É difícil pensar a emergência de Maio de 68 sem considerar a influência dos modos de pensar, falar e fazer elaborados pelos situacionistas na Europa desde o final da década de 50. O texto a seguir é um exemplo eloquente do estilo e das ideias do grupo.

Internacional Situacionista _ tradução: Carolina Munis


NOTA INTRODUTÓRIA

Fundada em 1957, a Internacional Situacionista surgiu da fusão de três grupos de artistas e intelectuais radicais – o Comitê Psicogeográfico de Londres, o Movimento por uma Bauhaus Imaginista e a Internacional Letrista – reunindo franceses, suíços, belgas, holandeses, ingleses, alemães e africanos do norte, que combinavam a tradição das vanguardas artísticas, um tanto da teoria marxista do valor e da mercadoria, pitadas de anarquismo teórico e tático e uma forte recusa do capitalismo e da sociedade de consumo. Como antiartistas e revolucionários ao mesmo tempo, os situacionistas produziram um corpus de ideias políticas provocativo, disruptivo e inovador num tempo de cristalização de uma teoria da luta que servia mais à manutenção das burocracias partidárias e sindicais do que à irrupção ou produção de novos “acontecimentos” revolucionários. O conceito de situação – na origem da autodenominação situacionista – se opõe diretamente ao de espetáculo, que pressupõe um espectador passivo. “A situação é feita para ser vivida pelos seus construtores”, é resultado da ação de pessoas vivas, afirmam num de seus textos fundadores.

A revista Internationale Situationniste teve 12 edições entre 1958 e 1969 e foi o principal veículo da produção teórica do grupo. Em 1967, foram publicadas as duas obras situacionistas mais influentes: A sociedade do espetáculo, de Guy Debord, e A arte de viver para as novas gerações, de Raoul Vaneigem. Outro texto situacionista está diretamente vinculado à eclosão de Maio. A miséria no meio estudantil (redigido pelo situacionista tunisiano Mustapha Khayati e revisado por Debord) foi distribuído aos milhares entre os estudantes franceses a partir de 1966 (o próprio Daniel Cohn-Bendit ajudou na distribuição) e tornou-se uma espécie de panfleto seminal do levante.

O texto All the King’s Men foi publicado no número 8 da revista Internationale Situacionniste, em janeiro de 1963. Talvez tenha sido escrito por Vaneigem, já que várias das ideias contidas no artigo aparecem mais tarde em A arte de viver para as novas gerações. O título em inglês, um misterioso “Todos os Homens do Rei”, foi mantido conforme a publicação da revista no original em francês.
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NT: Tradução adaptada por Carolina Munis com base na tradução retirada da obra Antologia Situacionista, organizada por Júlio Henriques e publicada por Edições Antígona em Lisboa, bem como nas versões espanhola, inglesa e no texto original em francês, publicado na revista Internationale Situationniste, n. 8, em 1963. O título, que o próprio texto original traz em inglês, significa “Todos os homens do rei”. À primeira vista misterioso, faz referência à rima infantil Humpty Dumpty, bastante popular em países anglófonos: Humpty Dumpty sat on a wall / Humpty Dumpty had a great fall / All the king’s horses and all the king’s men / Couldn’t put Humpty together again. O mistério se abranda quando o texto recorre à sabedoria de Humpty Dumpty, que, transformado em personagem por Lewis Carroll, conversa com Alice sobre a liberdade para se definir o significado das palavras.

ALL THE KING’S MEN

O problema da linguagem está no centro de todas as lutas em prol da abolição ou da conservação da alienação presente; é inseparável de todo o terreno destas lutas. Vivemos na linguagem como no ar poluído. Ao contrário do que julgam as pessoas espirituosas, as palavras não brincam. Não fazem amor, como acreditava Breton, a não ser em sonhos. As palavras trabalham, por conta da organização dominante da existência. E todavia não estão completamente automatizadas; para a infelicidade dos teóricos da informação, as palavras não são em si mesmas “informacionistas”1; há nelas forças que se manifestam, forças estas que podem frustrar os cálculos. As palavras coexistem com o poder numa relação análoga àquelas que os proletários (tanto no sentido clássico como no sentido moderno do termo) têm com o poder. Empregadas por ele quase o tempo todo, exploradas por todo o sentido – ou falta dele – que pode ser delas extraído, as palavras continuam a lhe ser, de certa maneira, radicalmente alheias.

1 NE: A Teoria da Informação (ou Teoria Matemática da Informação), formulada pelos norte-americanos Shannon e Weaver no final da década de 40, esteve bastante em voga nas décadas seguintes como base dos estudos da comunicação. Segundo essa teoria, a unidade básica de informação é o bit; a “mensagem” circula por um “canal” entre “emissor” e “receptor”, convertida em “sinal”, e pode ser perturbada por um “ruído”. O modelo informacionista é também chamado de funcionalista.

O poder apenas fornece o falso cartão de identidade das palavras, impõe-lhes uma licença de passagem, determina o seu lugar na produção (onde algumas visivelmente fazem horas extras); entrega-lhes, por assim dizer, um contracheque. Devemos reconhecer a seriedade do Humpty Dumpty de Lewis Carroll ao considerar que toda a questão, ao se decidir sobre o emprego das palavras, reside em “saber quem será o dono” delas; em mais nada. E ele, um patrão socialmente responsável neste quesito, afirma que paga hora extra àquelas que emprega muito. Devemos pois entender assim o fenômeno da insubmissão das palavras, a sua fuga, a sua resistência aberta, que se manifesta em toda a escrita moderna (de Baudelaire aos dadaístas e a Joyce) como sintoma da crise revolucionária global que se registra na sociedade.

Sob o domínio do poder, a linguagem designa sempre algo que não o autenticamente vivido. É precisamente nisso que reside a possibilidade de uma contestação completa. A confusão tornou-se de tal ordem, na organização da linguagem, que a comunicação imposta pelo poder se desvenda como uma impostura e um embuste. Em vão um embrião de poder cibernético tentará colocar a linguagem sob a dependência das máquinas que ela mesma controla, de maneira que a informação se torne a única comunicação possível. Mesmo neste terreno manifestam-se resistências, e podemos considerar a música eletrônica como uma tentativa, obviamente ambígua e limitada, de combater a relação de dominação, desviando as máquinas em proveito da linguagem. Mas a oposição é muito mais geral, muito mais radical. Denuncia toda a “comunicação” unilateral, tanto na velha arte como no informacionismo moderno. Convoca a uma comunicação que arruíne todo e qualquer poder separado. Onde de fato houver comunicação, deixará de haver Estado.

O poder vive de receptação. Não cria nada, só captura. Se ele criasse o sentido das palavras, não haveria poesia, haveria apenas “informação” pragmática. Ninguém poderia jamais expressar oposição na linguagem e toda a recusa seria exterior a esta, seria puramente letrista. Ora, o que é a poesia senão o momento revolucionário da linguagem, e, como tal, inseparável dos momentos revolucionários da História, bem como da história da vida pessoal?

O cerco do poder sobre a linguagem é semelhante ao cerco que exerce sobre a totalidade. Só a linguagem que tenha perdido qualquer referência imediata à totalidade pode fundamentar a informação. A informação é a poesia do poder (a contra poesia da manutenção da ordem); é a falsificação mediatizada do que existe. Inversamente, a poesia deve ser compreendida como comunicação imediata no real e modificação real deste real. Ela não é outra senão a linguagem liberta, a linguagem que reconquista a sua riqueza e, desfazendo os seus signos, ao mesmo tempo reconquista as palavras, a música, os gritos, os gestos, a pintura, a matemática, os fatos. A poesia depende, portanto, do maior grau de riqueza em que, em um determinado estágio da formação econômico-social, a vida pode ser vivida e transformada. Torna-se assim inútil precisar que esta relação da poesia com a sua base material na sociedade não constitui uma subordinação unilateral, mas sim uma interação.

Reencontrar a poesia pode confundir-se intimamente com reinventar a revolução, como o provam tão claramente certas fases das revoluções mexicana, cubana ou congolesa. Entre os períodos revolucionários durante os quais as massas acessam a poesia através da ação, podemos pensar que os círculos da aventura poética continuam a ser os únicos lugares onde subsiste a totalidade da revolução, como virtualidade irrealizada mas próxima, sombra de uma personagem ausente. De modo que aquilo a que chamamos aventura poética é difícil, perigoso e, seja como for, nunca garantido (na realidade, trata-se da soma dos comportamentos quase impossíveis numa dada época). Só podemos ter certeza de que já não é a aventura poética de uma época a sua falsa poesia reconhecida e autorizada. Assim, apesar do surrealismo, no tempo de seu assalto contra a ordem opressora da cultura e do cotidiano, ter podido justamente definir o seu armamento como uma “poesia sem poemas, se necessário”, trata-se agora para a IS [Internacional Situacionista] de uma poesia necessariamente sem poemas. E tudo o que dizemos da poesia em nada diz respeito aos atrasados reacionários de uma neoversificação, ainda que alinhados com os menos velhos dos modernismos formais. O programa da poesia realizada consiste em nada menos que criar ao mesmo tempo os acontecimentos e a sua linguagem, de maneira inseparável.

Todas as linguagens fechadas – as dos grupos informais da juventude; as que as vanguardas atuais, no momento em que se buscam e definem, elaboram para sua utilização interna; as que, outrora, transmitidas em objetiva produção poética para o exterior, puderam chamar-se trobar clus ou dolce stil nuovo – têm como fim e resultado efetivo a transparência imediata de uma certa comunicação, do reconhecimento recíproco, do acordo. Mas tais tentativas são expressão de agrupamentos restritos, de um modo ou de outro isolados. Os acontecimentos que estes puderam preparar, as festas que entre si puderam organizar, tiveram sempre de permanecer nos mais estreitos limites. Um dos problemas revolucionários consiste em articular estas espécies de sovietes, de conselhos de comunicação, a fim de inaugurar por toda a parte uma comunicação direta, que já não precise recorrer à rede de comunicação do adversário (ou seja, à linguagem do poder) e possa assim transformar o mundo segundo seu desejo.

“A beleza está na rua”

Não se trata de pôr a poesia a serviço da revolução, trata-se de pôr a revolução a serviço da poesia. Só assim a revolução não trai o seu projeto. Não iremos reeditar o erro dos surrealistas, que se puseram a seu serviço quando justamente já não havia revolução alguma. Ligado à lembrança de uma revolução parcial rapidamente abatida, o surrealismo tornou-se também rapidamente um reformismo do espetáculo, a crítica de uma certa forma do espetáculo reinante empreendida no interior da organização dominante deste mesmo espetáculo. Os surrealistas parecem ter negligenciado o fato de que o poder impõe sua própria leitura a qualquer melhoramento ou modernização interna do espetáculo, uma decodificação cujo código ele mesmo detém.

Toda revolução nasceu na poesia, começou a ser desencadeada pela força da poesia. Este fenômeno escapou e continua a escapar aos teóricos da revolução – é certo que ninguém pode compreendê-lo se continuar a agarrar-se à velha concepção da revolução ou da poesia –, mas foi em geral sentido pelos contrarrevolucionários. Porque a poesia, onde quer que exista, mete-lhes medo; teimam em livrar-se dela com vários exorcismos, do auto-de-fé à investigação estilística pura. O momento da poesia real, que “tem o tempo todo à sua frente”, pretende sempre reorientar, segundo os seus próprios fins, o conjunto do mundo e o futuro todo. Enquanto durar, as suas reivindicações não poderão ser comprometidas. Põe em jogo as dívidas da História que não foram pagas. Fourier e Pancho Villa, Lautréamont e os dinamiteiros das Astúrias – cujos sucessores inventam agora novas formas de greve –, os marinheiros do Cronstadt ou de Kiel, e todos que, por esse mundo afora, conosco e sem nós, preparam-se para lutar em prol da longa revolução, são também os emissários da nova poesia.

A poesia é cada vez mais claramente, enquanto lugar vazio, a antimatéria da sociedade de consumo, porque não é uma matéria consumível (segundo os critérios modernos do objeto consumível: aquele que tem o mesmo valor para uma massa passiva de consumidores isolados). A poesia não é nada ao ser citada, só pode ser desviada, posta de novo em jogo. O conhecimento da velha poesia não passa de um exercício universitário, decorrente das funções globais do pensamento universitário. E a história da poesia é apenas uma fuga diante da poesia da História, se por este termo entendermos não a história espetacular dos dirigentes, mas sim a da vida cotidiana e do seu alargamento possível; a história de cada vida individual, da sua realização.

Não devemos permitir nenhum equívoco sobre o papel dos “conservadores” da poesia antiga, dos que aumentam a sua difusão à medida que o Estado, por razões muitíssimo diferentes, faz desaparecer o analfabetismo. Estas pessoas representam nada mais que um caso particular dos conservadores de toda a arte dos museus. Uma grande quantidade de poesia é normalmente conservada no mundo. Mas em lado nenhum se veem os lugares, os momentos e as pessoas para a reviverem, comunicarem, utilizarem. Isto só pode ser realizado através do desvio, porque a compreensão da antiga poesia mudou tanto ao perder como ao adquirir conhecimentos; e porque a antiga poesia, a cada momento em que é de fato reencontrada, é posta perante acontecimentos particulares, o que lhe confere um sentido amplamente novo. Mas, sobretudo, uma situação em que a poesia é possível não poderia restaurar nenhum fracasso poético do passado (sendo este fracasso aquilo que resta, invertido, na história da poesia como êxito e monumento poético). Ela tende naturalmente à comunicação, e às chances de soberania, de sua própria poesia.

Estritamente contemporâneos da arqueologia poética que restitui seleções de poesia antiga recitadas em disco por especialistas, para o público do novo analfabetismo constituído pelo espetáculo moderno, os informacionistas assumiram a empreitada de combater todas as “redundâncias” da liberdade para simplesmente transmitirem ordens. Os pensadores da automatização visam de modo explícito um pensamento teórico automático, por fixação e eliminação das variáveis que ocorrem na vida e na linguagem. Mas não param de aparecer moscas em sua sopa!2 As máquinas de tradução, por exemplo, que começam a assegurar a uniformização planetária da informação e ao mesmo tempo a revisão informacionista da antiga cultura, são vítimas de seus programas preestabelecidos, aos quais necessariamente escapa toda e qualquer nova acepção de uma palavra, bem como as suas ambivalências dialéticas passadas. Assim, a vida da linguagem – associada a cada novo avanço da compreensão teórica: “As ideias melhoram. E disso faz parte o sentido das palavras.” – se vê expulsa do espaço mecânico da informação oficial, mas, ao mesmo tempo, o pensamento livre pode se organizar com vista a uma clandestinidade incontrolável pelas técnicas da polícia informacionista. A busca de sinais indiscutíveis e de classificação binária instantânea marcha claramente no sentido do poder existente, e há de ser alvo da mesma crítica. Até nas suas formulações delirantes os pensadores informacionistas se comportam como desajeitados precursores patenteados do futuro que escolheram, sendo justamente isto o que modela as forças dominantes da sociedade atual: o reforço do Estado cibernético. São eles os servos de todos os suseranos do feudalismo tecnológico que agora se consolida. Nas suas piadas não há inocência: eles são os bobos do rei.

2 NT: O trecho original é “Ils n’ont pas fini de trouver des os dans leur fromage!”, que alude a um problema, uma dificuldade insistente. Uma tradução literal em português seria “Mas eles não param de encontrar ossos em seu queijo!”.

A alternativa entre o informacionismo e a poesia já não diz respeito à poesia do passado; da mesma forma, nenhuma variante daquilo em que se tornou o movimento revolucionário clássico pode agora, em lugar algum, ser considerada uma alternativa real à organização dominante da vida. É da mesma avaliação que extraímos a denúncia de um desaparecimento total da poesia nas antigas formas em que pôde ser produzida e consumida, e o anúncio do seu retorno em formas inesperadas e operantes. A nossa época já não tem de escrever instruções poéticas, tem de as executar. _

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