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A democracia securitária em meio à pandemia e uma nota sobre a revolta e o militantismo

As diversas faces do avanço dos aparelhos de segurança na gestão da pandemia no Brasil e o fogo da antipolítica que recusa o incremento das sociedades de controle.

As diversas faces do avanço dos aparelhos de segurança na gestão da pandemia no Brasil e o fogo da antipolítica que recusa o incremento das sociedades de controle

 

 

Por Acácio Augusto

 

 

 As ações de Estado e as violências regulares de polícias, prisões e das Forças Armadas no Brasil não sofreram grandes transformações durante o que foi declarado, em março de 2020, como uma pandemia. Após mais de um ano nesta situação, mesmo com o início da vacinação, há sinais que apontam para desdobramentos duradouros e catastróficos no Brasil. De maneira geral, como quase tudo durante este período excepcional que estamos vivendo, a crise sanitário-securitária apenas intensificou e/ou aprofundou situações e intervenções que já eram feitas pelo Estado e por seus agentes de segurança, ou seja, serviu como mais um meio de ampliar e intensificar suas violências. A crítica mais comum à conduta e às medidas do governo brasileiro desde o início do espalhamento das infecções por Covid-19 é dizer que este teve uma postura negacionista. Isso é dito sobretudo por conta das declarações do presidente Jair Bolsonaro e dos membros de seu governo e aliados políticos, que trataram a emergência da doença como uma gripezinha ou mesmo sugeriram que ela seria uma invenção chinesa com motivações geopolíticas e geoestratégicas. Embora o negacionismo seja, em parte, verdade, não corresponde totalmente à realidade. Se não podemos falar em transformações nas tecnologias de poder com a emergência dessa declarada pandemia, mas só em intensificações e ampliações, essas se dão de forma muito mais complexas do que meramente uma disputa discursiva entre grupos políticos (no governo) que negam seus efeitos e grupos políticos (de oposição ao governo) e manifestações da sociedade que tratam a doença de forma correta.

A forma mais precisa de caracterizar como o governo brasileiro lidou com o que se tornou uma crise sanitário-securitária, que se soma ao governo de crise em que vivemos, é dizer que ele teve uma postura ambígua e buscou gerir a situação de forma a não produzir prejuízos políticos ao seu projeto e aos seus interesses imediatos e de curto e médio prazos. E, de certa maneira, o governo brasileiro conseguiu seu objetivo, pois, segundo as pesquisas de opinião realizadas com regularidade, sua aprovação e reprovação varia muito pouco, mesmo entrando no terceiro ano de mandato e muito contestado por diversos grupos sociais. Institucionalmente, a cada nova crise produzida, há acomodação nas relações com os outros poderes, que se revelam conflituosas no início, mas sempre encontram negociações possíveis. Se, de um lado, o governo lançou mão de um discurso crítico às medidas de isolamento social, alegando proteger a liberdade de circulação das pessoas e temendo os impactos econômicos de uma paralisação das atividades ordinárias; de outro lado, o governo tomou uma série de medidas que foram operadas, principalmente, pelo engajamento das forças de segurança, especialmente o Exército e as forças policiais. Isso é tão evidente que o então Ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, era um general da ativa de três estrelas do Exército Brasileiro. Dentre os requisitos para sua seleção à frente do ministério, anunciada de forma interina e mantida mesmo depois de diversas ações desastrosas do ministro, estaria sua destreza em controle logístico. Habilidade supostamente demonstrada quando chefiou a Operação Acolhida, ação do Exército brasileiro para gerir a chegada de refugiados venezuelanos, ainda no governo Michel Temer, iniciada em fevereiro de 2018 (1). O próprio general-ministro, mesmo admitindo que até assumir o cargo nem sabia o que era o SUS (Sistema Único de Saúde), se gaba por ser um perito em questões de logística.

No entanto, esse recrutamento governamental entre as Forças Armadas não é um efeito dessa crise sanitário-securitária, mas caraterística regular do governo Bolsonaro, que emprega cerca de 6 mil militares em cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão do governo federal, desde que tomou posse em janeiro de 2019 (2). Além do presidente eleito, ex-capitão do exército, postos-chave como os Ministérios da Casa Civil, da Infraestrutura e o Gabinete de Segurança Institucional, são ocupados por membros do partido militar (3), forma com que alguns pesquisadores das relações civis-militares designam a composição do campo político governamental liderado por Jair Bolsonaro. Em geral são militares da reserva com passagem pela Minustah (4) no Haiti ou com histórico de atuação política, como o ex-Chefe da Casa Civil e ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, que liderou a intervenção federal militarizada na pasta de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, quando ainda era oficial da ativa, no início de 2018, durante o governo de Michel Temer. Neste período a vereadora Marielle Franco (PSOL) foi executada por ex-policiais militares, sob circunstâncias até hoje não esclarecidas plenamente.

No LASInTec (Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), acompanhamos com um grupo de pesquisadores, via sites oficiais do governo e a imprensa, como se deu o emprego das forças de segurança durante a pandemia. O número de mortes em decorrência da infecção ultrapassa 575 mil pessoas (5) e a onda de infecções, após mais de um ano, não dá sinais de recuo. Apesar disso, o país vive um clima de esgotamento que faz com que a maioria das pessoas relaxem as medidas de distanciamento social e os governos dos estados retomem atividades, como abertura de centros comerciais e academias de ginástica. Além do fato de que, para uma parcela significativa da população (a mais pobre), o distanciamento social foi impossível por todo o período, devido às imposições dos chamados serviços essenciais. A coleção dos nossos boletins pode ser consultada em nosso site (6): neles compilamos as notícias, medidas governamentais e análises de pesquisadores sobre a pandemia com foco em medidas securitárias e de controle social nos meses de março, abril, maio e junho de 2020, buscando um acompanhamento semanal dos eventos.

Esse texto pretende expor analiticamente, algumas de nossas conclusões seguindo os cinco tópicos que usamos para dividir nossos boletins. Essas conclusões nos levaram a algumas caraterizações do que chamamos de democracia securitária: a colonização da política pela segurança.

A emergência de lutas anti-segurança em todo planeta, mesmo em meio a pandemia, como as iniciadas nos EUA após o assassinato de George Floyd e as que ocorreram na Colômbia, nos levou a interromper a excepcionalidade dos boletins focados nos efeitos securitários da pandemia para continuarmos por outro caminho, dessa vez regular. Criamos um boletim de caráter quinzenal, focado nas lutas e em análises e proposições anti-segurança e que apontam para a desativação dos dispositivos de segurança. O primeiro número introduz os debates sobre a abolição da polícia (7). Ao final, um breve comentário sobre qual a relação do militantismo com essas lutas anti-segurança que se apresentam de forma intermitente em diversas partes do planeta.

EFEITOS DA PANDEMIA NAS TECNOLOGIAS DE GOVERNO E SEGURANÇA

O primeiro tópico de nosso boletim sobre a segurança na pandemia chama-se “Democracias securitárias e medidas de exceção”. Ele sistematiza e expõe as medidas de monitoramento institucional por parte de governos, organizações da sociedade civil, fundações e institutos de pesquisa, que evidenciam o nível e amplitude das políticas de segurança contra as liberdades. Sob a alegação de combater o vírus e defender a vida, mas sem muitos efeitos de contenção da contaminação, essas medidas acionam dispositivos securitários de exceção sem alterar a forma democrática do governo. São medidas que compõem o dispositivo monitoramento como prática comum das democracias securitárias. Mobilizando, de forma articulada, política democrática, participação da sociedade civil e engajamento militar, seus efeitos políticos muitas vezes auxiliam na justificava das medidas de segurança, pois, ao fornecerem parâmetros de aplicação e acompanhamento dessas medidas, em tese, “preservam padrões democráticos” e deixam o “povo vigilante contra as suas ameaças”, enquanto os dispositivos de segurança se expandem e se diversificam. Para além da situação de pandemia, o que temos no Brasil é um governo formalmente democrático que usa os agentes de segurança para exercer autoritarismo e um racismo de Estado que funciona como poder de morte sobre uma parte das pessoas. O importante a ser ressaltado é que essas práticas, apesar de intensificadas com esse governo, já se configuravam como modus operandi da democracia no Brasil desde a chamada abertura política e a Constituição de 1988, por isso chamá-las de democracia securitária. Há momentos de intensificação e recuos da violência e da letalidade, mas há elementos suficientes para afirmar que a triangulação entre democracia judicializada, participação estimulada e proliferação de dispositivos de segurança é a forma de funcionamento do governo contemporâneo.

Para retornar ao exemplo do Ministério da Saúde, ele seguiu incorporando ainda mais oficiais das Forças Armadas, segundo dados de maio de 2020. Jorge Luiz Kormann, Marcelo Blanco Duarte, Paulo Guilherme Fernandes e Reginaldo Machado Ramos ocupam, respectivamente, as posições de diretor de Programa, assessor de Logística, coordenador-geral de Planejamento e diretor de Gestão Interfederativa e Participativa. Dos cargos de coordenação e chefia no ministério, destaca-se que Kormann já atuou nas áreas de gestão de hospitais militares e no Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), tendo assinado um manifesto do Clube Militar contra a Comissão da Verdade por considerá-la revanchista. Fernandes tem experiência de docência nas áreas de administração e economia em universidades, e Ramos já atuou como docente em universidades e instrutor na Polícia do Exército, consultor na mineradora Vale, coordenador de gestão e patrimônio do Ibama. No governo Bolsonaro, ele chefia a diretoria de Obtenção de Terras e Implantação de Projetos de Assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Poderia mobilizar outros exemplos que se encontram nos boletins sobre a pandemia e a segurança, mas apenas com esse caso no Ministério da Saúde é possível notar que não se trata exatamente de uma militarização do governo civil, mas de uma ocupação na política civil por militares, da ativa (em menor número) e da reserva (maioria). As justificativas governistas rechaçam as acusações de militarização de governo e ressaltam a formação militar e as experiências em gestão e logísticas em condições adversas, como a experiência que muitos militares acumularam no Haiti, participando da Minustah ou em convocatórias excepcionais, como a participação na segurança dos megaeventos em 2014 e 2016 e a Operação Acolhida em 2018. Assim, temos uma democracia em pleno funcionamento constitucional, mas com mais militares no governo que a ditadura civil-militar entre 1964 e 1985.

No segundo tópico, intitulado “Comunicados e declarações da ONU”, buscamos mapear a produção de recomendações da principal organização internacional. Nesse conjunto de decisões e recomendações, é digno de nota que, apesar de reiterar a necessidade de distanciamento social e declarar que a saúde dos povos era prioridade, também se viu uma ambiguidade no discurso das Nações Unidas. O principal ponto a se destacar é discurso de guerra ao vírus (8). O secretário geral das Nações Unidas, António Guterres, declarou, em 19 de março de 2020, que “estamos numa situação sem precedentes e as regras normais não mais se aplicam”, explicitando que os possíveis constrangimentos aos autoritarismos dos Estados que pudessem derivar do Direito Internacional estão, no mínimo, limitados. Isso recoberto por um alegado “silêncio prudente”. Em pronunciamento de março de 2020, o secretário geral ainda reitera a linguagem da guerra ao declarar que “a Covid-19 é o nosso inimigo comum. Temos de declarar guerra a este vírus”. Guerra e mobilização contra um inimigo que nem se pode ver, mas que espalha seus efeitos de forma desigual e assimétrica, tornando ainda mais evidente a gestão das vidas e as políticas de morte, tendo como vetor a declarada pandemia.

Essa breve referência torna explícito que a preocupação central da ONU é a instabilidade econômica, não os efeitos humanos das infecções e a crise decorrente de seu espalhamento. Assim, ela convoca os Estados para mitigarem esses efeitos em prol da “proteção aos vulneráveis”. No campo específico das medidas de segurança, houve, por exemplo, a revisão dos protocolos de combate ao terrorismo, adaptando-os a nova situação. Nada de novo no que diz respeito ao papel da ONU em situações de guerra, como as conhecidas “intervenções humanitárias” e ajudas por cooperação técnica. O objetivo da ONU e das nações que a compõem é a promoção de resiliência – estratégias flexíveis de prevenção que identifiquem o que passa a ameaçar os valores e ideais sustentáveis para o capitalismo em escala planetária. Resiliência, que denota compartilhamento, responsabilidade, elasticidade, empatia, mas que escancara seu outro lado complementar pela tolerância zero como política de segurança pública planetarizada desde os 1990. Interessa, nessas ações de contenção, a sobrevivência de sua burocracia planetária, a saúde do capitalismo e a manutenção da atual ordem global.

No terceiro tópico, “Tecnologias de monitoramento”, buscamos mapear o uso das chamadas tecnologias eletrônicas de vigilância (9). Se em países asiáticos os controles computo-informacionais foram celebrados como via eficaz de controle de contaminações e infecções, no Brasil eles foram acionados como forma de expansão das formas de trabalho remoto e uma hiperativação dos aplicativos de entrega, chegando a gerar paralisações e greves inéditas desses trabalhadores precarizados (10).

Além das medidas de monitoramento diretamente relacionadas com os equipamentos computo-informacionais como smartphones e aplicativos digitais, uma série de práticas de monitoramento foram acionadas e/ou intensificadas com o objetivo de antecipar e conter possíveis revoltas entre as frações da população que são classificadas como vulneráveis. Essas práticas estão em sintonia com as recomendações da ONU. Esses monitoramentos passam por enunciados que convocam aos controles mútuos do cumprimento do distanciamento social ou da quarentena, viabilidade tecnológica de ensino à distância, ações de caridade para mitigar impactos econômicos e sociais entre os pobres nos bairros de periferia ou favelas, medidas judiciais para que presos cumpram pena em meio aberto, criação de abrigos e recolhimento compulsório de moradores de rua, ações de dispersão de festas populares e eventos religiosos, ações policiais em regiões que concentram usuários de drogas, formas de abordagem policial diversas, dentre outras medidas sob o imperativo de contenção das infecções pela Covid-19. Não cabe fazer juízo de valor sobre essas ações, mas importa registrar como o dispositivo monitoramento funciona na resposta a uma urgência, no caso, a colocada pela crise sanitária com efeitos de segurança. Também expõe como este dispositivo mobiliza práticas discursivas e não-discursivas que vão além do que se nomeia como “vigilância digital” ou “aparelhos eletrônicos de vigilância”. Assim se amplia, em meio à declarada pandemia, os controles e penalizações a céu aberto, como também produz formação de condutas do cidadão-polícia, ambos elementos da democracia securitária.

No quarto tópico, “Comentários e análises”, buscou-se mapear as leituras dos efeitos e impactos que estão ligados à Covid-19 oriundas de diversos campos do saber. Coube-nos atentar àqueles que estão mais próximos do campo social, dos efeitos políticos e, mais especificamente, securitários. A forma eufemística de tratar o confinamento, o distanciamento social, motivada por um decreto e/ou uma proibição, coloca a questão: qual vida queremos? Nesse sentido, há de se colocar em disputa um horizonte de transformações, não de contenção ou gestão dos viventes por meio de medidas de segurança.

Os  aparelhos  securitários  que  ganham  robustez  em  momentos de crise servem para gerir e monitorar a vida das pessoas, para salvaguardar o próprio sistema de segurança e não colapsar a capacidade de governo das condutas de Estados, empresas e associações da sociedade civil no capitalismo planetário. Acreditar que eles defendem a vida é, no mínimo, ingenuidade. A declaração de guerra contra o vírus só fortificou esses aparatos, bem como expôs como o Estado aciona uma espiral de medidas de exceção na forma de decreto-lei em favor do controle e administração da crise, em nome da saúde de todos. O boletim “(Anti)Segurança” busca verificar quais dessas medidas excepcionais se tornarão permanentes e como emergem as resistências à elas. Das muitas medidas já instaladas, a intensificação da exploração laboral pelo instituto do trabalho remoto parece já consolidada. Sem falar na expansão das tecnologias de vigilância eletrônica, alertada por vários pesquisadores desde o começo da pandemia.

Por fim, no tópico 5, buscamos indicar as ações de resistências anticapitalistas e antiestatais durante a pandemia. Resistência é um fenômeno da física que indica retenção ou bloqueio de um fluxo de energia, como as lâmpadas alógenas que retêm energia, gerando calor e luz. Talvez por isso, conscientes ou não, a mídia no Brasil veja a conduta do presidente e seus seguidores como resistência ao consenso planetário do combate ao vírus, do distanciamento social e das medidas de higiene e proteção. Nada mais equivocado por parte dos que assim pensam: as condutas do presidente e dos seus seguidores não geram nem luz, nem calor e em seu elogio da morte apenas revela uma outra faceta da disputa pelo controle da crise, a gestão dos viventes e a distribuição de mortes. Não há oposição, mas complementação em favor da manutenção do governo das condutas, do Estado, do Mercado e do capitalismo. Um consenso pela necessidade em assegurar a vida no planeta diante de uma ameaça fugidia, intangível e invisível.

Por isso indicamos no conjunto de nossos boletins algumas práticas e apontamentos que escapam a essa complementaridade supostamente contraditória. São iniciativas dispersas e descontínuas que afirmam a ação direta, a autogestão e o autocuidado sem temer o fim de um mundo que já não era bom de habitar; ele já estava em colapso. Um mundo em crise per-manente e que empurra os viventes a fazer escolhas infernais, como as que os médicos fizeram sobre quem deve viver ou morrer diante da escassez de leitos de UTI, da falta de oxigênio ou da quantidade de vacinas disponíveis. O registro dessas práticas, no conjunto dos boletins, além do contraste analítico, também funcionou como contraponto às ações de caridade e contenção das revoltas levadas adiante por empresas, fundações e ONGs. Eles criaram as condições para a emergência de revoltas de rua por grupos antifa no Brasil, antirracistas nos EUA, antipolícia na Colômbia e na Nigéria e pontos de retomada nos protestos de rua no Chile. Já vivem tempo suficiente sob essa declarada pandemia para afirmar que o saldo no Brasil é tenebroso: mais de 575 mil mortes, só decorrentes da Covid-19. A aposta de desgaste “natural” do governo, feita por muitos da oposição, não se confirmou; a presença de militares no governo se ampliou e se consolidou; a popularidade do presidente se estabilizou, sobretudo pelos efeitos do auxílio emergencial, os acordos com os poderes legislativo e judiciário e pela histórica tolerância da população brasileira às mortes em massa; a conduta autoritária do presidente foi retoricamente moderada na disputa com a imprensa e os outros poderes da república e, com isso, normalizada. Nada de novo. Enquanto isso, as Forças Armadas seguem sendo empregadas contra civis, um morticínio silencioso segue em curso nas prisões em todo país (onde até as visitas de parentes foram proibidas) e as polícias dos estados seguem como as que mais matam no planeta e, com ou sem pandemia, noticia-se que matou mais uma criança ou um jovem negro nas periferias de alguma cidade.

Uma realidade terrível, de terror, se confirma no Brasil: quem mais mata e promove terror, seja por ação ou inanição, é o Estado e todo seu aparato de segurança. Mas resistências intermitentes se manifestam aqui e ali, com potências de um militantismo no planeta e contra esse mundo da morte.

BREVE NOTA SOBRE A REVOLTA E O MILITANTISMO

A pandemia é uma relação social, muito mais do que um mero dado biológico e/ou viral, por isso seu acontecimento se impôs como uma encruzilhada social e política. Da mesma maneira, o dispositivo monitoramento é viabilizado pela expansão dos controles computo-informacionais, mas se operacionaliza como uma tecnologia política. O encontro desses dois elementos tem apontado até o momento para uma intensificação dos controles e a colonização definitiva de como amamos, nos relacionamos, aprendemos, fazemos sexo, vivemos e morremos.

Se estamos falando de uma relação social, há sempre a possibilidade de alguém, em algum lugar, em algum momento, produzir um desacerto, uma revolta. Neste instante a tela se apaga. O fogo consome e produz, depois vira brasa ardente a ser avivada. Responde ao intolerável dos controles e monitoramentos, desnorteando-os. Na eficácia tecnológica, multifacetária e polivalente do dispositivo monitoramento, desativá-lo totalmente é uma quimera, talvez uma utopia conservadora e democrática dos dias de hoje. Mas enfrentá-lo é sempre uma possibilidade. Enfrentar essa máquina de controle e morte é provocar o ingovernável, uma revolta antipolítica.

Durante  a  situação  de  pandemia  a  revolta  apareceu  em  diversos momentos, desde a disseminação de práticas de autocuidado até enfrentamentos e protestos de rua que se reinventaram diante da necessidade de cuidados mútuos (11).

Não cabe aqui dizer como fazer. Mas é possível, diante da defesa da vida como dado biológico, indicar a forma de vida que produz essa revolta: a vida militante. Ela não é esse ativismo contemporâneo que organiza as identidades por autodeclaração. Isso faz, especialmente no campo das redes sociais digitais, com que qualquer pessoa se declare pertencente a uma identidade política e nela se feche como em um bunker. A partir dessa fortificação, todos se defendem contra todos e atacam as alteridades que se encontra pelo caminho. Os próprios governos constituídos, hoje em dia, sobrevivem desse ativismo, da participação de seus apoiadores. Essa é uma das vias para compreender porque mesmo após vencer as eleições, muitos governos seguem em campanha por meio da atuação de seus ativistas. Como diz Deleuze, nas sociedades de controle, nada acaba, estamos sob o signo do inacabado, da formação contínua (12).

Esse ativismo  no  inacabado  é  o  extremo  oposto  do  que  Michel Foucault chama de militantismo, a partir da experiência transhistórica do cinismo antigo. Nessa formulação, o filósofo francês inclui, modernamente, os anarquistas. Na penúltima aula do curso “A coragem da verdade”, em 21 de março de 1984, ele oferece uma imagem muito poderosa desse militantismo: “seria a ideia de uma militância de certo modo em meio aberto, isto é, uma militância que se dirige a absolutamente todo mundo, uma militância que não exige justamente uma educação (uma paideía), mas que recorre a meios violentos e drásticos, não tanto para formar as pessoas e lhes ensinar, quanto para sacudi-las e convertê-las, convertê-las bruscamente. É uma militância em meio aberto no sentido que pretende atacar não somente este ou aquele vício, defeito ou opinião que este ou aquele indivíduo poderia ter, mas igualmente as convenções, as leis, as instituições que, por usa vez, repousam nos vícios, defeitos, fraquezas, opiniões que o gênero humano compartilham em geral. (…) Um militantismo aberto, universal, agressivo, um militantismo no mundo, contra o mundo” (13). Não se trata de preservar o mundo e a vida, mas de expandir e transformar.

Por isso, a situação de crise em todos os sentidos e como modo de governo exige um militantismo que, por meio da ação direta, atue como revolta antipolítica. Por isso, a atuação desse militantismo, nessa impaciência que dá forma a impaciência da liberdade, está em ações como a tática black bloc, a ocupação de prédios convertidos em centros sociais e moradias coletivas, as ações de autodefesa de grupos antifa e anarco-queer e toda forma de sexualidade dissidente que não reivindica reconhecimento, dos grupos do movimento negro que compreenderam e deram forma a máxima do Djonga: fogo nos racistas!

Trata-se de toda ação que, no momento em que é executada, não reconhece a pacificação da política de negociação e que, fatalmente, será acusada de radical. O que deriva disso são outros 500. Há uma imagem na dissertação de mestrado de Matheus Marestoni sobre junho de 2013: que os black bloc, ao retirarem as pedras portuguesas das calçadas para resistir às investidas das tropas de Choque da PM, estavam levantando a poeira dos mais de 500 anos de pacificação dos selvagens dessa terra (14). Vejam o que temos depois de junho, segue sendo. E isso é agonismo, não tem batalha final, é fogo! E esse fogo da antipolítica é que vai produzir a vida outra diante dessa vida do novo normal que a crise sanitário-securitária está produzindo.

Notas:

1 Sobre a Operação Acolhida, ver: https://www.gov.br/acolhida/historico/ Consultado em 15/10/2020. 
2 Laís Lis. “Governo Bolsonaro mais que dobra número de militares em cargos civis, aponta TCU” In Portal G1. Brasília, 17/7/2020. Disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/17/governo-bolsonaro-tem-6157-militares-em-cargos-civis-diz-tcu.ghtml Consultado em 15/10/2020. Consultado em 15/10/2020. 
3 Cf. LASInTec. “Militares na Política. Como se dá o engajamento militar no combate à pandemia no Brasil? – Painel 2”. Vídeo de Painel digital. Osasco: UNIFESP, 2020. Ver, em especial, exposição da profa. Suzely Kalil Mathias, que desenvolve o termo “partido militar” para se referir à organização política do governo. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=KDT91yDQve4 Consultado em 15/10/2020.
4 Acrônimo para Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti, liderada pelas Forças Armadas brasileira, que durou 13 anos (2004-2017), Cf. nota de enceramento publicada no site oficial do Ministério da Defesa: https://www.gov.br/defesa/pt-br/assuntos/noticias/ultimas-noticias/minustah-militares-brasileiros-retornam-do-haiti(Consultado em 20/10/2020).
5 Número atualizado em 23/08/2021
6 Ver https://lasintec.milharal.org/boletim/ Consultado em 15/10/2020.
7  Ver:  https://lasintec.milharal.org/boletim-antiseguranca/ Consultado em 15/10/2020.
8 Sobre essa relação ver Acácio Augusto. “Guerra e pandemia: produção de um inimigo invisível contra a vida livre” In Coleção Pandemia Crítica. Vol. 18, março. São Paulo: n-1, 2020. Disponível em https://www.n-1edicoes.org/textos/51 Consultado em 15/10/2020.
9 Sobre o que entendemos por “dispositivo monitoramento”, ver Edson Passetti et ali. Ecopolítica. São Paulo: Hedra, 2019.  
10 Para uma análise sobre o breque dos apps, ver Salvador Schavelzon. “A luta dos entregadores de aplicativo contra os algoritmos autoritários”. Publicado em El País Brasil. 20 de julho de 2020. Disponível em https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-07-25/a-luta-dos-entregadores-de-aplicativo-contra-os-algoritmos-autoritarios.html Consultado em 15/10/2020.
11 Para um inventário extenso dessas práticas anticapitalistas e antiestatais em todo o planeta, consultar os dossiês “A Luta é Pela Vida” partes I e II, com textos e relatos diversos. Disponível em https://faccaoficticia.noblogs.org/post/2020/04/13/a-luta-e-pela-vida-parte-ii/ Consultado em 1/7/2020.
 12 Gilles Deleuze. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. In: Conversações. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992

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