Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Proteção espiritual é segurança integral na defesa de povos e seus territórios
Muito conectada ao respeito e consequente conservação dos territórios, proteção espiritual e psicossocial de povos indígenas e tradicionais ainda é um desafio.
Por Elvis Marques, em parceria com a Revista Casa Comum*

Foto: Mídia NINJA
“Um grande ensinamento que os povos indígenas nos têm transmitido, desde tempos imemoriais, é o de saber conviver, nos espaços que habitamos, com diferentes seres e, ao mesmo tempo, saber respeitar a terra, sem reduzi-la à condição de mero recurso. Para alguns povos indígenas, a terra é mãe, pois tem a capacidade de fazer germinar a vida e acolher todos os seus frutos.”
Tati, como prefere ser chamada, é ativista cultural e ambiental, militante do movimento negro feminista, quilombola, educadora popular, formada em História e especialista em Estudos Culturais e Políticas Públicas. O longo currículo, no entanto, não foi necessário para lhe ensinar algo básico: o significado de território e de bem viver.
A mesma frase, reimaginada e com outras palavras, repete-se ainda hoje. Isis Tatiane da Silva, de 42 anos, nasceu e foi criada em um território de vasta beleza, como ela mesmo classifica: o quilombo do Curiau, situado no estado do Amapá. “Entendo território como um conjunto de especificidades que compõem um quilombola. É o conglomerado onde existe um movimento étnico-racial, cultural, religioso e ambiental”, explica.
Em consonância com a visão da ativista, Porantim traz uma fala famosa do Cacique Seattle ao receber uma oferta pelo território de sua etnia:
“Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo. Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim o sangue de nossos ancestrais. Se te vendermos a terra, terás de te lembrar que ela é sagrada e terás de ensinar aos teus filhos que é sagrada.”
Diante de tamanha importância aos povos tradicionais, indígenas, quilombolas e tantos outros, como é possível pensar e colocar em prática a segurança dos territórios dessas populações e de seus ancestrais e encantados? Como é possível pensar a segurança espiritual desses povos, conectada, em sua grande maioria, com o respeito e, consequentemente, conservação do espaço que ocupam?
Proteção do sagrado
Tati conta que devido a toda a luta travada pelo povo negro e seus movimentos no Brasil por longos séculos, é imprescendível não pensar na proteção da coletividade em seus diferentes aspectos, como o espiritual. “Nós trabalhamos com os territórios, e não dá para dissociar o que é pertinente dentro desse local durante as formações de proteção, como o aspecto espiritual.”
Constituída em 2011, a Escola de Ativismo é um coletivo independente cuja a missão é fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, como campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.
No caso específico da segurança integral, Marcia Maria Nóbrega, antropóloga da Escola de Ativismo, explica que essa temática de atuação do coletivo abarca várias dimensões, como a digital, de informação, física, patrimonial e organizacional. Nesse campo, a Escola atua com toda a diversidade de povos e comunidades tradicionais, assim como com as organizações e movimentos populares que os apoiam.
“Na trajetória da Escola, atuamos muito com oficinas, em espaços de escuta das demandas das comunidades e das organizações, e, nesse processo, entendemos que os aspectos psicossociais e espirituais são fundamentais para como esses povos se organizam. Por entender essa importância, é algo que temos incorporado em nossas oficinas de segurança integral”, contextualiza Marcia.
Marcia explica que tem ouvido muito nas oficinas que nunca alguém ou algo está seguro se não há uma proteção espiritual. “Por isso temos tentado entender como podemos trazer essa sabedoria dos povos tradicionais para os processos formativos e para os planos de ação e segurança elaborados junto às organizações e comunidades.”
Processo de escuta
Com uma metodologia de ensino baseada em Paulo Freire, patrono da educação brasileira, Marcia destaca que as oficinas de proteção integral buscam ouvir, primeiramente, como e onde as pessoas se sentem seguras, seja em casa, com a família ou junto à sua comunidade.
“E teve uma fala, certa vez, de um indígena que disse se sentir seguro quando tem ‘domínio’, que, em suas palavras, é ter conhecimento de que todo lugar tem ‘dono ou mestre’, domínio sobre determinado lugar. Ou seja, geralmente o mestre do lugar é uma entidade espiritual que tem alguma atuação sobre determinado espaço, como um rio. Então a frase dele é: ‘eu me sinto seguro quando entendo o domínio daquele espaço, quando conheço e respeito à ancestralidade daquele local.’”
“Durante uma oficina em um país da América Latina muito ameaçado para defensores, ouvi a seguinte frase de uma liderança: ‘nada começa se a gente não se protege espiritualmente, e quem abre os trabalhos são os tambores, a nossa principal arma de resistência”, diz Márcia Maria. Segundo a antropóloga, a necessidade de olhar para a proteção em toda a sua integralidade, incluindo o aspecto espiritual, sempre tem aparecido para a Escola de Ativismo.
Atualmente, o desafio é destinar mais atenção justamente para o campo espiritual e psicossocial. “Não tem como alguém se sentir seguro se não está em paz com o seu corpo, seu território e com os seus espíritos. E aí começamos a rever a nossa metodologia de como atuamos com esses grupos, de modo que possamos incorporar essas duas dimensões que andam juntas”, avalia Marcia.
Saiba mais
Materiais do Cimi e da Escola de Ativismo aprofundam o assunto:
> Encarte Porantim: Territórios e espaços de viver [link];
> A Internet Também É Nosso Território (2023)[link];
> Folder: Segurança se faz com os nossos e as nossas (2023) [link] ;
> LabCuidados: Ansiedade (2022) [link];
> Guia para o desenvolvimento de uma avaliação de risco e medidas de segurança (2023) [link].
*Matéria publicada em 29/08 pela Revista Casa Comum em parceria com a Escola de Ativismo.
Belo Levante: jogo reúne experiências ativistas para potencializar insurgências
Por Velot Wamba – 23/08/2023
Lançado pela Autonomia Literária e pela Escola de Ativismo, jogo reúne 126 cartas com experiências de ação política

O que é o Belo Levante? À primeira vista, é um jogo de cartas com diversas opções de jogabilidade com tema de fundo ativista, adaptado para o Brasil pela Autonomia Literária e a Escola de Ativismo e com lançamento previsto para outubro. Mas é muito mais que isso: é um rol de experiências e pensamento que compila o saber acumulado por ativistas dos quatro cantos do mundo, que refinaram suas considerações sobre práticas de ação direta no calor das lutas mundo afora.
São 126 cartas divididas em cinco naipes de cartas: Táticas, Princípios, Teorias, Histórias e Metodologias. Inclusive, na versão brasileira do jogo, as cartas de Histórias são baseadas em lutas realizadas, sobretudo, no Sul global. E o conjunto total das cartas possibilita uma compreensão lúdica e acurada das diversas etapas necessárias para realizar uma ação direta bem sucedida para desafiar o status quo, que vão desde uma ação de cartazes criativa até a realização de uma greve geral. Dessa forma, são úteis tanto para o ativismo comunitário quanto para o desafio de parar uma cidade!
As cartas são amplamente referendadas na plataforma de ativismo internacional Beautiful Trouble, que conta com a contribuição de mais de 170 ativistas de movimentos de base dos cinco continentes do planeta, totalizando sete idiomas e contando com a contribuição de notáveis estrategistas de diversos movimentos, como Arundhati Roy, George Monbiot, Vijay Prashad e Mark e Paul Engler, por exemplo. E são justamente as experiências reais que dão profundidade e efetividade ao que é apresentado em Belo Levante.
Além disso, a Escola de Ativismo é responsável pela edição brasileira do jogo Belo Levante (em parceria com a editora Autonomia Literária), dando ênfase ao universo do ativismo local e olhando com maior apuro para as práticas do Sul Global, o que deu uma roupagem muito atualizada e condizente com os grandes desafios que todo ativista enfrenta nos dias atuais.
Veja na galeria acima uma amostra dos cards e propostas do Belo Levante
As possibilidades de jogabilidade das cartas são diversas, desde o simples divertimento em formato de competição até modalidades que sempre ressaltam um ângulo possível para se analisar a efetividade e sucesso de uma ação. É possível de ser usada em oficinas, momentos de planejamento de ações e para diversão.
A carta de jogo “Planeje uma ação criativa”, por exemplo, é perfeita para movimentos sociais ou grupos ativistas refletirem sobre uma futura ação. Com 3 pilhas de cartas (Táticas, Princípios e Teorias), os participantes dão nome ao problema que enfrentam (clima, por exemplo) e identificam seu objetivo – digamos, a exploração de fracking no nordeste. Tirando uma carta de cada pilha, é possível criar uma ação hipotética. Usando as cartas de estratégia, você pode melhorar e reinventar a ação proposta e, com a carta “Avalie sua ação”, é possível analisar sua ação sob diversos enfoques diferentes.
Além das cartas de jogabilidade, o jogo apresenta seis tipos de cartas que, em conjunto ou de forma isolada, nos ajudam a entender toda a ciência por detrás de uma ação bem efetivada.
São elas:
– TÁTICAS: Formas específicas de ações criativas, como um flash mob, um bloqueio ou uma greve geral.
– PRINCÍPIOS: Percepções a partir de conquistas que podem guiar ou oferecer subsídios para o planejamento de ações criativas.
– TEORIAS: Conceitos gerais e ideias que podem nos ajudar a entender como o mundo funciona e como podemos transformá-lo.
– HISTÓRIAS: Relatos de ações e campanhas memoráveis com análises sobre o que funcionou, o que não deu certo e por quê. Essas histórias são úteis para ilustrar como princípios, táticas, teorias e metodologias podem ser aplicados na prática e de modo bem-sucedido.
– METODOLOGIAS: Modelos estratégicos e exercícios práticos para ajudar você a avaliar sua situação e planejar sua campanha.
– DEBATES: Controvérsias eternas (tais como mudar o mundo ou mudar a nós mesmos?) que devem ser exploradas de forma constante.
Ao fim e ao cabo, o Belo Levante é uma caixa de ferramentas essencial na mão de organizações, coletivos e ativistas. Saiba como adquirir sua cópia em pré-venda pelo site da Autonomia Literária.
Margaridas: um olhar sobre os muitos ativismos das mulheres dos campos, florestas e águas
Por Vitória Rodrigues – 17/08/2023
A ativista Vitória Rodrigues esteve na Marcha das Margaridas e conta seus aprendizados com as lutas das trabalhadoras rurais

Mulheres em luta durante a Marcha das Margaridas de 2023 | Foto: Vitória Rodrigues
Entrar na área delimitada do Parque da Cidade para a maior marcha de mulheres da América Latina na manhã do dia 15 de agosto foi como se imergir num fundo mar de esperança. Afinal, lá começava, repleta de diversidade, mais uma edição da Marcha das Margaridas, organizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). Como frutos do sol, as mulheres do campo, da floresta e das águas que não paravam de chegar esbanjavam sorrisos no rosto e uma energia radiante para reivindicar o que já deveria ser seu.
Naquela manhã, a programação havia começado com uma sessão solene no Senado Federal, homenageando a Marcha. No mesmo dia, foi finalmente aprovado o Projeto de Lei que indicava a inclusão de Margarida Maria Alves no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria.
Foi assim, que após 40 anos de um assassinato bárbaro na frente de sua casa, a grande homenageada do encontro teve sua luta em vida por ser mulher, sindicalista e trabalhadora rural que ameaçava os interesses de poderosos, reconhecida. Para além disso, suas sementes se espalharam mais longe do que ela jamais ousou imaginar. A resistência está firmada.
Corpos-territórios
Nas tendas espalhadas na grama antes da entrada no Pavilhão de Exposições, havia de tudo um pouco: oficina de batuque feminista, de danças populares, plenárias, painéis temáticos, feira. Nesta última, havia um palco em que mulheres declamavam poemas, cantavam canções e passavam as mais diversas mensagens para quem transitasse debaixo daquela tenda, observando, comprando e apoiando produtos de mulheres de todos os estados do país.
Muito perto dali, uma iniciativa importantíssima acontecia: o Coletivo Jurídico estava reunido com advogadas e membras da Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Distrito Federal e do Ministério Público para orientar as margaridas em um plantão que aconteceu nos dois dias de Marcha. As mulheres no Coletivo prestavam orientações jurídicas com o objetivo de promover a segurança e a integridade das margaridas.
A fila do credenciamento para entrada no Pavilhão só aumentava. E quando finalmente se pôde entrar no evento, com o pulso coberto por uma pulseira, se desvelou um verdadeiro oceano de margaridas. Carregavam consigo suas malas, chapéus, bandeiras com palavras de ordem e de seus estados também. Mais importante que isso, usavam seus corpos-territórios para dizer que a hora de fazer a reforma agrária e acabar com as violências de gênero é agora.
Margaridas
Lúcia Lima (57) é uma das milhares de mulheres que estavam lá. Moradora de Brejo da Madre de Deus (PE), a agricultora foi à Marcha porque quer representar inclusive quem não pôde estar lá. “Eu vou explicar sobre a participação que tive aqui, o que eu vi, o que eu aprendi, para as minhas companheiras. Vou repassar pra daqui a quatro anos a gente possa vir aqui todas juntas.”

Lúcia na fila para tirar fotos com o banner ‘Marcha das Margaridas 2023: eu fui’ | Foto: Vitória Rodrigues
Há também companheiras que interromperam suas atividades como agricultoras, mas jamais como ativistas pela terra. Maria Rosa Silva, de 74 anos, de Montes Claros (MG), é agricultora aposentada e afirma que foi para Brasília porque acredita na força das margaridas. “A gente conhece a terra, a luta, a gente sabe das coisas. A força da mulher é muito boa. E elas [militantes] não fazem pensando nelas, mas por todas e eu admiro muito isso.”

Maria Rosa a caminho de oficina sobre agroecologia | Foto: Vitória Rodrigues
Com diferentes atividades de variados temas acontecendo simultaneamente, as margaridas pediam também o fim das diversas formas de violências que existem contra mulheres e isso só é possível com a colaboração de todo mundo. Um dos margaridos presentes no evento é Manoel Soares, de 37 anos, que veio de Igarapé-Miri (PA). Ele diz que a educação contra o machismo e as violências contra as mulheres precisam acontecer, principalmente para os homens que convivem com as margaridas.

Manoel junto a suas companheiras de luta de Igarapé-Miri | Foto: Vitória Rodrigues
Semear soberanias
Ao lado inverso do imenso pavilhão que também funcionava como acampamento, mulheres organizaram oficinas como forma de acolher e semear não só a luta, mas afetos também. As atividades sobre corpo e sexualidade, soberania digital e espaços voltados para mulheres com suas filhas faziam com que o ambiente se tornasse acolhedor para aquelas viajantes.
Apesar de muitas terem viajado dias e dias para comparecer aos dois dias de evento, a energia seguia nas alturas mesmo com a chegada da noite, onde outras pessoas também chegaram: ministros de estado. A Abertura Político-Cultural da 7ª edição da Marcha contou com diferentes ministérios do Governo Federal, além de parlamentares, secretarias e delegações estrangeiras.
Depois da Abertura com algumas promessas de mudanças de chefes de ministérios, aconteceu a noite cultural, um espaço de descontração e que marca tradicionalmente o fim do primeiro dia de evento. Esse evento não é apenas fundamental por explorar as diversidades de diferentes artistas, mas também para relaxar as trabalhadoras, que teriam de acordar cedo para o café da manhã, que começa a ser servido às 04h.
Marcha nas ruas
Já na manhã do segundo e último dia da Marcha das Margaridas, a concentração em direção à Esplanada dos Ministérios aguarda as mulheres por uma hora até começarem a marchar às 7h, tendo o Congresso Nacional como destino final, onde o presidente Lula e ministras fariam pronunciamentos. Neste momento, mulheres pegam suas bandeiras, caracterizações e o que mais quiserem para passar cerca de quatro quilômetros exibindo toda a sua força.
Com duas faixas que antecedem a Esplanada ocupadas durante um significativo período de tempo, mulheres em carros de som comandam palavras de ordem poderosas e discursos que fortalecem a ideia de que a Marcha é necessária. Alguns carros passam ao lado buzinando para demonstrar apoio, que é respondido com gritos e palmas das mulheres de todo o Brasil.
São cerca de cem mil mulheres, com faixas, bandeiras e os cantos reforçam que a disposição em garantir o que já deveria existir se reafirma.
Galeria de fotos da Marcha das Margaridas | Foto: Vitória Rodrigues
O apoio e a solidariedade também estiveram presentes na Marcha. Um dos coletivos que estava presente em ambos os dias de Marcha é o Borda Luta do Distrito Federal, que surgiu em 2016 como uma pequena iniciativa de duas mulheres solidárias à ex-Presidenta Dilma Rousseff, durante o processo do golpe político-empresarial. Atualmente, o grupo que usa linhas, agulhas e tecidos como forma de ativismo conta com mais de sessenta colaboradoras voluntárias.
A coordenadora do coletivo é a Dirnamara Guimarães (57), servidora pública aposentada e artesã. “Toda a minha existência hoje tá voltada pro BordaLuta. Somos artevistas políticas, bordadeiras e arteiras. Entendemos que a luta política se dá pelo discurso e pela ação, mas também pela estética. Conseguimos alcançar muitas consciências através da imagem, e através disso conseguimos conversar, acolher e trocar.”
“Conseguimos nos encontrar uma vez por semana para construir a nossa luta e no decorrer desse tempo, espontaneamente escolhemos que o nosso lugar é na rua. Na rua, mulheres veem e às vezes conseguimos acolher aquelas que estão em situações de risco. Nossa luta é pelo fortalecimento da luta feminina e contra a violência, por isso também estamos na Marcha.”
Com atrasos, o Presidente Lula chegou ao palanque pedindo desculpas por fazer tantas mulheres esperarem por ele no sol – já que o fim de sua fala sinalizava o fim da Marcha. Baseado na carta dos 13 eixos da edição deste ano foi entregue pela coordenadora do evento, Mazé Moraes, Lula anunciou uma série de decretos: instituição da Comissão de Enfrentamento à Violência no Campo; criação do Programa Quintais Produtivos para promover a segurança alimentar das mulheres rurais; retomada do Programa Bolsa Verde de pagamentos para famílias de baixa-renda em áreas protegidas; formação do Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios; retomada da Política Nacional para Trabalhadores Empregados de fortalecimento a direitos sociais; formação do Grupo de Trabalho Interministerial para construir o Plano Nacional de Juventude e Sucessão Rural; estabeleceu o Programa Nacional de Cidadania e Bem Viver para as Mulheres Rurais; retomou a Reforma Agrária com atenção a famílias chefiadas por mulheres.
Logo após o fim do pronunciamento e assinatura dos decretos, o evento foi encerrado, mas não exatamente assim. A Marcha das Margaridas é construída diariamente por cada mulher brasileira do campo, da floresta e das águas que se dispõe a desenvolver e lutar pelas diversas soberanias que existem, sejam alimentares, climáticas, humanas. As sementes de Margarida estão em todo o território nacional.
A imagem que permanece de um evento tão grande e feito por tantas formas de companheirismo mostra que, apesar de decretos e medidas assinadas, ainda há muito trabalho a fazer nas marchas Brasil afora que são o trabalho das Margaridas. Que em 2027 ainda não tenha-se que pedir pelo fim da violência e pela tão necessária, sonhada e urgente reforma agrária. Avante, Margaridas.
Caso Brigadistas de Alter do Chão: Para destruir o meio ambiente, comece perseguindo a sociedade civil
Por Luíza Ferreira – 11/08/2023
Brigadistas de Alter do Chão foram presos, investigados e perseguidos até pelo então presidente Jair Bolsonaro; consequências permanecem quatro anos depois

Brigadistas são soltos em 2019 após serem ilegamente presos | Foto: Reprodução
Após liderar o primeiro turno em 2018, o agora ex-presidente Jair Bolsonaro disse que colocaria um ponto final em todos ativismos no país. Durante seu mandato, frequentemente comparou organizações não governamentais à um “câncer”. As ações seguiram as palavras: os quatro anos de seu governo significaram o aumento de ataques contra ativistas de direitos humanos, povos tradicionais e a sociedade civil.
Um exemplo emblemático e ilustrativo desse contexto obscuro no qual as organizações da sociedade civil estavam imersas ocorreu em 2019, no Pará, e lançou luz sobre a tentativa de criminalização de ativistas e de ONGs atuantes na região. Naquele ano, quatro brigadistas que atuavam no combate a incêndios florestais na região de Alter do Chão, próximo a Santarém, foram presos – e posteriormente inocentados – acusados de provocar incêndios criminosos com o objetivo de arrecadar doações para a Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão. Entre os brigadistas, alguns também trabalhavam junto ao Projeto Saúde e Alegria.
“Na época a Brigada era uma instituição nova, porém muito atuante e forte. A gente não estava pra brincadeira. Tínhamos um objetivo claro de proteção da floresta. Por isso assustamos tanto eles, nosso crescimento era exponencial”, é o que diz Daniel Govino, fotógrafo, jornalista, brigadista voluntário, fundador e ex-coordenador da Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão e do Instituto Aquífero Alter do Chão.
Ainda segundo Daniel, a Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão tinha uma boa relação com todas as esferas do governo, tendo recebido em certa ocasião uma moção de aplausos da Câmara de Santarém, além de elogios do próprio governador.
“Eu falava diretamente no celular do prefeito e da secretária de meio ambiente. Éramos treinados e incentivados pelos bombeiros militares. Era sério o trabalho e ainda é. Porém, a nossa inocência era grande também e não conseguimos ver depois dos tapinhas nas costas viria um punhal”, relembra.
O brigadista afirma chegou a temer que eles poderiam ser alvo de alguma tentativa de calúnia e culpabilização, mas a legalidade e a transparência na atuação da Brigada o tranquilizava.
“Se alguém nos investigasse, veria que estávamos perfeitos nas contas e na atuação. Mas nós não fomos investigados, fomos sacaneados”, afirma.
Antes mesmo de serem presos, muita gente já acusava os brigadistas de atearem fogo na floresta propositalmente, ao que Daniel nomeia como uma “alucinação da extrema-direita bolso-trumpista”, de uma parte da população que está imersa no discurso de ódio contra qualquer um que se coloque em defesa dos direitos humanos.
“Para mim é claro: eles queriam criminalizar as ONGs. Uma grande (World Wide Fund for Nature – WWF), uma média (Projeto Saúde e Alegria – PSA) e uma pequena (Brigada de Alter e Instituto Aquífero Alter do Chão). Acharam que estavam dando um tiro certeiro para nos derrubar e o que eles acabaram conseguindo foi nos levantar mais ainda”, diz.
Para Daniel, outro fator importante na acusação foi Abraham Weintraub, Ministro da Educação à época, que foi alvo de protestos em Santarém por ativistas que atuavam na região, enquanto passava férias com a família. A situação com o ex-ministro teria tensionado ainda mais a relação das autoridades com os ativistas e as ONGs.

Brigadistas em ação durante incêndio | Foto: Brigada de Alter/Reprodução
Danos e prejuízos
A junção de calúnias, acusações de órgãos oficiais e motivação política para as polícias locais foi fatal: brigadistas passaram três dias presos com medidas cautelares que perduraram por um ano, além da apreensão de equipamentos da instituição por mais de três anos. E como ainda existe um inquérito em aberto, alguns equipamentos ainda se encontram em poder da Polícia Civil.
A lista de efeitos é extensa e não se limita às consequências físicas e materiais, visto que, no contexto institucional, colaborou para o enfraquecimento do projeto, dificultando a interligação com órgãos públicos envolvidos nas ações de prevenção e combate a incêndios florestais, impedindo a captação de recursos e amedrontando potenciais voluntários, além do impacto psicológico brigadistas, como comenta João Romano, outro brigadista acusado no mesmo processo.
“O trabalho de contra narrativa, justamente pelo contexto político em que se deu a criminalização demandou e demanda esforços que ocupam tempo que seria fundamental no fortalecimento do projeto”, narrou.
Romano ainda alerta outras instituições que atuam com ações emergenciais em parceria com o poder público: o respaldo legal é fundamental, principalmente se há envolvimento de dinheiro público, o que não era o caso da Brigada de Alter. Para ele, o caso serve para analisar as fragilidades institucionais e ilustra a necessidade de entendimento de procedimentos mais seguros para atuação.
“As instituições necessitam de uma assessoria jurídica e de entender sobre segurança digital e comunicação, mas especialmente as que fazem um trabalho ativista, ambiental e lidam com causas sensíveis”, reforça.
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Como atua a Brigada de Incêndio Florestal de Alter do Chão e o PSA?
A Brigada de Incêndio Floresta de Alter do Chão é um programa dentro do Instituto Aquífero Alter do Chão (IAA), funciona de forma totalmente voluntária e independente, e reúne, desde de 2017, um grupo de comunitários voluntários, que trabalham para combater incêndios florestais na Área de Proteção Ambiental de Alter do Chão (APA Alter do Chão) e na proteção da biodiversidade local. A formação para o trabalho vem dos Bombeiros Militares, da Defesa Civil e da Secretaria Municipal do Meio Ambiente e Turismo de Belterra (SEMAT).
“Os bombeiros de Alter treinavam a gente. Eles incentivaram a nossa criação e manutenção. Para eles era bom ter esse grupo lá, porque a gente ia combater diretamente o fogo na floresta, já que eles já tinham uma cidade inteira para cuidar”, diz.
“Os bombeiros de Alter treinavam a gente. Eles incentivaram a nossa criação e manutenção. Para eles era bom ter esse grupo lá, porque a gente ia combater diretamente o fogo na floresta, já que eles já tinham uma cidade inteira para cuidar”, diz.
Entre as frentes principais da atuação da Brigada estão a prevenção, o combate e a articulação política ou inteligência de ação e comunicação, que age para agilizar o atendimento das ocorrências. À época dos acontecimentos ninguém recebia salário para realizar os trabalhos, inclusive os de combate direto aos incêndios.
Já o Projeto Saúde e Alegria (PSA) desempenha, há mais de 30 anos, um trabalho na região da Amazônia, em especial na cidade de Santarém, no Pará. Ao longo de sua trajetória, a ONG tem desempenhado um papel fundamental na melhoria das condições de vida das comunidades locais, aliando a promoção da saúde, educação, inclusão social e preservação ambiental.
No mesmo ano das acusações, eles foram reconhecidos como uma das 100 melhores ONGs atuantes no Brasil. Uma das iniciativas pioneiras do Projeto Saúde e Alegria foi a implantação do programa “Barco da Saúde”, que percorre os rios da região amazônica, oferecendo assistência médica, odontológica e preventiva a milhares de pessoas que vivem em áreas remotas.
Além disso, a ONG também desenvolve projetos educacionais voltados para a formação de professores e o apoio pedagógico em escolas ribeirinhas, contribuindo para a melhoria da qualidade da educação nessas comunidades. Em parceria com as comunidades locais, o Projeto Saúde e Alegria tem promovido ações de conscientização ambiental e preservação da floresta amazônica.

Bolsonaro acusou até ator de Hollywood de tacar fogo na Amazônia
Outro aspecto surreal da narrativa dos acusadores envolvia até mesmo o ator Leonardo DiCaprio, – conhecido por seu apoio à causa amazônica. Ele foi citado pelo presidente Bolsonaro como um financiadores da Brigada, em mais uma “tentativa de criminalizar quem faz trabalhos honestos na Amazônia”. O então ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, também se apressou em condenar os brigadistas, vistos como bode escapatório perfeito contra críticos de seu governo.
“A Polícia Civil tinha escuta em nossos telefones e um dia eles grampearam um áudio de alguém da Brigada falando que a gente estava crescendo e que “daqui a pouco o Leonardo DiCaprio ia nos procurar”. É claro que a gente queria sentar na mesa com a Fundação Leonardo DiCaprio. Tenho certeza que se não fosse a baita sacanagem que fizeram com a gente, isso não ia demorar a acontecer”, diz.
“Nós fomos presos no dia 26 de novembro de 2019, no dia 30 de novembro tínhamos uma reunião com representantes da Fórmula E. O grupo nos procurou por vontade própria para nos financiar. Eles queriam financiar a gente e os bombeiros de Santarém. Eu estava com o projeto pronto, não deu tempo de apresentar”, lamenta Daniel.
E como ficou a investigação?
Ao longo dos últimos anos, a investigação enfrentou diversas reviravoltas, com períodos de estagnação e avanços nas apurações. Diversas entidades e especialistas manifestaram preocupação em relação à condução do caso, ressaltando a falta de provas consistentes e indícios de que as acusações tinham motivações políticas e econômicas.
Após uma análise minuciosa das evidências e da argumentação apresentada pelas defesas dos brigadistas, o Ministério Público do Pará (MPPA) concluiu que não havia elementos suficientes para sustentar as acusações.
O inquérito foi arquivado, e os brigadistas foram considerados inocentes das acusações de incêndio criminoso e organização criminosa. Mesmo com o desfecho favorável, o caso revela uma realidade preocupante na tentativa de criminalização de ONGs e ativistas socioambientais, além de deixar uma marca na história das organizações.
Para Daniel, todo o processo de investigação à qual foi submetido junto aos demais brigadistas representa um aprendizado para as organizações:
“A quem interessa que a gente não se organize? Existem basicamente dois tipos de organização jurídica: empresas e ONGs. Por que será que uma parte da burguesia e uma parte dos políticos atacam as organizações da sociedade civil? Porque as ONGs fazem o que eles deveriam fazer”, enfatiza. O brigadista afirma ainda que atacar ONGs faz parte da estratégia da extrema-direita de criminalizar “a estrutura jurídica que não tem fins lucrativos e que, geralmente, presta um serviço social que o governo, e muito menos as empresas, não conseguem prestar”.
Mas, ao fim ao cabo, Daniel comemora: “A saúde e a alegria venceram”, finaliza.
O protesto como exercício da Democracia – de 2013 até hoje
Por Mario Campagnani – 11/08/2023
Seminário nacional realizado em Recife contou com lançamento da publicação “A experiência da advocacia popular no exercício do direito ao protesto”

Foto: Elaine Guimarães
Nas democracias, o direito ao protesto tem uma função basilar. Não apenas por estar entre as garantias fundamentais, mas também porque é por meio dele que se obtém a manutenção de todos os outros. Quando há o desejo autoritário de calar as vozes, é sobre ele que os primeiros golpes se concentram. Não sem motivo, a garantia de exprimir nossas opiniões e lutar pelos direitos são alvo de duplos ataques. Se por um lado o fascismo e a repressão buscam cercear aqueles e aquelas que lutam por garantias e avanços, por outro há o risco desse mesmo direito ser colocado como uma marionete, um fantoche útil para esconder desejos totalitários, sob a máscara da liberdade de expressão.
A diferença entre o direito de protestar e os ataques à democracia, porém, não é difícil de ser desenhada, como mostraram as falas dos participantes do Seminário “Direito ao Protesto como Exercício da Democracia: Das Jornadas de 2013 aos Desafios Atuais”, realizado nos dias 9 e 10 de agosto em Recife (PE). O evento também foi o lançamento da publicação “A experiência da Advocacia Popular no Exercício do Direito ao Protesto”.
Em 2013, os tiros e bombas da polícia caíam do lado de fora da sala de aula enquanto a então estudante de Direito Sheila de Carvalho – hoje assessora especial do Ministério da Justiça e presidente do Conare – fazia suas últimas provas, antes de se formar. Então na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo, Sheila lembra das detenções arbitrárias e até onde a repressão consegue chegar no Brasil:
Isso dialoga com o Brasil, com a forma como foi construído o direito a protestos. Somos um país que ainda tem uma ditadura militar que está debaixo do tapete. Não tivemos uma transição que permitiu que o que passou na ditadura fosse sanado”, afirma Sheila que também refletiu sobre como isso reverbera quando se chega a 8 de janeiro deste ano, quando a tentativa de golpe tem novamente por trás o militarismo.
“Aquilo não pode ser considerado um direito ao protesto. Não há como garantir um direito se a tentativa é usá-lo para derrubar um estado democrático de direito”, ressalta Sheila, lembrando como pedidos de golpe foram tolerados e incentivados pelo antigo governo federal.
Para o advogado Rodrigo Mondego, que atuava nas ruas do Rio de Janeiro durante 2013, a seletividade de quem tem direito ou não de protestar aparece não apenas quando se fala de campo progressista ou conservador, mas muito mais quando se fala de raça e classe. Atuando com familiares de vítimas da violência do Estado, ele conta sobre como o Sistema de Justiça atua quando se trata de jovens negros. Um dos casos emblemáticos disso foi o de Rafael Braga, preso no contexto das manifestações acusado de porte de produto inflamável, no caso, um Pinho Sol.
Mondego lembra que a chegada desse perfil – jovem negro pobre – na delegacia leva quase que automaticamente a uma entrada no sistema e impactos difíceis de serem sanados. Por isso, ele destaca a importância de advogados e advogadas que acompanham protestos estarem presentes no momento da prisão e da chegada na delegacia, de forma a mitigar os impactos.
“Quem faz defesa do direito a protesto tem que estar in loco, pois isso faz diferença. Para termos uma análise correta da investigação, que seja feita bem desde o início, porque a perícia do local não funciona corretamente, testemunhas vão sumir por medo”, diz Mondego, acrescentando que as conversas com delegados muitas vezes modificam até mesmo o tipo de acusação que vai ser feita aos manifestantes.
“Fechando as ruas para abrir os caminhos”
Na segunda mesa do dia 9, “Das Jornadas de 2013 aos desafios atuais”, a conversa sobre o relevância, mas também os privilégios do ativismo foram colocadas em destaque. Paique Santarém, do Movimento Passe Livre, relembrou o histórico de revoltas populares que tiveram no transporte o seu estopim, como a Revolta do Vintém, que em 1880 levou a população do Rio de Janeiro, então capital do país, a um protesto contra a cobrança nos bondes. Para Paique, pensar sobre transporte é também pensar a questão racial brasileira, com a lógica da (i)mobilidade urbana retroalimentando o racismo. Porém, ressalta ele, é necessário não deixar de dar o destaque ao tema principal desses atos:
“Essas revoltas são lidas para entender outras coisas, como se não fosse o transporte o motivo. A formulação de que junho seria para destruir a democracia. Um esforço hercúleo para falar que essas manifestações não são sobre o que elas declaram que são. Esse delírio acontece porque não se chegou a um debate sério sobre o que seria a questão do transporte no Brasil, de como as cidades foram construídas como um muro social”, explicou Santarém.
Esse muro social que aparece não apenas na mobilidade, mas também na própria forma de fazer ativismo no Brasil. Partindo do exemplo de 2013, Ingrid Farias, coordenadora de formação do Instituto Update, lembrou como aquele ano serviu também para esgarçar uma série de contradições presentes nos próprios movimentos sociais, com debates sobre privilégios, assim como opressões como misoginia e LGBTQIAP+fobia.
“Só faz ativismo hoje quem tem muito privilégio. O direito de reivindicar deveria ser de todo mundo, mas depois de pegar dois ônibus para ir trabalhar, dois para voltar, pegar o menino na casa da mãe, quem ainda tem tempo?”, questiona Ingrid, destacando a necessidade de o campo progressista estar atento e atuante para lidar com essas questões.
Os ataques por meio do Legislativo e do Judiciário
Carla Varea Guareschi iniciou o segundo dia do Seminário tratando das repercussões políticas e legislativas da criação da lei 13.260 de 2016, a chamada Lei Antiterrorismo. Destacando que a lógica de repressão aos movimentos sociais não é nova, Guareschi mostrou como essa lei, aprovada dentro do contexto de realização das Olimpíadas do Rio, abriu a porta para que a o tema da criminalização dos movimentos fosse abordada no Legislativo.
“O uso dessa terminologia de terrorismo contra movimentos sociais não é algo só do Brasil, mas da América Latina e do mundo. Então não há dúvida nenhuma de que essa preocupação com essa lei se sustenta, de que ela abriu uma janela para um recrudescimento dessa perseguição”, afirma a pesquisadora.
De 2016 a 2018, foram apresentadas 7 propostas para modificar a lei, aumentando sua capacidade repressiva. Com a chegada de Bolsonaro ao poder e o crescimento da extrema direita, foram 13 projetos de 2019 a 2021. Apenas 20% das proposições mencionam exemplos de atentados terroristas internacionais na justificativa, o que indica uma aparente desconexão entre um suposto debate hegemônico global e o debate no Brasil.
“O que mobiliza a pauta são os movimentos sociais, que centralizam e norteiam essas propostas”, sinaliza Guareschi.
Não é apenas pelo Legislativo que vem os ataques contra os movimentos progressistas. A advogada Sofia Rolim, doutoranda da FGV-SP, pesquisa o caso dos 23 presos da Copa de 2014. Na véspera da final do mundial, essas pessoas foram presas sob a acusação de associação criminosa. Por meio de uma peça acusatória fragmentada e fantasiosa, essas pessoas respondem até hoje na Justiça.
“Essa lei dilui o ônus do Estado de dizer o que essas pessoas estão fazendo. Pela mera associação das pessoas pode-se dizer que estão cometendo um crime. Isso vai facilitar e fortalecer um processo de como o estado brasileiro funciona, que é transformar a verdade policial em verdade judicial”.
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Cooperativas: sua história, o que são e como criar um território sustentável
Por Lethicia Bueno- 28/07/2023
Baseadas nos pilares de equidade, transparência e democracia, as cooperativas aliam pessoas e produção sem visar lucro

A cooperativa Univens, no Rio Grande do Sul, reúne costureiras l Foto: Facebook/Univens
“Agir ou trabalhar junto com outro(s) para um fim comum; para produzir um efeito; com o objetivo de obter benefícios econômicos comuns”. De um simples significado no dicionário até uma filosofia de vida, o verbo “cooperar” traduz bem a ideia de que se organizar e crescer social, cultural e economicamente por meio da coletividade é um caminho possível.
Derivadas do mesmo verbo, as Cooperativas também se baseiam nos princípios do trabalho colaborativo. A Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB) define esse tipo de entidade como um espaço em que “pessoas se juntam em torno de um mesmo objetivo, em uma organização onde todos são donos do próprio negócio”. Pessoas que, autônoma e voluntariamente, decidem se unir pela busca de “desenvolvimento econômico e social, produtividade e sustentabilidade”, sem visar lucro.
Ao contrário de empresas, que possuem finalidade lucrativa, e associações, que não exercem função comercial, as Cooperativas têm como principal meta prestar serviços aos seus cooperados. Além disso, prevalecem nessas organizações ideais como liberdade, solidariedade, humanidade e relações justas. A OCB elenca sete princípios básicos das Cooperativas: adesão voluntária e livre; gestão democrática; participação econômica dos membros; autonomia e independência; educação, formação e informação; intercooperação; e interesse pela comunidade.
Globalmente, as Cooperativas já somam números expressivos, representando cerca de 2,6 milhões de organizações. Ainda de acordo com a OCB, 250 milhões de empregos são gerados por meio delas e uma em cada sete pessoas no mundo são vinculadas a esse tipo de entidade. Somente no Brasil, de acordo com dados de 2019-2020, já são mais de 15,5 milhões de cooperados.
Em relação às possíveis áreas de atuação, a OCB elenca sete segmentos do cooperativismo brasileiro: Agropecuário; Crédito; Transporte; Trabalho, produção de bens e serviços; Saúde; Consumo; e Infraestrutura.
“No Brasil, as Cooperativas são regidas pela Lei nº 5.764, […] que as caracteriza como sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência”, pontua a OCB. O primeiro registro de uma organização desse tipo no país data de 1889, em Minas Gerais, com a fundação da Cooperativa Econômica dos Funcionários Públicos de Ouro Preto.
Conheça mais sobre a história das Cooperativas aqui.
Cooperativa na prática: mãos que tecem histórias
Venceremos (UNIVENS) pratica, há quase 27 anos, a cooperação pelas mãos de mulheres que se juntaram para fazer a diferença.
A organização, que começou timidamente no salão de uma igreja em maio de 1996, nasceu da necessidade de mulheres trabalharem para sustentar a família. “Uma de nós teve a ideia de fazer alguma coisa para as mulheres se empoderarem. A ideia era começar a fazer pão, mas alguém teve outra, a de costurar”, conta Nilza Eliane Dias, costureira da UNIVENS há 15 anos.
Após receber uma proposta para costurar lençóis, a UNIVENS foi cada vez mais tomando forma. A Cooperativa, que hoje é formalizada, recebe diversos pedidos de corte e costura de clientes particulares, escolas e igrejas, além de trabalhar com serigrafia e bordado.
Em paralelo com Organizações Não Governamentais (ONGs), a Cooperativa também oferece cursos de costura para imigrantes e aulas de música, teatro, bordado e crochê, tudo desenvolvido para a comunidade.
“Na UNIVENS, somos todas cooperadas e sócias. Não existe um setor com chefe, gerente. É muito bom trabalhar com essa liberdade. Temos reunião todo mês para ver despesas, lucros, sobras e tudo isso é dividido entre nós. Essa é a grande diferença das empresas, que tu bate o ponto, vai lá e faz o que mandam”, pontua Roselaine da Silveira, do setor de serigrafia e bordado da Cooperativa.
“E, principalmente, sabemos que não estamos sendo exploradas e temos ciência para onde está indo nosso dinheiro”, completa Eliane.
Para as duas cooperadas, o trabalho da UNIVENS não somente reaproxima as mulheres do mercado de trabalho, já que grande parte delas já estão na meia idade e aposentadas, mas também é um espaço seguro e acolhedor para que se reconheçam como cidadãs.
Mais recentemente, as criadoras da UNIVENS se uniram para a fundação da Justa Trama, cooperativa que trabalha com a comercialização de peças feitas de fibras ecológicas a partir de algodão orgânico, tudo realizado pelas mãos de cooperados de vários estados brasileiros.
Como funcionam as Cooperativas?
De acordo com a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), uma Cooperativa pode ser formada “por qualquer gênero de serviço, operação ou atividade”, uma vez que tenha como foco seus próprios cooperados e o trabalho que realizam em conjunto.
Nas Cooperativas, os cooperado assumem as principais decisões da organização por meio de mecanismos como assembleias periódicas, votações e distribuições de tarefas. Ou seja, toda pessoa é importante para o bom funcionamento de uma Cooperativa, sem exceção, e deve participar ativamente da construção diária da entidade.
As Cooperativas também são, geralmente, organizadas por núcleos, como Conselhos de Administração e Diretorias. Isso facilita o planejamento de todos os cooperados, o cumprimento das tarefas e a comunicação entre os setores produtivos.
Por isso, mesmo que exista uma hierarquia executiva dentro da entidade, todas as pessoas devem prestar contas e tudo deve ser feito com transparência máxima.

Reunião na CoopBorborema que enfrenta o latifúndio e a agricultura transgênica | Foto: Crédito: CoopBorborema/Arquivo pessoal
Cooperativa na prática: territórios sustentáveis
Liderando um grupo de agricultores e agricultoras no semiárido brasileiro, Maria Gizelda Nunes Bezerra e os cooperados da CoopBorborema enfrentam diversas lutas contra os alimentos transgênicos, o uso desenfreado de agrotóxicos e por uma agroecologia justa, participativa e saudável, há quase três anos.
Mas a história da Cooperativa começa bem antes, há 27 anos, com a criação do Polo Sindical da Borborema, um projeto de agroecologia no território da Borborema, na Paraíba. Articulado por agricultores, sindicalistas e pela assessoria AS-PTA, Maria Gizelda conta que o Polo nasceu para garantir a diversificação da produção de alimentos e a ampliação da cadeia de mercados agroecológicos na região.
Preocupado com a certificação desses alimentos e a institucionalização das atividades, o projeto deu origem a duas organizações: a associação EcoBorborema, que certifica os produtos dos trabalhadores do Polo, e a Cooperativa da Agricultura Familiar Camponesa do Polo da Borborema (CoopBorborema), que tem o papel de organizar e fortalecer os mercado agroecológicos, ampliar vendas internas e externas, gerenciar os agricultores cooperados e acessar políticas públicas.
“Nós temos hoje aqui na CoopBorborema, por exemplo, a unidade de beneficiamento de derivados de milho – flocão, xerém e fubá agroecológicos – além do algodão e de sementes no geral. Muitos agricultores já plantam o milho e o algodão sabendo que a Cooperativa vai comprar”, explica a presidente.
Para Maria Gizelda, o valor e a importância das Cooperativas estão no trabalho que realizam em rede com as comunidades e os territórios. “Cooperativas como a nossa, quando são organizadas e sérias, têm o papel de unir produção e venda, o que ajuda os agricultores e agricultoras”, finaliza.
Como criar uma cooperativa?
Em tese, qualquer grupo de pessoas que tenha interesse em montar um negócio e se unir em uma organização coletiva pode formalizar uma Cooperativa. Porém, existem alguns passos.
Primeiro Passo
O PRIMEIRO PASSO é realizar uma reunião geral com os interessados em se tornar cooperados. “Na primeira reunião, é importante que alguém explique para as pessoas o que é uma Cooperativa, como deve funcionar, os aspectos legais a serem seguidos etc.”, pontua a OCB. A própria OCB possui núcleos estaduais que dão suporte a novos cooperados.
A Organização das Cooperativas Brasileiras também recomenda que várias outras reuniões sejam conduzidas antes de o grupo, de fato, formalizar a entidade. Nesses encontros, o grupo deve definir os objetivos da Cooperativa e sua área de atuação, montar uma análise de viabilidade econômica do negócio, designar comissões, tarefas e líderes que estarão à frente de cada etapa da criação da entidade, entre outros pontos.
Segundo passo
O SEGUNDO PASSO é a criação do estatuto da Cooperativa, ou seja, o documento que estabelece o funcionamento da entidade. No estatuto devem constar, por exemplo, os direitos e deveres dos cooperados, as normas de administração e fiscalização do trabalho e informações sobre capital social e quotas. Saiba mais detalhes do estatuto aqui.
A partir da criação do estatuto, o grupo deve estudar o documento e se reunir na Assembleia Geral de Constituição da Cooperativa, para aprovar ou não a criação da entidade.
Terceiro passo
Se aprovada democraticamente, o TERCEIRO PASSO é a formalização e o registro da Cooperativa na Junta Comercial do estado de origem da organização. Na sequência, o grupo deve registrá-la no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) e na Organização das Cooperativas Brasileiras, além de cadastrá-la no sistema tributário estadual para receber o alvará de funcionamento.
A boiada não parou: conheça os projetos e medidas que mais ameaçam povos indígenas e o meio ambiente
Por Luíza Ferreira – 21/07/2023
“Bombas” aprovadas ou tramitando no Congresso Nacional representam o pior da política de destruição socioambiental promovida pela extrema direita

Guaranis fecham rodovia em protesto contra o PL 490 l Foto: APIB via Twitter
Mesmo com a derrota de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022, a bancada ruralista aliada do ex-governo segue firme na expansão dos “pacotes de destruição”, conhecidos como um combo de projetos que prevê o desmonte ambiental das políticas de proteção ambiental brasileiras.
Maíra Pankararu, advogada indígena, mestra em Direito e assessora da deputada federal pelo PSOL/MG, Célia Xakriabá, nos lembra alguns dos acontecimentos dos últimos quatro anos que configuram o avanço da tentativa de desmonte: o enfraquecimento dos órgãos técnicos do governo, a perseguição a servidores políticos, queimadas e desmatamentos dolosos em todos os biomas do Brasil, a aprovação de inúmeros agrotóxicos, entre outros.
“Existe uma ilusão no imaginário brasileiro de que para que haja progresso econômico, é preciso “flexibilizar” em algumas agendas, sendo elas quase sempre as de teor socioambiental. Quem perde com isso, claro, é toda a sociedade brasileira, mas sofre mais quem é a população mais desassistida”, diz.
Desde 2018, o Brasil está de volta ao Mapa da Fome, como aponta um levantamento da FAO, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Neste mês, a mesma pasta publicou o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI), que confirmou a piora dos indicadores de fome e insegurança alimentar no Brasil.
Para Maíra, isso não aconteceu do nada, e enquanto “a natureza for tratada apenas como uma “coisa” e alimento for commodity, continuaremos assistindo a degradação do meio ambiente e a massa de famintos ficar cada vez maior”, reforça.
Separamos três ataques, entre projetos de lei e medidas provisórias, para entender o “andar da boiada” do desmonte ambiental no congresso nacional pós-Bolsonaro e no início do governo Lula.
PL 29003/23, o projeto que afronta quinhentos anos de resistência indígena
Aprovado na Câmara dos Deputados, o antigo “PL da Morte’, o PL 490/07, atual PL 29003/23 tramita no Senado. Ele figura no topo dessa lista como projeto de lei que ameaça os povos indígenas, ao propor tornar lei a tese do Marco Temporal. Em suma, o texto prevê a restrição da demarcação de terras indígenas àquelas ocupadas tradicionalmente por esses povos na data da promulgação da Constituição Federal, a 5 de outubro de 1988. Para isso, é esperado que se comprove que essas terras eram habitadas na data da promulgação “em caráter permanente, usadas para atividades produtivas e necessárias à preservação dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural”.
Maíra Pankararu denuncia o discurso de segurança jurídica para os proprietários terras e a promessa de uma suposta paz para os conflitos fundiários.
“É preciso deixar claro que são conflitos que eles mesmos criaram e criam até hoje, como também traz totalmente um sentimento de insegurança jurídica aos povos indígenas, já que nossos direitos discutidos na Assembleia Constituinte de 1987-1988 e petrificados no texto da Carta Magna de 1988 nunca falaram de marco temporal nenhum para demarcação de terras indígenas”, diz.
Para a assessora, a tese só ganhou destaque através do poder da bancada ruralista que pressiona para a aprovação de projetos de leis favoráveis aos seus próprios interesses. Outros ataques promovidos pelo PL são:
- Comunidades com “traços culturais alterados” podem ter suas terras retomadas pela União, para destiná-las, de acordo com interesse público ou social, ou destiná-las ao Programa Nacional de Reforma Agrária (art. 16, § 4°);
- Há a previsão de instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico serão implementados sem consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI (art. 20, parágrafo único);
- Flexibiliza o contato com povos isolados (art. 28).
“Os povos indígenas do Brasil podem não ser muitos em quantidade, mas garantem a qualidade de vida de toda a população do Brasil, pois são os guardiões do meio ambiente. Por isso, lutar contra essa iniciativa legislativa é salvar o futuro não só dos povos indígenas, mas da sociedade brasileira como um todo”, diz Maíra.

Indígenas protestam durante governo Bolsonaro; ameaças, no entanto, não cessaram| Foto: José Rui Gavião via Instituto Socioambiental
MP 1154/2023: um ataque aos direitos socioambientais brasileiros
Com a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a competência da homologação de terras indígenas na mãos do mesmo, começava a se desenhar o fim da tutelagem aos indígenas do Brasil e da política indigenista para dar lugar a uma política indígena, “feita por indígenas e para indígenas”, mas a alegria durou pouco.
A Medida Provisória 1154/2023 foi aprovada pelo Senado Federal em Junho, por 51 votos contra 19 e o texto-base, elaborado pelo deputado Isnaldo Bulhões Jr. (MDB-AL), previa a alteração da proposta original do governo federal e na função de alguns ministérios. Uma das alterações estava a cargo do Ministério dos Povos Indígenas, uma conquista do movimento indígena brasileiro, que deixou de ser responsável pela homologação de terras indígenas, que volta ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
A medida também retirou do Ministério do Ambiente a regulação de saneamento da Agência Nacional de Águas (ANA) e de sistemas como o Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (Sinisa) e o Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos (Sinir).
Para Maíra Pankararu, esse é um “claro ataque aos direitos socioambientais do Brasil”, e muito do que havia sido comemorado em janeiro de 2023, com a eleição de um Executivo mais progressista em relação à proteção ambiental e dos povos indígenas “desmoronou em menos de seis meses”.
“Quem melhor que nós para versar sobre essas as terras que protegemos? Significa dizer que ainda somos “incapazes” – no sentido jurídico da palavra – de falar por nós e pela terra que habitamos. Até 1988 éramos tutelados pelo Estado brasileiro, não tínhamos autonomia, nem voz própria, sempre representados. Foi frustrante ver esse desmonte, principalmente na rapidez que aconteceu, mas ao mesmo tempo significa que devemos estar vigilantes e atentos na defesa de nossos direitos sempre”, comenta.
Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a aprovação da medida é um ataque aos povos indígenas do país.
MP 1150/2022 deixa a Mata Atlântica desprotegida
No dia 24 de maio a Câmara dos Deputados votou o texto final da MP 1150, que deixa a Mata Atlântica, um dos biomas mais degradados e ameaçados do país, desprotegida. Anteriormente o Senado Federal havia feito aprimoramentos no texto da Medida Provisória, que foram derrubados pela Câmara.
“A medida em questão não apenas compromete a efetividade da Lei Especial que tem o propósito de proteger o bioma onde reside a maioria da população brasileira, mas também prejudica os esforços de recuperação de áreas degradadas ao propor alterações no Código Florestal”, comenta Maíra Pankaruru.
A medida também deixa as Unidades de Conservação (UCs) desprotegidas, pois interfere na aplicação da legislação responsável pela gestão das UCs, como os parques nacionais. O texto segue para sanção do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e se aprovado, “significará um dos maiores retrocessos ambientais que o Brasil já experimentou e abrirá portas para a derrocada ecológica do país”, completa.
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Para a advogada, a bancada ruralista no Congresso Nacional é extremamente organizada e sedimentada, dispondo de muitos recursos para garantir a aprovação de projetos de lei de acordo com os seus interesses.
“Acredito que esse seja só o começo, estamos no início da legislatura e já tivemos de enfrentar essas pautas duríssimas. À medida que nosso mandato e outros se destacam no sentido de defender o meio ambiente, os povos indígenas, quilombolas, do campo, mulheres, enfim, minorias por sempre invisibilizadas e com pouca ou nenhuma representatividade, os ataques se endurecerão”, diz.

Bioma mais ameaçado do país, a Mata Atlântica está ameaçada l Foto: Reprodução
Artimanhas anti-ambientais
Maíra ainda expõe um fenômeno comum: o uso de expressões “mansas e palatáveis” pelos parlamentares como “adaptar”, “aperfeiçoar” e “flexibilizar” para esconder o intento de destruição, o que dificulta muito o trabalho de parlamentares em favor da pauta ambiental. Entre os exemplos mais comuns dessa estratégia, estão os projetos de lei sobre garimpo em terras indígenas, muitas vezes propostos com o nome de “garimpo sustentável” ou “garimpo ecológico”.
“São inúmeros PLs nesse sentido que vemos tramitar todos os dias, sempre sob o pretexto de que “o Brasil não pode parar”, muitos propondo o avanço em terras indígenas e em unidades de conservação, como se essas fossem entraves ao progresso econômico”, afirma.
Mas a realidade se opõe ao que os ruralistas tentam pregar. Como reforça a advogada, “a proteção de terras indígenas e unidades de conservação asseguram o sucesso da economia do país”, que é baseado na agricultura para exportação.
“Quem, senão os povos indígenas, garante água limpa e solos com nutrientes? É preciso acabar com a cultura de que somos inimigos ou que somos obstáculos para o crescimento do Brasil, pelo contrário, é por causa de nossas práticas ancestrais que ainda está garantido o mínimo de salubridade para se viver aqui”, diz.
Nas últimas eleições, o Brasil elegeu, em paralelo, um Poder Executivo mais progressista e um Poder Legislativo mais conservador. Nesse cenário, há muito trabalho a ser feito para mitigar os danos que continuam sendo causados pelo legislativo liberal e conservador, e, como reforça Maíra, “pouco afeito às causas socioambientais”.
Para ela, embora no Brasil, assim como no resto do mundo, o povo enfrenta uma crise climática e é olhado com atenção sobre o que fará com os seus biomas nativos, o Poder Legislativo continua a propor e aprovar leis contra a proteção ambiental e em favor do caos climático.
“Hoje já experimentamos as consequências dessas escolhas, mas no futuro pagaremos ainda mais caro, pois a natureza cobrará seu preço”.
Ataques contra as mulheres
Neste ano, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, sugeriu que os ataques aos ministérios do novo governo se relacionam com as questões de gênero, afinal, são ataques aos ministérios das mulheres.
Maíra corrobora com essa perspectiva, e ressalta quem esteve e ainda está sendo atacada na política:
“Antes foram Marina Silva (MMA) e Sônia Guajajara (MPI), agora Nísia Trindade, do Ministério da Saúde. No legislativo temos as seis deputadas federais que passam por processo de cassação, Célia Xakriabá, Juliana Cardoso, Talíria Petrone, Erika Kokay, Fernanda Melchionna e Sâmia Bomfim. Quão mais combativas e assertivas as mulheres são, mais ataques sofrem dessa estrutura política machista, racista, conservadora e patriarcal”, diz.
A intensificação de uma agenda de ataques às parlamentares e às políticas ambientais está na conta do governo Bolsonaro, que deu poder a quem estivesse pronto para destruir a natureza e perseguir os defensores do meio ambiente.
“Foi durante o governo Bolsonaro que houve uma média de três mortes de ativistas por mês, que não houve nenhuma demarcação de terra indígena, que nos vimos no meio de um caos pandêmico, envoltos em fake news produzidas e difundidas pelo próprio governo”, comenta.
Nesse momento, a mobilização para barrar os desmontes socioambientais é crucial e uma das principais medidas nessa luta é pressionar deputados e senadores para que votem projetos alinhados com a proteção ambiental e às populações mais vulneráveis.
“Também acho importante votar em pessoas comprometidas com as causas socioambientais, assim não teríamos de ser sempre reativos, mas poderíamos ser propositivos, legislando a partir dos valores constitucionais da proteção do meio ambiente e da proteção da vida”, finaliza.
Protocolo de consulta: a comunidade tradicional no centro da tomada de decisão
Por Carol Almeida – 13/07/2023
Comunidade do Vão Grande, no Mato Grosso, lança protocolo de consulta prévia e ganha ferramenta para proteger território e vidas quilombolas

O Vão Grande é um território quilombola localizado no Mato Grosso, formado por cinco comunidades tradicionais – São José do Baixiu, Morro Redondo, Camarinha, Vaca Morta e Retiro. É neste lugar que eles mantêm vivas manifestações culturais e religiosas, como as festas de Santos e as rodas de cururu; além da agricultura típica, à base do milho, da banana, da mandioca e peixe de água doce; que caracterizam a tradição mato-grossense.
O local que é fonte de diversas disputas territoriais e políticas têm na sua recente história um caso de união e articulação popular em defesa da vida no campo, por meio da construção coletiva de um Protocolo de Consulta Prévia, lançado oficialmente em julho.
Esse documento foi criado como uma ferramenta importante para impedir o licenciamento ambiental de uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH) no rio que corta esse território, chamado Jauquara.
“Esse projeto estava dentro de uma área específica que afetaria comunidades tradicionais. Neste caso, elas precisam ser ouvidas! Mas a estrutura dos processos e os documentos que foram apresentados pelo Ministério Público eram muito gerais. O juiz não compreendia exatamente quem eram as pessoas impactadas e até se existia uma comunidade”, relata a advogada Mariana Lacerda, integrante do grupo PesquisAção do projeto Humedales Sin Fronteras, que presta uma assessoria jurídica para o Vão Grande, desde 2019.

Crianças do Vão Grande celebram aniversário do rio | Foto: Pedro Ribeiro Nogueira/Escola de Ativismo
Como foi criado?
O primeiro passo, então, foi apresentar provas mais diretas da importância do Jauquara para a manutenção daquele território. Por isso, foram anexados ao ofício um abaixo-assinado e um vídeo, explicitando a presença daquelas pessoas e os motivos pelos quais o rio deveria ser preservado. Esses registros foram feitos pela Escola de Ativismo e incorporados ao processo.
Após a inclusão desses anexos, a decisão do Ministério Público Federal (MPF) impediu que o seguimento da licença ambiental da PCH fosse concedida sem que antes houvesse uma consulta àquela comunidade.
“A gente pensou em estratégias de defesa territorial. Quando a gente viu a sentença favorável, a gente pensou: Poxa, isso é um alívio, mas a batalha não foi ganha, porque mesmo com a determinação judicial, qualquer coisa poderia ser aceita como consulta e a obra poderia sair num futuro próximo. Então a gente pensou: O que podemos construir de ferramenta dentro do território do Vão Grande, por meio também do Comitê Popular de Defesa das Águas, para impedir que a SEMA (Secretaria do Meio Ambiente) considere qualquer documento como consulta? Aí veio o protocolo como resposta”, disse Mariana.
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O que acontece em algumas comunidades é que muitas vezes as pessoas que moram ali no território não conseguem ter acesso à informação do que realmente está sendo construído ou desenvolvido. “No Vão Grande, por exemplo, antes desse processo de mobilização, as pessoas não tinham o conhecimento de que era uma determinada empresa que tinha entrado com o requerimento na ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) para pedir que a vazão hídrica do rio fosse considerada para fins de empreendimento. Eles veem essoas entrando e saindo do território que não dizem o que estão fazendo e qual o objetivo daquilo”, relata Mariana.
“Esse processo de informação de empoderamento da comunidade culminou tanto na formalização do Comitê Popular em defesa do Rio Jauquara, como em criar estratégias de defesa do território”, explica Mariana. “E essa mobilização foi capaz de criar articulações que permitissem formular e responder perguntas como: Qual tipo de suporte a gente precisa nesse momento? Com quem a gente pode contar? Como que a gente vai se organizar, dentro do nosso território, para não deixar que a barragem exista?”.

Oficina realizada na comunidade Retiro, do Vão Grande, durante elaboração do protocolo | Foto: Reprodução
O que é o direito de consulta?
Segundo Natiele Santos, advogada popular e integrante da AATR, “O direito de consulta é nada mais um direito que as comunidades tradicionais possuem de serem escutadas e participarem também de qualquer processo seja e legislativo ou administrativo que venha impactar diretamente essas comunidades tradicionais e é um direito que se baseia na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Por definição do Decreto 6040 de 2007, define-se os Povos e Comunidades Tradicionais, como “os grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”, e compreende-se por “Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas (…)”.
O Protocolo de Consulta Prévia é um modo de instrumentalizar esse direito, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas, capazes de afetar diretamente essas comunidades, sem qualquer tipo de pressão social. “É como se fosse uma lei da comunidade, construída de forma coletiva por instituições que fazem parceria com as pessoas que moram nesses locais, indicando também de que forma essas comunidades desejam ser ouvidas e consultadas”, explica Natiele.
A criação desse documento pode enfrentar alguns obstáculos. Dentre eles, o desafio de que as empresas e instituições percebam a importância e respeitem esses protocolos. Outra questão é o tempo: o protocolo não é feito de uma hora pra outra, às vezes demoram anos para serem preenchidos. Por isso é muito importante que essas comunidades estejam bem unidas e articuladas.
“Essa construção foi muito orgânica, bonita e participativa. Eles puderam ver, ao vivo, eles mesmos construindo o protocolo, opinando e interferindo inclusive na metodologia. Por exemplo, eles fizeram um mapa visual em que cada um podia falar da sua comunidade. Também foi feito um jogo teatral em que eles pararam para pensar nas situações que aconteciam lá. Foi criado também uma definição de como eles gostariam de ser consultados”, descreve Mariana.
O próximo passo, se a empresa ainda tiver interesse em manter o empreendimento, é que ela faça essa consulta à população de acordo com o Protocolo. Caso, ao final desse processo, exista o consentimento da comunidade do Vão Grande, ou seja de todas as cinco comunidades, o empreendimento pode ser licenciado para que haja a construção.
“O objetivo foi criar um espaço de tomada de decisão que fosse popular, onde o empreendedor e o Estado não se impusessem. As pessoas ali estão se colocando como protagonistas dentro desse processo de consulta. E essa construção foi muito linda”, comemora Mariana.
O documento final está disponível no site da Escola de Ativismo e no Observatório dos Protocolos Comunitários. E no site do MPF você encontra outras informações e alguns Protocolos de Consulta Prévia para serem consultados.
Libras na Quebrada: projeto leva língua brasileira de sinais para as periferias de São Paulo
Por Bárbara Poerner, em parceria com a Revista Casa Comum*

Era 2009 quando Gyanny Vilanova, que trabalhava na Galeria do Rock, no centro de São Paulo, teve a curiosidade de aprender libras para poder se comunicar com seus clientes surdos à época. Visionária, ela logo percebeu que precisava disseminar seu conhecimento sobre o assunto para mais pessoas.
Essa foi sua motivação inicial para criar o projeto Libras na Quebradas: “Surgiu com a ideia de juntar a necessidade das pessoas de aprenderem Libras, mas dentro da realidade da periferia, onde muitas não têm condição de pagar um curso. O objetivo é levar a língua até a periferia, para saberem o que é e ter a oportunidade de aprender”, defende. “A Libras precisa chegar em todos os territórios”, acredita Gy.
A iniciativa começou em 2020, e, com a pandemia, foi condicionada a realizar as aulas e encontros de forma remota. Hoje, o Libras na Quebrada atua de forma presencial e conta com voluntários surdos e ouvintes, realizando oficinas em alguns pontos da capital paulista.
Gyanny diz que não se considera necessariamente uma ativista, mas sim uma parceira e aliada da comunidade surda. “Uso meu privilégio ouvinte para encaixar os surdos nos centros culturais como professores, por exemplo. Eu saio da linha de representatividade do projeto e chamo a comunidade surda para se expor. A causa é deles, eu estou junto com eles, e se todos os ouvintes pensassem assim, teríamos menos barreiras, menos preconceito e mais pessoas aprendendo libras”.
A Libras foi oficializada como língua brasileira de sinais e a segunda língua nacional há pouco mais de vinte anos, em 2002. Antes disso, contudo, falar com gestos corporais era proibido em muitos espaços no Brasil e até hoje a comunidade surda luta para garantir acessibilidade e respeito.
A professora defende que a linguagem de sinais brasileira poderia se tornar mais acessível não só com políticas públicas eficientes, mas também com ações individuais e coletivas do cotidiano. “Com cada vez mais pessoas aprendendo um pouco de libras, já conseguimos nos comunicar com os surdos. Então, se torna acessível a partir do momento que aceitamos o surdo e entendemos seu mundo”, finaliza.
*Matéria publicada como parte da seção “Vozes em Ação” da edição 5 da Revista Casa Comum.