A Escola de Ativismo realiza a série “10 anos de ativismos” analisando e debatendo as mudanças nas lutas políticas durante seu tempo de existência.

 Por Mario Campagnani (colaborou Velot Wamba)

Durante a Copa do Mundo de 2014, enquanto manifestantes eram atacados na Praça Saens Peña, torcedores de camisa da CBF tiravam fotos com a PM em frente ao Maracanã. Quem estaria nas manifestações de direita anos depois?

A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres... A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas”.

A mais igualitária e niveladora das obras, como descreve o cronista João do Rio no início do Século XX, segue até hoje com seu poder, glória ou mesmo tragédia de forma inabalável. Milhões de comentários do Twitter, stories do Instagram, textos ou textões do Facebook têm sua importância na medição de certa (in)satisfação da sociedade, mas é no encontro de corpos com sua obra que se conjura uma força que a “realidade virtual” – termo por si só contraditório – ainda ou talvez nunca dará conta. Em 29 de maio deste ano, as ruas voltaram a ser ocupadas por todo o país, e não mais manifestações de apoio à morte, à opressão, mas na luta pela vida. O lado oposto, todavia, não pretende abandonar esse espaço tão facilmente, como mostram as manifestações previstas para 7 de setembro, nas quais os dois lados estarão claramente definidos, numa reafirmação do protagonismo desse espaço na disputa política.

Porque se é certo que ela é de todos, é mais que justo admitir que ela não tem lado. Que está acessível para ser tomada por aqueles que estiverem dispostos a ocupá-la ou a resistir a isso, seja pela força de massas humanas ou de tanques e armas.  Na última década, as pautas, corpos e cores que ocuparam espaços foram variados e, diversas vezes, completamente antagônicos. Revisar  e analisar o que ocorreu é uma forma de compreender processos em andamento hoje, mas também de entender que um certo grau de incerteza é uma constante.

Um marco não apenas dos últimos dez anos, mas de todo o novo século certamente foram as famosas Jornadas de Junho, que a bem da verdade, começaram em abril de 2013 e foram até julho de 2013. O que começou inicialmente como manifestações pontuais contra mais um aumento de passagem do transporte público na cidade de São Paulo convocadas pelo Movimento Passe Livre (MPL), logo eletrificaram a insatisfação popular a esquerda e a direita, frequentemente para além dos partidos políticos estabelecidos. Pra se ter uma ideia da magnitude desse movimento multitudinal, no dia 20 de julho, a manifestação na cidade de São Paulo amealhou entre 1,25 milhão e 1,55 milhão de manifestantes. Durante as jornadas, inclusive, a Escola participou através de brigadas que contavam tanto com pessoas para registrarem os diversos pontos das imensas manifestações quanto com apoio jurídico e enfermeir@s para socorrer as pessoas vítimas da truculência policial. Com as Jornadas de Junho, inaugura-se um período onde tanto a esquerda – que tradicionalmente dinamizava as manifestações pós-Ditadura – quanto a direita vem tomando as ruas do país, com reivindicações das mais diversas.

Passados 8 anos daqueles protestos, o sentido do que as “Jornadas de Junho” representaram segue em debate. Para muitos, ali estava um “ovo” do que viria a ser o avanço da extrema-direita e a consequente eleição de Jair Bolsonaro. Essa responsabilização dos manifestantes que levantavam pautas progressistas – redução da passagem, os absurdos investimentos dos mega-eventos – pelo avanço da direita deixa de fora toda a complexidade sistêmica. Escutar os anseios e atender aos pedidos de então, que sim, não eram apenas por 20 centavos, poderia ter sido um caminho. A opção do governo federal, então sob controle do PT, assim como governadores e prefeitos, como Eduardo Paes no Rio e Fernando Haddad em São Paulo, foi outra, vide a defesa das empresas de ônibus, o crescimento das polícias militares estaduais e os retrocessos na legislação federal, com aprovações de medidas como a Lei Anti-terrorismo e dispositivos para facilitar a ocupação militar de territórios periféricos.

Junho de 2013. Fonte: Unisinos

Havia, é claro, pessoas de direita nas ruas então, mas as pautas protagonistas dos protestos eram de esquerda, indiscutivelmente. A análise de onde a direita se fortaleceu em 2013 não pode deixar de ver a responsabilidade das próprias instituições de Estado e daqueles que as controlavam. A lei da delação premiada, por exemplo, foi assinada por Dilma Roussef naquele ano.

A institucionalidade não foi criada para atender demandas diretas. Seus pesos e contrapesos tendem a manter o startus quo, algo inerente aos estados modernos. A criminalização das manifestações apenas seguiu o roteiro histórico. O que poderia ter sido uma oportunidade de uma “guinada à esquerda” acabou se tornando uma ampliação do Estado repressor, com seu viés direitista gritante.

Apesar dos duros ataques dos governos e da mídia, as manifestações continuaram em andamento, especialmente nas cidades-sede da Copa do Mundo de 2014. O Rio de Janeiro, em particular, sofreu mais que outros locais, pelos preparativos das Olimpíadas de 2016. A remoção de famílias pobres de comunidades como Vila Autodromo e Metrô Maracanã foi um dos principais motivos dos protestos nas ruas.

Se houve um 7×1 em campo, pode-se dizer que houve o mesmo nas ruas, mas com vitória “verde amarela”. Uma blitzkrieg (guerra relâmpago) que contou inclusive com detenções arbitrárias e criminalização de ativistas. A repressão certamente funcionou. O medo da brutalidade policial foi esvaziando cada vez mais a rua. A final da Copa ficou notabilizada pelo cerco da Praça Saens Peña, próxima ao Maracanã, onde manifestantes foram mantidos por horas encurralados, sendo atacados por bombas e tiros. Enquanto alguns eram bombardeados, havia aqueles, de camisa da CBF e ingressos na mão, que tiravam fotos com um Caveirão em frente ao estádio. Seriam ambos grupos de direita?

Junho de 2013. Fonte: Brasil de Fato

Os estudantes vão às ruas

A mobilização estudantil paulista de 2015, através de manifestações e ocupações de escolas, foi obra dos estudantes secundaristas em diversas regiões do estado de São Paulo (tiveram reflexo pontual em outros estados) entre outubro e dezembro do mesmo ano, tendo como objetivo protestar contra a reorganização do ensino público paulista, proposta pelo governador Geraldo Alckmin.

As manifestações alcançaram seu objetivo: a reorganização do ensino público foi suspensa e o então secretário de Educação, Herman Voorwald, foi tirado do cargo. Se o Brasil sentira a força das organizações autônomas em 2013, reviveu a experiência com a luta dos estudantes, que aconteceram, em sua grande maioria, para além do controle das organizações que representam os estudantes.

Não há vácuo na rua

Com grupos autonomistas varridos, estudantes sem estruturas nacionais de suporte e populações pobres, negras e periféricas cada vez mais vigiadas e assassinadas, a rua virou o espaço perfeito para ser ocupado por aqueles que já tiravam fotos com caveirões e policiais com fuzis.

Os protestos contra o governo Dilma Rousseff marcaram os anos de 2015 e 2016. As manifestações massivas ocorreram em diversas regiões do Brasil, no contexto da crise político-econômica iniciada em 2014, tendo como principais objetivos protestar contra o governo Dilma Rousseff e defender a Operação Lava Jato. Palavras de ordem fortes desse período foram “Lula preso” e “Fora PT”. Foram coroadas novas forças da direita brasileira, representada por grupos como o MBL e o “Vem pra rua”, por exemplo, com apoio direto de entidades conservadoras, como a FIESP.

As bases do golpe estavam plantadas nesses atos, com convocações públicas feitas pelos grandes grupos de mídia, inclusive. A manifestação de 13 de maio de 2016 é considerado o maior ato político na história do Brasil, superando as Diretas já. Houve até uma tentativa de atos de apoio à presidenta, mas o golpe, transvestido de impeachment, e a Lava Jato, operação jurídico-policial fraudulenta, já estavam consolidados. Se em 2013 as denúncias tendenciosas do Ministério Público e o uso de escutas serviam para criminalizar somente manifestantes, em 2016 até mesmo a presidenta era grampeada e tinha conversas divulgadas em rede nacional.

Fora Temer”

A mobilização estudantil no Brasil em 2016 foi formada por uma série de manifestações e ocupações de escolas secundárias e universidades brasileiras que se intensificaram durante o segundo semestre de 2016, realizadas por estudantes secundaristas e universitários em diversos estados do Brasil. As manifestações visavam barrar projetos e medidas dos governos estaduais e do governo do então presidente Michel Temer, como os projetos de lei da “PEC do teto de gastos”, a PEC 241, projeto “Escola sem Partido”, o PL 44 e da medida provisória do Novo Ensino Médio.
 
Muito espalhadas Brasil afora, contagiando grandes centros e o interior dos estados, teve inspiração da onda de mobilizações estudantis em São Paulo em 2015, e a organização se deu através das redes sociais nos grupos de ocupação. Taticamente, abriram mão de ocupações, com manifestações em frente às escolas e prédios públicos atacando medidas e reformas educacionais propostas pelos governos estaduais e federal.

As manifestações “Fora Temer” em 2016 e 2017 foram as primeiras tentativas do campo progressista de responder ao golpe aplicado à presidenta Dilma. Uma movimentação de alcance nacional, centrada na corrupção de membros do governo e do próprio presidente, assim como em alegações de que não havia justificativa suficiente para a configuração de “crime de responsabilidade” no processo de impeachment. Os pontos altos dessas manifestações se deram em agosto de 2016, no qual Temer foi vaiado aos gritos de “Fora, Temer” no início e fim dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, bem como na abertura dos Jogos Paralímpicos, e no dia da independência do Brasil, com protestos contra o governo Temer em 25 estados e no Distrito Federal.

Estudantes ocupam as ruas / Fonte: Agência Brasil

A greve geral no Brasil em 2017 aconteceu no dia 28 de abril, 100 anos depois da primeira greve geral, em junho de 1917, e a primeira greve geral desde os anos 1990. Foi um protesto contra as reformas das leis trabalhistas, que posteriormente foram aprovadas, e da previdência social, propostas pelo governo Michel Temer e em tramitação no Congresso Nacional. Segundo organizadores, a greve teve adesão de 40 milhões de trabalhadores.

Caracterizado por muitos como uma tentativa de locaute patronal, a greve dos caminhoneiros no Brasil em 2018, foi uma paralisação de caminhoneiros em todo o país iniciada no dia 21 de maio, durante o governo de Michel Temer, e terminou no dia 30 de maio, com a intervenção de forças do Exército Brasileiro e Polícia Rodoviária Federal para desbloquear as rodovias. Segundo a estimativa de diferentes setores, até o dia 27 de maio a paralisação já teria causado prejuízos de dez bilhões de reais, e talvez tenha sido o maior desafio ao governo Temer dentre todas as manifestações do período.

Ali também foi possível ver a força dos grupos de Whatsapp nas mobilizações, pois as análises até então se centravam especialmente no Facebook e no Twitter, onde é possível avaliar melhor as métricas de alcance e repercussão de temas. A malha de desinformação descentralizada do “zap” foi rapidamente dominada e inteligentemente usada pelos grupos de direita, já num prenúncio do que viria a ser a eleição de 2018.

#EleNão. Fonte: Agência Brasil

No Brasil, sempre pode piorar

Os criativos e animados protestos contra Jair Bolsonaro, conhecidos como Movimento #EleNão, foram manifestações populares lideradas por mulheres que ocorreram em diversas regiões do Brasil e do mundo, com o objetivo de protestar contra a candidatura à presidência da República do deputado federal Jair Bolsonaro. As manifestações ocorreram no dia 29 de setembro de 2018 e se tornaram o maior protesto já realizado por mulheres no Brasil e a maior concentração popular durante a campanha da eleição presidencial no Brasil em 2018.

Seguindo a “tradição” de 2013, os atos foram convocados pelas redes sociais, principalmente no grupo “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro” no Facebook, e as mais de 160 cidades que aderiram aos protestos foram motivadas pelas declarações misóginas do candidato e também por suas ameaças à democracia. Após essa convocação inicial pelas redes sociais, muitos movimentos sociais, grupos feministas e partidos também apoiaram e participaram das manifestações.

Não há possibilidade alguma de elogiar a extrema direita, mas é necessário reconhecer que sua estratégia foi vitoriosa nas eleições de 2018. Mesmo com atos importantes como os das mulheres, pode-se dizer que foi constituída o que seria uma “maioria silenciosa” (parafraseando o discurso conservador de Richard Nixon nos Estados Unidos), com Bolsonaro, um político medíocre com décadas de carreira, mas que conseguiu sequestrar o discurso da mudança, o de que ele seria diferente, o “outsider”, aquele que viria para mudar “tudo que está aí”.

Bolsonaro não sai das ruas

A primeira grande mobilização contra o governo Bolsonaro foram os protestos estudantis no Brasil em 2019, que aconteceram nos dias 15 de maio, 30 de maio, e 13 de agosto, contra os cortes na educação do ensino básico ao superior e congelamentos nas áreas de desenvolvimento de ciência e tecnologia. Houve diversas paralisações no ensino superior e básico, acompanhado de protestos liderados por estudantes e profissionais da educação. Foi o momento que, após um ciclo de lutas mais autônomas, as grandes entidades estudantis como União Nacional dos Estudantes (UNE), União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e sindicatos tomaram a dianteira do processo. No dia 13 de agosto, a UNE afirmou que houve 1,8 milhão de pessoas nas ruas em mais de 200 cidades de todos os estados do país e Distrito Federal.

Mas em um contexto de intensa polarização, as hordas da extrema-direita puxaram atos pró-Bolsonaro em 26 de maio e 30 de junho de 2019. Bem menores que os atos do campo progressista, foram os primeiros sinais que um núcleo duro de bolsonaristas defende irrestritamente as “conquistas” desse governo e que também estarão a postos a uma possível aventura golpista, possibilidade que vem se tornando mais clara com a redução das chances de vitória de Bolsonaro nas eleições em 2022.

Jair Bolsonaro também inicia um tipo de mobilização que pode ser analisada como uma campanha permanente. Mesmo com a conquista do carga máximo da nação, ele se coloca para sua base como um perseguido, que precisa de um apoio popular ativo nas ruas para manter sua posição. As manifestações da extrema-direita, então, começam a focar nos outros poderes, o Judiciário e o Legislativo, como aqueles que precisam ser combatidos.

Manifestação em defesa da Lava Jato. Fonte: Agência Brasil

Em 2019, uma nova greve geral aconteceu no dia 14 de junho, dois anos após a greve geral de 2017. Dessa vez, os protestos centraram as atenções contra a reforma da previdência do governo Jair Bolsonaro e contra cortes na educação. Menores do que as movimentações de 2017, alcançaram 189 cidades de 26 estados e o Distrito Federal. Com a classe trabalhadora nas cordas, infelizmente as reformas trabalhistas continuaram, afetando milhões de brasileiros de forma negativa.

2020 marcou o ápice do acirramento das forças de direita e esquerda que marcaram toda a década. Manifestações populares ocorreram em diversas regiões do país, no contexto da pandemia de COVID-19 no Brasil. Em 15 março de 2020, aconteceram manifestações em apoio ao presidente Jair Bolsonaro, alvo de várias investigações, e, mais bizarro de tudo, contra as medidas de isolamento impostas pelos governos estaduais. A partir de 31 de maio, aconteceram protestos contrários ao presidente, envolvendo também pautas como o antirracismo e o antifascismo, com resultados variados. Essas manifestações tiveram como dado distintivo o fato de serem puxadas por membros de torcidas organizadas, entre elas dos clubes Corinthians, Palmeiras e Flamengo.

Se a direita estava soberana desde o golpe contra Dilma Rousseff, a rua parece voltar a ser um espaço mais à esquerda em 2021. A massa apoiadora do atual presidente vem se reduzindo, apesar de haver um “núcleo duro” de apoiadores que seguirão com ele, mesmo com todos os escândalos de seu governo. Mas, este núcleo parece cada vez mais constrangida de mostrar apoio público. Por outro lado, no dia 29 de maio se iniciaram protestos contra o governo Bolsonaro, que se espalharam por todo o país, com uma manifestação massiva na capital paulista, por exemplo. Membros de grupos sindicais e torcidas organizadas, unidos a partidos de esquerda, dinamizaram os protestos de rua em pelo menos 85 cidades, com pautas como a volta do auxílio emergencial em R$600, repúdio ao negacionismo, críticas ao incentivo do uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra o novo coronavírus e o apoio às campanhas de vacinação, além de pautas como o corte de verbas na educação, a repressão policial contra a população negra, usando o contexto da Chacina de Jacarezinho e o apoio a CPI da COVID-19.

Manifestantes a favor da prisão de Lula. Fonte: Agência Brasil

Elas seguem acontecendo com força. Com máscaras, tentativas de manter distanciamento social e pautas anti-Bolsonaro, o movimento tem causado um certo curto circuito nos grupos mais conservadores, como a mídia tradicional, que entrou em clara oposição ao presidente e agora precisa de um certo acordo tácito com aqueles que vêm protestando contra o presidente desde antes da eleição. Da mesma maneira, movimentos como o MBL, que romperam com o presidente, têm reclamado das dificuldades de estarem nas ruas agora por não serem bem-vistos pelos demais manifestantes.

Considerando que 2022 é ano eleitoral e que Bolsonaro não faz questão alguma de esconder que tentará um golpe – talvez a única forma de ele se manter no poder depois de um governo tão desastroso -, as ruas seguirão como protagonistas da história, com talvez uma única grande diferença. Depois de uma pandemia global que fez as pessoas se recolherem e evitarem contatos, teremos um ano onde, salvo alguma má surpresa, haverá um desejo enorme de voltar a encontros, cruzamentos e ações. Resultados imprevistos, como sempre.

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