Como as revoluções sociais e políticas são relacionadas à revolução digital e às vidas das mulheres? Teóricas feministas têm argumentado por uma tecnociência feminista, que considere as relações de gênero, mas também classe e raça, muito além das visões utópicas e distópicas que o imaginário tecnocientífico tem apresentado, tanto nas ficções como nos projetos futuros.
Narrira Lemos
Foi nos laboratórios da NASA, no final do anos 1960, que o termo ciborgue foi explorado como hoje o conhecemos: um híbrido de máquina e organismo. Não só isso, ciborgue era considerado pelos cientistas Clynes e Kline1 como uma solução na corrida espacial, em que se poderia ajustar o corpo para sobreviver às condições extraterrestres, ao invés de levar as necessidades biológicas, como o oxigênio, nas viagens. Nessa corrida por testes, os animais não humanos são sempre as primeiras vítimas, e é assim que nasce o primeiro ciborgue de que temos notícia: oncomouse. Produzido pelos cientistas Clynes e Kline, oncomouse era um rato de laboratório que carregava, segundo a legenda, uma bomba ciborgue “que alimentava produtos químicos num ritmo lento e controlado na corrente sanguínea [do ciborgue], usada no trabalho de câncer para dar drogas a camundongos. É impulsionado por osmose, a difusão de líquidos através de uma membrana”.
1 Manfred E. Clynes e Nathan S. Kline. Cyborgs and Space. Publicado em: Astronautics, 1960.
Essa jornada tecnocientífica é materializada e estabelecida no contexto pós-Segunda Guerra Mundial, fruto de uma aspiração pós-apocalíptica, em que cientistas se engajaram para pensar mundos e possibilidades para os piores dos cenários: as guerras químicas e nucleares, Hiroshima e Nagasaki, Guerra Fria. Corpos de animais humanos e não humanos destroçados pelas ruas, queimados, esquecidos, sem rumo, sem porto; o choro pela política que destroçou uma realidade antes “humana”, agora pós-humana. O impacto da utilização de armas nucleares ainda não está bem resolvido: cidades devastadas e abandonadas, e pessoas que não morreram nos ataques, mas que viveram as consequências posteriores, com vidas impactadas por doenças derivadas do uso de tais armas. A produção tecnocientífica desta corrida espacial fica assim, navegando entre vislumbres utópicos e distópicos: uma promessa de um mundo melhor e mais bonito, se por acidente ou ganância este mundo for destruído.
A tecnociência emerge nesse cenário como um conhecimento que não vive a suposta neutralidade da ciência ou da tecnologia. Ela é o reconhecimento da existência de contexto, das ciências sociais, da sociedade.
A tecnociência é uma semiose materializada. É como nós nos engajamos com e no mundo. O que não é a mesma coisa que dizer que o conhecimento é opcional. É dizer que há nele uma especificidade que você não pode esquecer.2
2 Fragmentos: Quanto como uma folha. Entrevista com Donna Haraway. Revista Mediações, v. 20, n .1, janeiro a junho de 2015, p. 48-68.
Mas a tecnociência não é por si só revolucionária. Algumas teóricas feministas como Judy Wajcman têm alertado há algum tempo sobre a relação entre a ciência e a tecnologia, de um lado, e a reprodução de desigualdades nos campos de gênero, classe e raça, de outro. O ciberfeminismo também degusta as fontes cibernéticas3 de Wiener nos anos 1960, mas igualmente as relações com a internet dos anos 1990 e movimento antiglobalização do mesmo período, além de carregar sua própria trajetória política.
3 Norbert Wiener. Cibernética e Sociedade: o uso humano de seres humanos. O físico Norbert Wiener conceituou cibernética como a ciência do controle e da comunicação, no animal e na máquina. Sua teoria foi base para vários desenvolvimentos teóricos nessa área.
O começo dos anos 2000 foi marcado por séries de movimentações entre grupos autônomos e anticapitalistas, numa transição para o que conhecíamos como “globalização” – hoje em desuso como termo, mas não como condição. Nesse processo, vários grupos e coletivos surgiram e passaram a explorar as novas camadas tecnológicas que insistiam em surgir e se espalhar, como a internet. Na exploração dos espaços online, uma nova palavra (não tão nova assim) passa a acompanhar as demais: o ciber – ciberespaço, ciberativismo, ciberfeminismo, etc.
O corpo do ciborgue é cheio de potência: de robocop a blade runner, ele é o retrato da imaginação masculina sobre sua própria força física e intelectual e sua luta contra as fragilidades humanas. Ele é tecnociência, sujeito resultado do contexto tecnocientífico. As ciborgues imaginadas nesse cenário também são resultado da construção teórica desses sentidos, mas estão mergulhadas no retrato histórico falocentrado: a romântica Rachel de Blade Runner, a histérica Linda, mãe do Selvagem de Aldous Huxley, entre várias outras que passeiam entre as categorias determinadas por séculos às mulheres.
As narrativas históricas que permeiam as teorias e ficções científicas parecem ser centradas na construção masculina do homem branco europeu. É, nesse sentido, a reprodução situada de “verdades” únicas, característica de uma ciência normatizadora e positivista. É na percepção das verdades parciais que alguns grupos ativistas localizam a necessidade de criar seu próprio espaço de produção de narrativas, e concebem várias localizações ciber, como os midiativistas.
No Brasil, neste período, acontecia um evento construído colaborativamente em Belo Horizonte, chamado Carnaval Revolução. Foi em 2006 que aconteceu a última edição deste evento na sua cidade de origem, que, como dizia seu samba-enredo, falava sobre copyleft, softwares e rádios livres. Foi lá que uma porção de mulheres que se relacionavam nas redes de conversas pela internet, e que formavam um coletivo de aprendizagem em software livre só para mulheres, se encontrou com o objetivo de aprendizado coletivo a respeito da tecnologia.
Muitas pessoas que participavam desses movimentos participavam também do Centro de Mídia Independente (CMI), uma rede de midiativistas que mantinha o slogan surgido em 1999: “odeia a mídia, seja a mídia”. O CMI possuía grupos de trabalho entre as pessoas voluntárias, divididos por interesse e necessidade, e um deles era o coletivo técnico, que cuidava de toda a parte técnica da rede no Brasil. Foi no Carnaval Revolução que esse grupo de mulheres na tecnologia, que se denominava Birosca, realizou uma oficina de manutenção de máquinas e instalação de GNU/Linux. Mas não era uma oficina qualquer: muito além de abrir uma CPU, desmontar e falar sobre suas peças, foi também uma conversa sobre corpos.
O CORPO COMO METÁFORA
[Essa história] é uma coisa que eu ouvia da minha mãe, de tias, ou de tias mais velhas (…) que não são tias de sangue, são mulheres que eu conhecia desde pequenininha (…) e eu sempre sentava para escutar (…) e isso foi uma coisa muito gravada na minha mente sempre… (…) [tem] uma senhorinha que eu adoro e elas estão sempre conversando (…) de como era essa questão de bater na porta para pedir receita, que não era na verdade para pedir receita. Era uma desculpa pra saber se a mulher estava bem, pra sair de casa, porque os maridos só deixavam elas saírem de casa se fosse pra fazer uma comida diferente. Era uma rede de apoio, né? [Geisa, do grupo Periféricas]
Geisa narra histórias da sua infância, permeadas pelas relações entre mulheres com ou sem laços de sangue. São tramas e redes formadas por histórias orais, que se conectam num processo de amparo mútuo. A construção da narrativa é, além de historiográfica, uma metáfora para o que se segue à produção das oficinas dentro de grupos de mulheres feministas na tecnologia.
A primeira vez que ouvi Geisa, no evento de segurança e privacidade CryptoRave, em 2017, ela contava uma história sobre como as mulheres da região em que ela visitava criaram condições para ter segurança e apoio coletivamente, no passado. Sua narrativa é cheia de sentidos e intenções: é usada para argumentar pela construção de redes autônomas feministas, feita por mulheres e para mulheres. A infraestrutura feminista pensada em forma de rede de apoio se tornou, assim, a ideia de uma outra internet, segura, com vida, com movimento, com corpo e, consequentemente, com cosmologia própria.
Como com a ciência, a própria linguagem da tecnologia, seu simbolismo, é masculina. Não é simplesmente uma questão de adquirir habilidades, porque elas estão embutidas na cultura da masculinidade, que é amplamente delimitante na cultura da tecnologia.4
4 Judy Wajcman. Technofeminism. Editora Polity, 2004, p. 15.
Grupos feministas que atuam na tecnologia têm investido na construção de um outro universo para a internet, entendendo este espaço como historicamente militarizado: centrado na geografia da exploração civilizatória, o caminho da internet ainda é o mesmo do período das navegações. Como pensar uma nova internet? Como pensar uma nova rede? Essas são perguntas que as chamadas “Coletivas” têm explorado para reimaginar a internet e o ciberespaço, construindo seu próprio cosmos – como a rede Kefir, com uma proposta de um novo ecossistema.
Além de construir sua própria cosmologia, as metodologias dos grupos técnicos feministas vivem outra metáfora. O grupo Birosca falava sobre o corpo para pensar a máquina: se temos medo de tocar nossos corpos, como teremos coragem de tocar a máquina? Abrir a máquina para observar seus chips, seus slots, é como abrir as pernas e observar nossos pêlos, lábios, vulva. Há que se ter coragem num mundo em que somos incentivadas a nos desconhecermos e a pouco explorarmos os conhecimentos a respeito dos nossos corpos e nossas máquinas.
De um lado, o corpo, do outro a máquina; de um lado a violência, do outro a rede de apoio: todos compondo, juntos, a construção de múltiplas histórias.
A escrita, o poder e a tecnologia são velhos parceiros nas narrativas de origem da civilização, típicas do Ocidente, mas a miniaturização mudou nossa percepção sobre a tecnologia. A miniaturização acaba significando poder; o pequeno não é belo: tal como ocorre com os mísseis ele é, sobretudo, perigoso.5
5 Donna Haraway. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. Publicado em: Antropologia ciborgue: as vertigens do pós humano. 2009, p. 43.
O CORPO COMO HISTÓRIA
Além da metáfora, uma das mais poderosas tecnologias que as feministas exploram é a palavra, e a ciência que a explora no mundo ocidental: a escrita. Chimamanda Adichie, numa fala no TED, explorou a necessidade de pensarmos o perigo da história única: ela só mostra um ponto de vista e ela mesma pode ser a produção e reprodução de desigualdades.
No entanto, uma vez que os grupos insistem em repensar as tecnologias e a produção de conhecimento, também podem se apropriar das técnicas para construí-lo, e assim, mudar o curso das histórias. Nesse sentido, para Haraway, a escrita é a tecnologia mais importante das ciborgues-feministas.
A escrita é, preeminentemente, a tecnologia dos ciborgues – superfícies gravadas do final do século XX. A política do ciborgue é a luta pela linguagem, é a luta contra a comunicação perfeita, contra o código único que traduz todo significado de forma perfeita – o dogma central do falogocentrismo.6
6 Donna Haraway. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. Publicado em: Antropologia ciborgue: as vertigens do pós humano. 2009, p. 88.
A escrita é a técnica utilizada para validar a história. Muitas vezes ouvimos sobre povos de outras culturas que a história deles é apenas oral – que muito se perde ou se transforma. Essa é uma das narrativas para desvalidar o conhecimento tradicional; mas é, também, uma das forças das narrativas das mulheres, como a contada por Geisa, e de vários povos que não se apegam àquelas tecnologias ocidentais que teimam em dizer o que é verdade e o que não é, como se a verdade fosse validada pela escrita.
Para reconfigurar nossa maneira de olhar para as palavras deterministas construídas por um poder tecnocientífico militarizado, ou para construir outras ciências comprometidas com o conhecimento situado, uma das tecnologias que podemos utilizar é proposta na metodologia das oprimidas, da Chela Sandoval: ressignificar. A ressignificação, muito além de transformar o significado de um termo, é também “apropriar-se de formas ideológicas dominantes e utilizá-las para transformar seus significados em um conceito novo, imposto e revolucionário”.7
7 Chela Sandoval, bell hooks e outras. Nuevas ciencias: Feminismo cyborg y metodología de los oprimidos. Publicado em: Otras inapropiables: feminismo desde las fronteras. Traficantes de Sueños, 2004, p. 86.
Essa tecnologia, embora hoje explorada por diversos teóricos, é de uso comum da população. Transformamos os significados quando eles já não nos servem, acompanhando a fluidez da existência da própria língua, matéria viva e em constante transformação nos corredores das escolas e nas avenidas das cidades. Mas, além disso, de forma intencional e política, os grupos feministas já perceberam há muito a necessidade de transformar nossa língua — que tem por base humana o homem, sendo assim, uma linguagem não-inclusiva.
Birosca foi um desses grupos que trouxe ressignificações e reapropriações no começo dos anos 2000, quando teve que nomear sua primeira máquina servidora virtual, nascendo assim a Baderna. A máquina virtual do coletivo tinha uma página dedicada a explicar o porquê seu nome: Marietta Baderna foi uma bailarina italiana que migrou para o Brasil e passava suas tardes dançando junto aos escravos. Era extremamente adorada pelo público. Há fontes que dizem que os que a adoravam eram chamados de baderneiros; há outras que dizem que, naquela época, baderneiro era algo bom, mas, aos poucos, essa conotação mudou.
De baderneiros bons a ruins, Baderna foi reapropriada como uma marca singular, uma homenagem a uma mulher e uma ressignificação de seu nome para gerar potência. Além de ressignificar, ressaltar esse processo de transformação dos nomes e das histórias é também uma produção de conhecimento, memória e narrativa. Da mesma maneira, outros grupos têm se apropriado de histórias de mulheres para resgatá-las, explorá-las e potencializar suas vozes; um desses grupos são as ciberfeministas Vedetas.
Vedetas é um coletivo derivado da rede MariaLab e que se define como uma servidora feminista. As ciberfeministas da Vedetas investiram em explorar narrativas de várias mulheres para inspirar as ferramentas que estão oferecendo. Seu próprio nome faz esse resgate: vedetas é o “nome das estruturas tipo casinhas que ficavam nas praias, de onde era feita a vigilância da costa. Durante a Guerra de Independência da Bahia, no início do século XIX, uma negra ex-escrava chamada Maria Felipa tomou a Ilha de Itaparica de assalto. Durante algumas semanas, sua tropa feminina esteve em vigília nessas casinhas, derrubando embarcações portuguesas. As mulheres da tropa ficaram conhecidas como vedetas, e são bem populares no imaginário popular de Itaparica, associadas ao canto de capoeira Maria Doze Homens. Maria seria a Maria Felipa, que teria derrubado 12 homens de uma vez.” As demais ferramentas também exploram narrativas de outras mulheres, como Antonieta e Eveliyn.
Olhando ainda mais longe, Judy Wajcman aprofunda a investigação das histórias das mulheres, dentro ou fora da oralidade, e seu papel na construção do que hoje chamamos de tecnologia, no mundo ocidental:
No entanto, o conceito de tecnologia é por si mesmo sujeito a mudanças históricas, e diferentes épocas e culturas tiveram nomes diferentes para o que nós agora pensamos como sendo tecnologia. Uma grande ênfase nas atividades das mulheres pode sugerir imediatamente que elas, em particular as mulheres indígenas, estão entre as primeiras tecnologistas.8
8 Judy Wajcman. Technofeminism. Editora Polity, 2004, p. 15.
O CORPO COMO VERBO
“Do que mais me arrependo são dos meus silêncios”9
9 Audre Lorde. A transformação do silêncio em linguagem e ação.
Olhar para o corpo feminista é perceber suas inúmeras potências: é a primeira tecnologia, que pode ser usada para escrever e fazer a história, para construir narrativas e metáforas, para gestar e transformar ação. Corpo é local de fala, é verbo. Audre Lorde, feminista e ativista negra e lésbica, escreveu certa vez sobre a descoberta de sua voz ao perceber seu corpo doente e suas chances de deixar de existir: “Eu ia morrer, se não agora, mais tarde, quer eu tivesse falado, quer não. Meus silêncios não haviam me protegido. Seu silêncio não a protegerá.”
Nosso corpo grita, ele é ação, ele é política. O corpo da mulher está centrado na construção de normas e regras. Ele é objeto de experimentação da ciência, como o foi nos anos 1960, na libertação sexual, quando da produção do DES, hormônio que matara vários animais não humanos em laboratórios para a produção de um contraceptivo, e que, posteriormente, descobriu-se ser o causador de câncer de ovários que causara a morte de várias mulheres.
No limite, o corpo da mulher é experimentação e política em várias esferas: de Adão e Eva à presidência da república, às leis da criminalização do aborto e tantas outras que invadem a tomada de decisão das mulheres e que investem na dicotomia centrada no homem/mulher e sexo/gênero. Paul B. Preciado, em seu Manifesto Contrassexual, convoca a desconstrução biopolítica do corpo; não há mais sexualidade delimitadora: o corpo, o sexo e a sexualidade são mutáveis. O objeto de prazer não é necessariamente natural, ele é plástico, técnico e técnica, construído em torno de prazeres possíveis, podendo ser corrompido, transformado e reconfigurado – e está em um contrato que pode ser finalizado ou renovado. A confusão de prazeres está, também, na confusão dos corpos.
O corpo deixa de ser agente passivo e passa a ser verbo: ele se mostra potente, cheio de força e decisão. Ele injeta hormônio por conta própria, ele tem voz – e sua voz não está calada. _
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