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A guerra invisível e o facão no rosto do desenvolvimentismo

O ato guerreiro de Tuíra, para além das chaves de leitura convencionais, se recusa a falar a linguagem política dos brancos e deve ser lido a partir dos próprios pressupostos da luta indígena

O ato guerreiro de Tuíra, para além das chaves de leitura convencionais, se recusa a falar a linguagem política dos brancos
e deve ser lido a partir dos próprios pressupostos da luta indígena

Salvador Schavelzon

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Qual o efeito de uma ação simbólica, como aquela que protagonizou Tuíre em 1989, quando encostou um facão no rosto do diretor da Eletronorte?

O que nos diz essa ação hoje, depois que a represa de Belo Monte foi construída e inúmeras hidrelétricas, dutos, estradas e plantações avançam sem parar sobre a Amazônia?

É apenas um gesto performático que representa uma oposição política, nos remetendo assim ao campo da política institucionalizada para entender seu sentido? Ou podemos ver no gesto uma força que fala desde outro lugar?
Entre as populações tradicionais do Brasil e o desenvolvimento econômico promovido pelo poder econômico e o Estado, existe um conflito. Podemos dizer que os conflitos têm uma dimensão pragmática e material, e outra dimensão simbólica, ritualizada, formal. Nesse sentido, a ação simbólica pode ter efeitos práticos numa negociação, e simbólicos dentro de um campo de disputa entre os índios, as empresas e o Estado.

Os índios têm sabido se posicionar no cenário político nacional, traduzindo sua resistência em demandas legislativas, por políticas públicas e garantia de direitos.

Mas os conflitos são também vividos nas profundezas do ser, individual ou coletivo, no corpo e na constituição subjetiva que nos determina. No caso dos povos indígenas, o ser coletivo se define longe da linguagem do mundo formatado pela modernidade ocidental, a política nacional e a influência das relações capitalistas de produção, trabalho e mercado.

Nessa medida, o conflito político é também um confronto que está além da política. Não se reduz a um campo codificado de disputas ou relações determináveis. É o campo daquilo que não pode ser entendido, organizado e classificado pela racionalidade dos conflitos internos em um mundo político convencional. A sua política, assim, aparece como grito, violência sem forma e sem sentido. Só assim se manifesta uma civilização que de fato não é sintetizável e inteligível em termos da outra.

Quando o conflito avança para além da disputa de interesses políticos mais diretos, e exprime a oposição entre mundos, histórias e experiências vividas, memórias e espaços essenciais de funcionamento social, os símbolos podem superar a força de uma simples representação, ou ritualização, do confronto político, mobilizando e fazendo presente uma verdade material em ato.

Um símbolo, assim, vai além da representação de posições políticas ritualizadas ou da simbolização metafórica de algo ausente na situação. O ato simbólico pode ser entendido como uma bomba que, jogada contra o vidro de um prédio, se introduz, gerando um incêndio que pode fazer esse mundo interno do prédio – fechado, estruturado, separado do fora – arder.

As lutas indígenas têm essa potência. Trazem outro mundo e se impõem fortemente, ativando essa realidade ancestral que nunca deixa de se reinventar e estar.

Não solicita apenas “inclusão”, “participação” no mundo dos outros. Não é gesto estético que passa a formar parte de uma sociedade multicultural que incorpora sempre de forma controlada, localizada e tergiversada.

O gesto guerreiro encontra sua força numa civilização não subsumida pelo capitalismo e pela modernidade de matriz europeia. Faz essa civilização estar presente, como possibilidade e realidade alternativa, na forma da resistência e insubordinação.

Os povos indígenas podem ter tido seus sistemas de organização social desarticulados, suas roças tomadas e territórios invadidos, mas se mantêm como espaços de diferença que sempre encontram a forma de continuar, fugir, se refazer.

Numa guerra de conquista que leva séculos, a vida indígena convive e se encontra com a civilização invasora. Às vezes é incorporada, desarticulada ou arrasada. Às vezes também compõe com ela territórios intermédios de convívio. Mas também existe autônoma, como virtual-real que se mantém nas margens, invisível, ou que parte para o confronto e pode nesse mesmo ato de guerra, existir.

O gesto de guerra é em si mesmo um ato guerreiro, de materialização da sociedade indígena contra o Estado, com efeitos materiais que não somente representam, mas também performam e criam essa possibilidade de mundo não moderno, não subordinado, não conformado a entrar nos mecanismos de negociação de compensações por obras.

A força do gesto da Tuíre, na mesma direção de muitas lutas ameríndias do continente, não reivindica compensação. Ele simplesmente diz não. Recusa. Foge. Nega com um ato. O gesto é guerreiro porque se opõe sem medir consequências nem se rebaixar a falar na língua do outro. Ao mesmo tempo, ele pode ser um símbolo que nos mobiliza do outro lado da fronteira. Na sociedade dos brancos, onde também abrimos trincheiras contra os mesmos inimigos que cercam o povo Kayapó.

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Qual é a guerra da Tuíre? Ela não é uma guerra estatal ou entre nações. O povo Kayapó não se encontra em guerra com o Estado brasileiro, embora este tenha sido governado sempre pelos poderosos que questionam o mundo Kayapó.

O poder que enfrenta o povo Kayapó não o questiona quando é considerado folclore, “cultura”, ou “diversidade que compõe o povo brasileiro”, mas se opõe a um mundo Kayapó levado a sério, com outro tempo e espaço, com outras formas de sociedade/natureza que interfiram na lógica capitalista da exploração, espoliação e valor.

A luta dos índios no Brasil também não constitui uma guerra de guerrilhas, nem uma luta anticolonial que busca expulsar os invasores para criar uma nação independente no coração da floresta. Os Kayapó, e outros povos indígenas, não buscam disputar o controle do poder político da sociedade.

A guerra de Tuíre é uma guerra não declarada e, portanto, sem direito a tréguas, armistícios, intercâmbio de prisioneiros ou processos de paz. A guerra que ameaça os povos tradicionais tem para o mundo do poder branco e invasor o nome de “paz”.

Da colônia à república, da república velha aos distintos gestores do capitalismo no Brasil, a pacificação modifica as linguagens com que se apresenta, incorpora novos personagens nas castas aristocráticas ou de elite, reconhece novos direitos e permite, inclusive, uma certa abertura e capacidade de circulação que situações de poder anteriores bloqueavam.

Mas toda pacificação não demora muito em se constituir como nova centralização e busca de monopólio. Os povos indígenas viram isso acontecer muitas vezes. É uma guerra perigosa porque se apresenta como formas de vida mais convenientes, como progresso, liberdade, civilização. A guerra que ameaça a sociedade indígena se apresenta como possibilidade para empreender, receber benefícios do Estado, se integrar num mundo onde nada falta e tudo é confortável, como uma propaganda de TV.

O último embate, pós-ditadura, neoliberal, globalizado, se mostra especialmente perverso. Reserva para os índios o lugar da mercadoria cultural. Não outorga mais o lugar de passado da nação nascente, também não trata do índio a civilizar. Os poderes políticos da formação de nação retrocedem e apenas contam o que pode circular como discurso, como mercadoria, como imagem espetacular sem conteúdo, numa sociedade que se imagina como grande mercado sem fora.

O fim da sociedade da floresta tem um rosto violento, de extração de recursos naturais que secam a terra e matam a vida, com o qual o convívio cosmopolítico de seres não humanos se efetua. Como exorcismo que também a sociedade dos brancos propõe da espiritualidade da floresta, a colonização mostra uma face bélica inocultável.

Mas a guerra também se apresenta de forma amiga. Como benefícios e integração num mundo avançado. É contra essa forma de invasão contínua e conquista invisível que é preciso mostrar o facão.

Simbolizando a oposição a um mundo de energia, progresso e desenvolvimento, Tuíre e os povos indígenas mostram que estão atentos e bem cientes das distintas formas com que a guerra se apresenta como impossibilidade de existir de todo um mundo que não é apenas humano e ameaça o território não apenas em termos econômicos.

O embate que hoje ameaça as populações indígenas, camponesas, ribeirinhas é o da imposição de uma forma de vida que transforma tudo em mercadoria sem saber bem para quê. É um sistema econômico e social contrário à vida, que acumula, produz, desfloresta, ocupa, cerca, vende, mata e desconhece, nega e descaracteriza tudo que não se adapte a esse funcionamento e organização de uma ordem social unificada.

A guerra que enfrentam os índios é a de uma ordem sem ideologia, sem história, sem sentido, a não ser aquele dos indivíduos que concorrem para obter mais, das empresas que buscam se expandir numa fuga desesperada para nenhum lugar, onde quem não escapa é alcançado pelas dívidas, pela carreira onde todos devem superar os outros, inferiores, lentos, incapacitados, para chegar antes, para serem melhores. Do outro lado, para quem não corre e não deixa tudo no plano da autovalorização, resta o deserto que o crescimento econômico e a busca por produzir mais vão deixando por onde passam.

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O que pode ser hoje uma luta indígena, à qual possamos vir a somar, conseguindo não ser vetores da incorporação deles ao mundo que ainda eles olham de fora?

Poderemos nós também olhar esse mundo de fora?

Poderemos abrir essas formas fechadas para nós, que impõem individualismo, concorrência e narcisismo por todo lado… num regime aberto para o outro, da relação e do gosto antropofágico pelo diferente?
Poderemos ver a força atual, e não simbólica, ritual, folclórica nem cultural, de um gesto, de uma ação, e de formas alternativas vividas por eles, na sua constituição coletiva da pessoa, na imaginação perspectivista e multinaturalista que ainda circula na cosmopolítica que está além da política e que não pode nunca ser traduzida para nossa política?

Como entender, na chuva contínua de informações e dados, a importância de um símbolo como Tuíre, a índia que mostrou que eles resistem, apesar da força dos inimigos, com dignidade e força, não como símbolo estético e espetacular que se soma a essa chuva de informação, mas na abertura de possíveis para eles e para nós – desde que saibamos abandonar tudo aquilo que levamos mesmo sem querer e que faz parte da impossibilidade do mundo deles?

Como fazer com que esse mundo apareça, não seja eclipsado na fragmentação que costumamos impor entre o que seria político, econômico, do campo das artes, das formas culturais, da religião, da espiritualidade, da economia e do que tem valor ou não?

Cosmopolítica de uma floresta habitada, num mundo onde tudo é conexão e não separação… tudo está feito das mesmas forças e formas e tensões… onde o universo está em nós e nós no universo…

Por isso a realização de uma grande obra, estrada, jazida de mineração, porto, barragem, hidrelétrica, não é apenas uma intrusão física, que invade um território. Ela também invade um mundo. Não interrompe uma cultura, que faz do jeito deles o que nós fazemos do nosso. Interrompe um mundo, onde a própria forma de estar no mundo, um tempo, um espaço, se articulam de forma diferente.

Podemos fazer, no Brasil, com que Belo Monte e todos os crimes civilizacionais do Estado e do poder econômico não sejam esquecidos?

Que a floresta e uma sociedade que não se opõe à natureza não se dilua como simbologia retórica! Que seja simbologia que cria mundos e se organiza como materialidade de outros regimes de vida!

Entre a antropofagia e a guerra, o espírito indígena sabe tecer uma forma social que incorpora, sintetiza, processa e dialoga com o mundo do qual faz parte, mas também se opõe, em defesa.

Do outro lado, destruição da floresta e das condições de existência de outras sociedades…

A morte de um índio… de um rio, de um guerreiro…

Somos contemporâneos de uma luta de empobrecimento do mundo. O capitalismo se expande de acordo com uma lógica própria de valorização e lucro que é contra a vida.

Do outro lado encontramos quem diz “não!”. O facão do povo Kayapó, na mão valente da Tuíre. É um símbolo que nos coloca o desafio de criar outro mundo onde caibam muitos mundos e onde o desenvolvimento destruidor do capitalismo seja desarticulado pelas formas selvagens de luta, de vida, e de bem viver comum. _

Se preferir, baixe o PDF da revista Tuíra #01.

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