativa de imitar a língua japonesa. Sem saber o que fazer, eu só sorria. A reiterada lembrança do outro de que eu era uma espécie de estrangeiro afetou para sempre a maneira de me relacionar com o mundo. A timidez cresceu e virou um monstro. Fui tentando apagar qualquer resquício em minha personalidade que pudesse me associar à Ásia em uma tentativa inconsciente de embranquecimento. Os problemas foram aumentando conforme a adolescência evoluía. Cada vez mais introspectivo, não conseguia me relacionar com colegas da escola e passei o ensino médio como o garoto esquisito, calado e sempre sozinho nos cantos, onde ninguém pudesse me ver. Acrescente a esse contexto a nuance de me perceber gay. Se já não via asiáticos por aí, imagine asiáticos gays. Logo passei a deparar, em sites de relacionamento, com o racismo escancarado do “não curto negros nem orientais” (sim, isso era muito comum em meados dos anos 2000).  

Foi só lá por 2015, com a disseminação de grupos na internet que falam sobre a questão asiática no Brasil, que comecei a ter certa consciência de que não estava sozinho em meu “não lugar”. Incomodados com a representação estereotipada de pessoas asiáticas, descendentes se juntaram para formar coletivos. Alguns dos primeiros foram Perigo Amarelo, Asiáticos pela Diversidade, Outra Coluna e Yo Ban Boo. Foi revelador entender que minhas subjetividades individuais encontravam eco em um grupo bem maior de pessoas. Para tentar sintetizar as questões de descendentes do leste asiático por aqui, o pesquisador Porowiak propôs recentemente o uso do termo “amarelitude”.  Em seu texto inaugural, explica que a intenção é pensar sobre uma vivência paradoxal: a de sermos racialmente discriminados e, ao mesmo tempo, racialmente privilegiados. 

O perigo amarelo e a minoria modelo

Existem duas ideias que ajudam a entender essa ambivalência. Uma delas é a de ‘perigo amarelo’, uma ideologia surgida no século XIX e utilizada desde então por líderes ocidentais em momentos de temor da ascensão econômica de algum país da Ásia. “Há um marco fundante dessa ideia que acontece a partir da encomenda pelo Kaiser Guilherme II, da Alemanha, de uma tela intitulada ‘Perigo Amarelo’, que fazia uma alegoria do leste asiático como uma ameaça à civilização e aos valores ocidentais”, explica Lais Miwa Higa, doutoranda em Antropologia Social. A outra é a de ‘minoria modelo’, um conjunto de estereótipos positivados de asiáticos e seus descendentes que nos enxerga como uma população trabalhadora, estudiosa, capaz de alcançar o sucesso financeiro e se integrar bem à sociedade. A noção de minoria modelo é contraditória.

Ao passar na faculdade de jornalismo, uma colega de sala me perguntou em que posição da lista eu havia ficado. Quando soube que estava longe dos primeiros lugares, disparou sem rodeio: “Nossa, um japonês burro.” Fiquei perplexo.

Nos Estados Unidos, estudos indicam que crianças com ascendência asiática sofrem com problemas de autoestima justamente por carregar estereótipos positivados. Ao mesmo tempo, constroem-se certos privilégios em torno de pessoas amarelas: não ser parado pela polícia e não ter a vida colocada em risco como as populações negras e indígenas são alguns deles. Nesse contexto, o ativismo asiático luta também para que pessoas amarelas no Brasil não sirvam como escada ao racismo anti-negro, já que a positivação fez com que muitos de nós comprássemos o discurso meritocrático do individualismo neoliberal. A oposição do sucesso asiático no Brasil seria, nessa ideia, a população negra escravizada, que não teria conseguido alcançar tal façanha. 

 Para Lais, os mitos do perigo amarelo e da minoria modelo são criações usadas como instrumento de manutenção de sistemas hierárquicos, de desigualdade, colonialidade e opressão. “Há uma dialética entre as duas coisas que faz com que o perigo amarelo possa ficar apagado, silenciado durante muito tempo, apesar de não desaparecer”, analisa. Ou seja, o olhar positivado dos brancos sobre os asiáticos amarelos se sobrepõe ao risco que eles possam causar, pelo menos até que um fator de crise volte a desencadear o medo.

Durante a pandemia da Covid-19, por exemplo, ataques racistas e xenófobos não foram raros ao redor do mundo e o termo “vírus chinês” foi amplamente disseminado. Essa teia de construções produz atravessamentos subjetivos importantes em cada indivíduo que se reconhece asiático no Brasil. “A partir do entendimento de contextos históricos, da produção científica, artística e ativista, a gente vai conseguindo enxergar nossas histórias”, reflete a pesquisadora. Só assim é possível rever memórias e construir novas narrativas que quebrem o pacto colonial. Por nós e por todos os racializados – ou não-brancos.

Guardiãs de sementes crioulas preservam legado de biodiversidade e resistência

Por Bárbara Poerner

Em Anchieta (SC) e região, mulheres campesinas fortalecem a agroecologia e o feminismo camponês popular desde a redemocratização do Brasil ao preservarem culturas tradicionais

Movimento de mulheres camponesas lutam contra a monocultura guardando linhagens genéticas ancestrais l Foto: MMC/Reprodução

 Há sessenta anos, Zenaide Millan da Silva preserva as sementes de sua família. Ela nasceu e mora na capital das sementes crioulas do Brasil: Anchieta, no extremo oeste catarinense. A guardiã, que faz parte do Movimento de Mulheres Campesinas (MMC) ao lado de outras dezenas de mulheres da região, ajuda a garantir a autonomia campesina e a fortalecer a agroecologia, ao preservar culturas ancestrais que também significam o futuro da biodiversidade.

A definição das sementes crioulas pode partir do ponto de vista científico, mas também político, explica Juliana Bernardi Ogliari, engenheira agrônoma, mestre e doutora em genética e melhoramento de plantas. Em síntese, a pesquisadora diz que elas são “aquelas sementes multiplicadas, selecionadas e preservadas por muitas gerações de cultivo”. O que acontece é que muitas delas são atemporais e torna-se impreciso definir exatamente qual sua idade. 

 “Quando os colonizadores chegaram aqui, já existiam populações indígenas, como os guaranis, que utilizavam variedades de milho”, continua ela, que cita como exemplo alguns milho pipoca, que concentram características particulares que apontam esse tempo distante e “não tem uma ancestralidade comercial”.  

Foi essa potência milenar que encantou, também, Luana Rockenbach. Filha de agricultores, ela deixou sua cidade natal, Itapiranga, para estudar Letras em Florianópolis. Em pouco tempo, a saudade do campo apertou e resultou em um mochilão pelo Brasil e parte da América Latina. De bicicleta e carona, a guardiã levava, trazia, trocava e conhecia a diversidade de sementes crioulas.  

“Comecei a plantar mais variedade de amendoim, melancia, e outras culturas, e abriu um universo de quanta variedade crioula existe”, conta. 

A motivação de Luana para se aprofundar no cultivo e manejo das sementes crioulas veio a partir da consciência que tem essa biodiversidade que está se perdendo e como todas as regiões estão tomadas pelo agronegócio. “São os monocultivos que desterritorializam as territorialidades”, define. 

A Revolução Verde e os impactos nas sementes crioulas 

Na década de 1980, a forma de ser agricultor mudou drasticamente. À época, o Brasil recebia as promessas da Revolução Verde, movimento encabeçado pelos Estados Unidos que introduziu um pacote tecnológico no campo por meio da mecanização, monoculturas e uso de fertilizantes químicos, agrotóxicos e sementes geneticamente alteradas. A palavra de ordem tornou-se produtividade e a justificativa era otimizar a produção de alimentos para acabar com a fome no mundo.

 Anos depois, o montante de grãos realmente cresceu. Entre 1975 e 2017, a produção, que era de 38 milhões de toneladas, cresceu mais de seis vezes, atingindo 236 milhões, enquanto a área plantada só dobrou. Contudo, a fome, insegurança alimentar e desnutrição continuam crescendo em todo o planeta, inclusive no Brasil, que concentra 33 milhões de pessoas esfomeadas.  

Juliana explica que, com a Revolução Verde, muitos agricultores criaram vínculos de dependência com as companhias do agronegócio e a preservação das sementes crioulas foi diretamente afetada. “Você está na mão das empresas que produziram o material genético para isso. O agricultor teve que reaprender uma cultura diferente, e as tradicionais acabaram sendo abandonadas”. 

Hoje, é difícil encontrar grandes áreas sem a transgenia. Os dados da Embrapa mostram que a cada 100 hectares plantados com soja hoje no planeta, 80 são de sementes com genes alterados. No caso do milho, são 30 para cada 100. Em território nacional, 92% da soja é transgênica, 90% do milho e 47% do algodão. Somamos a isso o advento da monocultura e vemos um país que tem 36 milhões de hectares ocupados por soja, o que equivale a 4,3% do território nacional – área da República do Congo e superior a países como Itália, Vietnã e Malásia. Metade desse total está no Cerrado.  

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Na visão de Luana, é difícil competir com “essa facilidade que o agronegócio oferece, onde você passa o veneno e não tem muito trabalho”. Ela argumenta que houve um discurso que as sementes crioulas são menos produtivas e que as outras sementes ‘tecnológicas’ produzem melhor. Juliana tem avaliação semelhante. “O novo e o tecnológico são sempre colocados como a melhor opção em todos os sistemas, mas isso nem sempre é verdade”. 

Com o avanço dos transgênicos e agrotóxicos, os guardiões de sementes enfrentam muitas dificuldades. “Nas terras dos meus pais, três vizinhos plantaram transgênicos e tinha que cuidar muito quando eles plantavam, para não misturar”, conta Luana. A agricultora se refere a um processo que pode acontecer com todo guardião: a contaminação das suas sementes tradicionais. 

 “O que temos de contrapartida com a Revolução Verde e a Revolução dos transgênicos é a perda de diversidade. Quando uma variedade crioula é contaminada por transgenia, além perder as próprias características, muitas vezes ele [o agricultor] é sujeito a questões jurídicas, pois ele é ‘culpado’ por ter tido sua variedade contaminada, já que gene sequenciado é patenteado [pelas grandes companhias] e isso tem uma proteção intelectual”, diz ela, ao citar um caso que aconteceu no Canadá, onde um agricultor teve sua lavoura contaminada e foi processado pela Monsanto. 

A pesquisadora destaca que com o abandono das variedades crioulas, a própria ciência é impactada negativamente. Muitas das sementes tradicionais conservam características genéticas únicas, que podem ajudar em avanços na medicina, saúde e na própria agricultura. 

 “Existe a perda da biodiversidade e da tradição e cultura deles, mas não é só isso. A erosão genética tem um impacto não só no modo de vida das pessoas, das tradições [e identidade] que elas cultivavam, mas também questões biológicas. A ciência perde com isso”.

Movimento das mulheres camponesas olha as particularidades da vida no campo partindo da lente de gênero  l Foto: Marcello Casal Jr. /Agência Brasil

O Movimento de Mulheres Camponesas

 Em contrapartida à pressão no campo e aos impactos negativos da transgenia, monocultura e destruição da biodiversidade, surgem movimentos importantes de resistência. O livro Mulheres Camponesas, iniciativa do ICMBio, contextualiza o surgimento do MMC no oeste catarinense. Alguns fatores culminaram para o surgimento da entidade desde as décadas de 1960, como o intenso êxodo rural e a fragmentação fundiária, a subsequente ao pacote de modernização do setor agropecuário. Dados do IBGE de 1995 mostram que, em 1975, existiam 26.936 estabelecimentos agropecuários com área inferior a 10 hectares; em 1980 passaram para 32.613; em 1985 esse número subiu para 40.100. 

Essa divisão das áreas do campo, aliada às consequências da Revolução Verde,   mudaram a forma da família agricultora e a manutenção da vida campesina. As mulheres, que já estavam presentes em diferentes movimentos sociais na esteira da redemocratização, como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), sindicatos e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), muitas vezes não tinham plena voz ou eram subalternizadas nos debates e decisões. Isso foi mais uma motivação para se articularem em torno de suas demandas e interesses, que envolviam particularidades da vivência como mulheres do campo e discussões a partir da lente de gênero. 

Tudo isso ocorreu durante a década de 1980 em diante, com diferentes eventos que forjaram o MMC de hoje. Oficializado em 2004, a entidade aglutinou lutas nacionais de todos os territórios rurais e firmou um projeto campesino, popular e feminista. Desde o início, também houve a defesa da proteção das sementes crioulas. Por exemplo, em 2003, na cidade de Curitibanos, o MMA (Movimento de Mulheres Agricultoras, antigo nome do MMC) realizou um seminário sobre a agricultura agroecológica no qual as participantes socializaram as sementes crioulas produzidas e recuperadas em suas terras. 

Por isso que, não ao acaso, muitas culturas tradicionais podem ser encontradas nos quintais dessas guardiãs. São os chamados quintais produtivos. Zenaide conta que o MMC busca fortalecer a biodiversidade desses espaços, justamente porque entende que grande parte das campesinas estão ali. Ela também aponta como “o Movimento ajudou as mulheres a entender a forma de guardar, para que continue mantendo a qualidade dessas sementes”.  

“Você ter a semente é uma coisa, mas ter ela com qualidade é outra, e o movimento trabalhou pras mulheres pudessem ter uma produção boa, de boa germinação. Às vezes, você colhe a semente de qualidade mas você não armazena ela num local adequado e isso é prejudicial”, explica.  

Contudo, Luana destaca que as mulheres ainda sofrem os impactos da concentração de terras e da própria estrutura machista. “Aí é onde o feminismo tem que chegar. Que [elas façam parte de] decisões participativas, de como será plantado, se não a mente masculina e machista do agronegócio é da monocultura”. A guardiã escreveu mais sobre isso em um artigo, intitulado Desafios e ideias para o resgate, produção, multiplicação e uso das sementes crioulas.

No trabalho, Luana escreve que “as sementes, as mulheres e a juventude são chaves para projetar um modelo de produção mais sustentável, igualitário e responsável com a biodiversidade. […] Soa repetitivo, mas é necessário lembrar que sem sementes crioulas e sem feminismo não há agroecologia”. Zenaide acrescenta que preservar as sementes crioulas é garantir que haja futuro.  

“O objetivo é que as próximas gerações consigam ter uma alimentação diversificada, não só três ou quatro tipos de grãos, e isso ser a base de toda a alimentação das pessoas. Quanto mais pessoas tiver [acesso à] essa diversidade, mais qualidade de vida”, finaliza.

Bárbara Poerner é jornalista.

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Fernão, não!

O protesto em poesia de Luh Ferreira contra o rebatismo pelo governador Tarcísio de Freitas da estação Paulo Freire, que agora passará a chamar Fernão Dias

Estátua de Fernão Dias em escola ocupada

Estátua do bandeirante Fernão Dias, em escola homônima no bairro de Pinheiros, São Paulo. Na ocasião, a escola estava sob ocupação estudantil l Crédito: Rovena Rosa/Agência Brasil

Fernão, não!

mil vezes, Fernão Não.

Ah mas por que não?

Se a população disse que Fernão era um cara bão?

54% de gente que gosta de bandeirola?

quem são?

Fernão não, porque Fernão

foi um cão

Empunhou uma bandeira de sei lá o que na mão

e saiu atirando, escravizando, mutilando grandão

Não bastasse no Brasil,

a história diz que até o Uruguai ele invadiu.

Fico aqui a pensar

Por que esse sujeito merece tanta adoração?

Se até nome de escola, de estrada, de gente

colocam o bandido Fernão!

Matou!

Invadiu!

Derramou sangue, merece o esquecimento

a vala da alheação

jamais um brasão.

Então governador vacilão

deixe de pressão…

Temos que fazer como fizeram os secundas:

atos de desocupação

atos de desinvasão

É Fora Fernão!

Fernão aqui, Não!

esse palco de horror que você quer montar

a cidade de São Paulo não merece virar

Sai fora com seus bandeirolas

com sua permanente ode ao ódio

A democracia venceu, o amor prevalecerá

E um educador, o melhor que tivemos

você terá de homenagear

custe o que custar!

Viraremos a página deste pesadelo

Fernão você vai ver lá no Posto de Gasolina

Fernão você vai ver com o saco na cabeça!

Quando a indignação nos assola

a poesia é a fórmula

Paulo Freire aqui segue e sempre será

o educador, o cara, que nos ajuda a sair de lá

De lá de onde?

Desse buraco chamado hipocrisia

da pequenez que não reconhece a grandeza do povo

Se cuide sujeito de martelinho na mão

suas pancadinhas não nos oferece medo

somos muitos nesse Brasilzão!

Somos maiores do que essa sede de escravidão!

Respeite a nossa luta, respeite a nossa história!

Chega de InFernão.

Por Luh Ferreira, da Escola de Ativismo

Por que é urgente a revogação do novo ensino médio?

Mudança no currículo escolar tem precarizado a formação e focado em um modelo tecnicista de ensino

Por Izabella Bontempo

Sala de aula com carteiras enfileiradas e vazias

A reforma tem o objetivo de entregar uma formação técnico profissionalizante ao final da formação | Foto: Pxhere

Fruto do golpe de 2016, a reforma do ensino médio foi convertida na Lei Federal 13.415 em 2017, durante o governo de Michel Temer e seu então ministro da Educação, Mendonça Filho. Conforme a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que define os currículos adotados pelas escolas, os únicos conteúdos obrigatórios passam a ser língua portuguesa e matemática, enquanto os demais conteúdos, como história, geografia, sociologia, física e química, por exemplo, aparecem diluídos em áreas de conhecimento e passam a não serem obrigatórios.

A reforma tem o objetivo de entregar uma formação técnico profissionalizante ao final da formação, e de acordo com o então governo, a medida foi proposta alegando que o ensino médio não é atrativo e não dialoga com a realidade dos jovens. 

De acordo com Camila Moraes, vice-presidenta da União Estadual dos Estudantes de Minas Gerais (UEE-MG), a reforma é um atentado ao direito dos estudantes e da classe trabalhadora: “Quando você tira o direito de aprender sociologia e filosofia, por exemplo, na verdade você está dizendo que aquele estudante não tem direito de desenvolver uma leitura própria do mundo e nem de participar do processo onde a educação é emancipadora. Como conseguimos conceber a ideia que disciplinas tão fundamentais para a leitura da realidade não são necessárias? Isso tem a ver com uma retirada de direitos da classe trabalhadora de se desenvolver a partir da escola e da educação pública” conclui.

Com a retirada de conteúdos como história, o novo currículo oferece uma formação técnica com a oferta de cursos de marketing e empreendedorismo, por exemplo. Além disso, permite que um professor de qualquer área de humanas, ministre aulas dos outros conteúdos da mesma área, isso significa que um professor de geografia pode dar aulas de sociologia e filosofia, por exemplo. 

Para Camila, essas mudanças representam uma ideia mercantilista e privatista da educação. “Entendendo a educação como mercadoria, você precisa gerar lucro, e para isso você precisa sucatear a escola pública e os educadores e profissionais que trabalham nela para lucrar mais com as redes privadas” compara. 

Para Camila essas mudanças representam uma ideia mercantilista e privatista da educação. “Entendendo a educação como mercadoria, você precisa gerar lucro, e para isso você precisa sucatear a escola pública, os educadores e profissionais que trabalham nela pra lucrar mais com as redes privadas” compara. 

Junior Miranda, professor de Ciências Sociais e mestre em Educação na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) denuncia que esta foi uma “reforma verticalizada, que não dialogou com os profissionais da educação, com os educadores e nem com as escolas”. 

“Penso na lei 10.639 que determina o ensino da contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. Onde vai entrar a proposição dessa lei que é fruto do movimento negro organizado? Me preocupa perder todos esses direitos que nós conquistamos com muita luta” relembra o professor. 

O novo ensino também expõe o debate da generalização da educação sem considerar o estudo territorial e socioeconômico do país. Para Miranda, a padronização dentro de uma perspectiva curricular, visa unificar o ensino como se cada jovem, e cada região fossem iguais. “Nas próprias propagandas do BNCC vendia uma imagem da juventude que não condiz com a nossa realidade” finaliza. 

Outro ponto debatido para a revogação do NEM, é a dificuldade do acesso dos jovens ao ensino, já que os alunos terão que mudar de escola ou até mesmo de cidade se quiserem cursar todas as disciplinas.

Paulinha Silva, da Diretoria de Combate ao Racismo da União Nacional dos Estudantes (UNE), defende que a reforma do ensino médio é urgente. “A maioria das escolas não têm estrutura o suficiente para implementar diferentes itinerários formativos, além das emendas inconsistentes”.

Por fim, Paulinha Silva afirma que “o ensino médio anterior não era bom, é necessário pensar uma reforma do ensino médio, mas de forma democrática, com participação da sociedade, dos professores e educadores. Precisamos revogar o novo ensino médio e depois construir uma educação pública que esteja conectada com a realidade brasileira e com os sonhos da juventude” finaliza.

Mobilização nacional

Nesta quarta-feira (15), a União Nacional dos Estudantes – UNE, União Brasileira das/dos Estudantes Secundaristas (UBES) e Associação Nacional de pós-graduandos (ANPG) convocam atos por todo o país contra o novo ensino médio. O local e horário podem ser conferidos nas redes sociais das organizações.

Maternidade e ativismo: reflexões sobre as potências e desafios da mulher-mãe-militante

Bruna Valença escreve sobre maternidade e ativismo e oferece caminhos para se pensar as intersecções e encruzilhadas da mãe-militante

Por Bruna Valença*

livro dez por cento da escola de ativismo

Rede Mães de Luta de MG, que luta contra a violência de estado, realiza protesto em frente a um tribunal de Justiça l Foto: Divulgação via Brasil de Fato

“A mãe é aquele bloco informe e sem face, para o qual ninguém olha; ele não assinala nada, não significa nada e apenas tem a função de manter, sustentar, realçar e glorificar a estátua definitiva – o filho. (Heloneida Studart, 1990)”

 

Ser mãe em uma sociedade patriarcal onde a maternidade é compulsória, não é uma tarefa fácil, mesmo aquelas mulheres que escolhem o maternar tem suas histórias constantemente apagadas ao se tornarem mães.

Venho de uma família majoritariamente cristã, na qual a maior parte das pessoas que a compõe não foram gravidezes planejadas. A maternidade compulsória na minha família tem o nome disfarçado de “Deus sabe o tempo de todas as coisas”.

Minha mãe engravidou de mim aos 21 anos, e teve que abandonar o ensino médio para se dedicar aos cuidados que uma criança com fissura palatina requeriam, mesmo vivendo em um casamento foi mãe solo, devido a ausência paterna ainda que este residisse no mesmo lar.

Por muito tempo esta era minha maior meta da vida, a fuga da maternidade.

Entrei em uma universidade e abri caminhos para pessoas do meu redor.

Porém, faltando um período para a finalização da graduação, um teste positivo de gravidez veio.

Eu vivi o luto da expectativa de uma vida focada na carreira e escolhi a maternidade depois de gestar.

O ativismo já me atravessava antes de ser mãe, por ter nascido com fissura palatina e defender essa causa e posteriormente com o ativismo climático, questionar o “Status quo” sempre fez parte da minha personalidade e com a maternidade não seria diferente.

A maioria das questões que envolvem a maternidade são invisibilizadas, somos forçadas a acreditar que as violências institucionalizadas são naturais e temos nosso direito de escolha manipulado pela mídia e pelo capitalismo.

Quando falamos em ativismo materno, nos deixamos levar pela imagem de uma mulher-mãe com sua cria em algum protesto, mas o ativismo começa a partir do momento em que eu como uma mulher preta decido colocar outra criança no mundo e educá-la com respeito e amor, no momento em que decidi parir, a me informar sobre as violências do sistema obstétrico, quando nas vacinas mensais insisto pelo meu direito de amamentar e de ser chamada pelo meu nome e não de “mãezinha”.

De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tem mais de 11 milhões de mulheres que são as únicas responsáveis pelos cuidados com filhos e filhas. 63% das casas chefiadas por mulheres estão abaixo da linha da pobreza. Diante disto, o peso do rótulo materno reverbera em muitas esferas do cotidiano e passa a se tornar peça chave nas lutas sociais.

No Brasil, as pesquisas sobre maternidade e militância enfocam campos bastante variados, levantando uma diversidade de discussões (1). Uma questão presente nas pesquisas da década de 1980 dizia respeito à militância de mulheres de camada popular, no período da ditadura militar, demandando saúde, educação e melhor infraestrutura em seus bairros. Nos termos de Sonia Alvarez, “maternidade”, e não cidadania, fornecia o principal referencial de mobilização para participação das mulheres na organização dos movimentos sociais urbanos”.()

A construção do conceito de maternidade 

O conceito de maternidade foi construído ao longo da história humana, colocando de lado a figura de poder pela qual a mãe da espécie humana era temida e reverenciada pela misteriosa capacidade de engendrar crianças mas também pelo seu saber, o da experiente coletora de alimentos que sabiamente definia os padrões de partilha dos mesmos (3).

Na  Grécia  Antiga,  a  representação  da mãe  estava  praticamente  afastada  da arte  e  da religião,  e  até  na  mitologia  são  abundantes  as  maternidades  masculinas,  cuja  prole  nasce  de algumas   partes   da   autonomia   do   macho.   Vai   longe   a  poderosa   deusa-mãe.   As   suas descendentes,  as  deusas  gregas,  são  deusas  sem  mãe  e  dominadas  pelo  pai,  Zeus  (FIDALGO, 2003).

Na Roma Antiga, de forma similar, a função da mãe também é restrita à maternidade. No  entanto,  face  às  elevadas  taxas  de  mortalidade  de  então,  as  mulheres  conquistam  um pouco mais de espaço do que as gregas possuiam. 

Na  Idade  Média,  entre  o  começo  do  século  V  e  meados  do  século  XV,  o  exercício  da maternidade servil é impulsionado pela religião, por meio da representação de Eva e Maria. A primeira, responsabilizada por toda a origem do mal da humanidade em forma de serpente, e, por  isso,  predestinada  a  sofrer  as  dores  do  parto  e  a  constante  submissão  ao  marido,  como forma  de  punição  e  de  controle.  Maria,  ao  contrário,  representa  a  proposta  de  uma  nova mulher-mãe, feminina e sem pecado, de inteira sujeição voluntária ao marido, devido ao amor incondicional  e  não  mais  escravizante (CANANÉA, 2018).

Assim,  a  imagem  da  mulher-mãe  transforma-se  em mito  do  amor  incondicional  aos  filhos,  como  instinto  materno,  justificando-se  pelo  ato biológico de parir. Sob esta ótica, a mulher abandona seu eu anterior e passa a desempenhar plenamente  o  papel  de  boa  mãe,  com  sacrifícios  voluntários  em  nome  dos  filhos,  total abnegação e autoanulação, em prol da harmonia familiar, leiam-se, filhos e marido (CANANÉA, 2018).

 Em resumo, todo poder existente na mãe e na capacidade de gestar e parir, foi apagado ao se instituir o patriarcado (FILDALGO,2003).

O movimento feminista e a subversão do ideal materno

Com o movimento feminista em ascenção a maternidade era considerada mais uma forma de opressão da mulher, uma forma de fracasso. Simone de Beauvoir defendia que “enquanto a família e o mito da família e o mito da maternidade e o instinto materno não tiverem sido destruídos, as mulheres ainda serão oprimidas”.

Passado o impacto da recusa da maternidade vieram perguntas dentro do movimento feminista: “nós (as mulheres) queríamos ser definidas sem a maternidade? Aceitávamos ser mutiladas de uma parte de nossa história, de nossa identidade?” A maternidade passa a ser considerada como um poder insubstituível, o qual só as mulheres possuem e os homens invejam. (4)

A autora Andrea O’Reilly (2010) sugere então que se a maternidade patriarcal caracteriza a criação de filhos com um ato privado e apolítico, a agência materna coloca em primeiro plano, a dimensão político-social do trabalho materno (5).

De qualquer forma, devem-se às pioneiras uma série de conquistas atuais que possibilitem condição de vida mais digna para as mulheres, mães ou não, em meio à sociedade patriarcal, detentora do discurso hegemônico machista. Dentre estas vitórias, estão: oportunidades de escolarização mais elevada e, consequentemente, melhores empregos e maior espaço no mercado de trabalho; direito ao voto; acesso ao divórcio; chance de optar pelo aborto; permissão para viver sua liberdade sexual e profissional, mediante a desconstrução de uma cultura masculina (6).

Maternidade e ativismo: uma oportunidade de empoderamento da mulher-mãe

Nas primeiras décadas do século XXI uma dimensão importante na abordagem acadêmica sobre ativismos maternos têm sido os movimentos de mães de vítimas de violências institucionais (LEITE, 2004; BRITES e FONSECA, 2013) e, em particular, da violência policial perpetrada em nome da guerra ao tráfico (VIANNA e FARIAS, 2011). 

Mães de LGBTIQ+ brasileiras têm formado malhas de apoio mútuo e mobilizações políticas desde a década de 1990, a exemplo do Grupo de Pais de Homossexuais (GPH), criado em São Paulo pela psicanalista Edith Modesto em 1997 (Oliveira, 2013).

Ou, ainda, movimentos pela reivindicação de políticas públicas para filhos com diagnósticos de autismo, que têm uma atuação historicamente importante na garantia de direitos sociais desse grupo (LOPES, 2019).

No movimento ambiental também há exemplos, como é o caso do Parents for Future, que tem sua atuação no Brasil denominada de Famílias pelo Clima, onde a principal missão é inspirar e capacitar os pais a usar sua voz na defesa do clima para que as crianças possam crescer em um mundo com valores de justiça social e ecológica.

A autora Lilian Cananéia traz uma importante reflexão sobre como o ativismo digital contribui para a construção da nova identidade dessa mulher-mãe, trazendo a questão da maternidade para o debate político sem precisar passar por instituições.

 “Com as redes sociais a mulher-mãe lança mão de  uma  nova  frente  para  sua  atuação  múltipla  como  ser  humano,  com  vida  individual  e profissional, transformando os novos instrumentos em recursos relevantes  para reforçar suas pelejas diárias e trazer novas temáticas para o debate social. 

Tais  questões  resgatam velhas  reivindicações  e  apontam  para  uma  reconfiguração  da postura  da mulher-mãe,  ou  seja,  para  a  ressignificação  de  sua  identidade  via  ativismo  digital.

Nesse momento, a problematização da maternidade ganha fôlego e conquista espaço. A mulher-mãe apropria-se do mundo virtual e institui, com força total, um novo espaço de luta para  potencializar  suas  reivindicações  não  somente  na  esfera  privada.  Vai  além  e  coloca  no âmbito  público,  questões  antes  exclusivas  do  espaço  privado:  família,  sexualidade,  trabalho, divisão  de  tarefas  em  casa,  cuidado  com  as  crianças,  oferta  de  creches  para  filhos  pequenos, etc. (CANANÉIA. L, 2018).”

A  luta  por  direito  à  terra,  à  saúde  materna,  contra  o  racismo  e  a favor  das  orientações  sexuais  das  mulheres  tornam-se  efervescentes  até  atingir  o que podemos chamar quarta “onda” do feminismo, desta  vez,  marcada  pelo  ativismo  digital (CANANÉIA. L, 2018).

A  autora Leticia Abella (2016), sugere em seu livro “Redes sociais e empoderamento cidadão” –  que  surgimento das novas tecnologias de comunicação contribuiu bastante para que os cidadãos que não encontravam espaço nas mídias tradicionais passassem a utilizar tais tecnologias como instrumentos de mobilização social, “sem a necessidade de aprovação dos setores poderosos” (Abella, 2016, p. 93). Dessa forma, abrem-se portas para formas de expressão de caráter mais horizontais, nas quais a informação possa ser circulada “através de um fluxo mais livre entre as diferentes esferas da sociedade” (Abella, 2016, p. 94). Pode-se então concluir que “a evolução das mídias tem colaborado na formação de um novo cenário de mobilizações sociais: aquelas que são geradas a partir de intercâmbios na rede” (Abella, 2016).

Este intercâmbio de rede trouxe Sabrina Cardoso para o ativismo, uma mulher negra, carioca de Irajá, meio paulista, mãe da Maya, formada em Desenho Industrial, com MBA em Design Estratégico pela ESPM. Trabalha como Designer de serviços públicos no Instituto Tellus e atua como mobilizadora voluntária na Embaixada Rio-Niterói na Politize!.

Ela se iniciou no movimento através da Politize e da Casa Fluminense o que acabou reverberando no seu trabalho onde ela passou a fazer parte do Comitê de Diversidade. Para ela estes movimentos foram fundamentais para que a mesma se empoderasse como mulher e entre outros pontos escolhesse a maternidade. A mesma afirma também que:

 “A criança com uma mãe ativista, que tem essa concepção clara de como é fazer uma educação antirracista, com todos os pilares, de gênero, classe e o que for para falar de ativismo, tem mais chance de crescer e se desenvolver rompendo o ciclo de violências reproduzido pela sociedade. Falando do meu recorte que possui família e rede de apoio, a gente também trava uma luta familiar, para conseguir convidar a família/rede de apoio a se adaptar e repensar atitudes estruturais que estão impregnadas na nossa cultura …”

O ativismo  digital  materno  vem sendo uma importante  estratégia  de mudança  da  imagem  da  mulher-mãe  e sendo um potente recurso de cobranças por políticas públicas, como por exemplo o Projeto de Lei (PL) 2647/2021 que busca incluir o cuidado doméstico como trabalho capaz de contribuir para a aposentadoria.

Porém, o discurso que permeia o ativismo materno das redes sociais ainda é majoritariamente branco, que poderia ampliar seu potencial inclusivo pela incorporação de perspectivas provenientes do feminismo interseccional, por exemplo, reconhecendo a multiplicidade das diferentes realidades de classe, raça, orientação sexual, entre outros elementos envolvidos no ser “mãe”. 

“Muitas mulheres, especialmente mulheres brancas privilegiadas, deixaram de considerar as visões feministas revolucionárias à medida em que começaram a adquirir poder econômico dentro da estrutura social existente. Nos círculos acadêmicos, o pensamento feminista foi abraçado e progrediu. Porém, frequentemente, esse pensamento não se tornou disponível para o grande público. Ele se tornou e continua a ser um discurso privilegiado e direcionado a aqueles que são altamente letrados, bem educados, e, de forma geral, privilegiados também em termos materiais” (BELL HOOKS. 2000, p. 5)3.

Enquanto ativistas mães brancas tratam de assuntos como violência obstétrica, licença maternidade e cultura do desmame. Mães pretas, pobres, indígenas têm seus filhos como alvo do Estado, e se tornam ativistas não por escolha mas por fatalidade. 

Esse é o caso de Bia Pankararu, mulher indígena, sertaneja e LGBTQIA+, que aos 21 anos se formou técnica em enfermagem, fez a seleção para trabalhar na reserva e hoje trabalha cobrindo três aldeias da equipe multidisciplinar de saúde indígena. A ativista socioambiental e comunicadora da rede @povopankararu, afirma que trabalhar na saúde indígena a faz também militante. “Há 4 anos sou funcionária aqui na aldeia”, diz.

Ela que é mãe do Otto de 7 anos, já viveu uma maternidade solo e hoje vive uma maternidade dupla com sua companheira. Sobre como a maternidade atravessou o ativismo, Bia afirma que intensificou:

“Quando a gente é mãe seja de qual forma, parindo, gestando ou adotando, a gente deseja o melhor para os nossos filhos. Então intensificou aquilo que eu já acreditava e me deu coragem e para botar a mão na massa  e ser mais ativa e proativa nas ações e na vida. Na época que meu filho nasceu na maternidade solo e agora em maternidade dupla com a minha companheira Viviane, com duplo ativismo enquanto uma mulher indígena casada com uma mulher negra. A criatura criança filho no meio do ativismo eu acho que dá esse sentido dá sentido, dá significado e caminho e ao mesmo tempo.” 

Concluo com a fala de Bia Pankararu que traz uma reflexão importante sobre a rede de apoio da mulher-mãe-ativista ser majoritariamente feminina.  

“Para uma mulher mãe ocupar esses espaços, alguém ficou com essa criança e muitas vezes a gente não tem uma rede de apoio que possa que a gente possa contar. Quando se tem essa sorte, geralmente têm uma rede de apoio de mulheres. Então essa criança fica com a avó, com a tia… Enfim, são ciclos de gerações de mulheres que são negados a ocupar espaço de poder, liderança, espaços de protagonismo nos movimentos e nas pautas mais diversas em decorrência da maternidade”. 

*Bruna Valença é uma mulher negra de pele clara, nascida e criada em Santa Cruz, na Zona Oeste e periferia do Rio de Janeiro (RJ), tem 23, é mãe do Teodoro e ativista socioambiental. Se formou em Engenharia Florestal pela UFRRJ e em Técnico em Meio Ambiente pelo SENAI. 

(1) FINAMORI. S. “ATIVISMO MATERNO E “MATERNIDADE SOLO” Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
(2) ALVAREZ, Sonia E. Engendering democracy in Brazil. Women’s movements in transition politics. Princeton: Princeton University Press, 1990. 320 p
(3) FIDALGO, L. (Re)construir a maternidade numa perspectiva discursiva. Lisboa: Instituto Piaget, 2003.
(4) SCAVONE. L. A maternidade e o feminismo: diálogo com as ciências sociais. Dossiê: Feminismo em Questão, Questões do Feminismo • Cad. Pagu (16) • 2001
(5) Encyclopedia of Motherhood Sage Publications, Inc., First Edition, April 6 2010.
(6) CANANÉA. LMATERNIDADE EM PAUTA: REFLEXÕES SOBRE ATIVISMO DIGITAL E SUA RELAÇÃO COM A COMPETÊNCIA EM INFORMAÇÃO. Perspectivas em Gestão & Conhecimento, João Pessoa, v. 8, n. 3, p. 20-39, set./dez. 2018

Referências 

BRITES, Jurema; FONSECA, Cláudia. As metamorfoses de um movimento social: Mães de vítimas de violência no Brasil. Análise Social, Lisboa, n. 209, p. 858-877. Dezembro/2013. 

BEAUVOIR, Simone de; FRIEDAN, Betty. Sex, Society andtheFemaleDilemma: a Dialogue Between Simone de Beauvoir and Betty Friedan. Saturday Review,(p. 12-21), 14 de junho de 1975. p. 20. Disponível em: <https://bit.ly/2NnOrSI&gt;. Acesso em 13 jan. 2020.

OLIVEIRA, Leandro. 2013. Os sentidos da aceitação: familia e orientação sexual no Brasil contemporâneo. Tese de Doutorado. Museu Nacional, Programa de cialid Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

BONETTI, Alinne. Para Além da “Maternidade Militante”: Mulheres de Base e os Ativismos 

Cadernos do LEPAARQ, Pelotas-RS, v. 4, n°7/8, p. 81-102. Jan/Dez 2007.

MEDRADO, Andrea; MULLER, Ana P. Ativismo digital materno e feminismo interseccional: Uma análise da plataforma de mídia. Braz. journal. res., Brasília- DF, v.14, n.1, p.184-211, abril/ 2018.

MEYER, Dagmar E. Estermann. A politização contemporânea da maternidade: construindo um argumento. Revista Gênero, Niterói, v. 6, n. 1, p. 81-104, 2005.

LEITE, Márcia Pereira. As mães em movimento. In BIRMAN, Patrícia & LEITE, Márcia (org). Um Mural para a Dor: movimentos cívico-religiosos por justiça e paz. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2004

LOPES, Bruna Alves. Não Existe Mãe-Geladeira. Uma análise feminista da construção do ativismo de mães de autistas no Brasil (1940-2019). Ponta Grossa, 2019. 289 p. Dissertação (Mestrado). Universidade Estadual de Ponta Grossa (Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais Aplicadas).

VIANNA, Adriana; FARIAS, Juliana. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu, Campinas, n. 37, p.79-116, 2011.

Leia o “Dez por Cento”: box com 6 livros debate Paulo Freire, aprendizagens e militâncias

Escola de Ativismo lança box com conversas de seminário celebrando os dez anos da escola e o centenário de Paulo Freire

livro dez por cento da escola de ativismo

Os dez anos de Escola de Ativismo, por uma feliz coincidência, foi comemorado no mesmo ano do centenário do nascimento de Paulo Freire, em 2021.

Para celebrar tal coincidência, a Escola de Ativismo promoveu a série de encontros, agora transformadas em livros, batizados de “Dez por Cento – 10 anos de Escola de Ativismo, 100 anos de Paulo Freire”. Neles, convidamos, educadores, pesquisadores e ativistas para pensar as relações entre ativismo e educação. Foram seis conversas, que foram transcritas, revisadas por suas autoras e seus autores e publicadas em um box especial.

Ainda que Paulo Freire tenha sido o motor que dinamizou o processo, as companheiras e os companheiros trouxeram contribuições e perspectivas muito próprias. Com isso, pudemos ouvir um número elevado de referências, de práticas, de pensamentos que multiplicaram, e muito, as nossas formas de pensar e agir.

De forma que é um prazer compartilhar isso com vocês agora. Quem quiser acessar, pode clicar aqui abaixo e fazer o download de cada um dos livros:

Ah, e todas estas falas e conversas estão disponíveis no canal do YouTube da Escola de Ativismo (que você pode acessar clicando aqui). Os livros também estão disponíveis para venda online e em livrarias!

Bons aprendizados, boas ensinanças, boas lutas e boas leituras!

 

Como uma comunidade pode comemorar o aniversário de um rio e impedir sua destruição

Como uma comunidade pode comemorar o aniversário de um rio e impedir sua destruição

Formação popular, valorização de tradições culturais e a elaboração de um Protocolo de Consulta, garantiram a proteção do Rio Jauquara, no Pantanal

Comunidade quilombola do Vão Grande se reúne em 28 de abril para festejos tradicionais e celebrar a natureza

Foto: Pedro Ribeiro Nogueira/Escola de Ativismo

Não é novidade para ninguém que a preservação dos rios garante a sobrevivência e identidade dos povos e comunidades tradicionais que vivem nas suas margens. Afinal, água é vida. No Pantanal, bioma caracterizado pelo alagamento de planícies, essa relação entre povo e rios é ainda mais intensa. Assim, não é novidade que ameaças às águas pantaneiras representam um ataque direto ao modo de vida dos povos da região. Nos últimos anos, esses mesmos povos têm entendido o quanto a recíproca pode ser verdadeira: preservar sua cultura tradicional pode salvar a vida dos e nos rios.

A experiência do Vão Grande, região que reúne cinco comunidades quilombolas, é um exemplo dessa relação. Em 2021, seus moradores conseguiram barrar na justiça a construção de uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH), tipo de usina que, apesar do porte, causa grandes impactos biológicos e sociais na região onde é construída.

Para proteger o Rio Jauquara, cujas margens servem de refúgio e subsistência desde a fuga de seus ancestrais escravizados, os moradores do Vão Grande precisaram juntar provas que atestassem, perante à justiça, a importância do rio em seu modo de vida tradicional.

As violas-de-cocho, instrumento símbolo do Pantanal, embalam o Cururu e o Siriri nas festividades 

Foto: Pedro Ribeiro Nogueira/Escola de Ativismo

Mobilização pela cultura

A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, garante que antes da construção de empreendimentos haja a consulta prévia, livre e informada dos indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais que vivem na região impactada.

Em 2018, mesmo sem a realização dessa consulta, o rio Jauquara foi incluído em um inventário da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) que mapeou possíveis pontos para a construção de PCHs, e uma empresa chegou a sinalizar interesse em construir na região.

Indignados, os quilombolas do Vão Grande se mobilizaram junto ao Ministério Público Federal (MPF) para barrar a construção da hidrelétrica, e tiveram que provar que são, de fato, um povo tradicional assegurado pela Convenção da OIT.

Nesse processo, o rio Jauquara acabou fortalecendo a identidade quilombola do Vão Grande. Foi por meio da organização da comunidade em torno da defesa do rio que surgiram diversos movimentos de resgate e valorização da cultura local. Um marco dessa resistência foi a criação do dia (ou aniversário) do rio Jauquara, no 28 de abril.

Na data, em 2018, foi fundado o Comitê Popular do Rio Jauquara, organização dos moradores do Vão Grande e região para denunciar ameaças às águas. Porém, ano após ano, o 28 de abril foi se tornando uma homenagem ao próprio rio, e, em paralelo, uma data de festividades tradicionais da comunidade.

28 de abril, dia de um rio

Rios podem ter seus próprios dias, festas celebrando sua existência como aniversários e até mesmo hinos. Benedito Ilino da Silva, quilombola do Vão Grande e violeiro, conta que antes das mobilizações em defesa do rio Jauquara, os moradores da sua comunidade eram mais fechados. Isso mudou com a criação de uma data para homenagear aquele rio. “Hoje a população está sempre unida e pronta para ajudar, organizar o evento e mostrar sua cultura e lutas do dia a dia”, explica.  

Benedito é o autor de uma composição que foi adotada como hino do rio Jauquara. Os primeiros versos cantam: 

“Renasceu entre as colinas,

suas forças sem igual,

cortando serra e montanhas, 

com destino ao Pantanal. 

Trazendo esperança e vida, 

para nossos corações

seu existir é uma herança para as futuras gerações,

Rio Jauquara, Rio Jauquara, 

vai aqui a minha luta a essas águas que não param” 

Benedito conta que o hino é sempre entoado nas comemorações de 28 de abril, quando toda a comunidade se reúne em festa, corta um bolo de aniversário em homenagem ao rio, e também prepara diversos pratos típicos como vaca atolada e peixes pescados no Jauquara, o lambari e o jaú. A celebração também conta com apresentações de Cururu e Siriri, danças tradicionais embaladas pelo som da viola-de-cocho, instrumento símbolo do Pantanal.  

Assim, o dia do rio se tornou também uma importante data de valorização da cultura quilombola do Vão Grande, e foi por meio do registro dessa cultura que a comunidade conquistou a vitória na justiça.  

Registrar a memória para garantir o futuro

O jovem quilombola Pedro Silva revela que o principal argumento em defesa da implantação da PCH se baseava na deslegitimação dos moradores de Vão Grande enquanto povo tradicional. “Uma das mentiras que ocorriam lá no tribunal é que a gente não tinha cultura, não tinha nada”, explica. 

Pedro foi um dos responsáveis por provar o contrário na ação civil pública instaurada pelo MPF para questionar a PCH. Além de registros em vídeo feitos pelos quilombolas de suas práticas tradicionais, foi anexado ao caso o livro “Narrativas do Interior”, escrito pelo jovem quilombola, que documenta a história e cultura de seu território, por meio do registro de orações, cantigas, lendas, mitos, causos e sabedorias do Vão Grande. Entre as tradições registradas, ele destaca a centralidade do rio. “Se não tivesse o rio ali, não teria comunidade. Ele é muito importante para qualquer atividade de lá”.  

O projeto do livro, editado e publicado sem fins lucrativos pela Escola de Ativismo e a Sociedade Fé e Vida, teve início a partir das anotações que Pedro fazia das rezas de seu avô, seu Francisco, em uma caderneta. Seu Francisco é cururueiro (quem puxa a roda de cururu), capilão de primeira voz (quem puxa as rezas nos festejos) e tocador de viola-de-cocho.  

“Eu sempre tive esse objetivo de, quando sair do sítio para estudar, deixar algo marcado e mostrar para o mundo a história do povo de lá”, lembra Pedro. “Como agora tem bastante jovem e pouca gente velha lá dentro, achei que a história da comunidade poderia acabar de pouco a pouco.”  

Pedro conta que, nos últimos anos, com a luta pela preservação do Jauquara, a visão dos jovens quilombolas em relação à região tem mudado. “Tinha uma evasão muito grande da minha geração. Hoje em dia eu vejo todo mundo dando mais importância para o rio e para o sítio”.  

 [Leia aqui o “Narrativas do Interior”]

O resultado disso são diversas outras manifestações culturais indo também para o papel. Inspirada na obra de Pedro, por exemplo, a escola quilombola da região, a José Mariano Bento, está escrevendo um outro livro, de histórias locais, contadas pelos alunos.

Pedro Silva e sua mãe, Lindalva, durante o lançamento do livro no dia do rio 

Foto: Pedro Ribeiro Nogueira

Os Comitês Populares e a conquista da autonomia

As iniciativas comunitárias de defesa do rio Jauquara tiveram início com a fundação do Comitê Popular do Rio Jauquara, aquele fundado no dia 28 de abril de 2018. Ele compõe um grupo de 13 comitês populares de afluentes do rio Paraguai, maior corpo d’água da região, cujo comitê de defesa foi o primeiro a ser fundado e é fortalecido por todos os outros.

Um dos fundadores do Comitê Popular do Rio Paraguai, o ativista ambiental e integrante da organização Fé e Vida, Isidoro Salomão, explica que a iniciativa partiu da ausência de autonomia de luta nos comitês oficiais das bacias hidrográficas, que reúnem representantes do governo, da sociedade civil e de usuários das águas, grupo formado principalmente por grandes empresas. Salomão explica que este último grupo, “que tem dinheiro”, tem mais espaço nos comitês oficiais.

A partir da organização dos comitês populares, os moradores da bacia do rio Paraguai passaram a organizar suas demandas coletivamente nos espaços populares para então pautá-las dentro dos espaços oficiais. “Antes nós íamos para as audiências públicas para escutar políticos falarem. Hoje, a gente fala e eles escutam”, resume. 

Com a criação do Comitê do Rio Paraguai, percebeu-se a necessidade de expandir a organização para cada um dos rios que formam a bacia. “Nos inspiramos no funcionamento das próprias águas. Rios pequenos se juntam para formar o grande, e por isso não são menos importantes. Com os comitês é a mesma coisa. Ao lado de cada rio a gente juntou o povo para cuidar daquela água”, explica. 

A fundação dos comitês populares aconteceu por meio da formação de lideranças comunitárias pela Escola de Militância Pantaneira, criada por Salomão e por sua companheira na jornada do ativismo ambiental, Vanda Aparecida dos Santos. Na escola, os representantes aprendem sobre recursos hídricos, meio ambiente, estratégias de luta e de participação pública. 

Desde então, os comitês populares se tornaram “guardiões das águas”, explica Vanda. “Os moradores fazem um elo de vigilância, estão sempre em estado de alerta”, completa. E para a ativista, os dias dos rios são um motivador sagrado para esse movimento. “Ali é o momento em que a mística alimenta todos esses seres pantaneiros e pantaneiras para o cuidado com a casa comum”. 

Vanda e Salomão nasceram e foram criados no município de Cáceres, às margens do rio Paraguai. Salomão visita as margens do rio todos os dias, atento às suas mudanças. “Ele está muito diferente. Eu tenho uma embarcação de pequeno porte que já tem dificuldade de navegar por seis meses ao ano”, revela. O ativista explica que embora as PCHs representem uma das maiores ameaças para as águas da bacia, elas compõem um conjunto de interesses de um mesmo setor: o agronegócio. 

“As PCHs beneficiam apenas a um grupo de pessoas, geralmente todos ligados ao agronegócio e à política. Com as leis e a produção nas mãos, eles se unem e montam mais uma empresa que beneficia o agro. Constroem e lucram com isso”, afirma Salomão. 

A justificativa do setor elétrico para a construção das PCHs é o aumento da segurança energética no país. No entanto, no Mato Grosso, esses empreendimentos não contribuem nem com 2% da geração de energia, e na prática, essa energia é aproveitada principalmente pelo agronegócio.

Salomão e Vanda durante as festividades do Jauquara 

Foto: Pedro Ribeiro Nogueira

Água barrada

Em toda a Bacia hidrográfica do Alto Paraguai, que forma o Pantanal, já existem 47 pequenas e grandes hidrelétricas construídas, e outras 133 previstas. Um dos principais impactos das hidrelétricas é relacionado à interrupção do fluxo da água nos rios. 

Débora Calheiros, pesquisadora da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e bióloga voluntária do Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas (Fonasc), explica que as barragens das hidrelétricas, mesmo quando pequenas, alteram completamente a ecologia dos rios.  

“É como se você impedisse o fluxo do sangue no braço”, diz ao explicar que o Pantanal é uma planície que não possui desníveis suficientes para a instalação de hidrelétricas, o que faz com que as PCHs sejam instaladas nas regiões de planalto próximas, onde ficam as cabeceiras dos rios que formam a bacia do bioma. Os impactos, entretanto, seguem rio abaixo. 

“Todo ano há uma migração de peixes que desovam nas cabeceiras dos rios. Os ovos vão descendo o rio e se transformando em larvas. Quando impedem os peixes de desovarem, toda a produção pesqueira diminui”, explica a bióloga.  

Entre os peixes migradores estão os principais para a pesca profissional, turística, e a alimentação de povos e comunidades tradicionais do Pantanal, como o Pintado, o Dourado, o Cachara, o Jaú e a Piraputanga. “Centenas de comunidades dependem do peixe como alimento”, resume Débora. 

 O caso do rio Jauquara, infelizmente, não é regra. Diversas comunidades da bacia do Alto Paraguai não conseguiram impedir a construção de hidrelétricas em seus rios e já sofrem com as consequências do barramento. [Assista abaixo vídeo que conta a história do rio Jauru] 

Segundo Salomão, o Jauru era um dos rios “mais pescáveis do Pantanal”.  “Hoje praticamente não tem pesca, as comunidades vivem em situação precária”, revela. Além disso, as comunidades denunciam que o controle da vazão do rio pelas PCHs alaga suas roças ou causa secas, sem qualquer aviso prévio. Outro caso na mesma bacia que também tem gerado mobilização pública é o do rio Cabaçal, para onde está prevista a construção de cinco PCHs. Em agosto foi lançada a campanha “diga não a morte do rio Cabaçal” que denuncia os empreendimentos hidrelétricos.

Débora  explica que entre 2013 e 2015, o Fonasc construiu um dos estudos mais aprofundados já feitos para estabelecer a viabilidade de implantação de empreendimentos hidrelétricos no Pantanal. O estudo foi coordenado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), reuniu 80 pesquisadores brasileiros, e levou à criação de um mapa de restrição de hidrelétricas que inclui muitos dos fluxos de água ameaçados. 

No entanto, segundo a bióloga, com a transferência da ANA do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério de Desenvolvimento Regional no governo Bolsonaro, além do decreto 9.759/2019 que limitou a participação da sociedade civil nos conselhos e comitês, a implementação do mapa “está meio devagar”. Assim, a bióloga destaca que a sociedade segue resistindo. 

“Ainda tem vários rios livres de barragens e a gente quer manter assim, então precisamos capacitar as comunidades para entenderem a Política Nacional de Recursos Hídricos, entendendo as leis e monitorando os espaços oficiais de debate”, opina. 

Protocolo de Consulta: a consolidação da luta

Se a importância da formação e organização política das comunidades tradicionais das bacias do Alto Paraguai é unanimidade entre os ativistas, ela pode culminar em uma ferramenta definitiva para a proteção das comunidades: o protocolo de consulta. Para os quilombolas do Vão Grande, o documento, elaborado neste ano, representa a consolidação da luta pela vida no rio Jauquara. 

Depois de toda a mobilização política e cultural das comunidades do Vão Grande, Juiz Federal Marcelo Elias Vieira decidiu em 2021 que a própria inclusão do Rio Jauquara no inventário hidrelétrico da ANEEL, sem a consulta dos povos da região, desrespeita a Convenção 169 da OIT. A advogada popular Mariana Lacerda, que trabalha na organização PesquisAção, foi responsável por auxiliar com a incidência jurídica do Comitê Popular do Rio Jauquara na Ação Judicial do MPF.

“A decisão coloca que para que haja qualquer empreendimento que atinja o Vão Grande é necessário fazer a consulta livre, prévia e informada das comunidades”, explica Mariana. Para se precaver de tentativas das empresas de driblar a sentença por meio da convocação ou cooptação de alguns comunitários, a PesquisAção e o Comitê Popular do Rio Jauquara decidiram elaborar um Protocolo de Consulta. 

“No Mato Grosso, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente considera qualquer reunião que o empreendedor faça com alguém da comunidade como uma consulta, o que fere frontalmente a Convenção 169”, explica Mariana. Segundo ela, o estado enfrenta um cenário sombrio no qual empreendimentos são licenciados por meio de estudos cheios de lacunas e sem a participação de populações tradicionais e da comunidade científica. “Assim, a gente coloca o Protocolo de Consulta em perspectiva, e a própria comunidade decide previamente o que seria, para eles, um modelo de consulta”.

Quando morre uma criança — e quando morrem 570

“Se algo der errado com uma criança, a responsabilidade é de todo mundo”, lembra Luh Ferreira, da Escola de Ativismo, ao falar sobre o genocídio Yanomami.

foto aérea de terra indígena yanomami

Foto: Leonardo Prado/PG/FotosPúblicas/2015

z tempo que venho querendo escrever sobre esse assunto. Mas, as palavras costumam faltar quando o embolamento no peito, a ausência de compreensão e a indignação são grandes.

Passei este final de semana na companhia de algumas crianças. O mais novo tinha cerca de 9 meses. A do meio seis anos e a mais velha nove.

Brincamos um monte, demos risada, pulamos, cuidamos de um, corremos de outro.

Comemos bala, chupamos sorvete.

Foi uma tarde de tempo suspenso. Digo isso em oposição ao tempo cronológico, parado e dedicado às tarefas  que ocupam nossa vida. Um tempo suspenso que faz tudo ser  vivência, voltado  para a experiência e a  amizade entre uma pessoa adulta e três crianças.

Após esse tempo que deve ter durado umas quatro horas de tempo cronológico, retornei a casa e para as minhas atividades, para me dedicar aos velhos problemas que por este tempo ficaram esquecidos, em sobrevoo por entre as bolhas de sabão que a do meio soltava, para encanto do irmão, o bebê.

Retornei aos meus afazeres, mas não consegui voltar a velha Luh de antes…

Uma onda de alegria, de fé na vida, de confiança, de ideias mil invadiram meu corpo e me vi cantando e dançando na sala de casa uma música da banda Gilsons: 

Vou levando eu vou, no swing vou levar, espalhando amor, vou já

Anda leve eu vou… caminhando pela cidade, andar leve eu vou sem me preocupar..

E aí me deixei levar por essas sensação por uns instantes.

E percebi que a intensidade da infância que havia me tomado, um devir-infância abriu uma fresta radiante no meu corpo opaco. 

A sensação me lembrou das crianças indígenas, que para mim são um sinônimo de alegria sem fim… 

Pra quem já foi a alguma aldeia vai saber que é um ambiente dominado por risos e gritarias de crianças. Elas com seus olhos grandes e curiosos, observam tudo, acompanham todos, sabem de quase tudo que se passa, estão ali sempre à espreita em busca do novo!  

Em busca da novidade que as alimenta, assim como sobem nos pés de fruta em busca da que está mais distante das mãos, e provavelmente mais saborosa. 

Foi observando as crianças de uma aldeia no Mato Grosso que descobri o melhor lugar para se banhar em um rio. Foi andando com as crianças de uma aldeia no Pará que aprendi a observar o rastros dos animais na mata e saber sua localização, a não ter medo deles, mas tê-los como aliados.

Foram as crianças de uma aldeia no Amazonas que me mostraram que a vida é uma brincadeira, e se você não acredita, é um tolo.

Então estar com as crianças significa renovar o sentido, significa deslocar a rota para observar aquilo que realmente importa. 

 Cuidar de uma criança nos devolve o sentido de humanidade.  

A gente se lembra o que veio fazer aqui nesse  mundo, se lembra que viemos aqui para apoiar, pra torná-lo melhor, mais vivo…  

É por isso que ao me deparar com a situação de extrema calamidade vivenciada pelos Yanomami da região de Roraima, fiquei sem ar. Sem fôlego. Imaginei que as cenas que vimos e vivenciamos ao longo destes quatro anos já teriam sido o bastante. Mas não… 

A tragédia estava anunciada, e estamos verificando a concretização deste desespero absurdo que é a perda de 570 crianças, a morte de 570 mundos! 

Em outubro de 2021 me recordo da notícia de duas crianças Yanomamis que foram dragadas quando brincavam no rio, nesta mesma região em Roraima. Elas estavam com uma prancha, certamente brincando e aprendendo a nadar, a lidar com as correntezas fortes desde muito cedo, para pescar e se deslocar pelo rio com destreza quando forem adultos.  

Tiveram sua brincadeira interrompida, por máquinas que nunca deveriam estar ali, por pessoas que ocupam o território ilegalmente levando doenças, produtos nocivos à saúde e destruição. 

É de arrancar o coração do peito ver as crianças Yanomami no estado que estão — e não duvido que outras crianças indígenas estejam também em proporcional vulnerabilidade no Brasil. Infelizmente estávamos sob o comando de um genocida, agora mais que comprovado. O projeto de extermínio foi colocado em prática pelo Estado Brasileiro, não há dúvidas. 

Costumo dizer na minha família que se alguma acontece com alguém mais novo que a gente, a culpa é de todo mundo, de todos os mais velhos que estavam ali para cuidar de um mais novo.  

Se algo der errado com uma criança, a responsabilidade é de todo mundo. 

Espero que o aparato disponibilizado para socorrer os Yanomami funcione e  torço para que haja a possibilidade de corrigir o mal feito e que os indígenas possam criar as suas crianças e viver com dignidade e autonomia. 

De todo modo, chamo a atenção para as infâncias.  

Elas são sim capazes de reencantar o nosso dia, e muito mais do que isso, elas são as responsáveis pela renovação do mundo.

Se não tivermos as crianças por perto e junto conosco, não há mundo porvir — para dialogar com Debora Danowiski e Eduardo Viveiros de Castro no livro que lança esta minha afirmação como pergunta: “Há mundo porvir? Ensaios sobre os medos e os fins” (2014).

Finalizo este texto com Hannah Arendt em “A Condição Humana” (1977), que nos chama a atenção para a responsabilidade com o mundo e com a renovação dele, ao cuidarmos e apresentarmos o mundo às crianças, estando com elas nessa empreitada.

A educação é a posição em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumir a responsabilidade por ele, e pela mesma razão, salvá-lo da ruína que a não ser pela renovação, a não ser pela vinda do novo e dos jovens, seria inviável. E a educação é também quando decidimos se amamos nossos filhos o bastante para não expulsá-los de nosso mundo e deixar que façam o que quiserem e que se virem sozinhos, nem para arrancar de suas mãos as mudanças de empreender algo novo, algo imprevisto por nós.”, HANNAH ARENDT (1977, p. 196)

Por Luh Ferreira, da Escola de Ativismo

E se você quisesse fazer um projeto de lei acontecer?

E se você quisesse fazer um projeto de lei acontecer?

Desenho do Palácio do Planalto

Aulas perdidas, momentos interrompidos, notas tristes. O início do meu ensino médio na Escola Politécnica da Fundação Oswaldo Cruz, localizada em Manguinhos, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, foi um tanto conturbado. Imaginei, de início, que por ser uma escola federal difícil de ser admitida, problemas externos também não chegariam até lá tão facilmente. A tola Vitória de 14 anos de idade estava completamente enganada, isso por dois motivos: (1) acreditei que pela escola ter uma infraestrutura excelente, a violência não seria uma questão; (2) pensei que os problemas lá de fora não fossem uma questão por passar o dia inteiro lá, de 8h às 17h.

O triste dessa história é que não rolou apenas uma ou duas, mas várias vezes das minhas aulas serem interrompidas por conta de operações policiais contra o tráfico de drogas da região. A coisa é que 2019 não foi nem o pior ano de interrupções de aulas lá na escola, mas o choque foi grande, já que foi o ano que entrei. Logo no meu primeiro dia, durante a Semana dos Calouros, a gente teve que ficar no auditório para além do esperado para ninguém acabar ferido por bala. Ao menos duas vezes um ônibus da Fundação levou eu e meus colegas para a estação de trem mais próxima, visto que a gente não poderia pegar o trem em Manguinhos. Isso porque, além do ramal Gramacho ter as suas operações paralisadas, a estação é elevada e toda aberta. Até julho, Manguinhos foi a parada que mais sofreu com tiroteios, contando com 18 paralisações.

Naquele ano, segundo o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, 74% das escolas públicas da rede municipal de educação do Rio de Janeiro tiveram ao menos um tiroteio em seu entorno, todos estes com o envolvimento de agentes de segurança pública. Estava tudo muito difícil e eu sentia que pouco poderia mudar, só que vi um bonitão (um alô para o Tiago Lopes Marques caso ele esteja lendo isso) da minha escola, em pleno segundo ano do ensino médio, fazer um Projeto de Lei (PL) que definia requisitos básicos para que alguém assumisse o cargo de gestor de uma unidade do Sistema Único de Saúde. Aquilo fez muito sentido pra mim, ainda mais se tratando de alunos do curso técnico de Gerência em Saúde, uma área tão necessária, mas tão desvalorizada.

Sabendo daquilo, eu resolvi que era hora de eu também tentar fazer um projeto e, como o Tiago, ser deputada jovem. O Parlamento Jovem Brasileiro (PJB) seleciona jovens de todo o Brasil, de escolas públicas e privadas, para vivenciar uma jornada parlamentar de uma semana. Tudo o que precisava para passar era redigir um Projeto de Lei e fazer ele ser bom ao ponto de representar o meu estado lá. Demorou um tempo pra me tocar, mas percebi que a violência não poderia continuar daquele jeito. Por isso, procurei meus professores do ensino técnico de Direito Administrativo e Legislação, e até mesmo uma galera do Ministério Público e do Fundo das Nações Unidas para a Infância. Essa procura também me levou a ser ativista.


Foi assim que eu me tornei parlamentar jovem. Cinco meses antes do processo seletivo ser aberto, o meu Programa de Redução dos Impactos da Violência Urbana nas Escolas já estava rolando e foi selecionado. Por conta da Covid-19, não viajei, mas fui selecionada por algo que escrevi. A ideia era trabalhar o socioemocional de jovens que, como eu, fossem afetados pela violência urbana ao redor das nossas escolas. Hoje em dia, com toda a certeza, eu não acho que essa seja a solução porque trata a consequência e não a causa. Por causa disso tudo, quero falar do que aprendi até agora e porque isso é importante para se firmar enquanto ativista.

O que deve-se levar em consideração ao fazer um projeto de lei federal, afinal?

1. Não faça o que já existe

Se você quer gastar a sua energia ativista fazendo um Projeto de Lei, certifique-se de que não existe nada parecido. Através do site da Câmara dos Deputados você consegue pesquisar o que já está em vigor ou em processo de tramitação filtrando o tema, autor e até mesmo o ano. Detalhe: está atualizado com tudo que veio depois de 1946. Através do e-Cidadania (agora falando do Senado), também é possível verificar o banco de Ideias Legislativas, que acontece para você propor e apoiar ideias para novas leis. Ao receber 20.000 apoios, a ideia se tornará uma Sugestão Legislativa, e será debatida pelos Senadores. Se o seu rolê já é real, investigue a não-execução disso ou se não cabe uma emenda, beleza?

2. Lembre-se que não é um projeto municipal ou estadual

Nem sempre o que acontece na sua cidade acontece em outras partes do seu estado e em outras regiões. É sempre importante refletir sobre a territorialização do seu projeto. Para ele acontecer, precisa ser exequível e ter relevância nacional, ou seja: precisa atender as necessidades da população brasileira, e não carioca, por exemplo. Para que você não caia no erro, lá vem o próximo ponto!

3. Dados são importantes

Não é possível escrever um PL tendo como referência as vozes da sua cabeça. Por isso, faça uma pesquisa e análise prévia sobre o que você deseja fazer. Quando o seu texto da lei está redigido, ainda é preciso defender a sua proposição através da justificativa. No momento em que decidi o tema do meu projeto para o PJB, por exemplo, não imaginava que um pouco mais da metade dos alunos do nono ano de escolas públicas brasileiras estudam em locais considerados como de risco de violência armada. Se não existem dados sobre o assunto, é válido formular uma pesquisa. Quando eu era presidente do Girl Up Nise da Silveira, protocolamos um PL na Assembléia Legislativa do Rio sobre assédio sexual nas escolas. Fizemos uma pesquisa para descobrir mais sobre essa realidade e o resultado foi usado na nossa justificativa.

4. Etapas com boa estruturação

A eficácia do seu projeto também depende da abrangência alinhada com a especificidade dele. É um problema que vai além do seu estado? Ótimo. Agora, é hora de pensar como ele vai funcionar depois da aprovação. É necessário incluir quem vai fiscalizar a sua lei, quem vai executá-la, incentivos ou punições, especificar se precisa ou não de recursos financeiros e de onde essa grana vai ser obtida e em quantos dias são necessários para que entre em vigor. Se você está sem tempo, é possível aprender com a própria Câmara dos Deputados de forma bem rápida.

5. Converse com atores da sociedade ativista-civil

É importante validar a necessidade de resolução do problema que está sendo tratado junto com junto com as pessoas impactadas. Além disso, quando você não chega com tudo pronto e aberta ao diálogo, promove a construção coletiva dessa ideia e assim gera um sentimento de pertencimento. Não é possível fazer um PL acontecer sem essa articulação e colaboração. Assim como toda solução é coletiva, o problema que você trata não foi gerado por uma pessoa ou uma organização só. Quanto mais gente você envolve, melhor.

6. Só contar com o que você já sabe não ajuda

Mas Vitória, o que você quer dizer com isso? Que você tem que estudar, oras. Ativismo não é bagunça, muito pelo contrário: por isso escrevo para a Escola de Ativismo. Aqui tem muito conteúdo legal para você aprender a se organizar. Praticar incidência política (também conhecido como advocacy) também requer que você leia, escreva, estude, escute. Quando você se educa e começa a entender o que funciona e o que não funciona, consumindo conteúdo ativista, percebe que a aprendizagem teórica é fundamental. Na escola aprendi o que é práxis, que é a união entre a teoria e a prática. É importante nas nossas iniciativas de impacto social também, viu?

7. Convencer é vencer

Tudo que eu tô falando aqui se conecta. Se você aprende que é importante estudar, também vai ver como a negociação importa. Além de articular uma rede de pessoas que apoiam a sua ideia, a parte principal é ter parlamentares junto contigo para defenderem o teu rolê dentro do Congresso. Por isso, busque ter contato com aqueles que têm ideais e causas que se conectam com a sua. Mas para além disso, busque conhecer como aquele gabinete funciona. Existem declarações de apoio que, por falta de transparência e colaboração, acabam indo para o ralo. É importante manter-se em constante contato com os parlamentares que estão contigo, visto que tem muita coisa rolando pra eles também. Pense também que é fundamental para ações futuras!

8. Comunicar é alcançar

Para além de contar com a sua rede de apoio ativista, você também precisa de atenção. Seja através de audiências públicas, eventos gratuitos ou lambe-lambes, é necessário sensibilizar a sociedade como um todo para que ela se preocupe com o seu tema. Na conversa no metrô ou no pingado diário consumido na padaria da esquina, a galera precisa estar atenta e preparada para saber sobre a sua causa. Confie no olho a olho, principalmente: desde que o mundo é mundo, é o que fazemos de melhor.

9. Prepare-se para os flashes

Quer amplificar ainda mais? Desenvolva uma apresentação para a mídia de forma convincente e rápida. Não tenha medo de pegar o telefone para uma ligação ou enviar e-mails com o intuito de fazer com que a sua pauta seja vista por muita gente em um alcance grande. É importante ressaltar que qualquer forma de mídia importa. Seja a tradicional ou a alternativa, o jornal de circulação diária ou a página de notícias do Facebook, conte com quem está disposto a te amplificar.

10. Bota a ideia pra jogo!

Como você vai fazer com que essa construção chegue ao Congresso Nacional? Da Comissão de Legislação Participativa?  Através de um Projeto de Lei de Iniciativa Popular? Veja o que pode ser mais fácil, mais agregador, urgente e necessário para a sua causa como um todo. Um projeto de lei a nível federal não é uma coisa pequena: é grande pra caramba! Utilize desta ação para gerar oportunidades para a sua iniciativa, viu?

A minha paixão por política começou a partir de um problema na minha escola e, desde então, não me vejo fazendo outra coisa senão a promover ativismos. Esse texto pode ter ausência de muita coisa importante, mas só tenho 18 anos: por isso seguirei estudando e colocando em prática. Ao longo do tempo, quanto mais for aprendendo, mais vou compartilhando, ok? Com 15 anos fiz isso por conta de um programa da Câmara, mas existem outros que você pode e deve ocupar e explorar, além de exercer o seu direito de participar da atividade legislativa.

Adianto que o meu projeto de lei não rolou e atualmente digo que não deveria mesmo ter sido, já que não o enxergo mais como uma solução. Entretanto, a escrita dele fez com que eu me apaixonasse tanto pelo interesse de ajudar a lidar com a segurança pública usando Políticas Informadas por Evidência, que agora termino o meu ensino médio com uma iniciação científica sobre a expansão das milícias no Rio de Janeiro e a sua relação com o direito à cidade, capitalismo, racismo e necropolítica. Começar a investigar problemas como esse certamente vão me ajudar no futuro a ter o estado que sempre sonhei ver pra viver.

Fazer esse texto também só me deixa ainda mais apaixonada pela possibilidade de algum dia atuar na política institucional. Espero que você tenha curtido essa ideia de fazer um projeto porque, afinal, muita coisa pela qual a gente luta já deveria existir e estar aí para a gente. Sigamos, então, construindo redes, se educando e revolucionando como sementes da justiça social.

*Vitória Rodrigues (18) é estudante do ensino médio técnico de Gerência em Saúde na EPSJV e estagiária do Instituto do Fernandes Figueira, ambos da Fiocruz. É do Grêmio Politécnico há 3 anos e representou a instituição no modelo diplomático da Harvard University. Pesquisou com o professor da UFRJ Daniel Campos os caminhos para o fortalecimento econômico das milícias no Rio de Janeiro com olhar para a necropolítica. Fundou o projeto de educação de impacto social Ini.se.ativa, constrói a A(tua) Meriti e já foi orgulhosamente de muitos outros projetos, como o Engajamundo, Girl Up e da campanha Cada Voto Conta do NOSSAS. Foi Parlamentar Jovem Brasileira, Jovem Embaixadora dos EUA e vencedora do Prêmio Mude o Mundo como uma Menina. Atualmente é bolsista do Opportunity Funds Program do EducationUSA, do Departamento de Estado dos EUA. É, acima de tudo, colunista e poeta, porque lutar tanto sem se expressar é impossível.

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Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

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