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As imagens que os olhos das crianças nos oferecem

Desenhos feitos por crianças Tukunas. Autor: Silvio Coelho dos Santos. Fonte: Museu Universitário Oswaldo Rodrigues Cabral
Por Prof. Dr. Cesar Donizetti Pereira leite
criaturas desenhadas sobre uma superfície feita de tábuas
Desenhos feitos por crianças Tukuna | Foto: Silvio Coelho dos Santos/Museu Universitário Oswaldo Rodrigues Cabral

Pelas crianças e pelas produções de imagens que estas nos apresentam vemos emergir um universo povoado de sons e ruídos, silêncios e focos – nítidos ou não – são rostos e pés e cabeças e chãos e babas e gosmas, são corpos que se apresentam perambulando, dançando, se misturando com outros corpos, se batendo, se tocando, irritando, confundindo. Corposcâmeras, câmerascorpos.

Como se o corpo pensasse, como se se pensasse pelo corpo. Pensamentos sem sentidos, rotineiros e ameaçados, há sempre a ameaça de um corpo invadindo outro, outros lugares, sempre a câmera pode ser parte do corpo e, se retirada, passa a ser amputada, passa a ser mutilada, passa a ser corpo mutilado, amputado. Nestas mutilações e incorporações de e em outros corpos, vemos baba, gosma, bafo, movimentos disformes, corridas, círculos. Temos vertigens nos corpos-movimentos que se apresentam.

Com as imagens que as crianças oferecem temos corpos produzindo pensamentos vertigens. Ao olhar para as imagens destas câmeras corpos de corpos pulando, correndo, se misturando, gritando, é isto que Deleuze chama de corpo cotidiano, “como isso que põe o antes e o depois no corpo, o tempo no corpo, o corpo como revelador no termo” (DELEUZE, 2007, p. 228).

Os movimentos destes corpos são ao mesmo tempo espaços fronteira e espaços sem fronteiras. Nos colocam em contato com uma relação do corpo com o tempo, com o fora, esse corpo que estando fora se estende no tempo que pode ser rápido ou lento, e as câmeras acabam sendo rápidas ou lentas, acabam mostrando os tempos rápidos e lentos, é como se de alguma forma mostrassem o antes e o depois.

As crianças pelas imagens nos mostram que as câmeras não são usadas apenas para filmar, para fotografar, mas como que para brincar as câmeras desaparecem como equipamentos e se re-aparecem como corpos, são assim usadas para explorar. As câmeras são ao mesmo tempo uma espécie de entre, uma forma de estar entre / no meio e uma extensão do corpo, as câmeras e as imagens são formas, modos de explorar o meio, o espaço, o tempo. São corpos explorando, montando e sendo montados.

A câmera, como forma de aprisionar corpos em memórias chip também liberta os corpos, extraindo corpos graciosos.
Mas, há outro pólo do corpo, outro vínculo cinema-corpo-pensamento. “Dar” um corpo, montar uma câmera no corpo, adquire outro sentido: não é mais seguir e acuar o corpo cotidiano, mas fazê-lo passar por uma cerimônia. Introduzi-lo em uma gaiola de vidro ou um cristal, impor-lhe um carnaval, um disfarce que dele faça um corpo grotesco, mas também extraia dele um corpo gracioso ou glorioso, a fim de atingir, finalmente, o desaparecimento do corpo visível […] é a imagem inteira que se mexe ou palpita, os reflexos se colorem violentamente (DELEUZE, 2007, p. 228).

Nestes movimentos as crianças apresentam a nós imagens que criam sensações vertigens.

Desta forma, pesquisar com crianças é experimentar em outro espaçotempo, é experimentar outro espaçotempo, é perder a certeza dos caminhos previstos e seguros, é ir na contra mão dos supostos espaços-tempos seguros dos axiomas e dos experimentos, deste projeto que funda a ciência moderna (Agamben 2005a).

Com as produções de imagens e com as próprias imagens produzidas pelas crianças, é como se estivéssemos a cada momento em uma escola diferente, uma escola inaugurada por cada click da câmera fotográfica, por cada start em uma gravação. Pelas imagens vemos nascendo sempre escolas marcadas pelo desmonte das estruturas pré-definidas pelos adultos. É como se, a todo momento em que vemos os filmes, as imagens, ficássemos esperando saber o que vem depois; a infância pela criança apresenta-nos um mundo de reticências, um mundo pontilhado de possibilidades, é como se as histórias e as narrativas fizessem emergir novas geografias dos espaço cartografados pelos povoamentos dos coletivos de crianças.

Dito de outro modo, pesquisar com crianças que produzem imagens no universo da Educação Infantil tem sido um contato com a abertura, o deslocamento em espaços e tempos. As crianças, pelas e com as imagens, apontam para outra espacialidade e outra temporalidade no e do universo escolar.

O que temos observado é que com crianças e com as produções de imagens que elas nos apresentam, vivemos em um efetivo processo de exposição, de afetação, de ex-periência. São deslocamentos pelos quais enveredamos por travessias que escapam às certezas dos experimentos, dos protocolos e dos modos de dizer e falar da criança, deslocamentos que nos fazem habitar outras temporalidades.

Se podemos dizer que há discursos e práticas modelizados por formas de pensar e agir com a criança, as imagens e a produção de imagens criam em nós um efetivo processo de desmodelização dessas formas, trazendo temporalidades distantes das cronologias lineares de suscetibilidades de fatos e de processualidades pré-formadas presentes na escola, espacialidades fora dos lugares seguros e previstos pelos discursos, pelas enunciações. Ou ainda, uma subjetividade pensada como algo produzido por processos de agenciamentos de enunciação.

A potência que encontramos nos processos de produção de imagens realizado pelas crianças, assim como nas próprias imagens é que, no trajeto de nossos estudos, temos podido experimentar que, com as “infâncias” que se constituem, podemos romper nossos lugares demarcados, na perspectiva de outros espaços, outras espacialidades. É como se as crianças, longe das amarras pré-definidas pelos currículos, pelas teorias de desenvolvimento mexessem no próprio currículo, nas próprias teorias, parece que com infâncias podemos ser o outro dos espaços, podemos ser estrangeiros, ter sensações estrangeiras, ter na infância uma estrangeiridade com as coisas, ter a estrangeiridade das coisas, se colocar na infância das coisas.

Na dinâmica dessas atividades, temos sido impelidos a não analisar, interpretar as imagens e nem tampouco os processos de produção das crianças, mas, temos sido provocados a “pensar com as imagens” e até mesmo a “pensar por imagens”. É como se as imagens das crianças convocassem um trabalho do pensamento que não passa pela representação, mas que cavam um fora, um interstício em imagens dogmáticas que temos da infância, da formação e do próprio espaço escolar. As produções de imagens pelas crianças e as próprias imagens abrem uma perspectiva de olhar o corpo infantil que habita todo o processo de pesquisa (corpo infantil das crianças, das professoras e dos pesquisadores).

São corpos retorcidos para focar, para desfocar, corpos aproximados para ver os detalhes, detalhes nunca vistos, nunca percebidos, detalhes de botões de camisas, de sujeira no nariz, de baba, detalhes de olhares rápidos, detalhes de cantos de paredes, de tetos, de pisos tortos, de janelas abertas. As imagens nos provocam a pensar que educar o olhar não é propriamente oferecer técnicas, conhecimentos, teorias e sentidos, mas lançar o corpo em uma aventura: ser colocado pelo corpo (das crianças e das imagens) em um movimento de afetação, como se olhar não fosse um privilégio do olho, mas produto do corpo que experimenta com as imagenscâmeras em cameraimagens.

Tanto no processo da pesquisa como na relação com o pensar a criança e a infância, esses movimentos nos retiram dos lugares prévios de dizer sobre infância e criança, as análises e interpretações demarcadas pelas descrições dos processos cognitivos e representativos sobre a criança e sobre as imagens. Isso nos leva a colocar ao menos duas questões centrais.

A primeira é indicada por uma perspectiva representacional no campo da linguagem imagética e pretende sempre atribuir um sentido às imagens e neste mesmo campo produzir sentidos e determinações acerca das próprias crianças que deve ser interpretada segundo aquilo o que quer dizer quando age criando, junto com o campo interpretativo um campo instrumental que se constitui na tentativa do adulto de interpretar a atividade infantil a partir de elementos de uma semiótica dominante que fixa a subjetividade, uma perspectiva que funciona por antecipação pois dispõe-se de uma imagem dogmática da criança, das imagens, dos sentidos, das afetações, dos gestos rápidos, do foco, do desfoco, do uso dos equipamentos de captação de imagens etc. Com essa imagem dogmática, faz-se circular toda uma modelização que permita ao professor e ao pesquisador interpretar e fazer circular sentidos dados em torno de crianças produzindo imagens.

Essa operação dá ao professor ao pesquisador modelos de interpretação, mas a preço de tirá-lo da relação com as crianças, de tirá-lo da própria infância, de separar a imagem daquilo que ela pode. Trata-se de um esforço de substituir o sensível pelo reconhecível apelando, pela interpretação, a uma racionalidade instrumental.

A segunda é que, nos processos de produção as crianças misturam corpos, misturam e cortam corpos. No movimento dessas pesquisas com imagens e crianças na educação infantil, marcado por essas sinuosidades, vemos algo que ganha um outro contorno: o ‘tempo’ ou “a temporalidade”. Ideias como as de fases, períodos, estágios, ou ainda a ideia de que evoluímos, tudo isso se organiza em uma esfera de uma modalidade de tempo. O tempo cronos, cronológico e linear. As narrativas fílmicas, assim como as práticas escolares, as pesquisas com as crianças, na maioria das vezes, nos oferecem como enredos um olhar constituído por essa modalidade de tempo sequencial, lógico, cronológico.

Porém, com as imagens produzidas pelas crianças nos vemos em outro deslocamento de tempo que ressoa como em “Ninfas” de Giorgio Agamben (2012, p. 21), não inscrevemos as imagens em um tempo, mas sim um tempo nas imagens. As imagens curtas, rápidas, disformes, confusas, imagens paradas, imagens vultos, imagens fantasmas, todas elas apontam para outros tempos que também habitam o universo infantil. São imagens que operam pelo estranhamento, pelo encontro com o não sentido, com a não representação e criam uma sensação estrangeira com a infância, com a criança, criam uma estrangeiridade em nós e na criança. As imagens infantis funcionam, assim, como o fora na própria imagem, e permitem problematizar por sua própria força todo o dogmatismo posto em jogo no movimento de fazer circular uma semiótica dominante que tudo quer representar, tanto na educação como na pesquisa.

Assim, pesquisar com crianças na Educação Infantil e oferecer as câmeras fotográficas e filmadoras é ser povoado pelos caminhos que as crianças produzem e que produzem a pesquisa e o pesquisar. Caminhos insistentes, caminhos experiências, caminhos chãos, que nos apresentam as crianças por suas imagens. Pesquisar com crianças é, já em si, um convite a outra modalidade de pesquisa, é um convite a pensar a pesquisa como experiência, como experimentação.

Assim, pesquisar com crianças e produção de imagens na Educação Infantil pode ser uma possibilidade de habitar o que ainda não é, o que ainda está por vir, de habitar a possibilidade do novo e nos perguntar: O que podem as imagens produzidas por crianças na educação infantil fazer torcer, fissurar, produzir mudanças, alterar em nós nosso modo de fazer pesquisa? O que podem as imagens produzidas por crianças na educação infantil fazer torcer, fissurar, produzir mudanças em nossos modos de nos relacionarmos com as crianças na escola?

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