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Internet, conexão e reexistência: inovação e ancestralidade nas criptofestas amazônicas

Em artigo, Paula Amaral analisa o movimento das criptofestas, espaços que reúnem ativistas da internet e movimentos digitais, na Amazônia

Jovens dançando Carimbó.

Foto: Lírio Moraes

Após a pandemia do COVID-19 o processo de virtualização da vida se intensificou: forçada a reduzir o contato físico, a sociedade migrou para o digital, transformando a forma como trabalhamos, nos relacionamos, consumimos e nos expressamos. Isso também evidenciou desigualdades, principalmente regionais, trazendo à tona a realidade de uma Região Norte do Brasil onde a conectividade significativa não é a realidade de todos e as disparidades e vulnerabilidades atingem um número grande de pessoas, em um retrato de gênero, raça e classe.

Neste cenário, a sociedade civil, ativistas, coletivos, acadêmicos e estudantes se veem diante de um desafio: como amplificar o debate sobre Cidadania Digital? A popularização do movimento das criptofestas no Norte do país tem sido um dos caminhos propostos ao criarem um ambiente e espaço seguro e plural para a diversidade de vivências pensarem em autonomia e segurança digital, através da cultura popular e da conexão com o território, buscando impacto social. Mas antes, convém entender o cenário do qual estamos falando.

Os números da desigualdade têm localização precisa

Quando se analisa o impacto da tecnologia nesses territórios, as disparidades regionais e sociais se tornam mais evidentes, embora 90,4% dos domicílios na Região Norte possuam acesso à internet, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) do IBGE (2021), a conectividade é mais elevada em áreas urbanas, com 94,1% dos domicílios conectados, enquanto nas zonas rurais o índice é de 81%. Assim como, estudos indicam que a velocidade e a estabilidade da internet na região são inferiores às de outras regiões, afetando atividades como educação a distância e teletrabalho e, consequentemente, o acesso de qualidade às redes digitais. 

Nos últimos dois anos o cenário mudou bastante, já que as antenas da Starlink, do bilionário Elon Musk, permitem acesso à internet via satélite, facilitando a conexão com a rede. Segundo a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) a empresa já tem clientes privados em 697 dos 772 municípios da Amazônia Legal (formada por Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão). 

O custo elevado da internet também é um fator que conta bastante para a falta de conectividade. Dados apontam que 25% da população da região paga entre R$91 e R$100, e 32% paga entre R$100 e R$150 por sua conexão principal, tornando a internet na Região Norte a mais cara do Brasil. Esse conjunto de fatores é justificativa de um diagnóstico onde a conectividade significativa não acontece no Norte, apenas 11% da população da Região apresenta condições satisfatórias de conectividade.

Em torno desse cenário e números que apresentam indicadores sociodemográficos bem definidos a pessoas de corpos negros, periféricos, LGBT+ e de classes desfavorecidas, a sociedade civil avança com os debates, assim como procura democratizar espaços e o acesso à informação sobre tecnologia e direitos humanos. Seja em pressões ao senado para a regulamentação de projetos de lei que ampliem a infraestrutura da internet para regiões isoladas, assim como na frente de justificar a importância de regulamentação de novas tecnologias como a Inteligência Artificial ou a inclusão de disciplinas sobre Educação Digital na educação básica ou criação de cursos e oficinas gratuitas para a capacitação da população para o uso eficaz e seguro das ferramentas digitais, para assim usufruir da amplificação dos benefícios da conectividade.

O movimento das CriptoParties no Brasil

Temos visto nos últimos anos a  expansão do movimento das criptofestas no Brasil. O movimento surgiu como resposta às crescentes preocupações com a vigilância em massa e a privacidade online. Esses encontros oferecem oficinas práticas, debates e palestras que abordam desde o uso de ferramentas de criptografia até práticas seguras de navegação na internet. 

Deste modo, as CriptoFestas desempenham um papel crucial na educação digital, especialmente em um país com desigualdades de acesso e conhecimento tecnológico. Ao promoverem a conscientização sobre a importância da privacidade e segurança online, esses eventos capacitam os participantes a adotarem práticas mais seguras no uso da internet.

No Brasil, destacam-se eventos como a CryptoRave, realizada em São Paulo desde 2014, que se consolidou como o maior encontro de segurança, hacking, privacidade e software livre do país. Outro evento de relevância é a CriptoFunk, realizada no Rio de Janeiro, que combina debates, oficinas e festas, promovendo a autonomia e liberdade das pessoas frente à influência das tecnologias em suas vidas. 

Em Pernambuco, a CriptoFrevo se destaca como a primeira CriptoFesta com identidade pernambucana, unindo cultura popular, tecnologia, segurança e privacidade da informação na internet. O evento busca integrar elementos culturais locais, como o frevo, às discussões sobre segurança digital. 

Ativistas colam lambes durante criptofesta

Foto: Tainá Barral

Navegando até o Norte: Rios, Criptofestas e a Cultura Digital no Norte

Nos últimos anos houve um aumento significativo em números de lares conectados à rede, mas o Norte ainda é a segunda região do país com a conectividade mais precária, segundo a TIC Domicílios (2021). Os desafios para a inclusão digital são agravados pelas dimensões geográficas e pela falta de políticas públicas direcionadas. Em um retrato onde essa realidade se agrava, as criptofestas se popularizam igualmente com o avanço e crescimento dos movimentos sociais e coletivos de juventude debatendo direitos humanos, meio ambiente, cultura, comunicação e tecnologia. 

Mais do que festas, elas são plataformas de resistência para corpos negros, indígenas, LGBTIA+ e periféricos, promovendo não apenas a ocupação de espaços físicos, mas também a reivindicação de presença em espaços digitais. Em um território frequentemente descrito como “vazio” por discursos hegemônicos, as criptofestas da região Norte simbolizam a ocupação e a valorização da pluralidade amazônica, o protagonismo nortista frente a debates que são realizados em outras regiões, mas dessa vez na voz das identidades do próprio território. O movimento de criptofestas tem o papel essencial de ser um espaço de protagonismo e conscientização, onde questões tecnológicas, frequentemente vistas como inacessíveis, são desmistificadas e tornadas compreensíveis para todos.

Diretoria atual da Na Cuia em Belém (PA)

 Foto: Andreson Almeida

Essas cosmovisões e construções coletivas sobre Tecnologia, Cultura, Comunicação, Segurança e Meio Ambiente são algumas pontes de ligações entre esses movimentos, nas suas particularidades e histórias, podemos citar a CryptoBera de Porto Velho (RO) e a CriptoCuia em Belém (PA), duas criptofestas que relatam Amazônias, entre as múltiplas que nós temos em um território extenso como da Região Norte. Além da proposta de falar sobre Tecnologia, Cultura Popular e Digital e Meio Ambiente, essas iniciativas trazem histórias coletivas em suas construções que falam sobre o território e identidade como um ponto fundamental na construção de discussões e debates. 

A Cryptobera aconteceu em agosto de 2024, organizada pelo coletivo C-Partes, e parceiros como REQ Unique, MAB Rondônia e Coletivo SOMAR, em Porto Velho (RO), foi a primeira criptofesta realizada na região Norte. Crypto vem de Criptofestas e Bera vem de beiradeiro um termo que refere-se a quem mora ou quem se conecta às margens do rio. 

“O termo beiradeiro carrega uma carga histórica de resistência, embora no passado o termo tenha sido usado de forma pejorativa para descrever alguém como cafona, brega ou para ridicularizar quem nasce e quem vem das margens dos rios, hoje ele é ressignificado como uma expressão de orgulho das vivências de quem nasce à beira do rio”,afirma Karoline Seguins, Pesquisadora e Co-coordenadora de Comunicação do coletivo C-Partes, e uma das organizadoras do evento.

Para Karoline, realizar o evento foi uma forma de mostrar que a Amazônia não é apenas uma um palco de exploração, mas também pode ser um território de resistência e inovação. “O Norte tem uma voz única e essencial nas discussões sobre direitos digitais, aqui na beira do rio que podemos inovar e combinar tecnologia com ancestralidade, criando caminhos que respeitem e fortaleçam nossos corpos, culturas e territórios”, explica a pesquisadora. 

E foi a partir das resistência populares e movimentos sociais que a CryptoBera trouxe essa essência para o evento, destacando que a cultura e saber que nasce na beira do rio é também tecnologia, comunicação e conexão. 

Assim como na Cryptobera, o rio também faz parte da narrativa de construção do surgimento da CriptoCuia, que acontecerá em dezembro de 2024 em Belém (PA), idealizada pela Associação Cultural Na Cuia juntamente com parceiros como o Centro Popular de Comunicação e Audiovisual (CPA), o coletivo ZarabatanaINFO e a Rede Jandyras, traz em seu nome a história das populações ribeirinhas da Amazônia que usam as cuias para pegar água do rio, tomar banho, cozinhar, desafogar as canoas e “voadeiras”, consumir líquidos e outros  alimentos.

A ideia de trazer o nome de um utensílio presente no imaginário e vivência popular e o  Cripto, do termo criptografia, fala sobre histórias e vivências do território. Desde 2015, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) reconheceu a tradição da utilização da cuia e inscreveu no Livro de Registro dos Saberes o Modo de Fazer Cuias no Baixo Amazonas como relevante forma de expressão da cultura brasileira. Esta  ideia  de  que  a  cuia  pode  comportar  diversas coisas ligadas ao conhecimento e a informação é um dos pontos na escolha do nome, conta Matheus Botelho, jornalista e coordenador geral da Na Cuia. 

A CriptoCuia surgiu por meio  de construções coletivas entre organizações e lideranças regionais inquietas com a chegada da COP30.  Elas apostam que o acesso à tecnologia é um bom marcador para pensar e agir sobre esse processo. 

“A partir de nossas trocas e experiências no território atuando com populações periféricas e tradicionais, percebemos a importância de potencializar debates a cerca de Segurança e Direitos Digitais, compreendendo a partir de suas realidades como a tecnologia se apresenta e lhes traz novas formas de se comunicar, interagir e relacionar com os outros e com o mundo, por meio da cultura digital e popular, sem esquecer a importância do meio ambiente como fator principal para que continuemos vivos nesse planeta”, explica Matheus. 

“Por aqui, entendemos a cultura como a identidade de um povo, um conjunto de hábitos, costumes e tradições que unem um ou vários grupos sociais em um território, online ou offline”, acrescenta o jornalista ao pensar que a Cultura Popular é fundamental na hora de pensar na experiência de uma criptofesta dentro do território, um ponto de ligação e conexão de ideias onde se potencializa o saber através de uma troca de vivências e experiências com o protagonismo popular.

 

Correntes de conexões: Trilhando identidades do território

Na construção da CryptoBera a decisão de homenagear figuras da Cultura Popular para as trilhas parte de uma ideia de pertencimento regional intrínseco ao olhar dos organizadores “Essa visão nos motivou a homenagear figuras importantes para a Cultura de Porto Velho e assim, nomear nossas duas trilhas com essas personalidades, como Nicinha e a Sarita da Sete. Essas homenagens celebram não apenas suas memórias, mas também as lutas que elas simbolizam”, conta Karoline

Trilha Sarita da Sete na Cryptobera 

 Foto: Voluntários da CryptoBera

Nilce de Souza Magalhães, a Nicinha, foi uma mulher atuante na luta dos atingidos e atingidas por barragens. Assassinada em 2016, era uma figura importante do movimento. “Nicinha a foi uma pescadora que lutou pela justiça e proteção de territórios na Amazônia, foi escolhida para representar trilha sobre segurança, vigilantismo  e direitos humanos”, explica a pesquisadora. 

A outra trilha vem com a representação de Sarita da Sete, mulher travesti porto velhense que viveu um momento de sua vida em situação de rua. “Sua história nos desafia a refletir sobre as vidas trans marginalizadas e ela foi escolhida para representar a trilha de tecnologia, comunicação e diversidade”, diz Karoline.“Essas figuras reforçam a importância de usar a tecnologia como uma ferramenta de resistência e de conectar à proteção digital à preservação das culturas e das identidades amazônicas, onde essas histórias não só são lembradas, mas re imaginadas de forma positiva”, conclui.

Em outra paisagem, a CriptoCuia decidiu trazer elementos da Cultura Popular paraense para a construção de trilhas, reunindo em sua programação a trilha do Carimbó debatendo temas como Conectividade Significativa, Comunicação e Tecnologias Ancestrais. Propõe, assim, pensar o Carimbó como  mais do que um ritmo: é uma dança, uma identidade essencial da cultura paraense e amazônica. Com suas variações e sotaques, essa manifestação cultural é carregada das vivências de mestres e mestras, guardiões do saber transmitido pela oralidade, aliando-se assim a debates importantes quanto ao uso democrático da rede e o acesso equânime para todes. 

Já a trilha da Guitarrada fala sobre Governança da Internet, Direitos Humanos e Cuidados Integrais. A guitarrada é uma prática musical que tem origem no Estado do Pará e está ligada ao surgimento da lambada nos anos de 1970, em uma mistura de ritmos criou uma fusão de criptografias musicais fazendo pensar sobre os debates de criptografia e segurança em rede. Suas músicas ecoam práticas criativas e sustentáveis em meio às baixadas e palafitas da Amazônia e lembram da urgência de proteger essa expressão em tempos de crise climática e cultural.

E por fim, a trilha do Tecnobrega para debater sobre Colonialismo de Dados, Racismo Digital e Inovação, cada um trazendo especificidades que retratam as realidades de elementos culturais e seus debates dentro da tecnologia. O Tecnobrega é um ritmo eletrônico autêntico do Pará que utiliza a tecnologia como uma ferramenta essencial, produzindo e se popularizando fora das grandes gravadoras e ganhando força entre a juventude das periferias de Belém. Com o movimento das aparelhagens paraenses, os DJs e produtores dessa cena exploram o que há de mais moderno em tecnologia – de softwares e hardwares avançados – criando mixagens que misturam ritmos e expressam o imaginário popular amazônico.

Essa reflexão é fundamental para pensar ao cenário onde a conectividade e o acesso a internet se instauram, até que propositalmente como no Norte, dentre as desigualdades em relação a outras regiões do país os espaços construídos nas criptofestas nortistas tornam-se lugar de re-existência para essas identidades que confluem na proposta de se reunir, pensar, colaborar e “fazer algo”, tal como as criptoparties se propõem mundialmente, “esses eventos funcionam como laboratórios de aprendizado coletivo, ensinando ferramentas digitais que vão além do uso cotidiano de redes sociais e aplicativos de mensagens — espaços controlados por grandes corporações que priorizam lucros sobre a privacidade e segurança das pessoas.” Conta Allan Gomes, jornalista e coordenador do Centro Popular de Comunicação e Audiovisual (CPA).

Allan ainda conta que utilizar a Cultura Popular nesse contexto é essencial, pois ela conecta as comunidades a partir de símbolos, narrativas e práticas que já lhes são familiares, tornando o debate sobre tecnologia e direitos digitais mais acessível e engajado. Isso pode se manifestar por meio de expressões artísticas locais, como música, dança e artes visuais, que traduzem conceitos complexos para práticas culturais vividas no dia a dia. Ao criar essa ponte entre tradição e inovação, reforça-se a ideia de que a tecnologia é para todos, rompendo com a exclusividade de saberes técnicos.

Dentro desses códigos de uma identidade plural do território paraense, o espaço da CriptoCuia tem se construído dentro do anseio do protagonismo de identidades anteriormente excluídas ou ignoradas nesses debates. “Quando a gente olha para as programações e visualiza temáticas sobre saberes ancestrais, racismo algoritmo, assim como contar a narrativas do próprio território, a partir do território, é pensar que a gente pode ter esse espaço de protagonismo, não só um espaço de sermos as pessoas convidadas para falar sobre as nossas histórias e sim as pessoas que produzem essas histórias, tornando-se um espaço muito afirmativo.” Conta Vic Argôlo, pesquisadora e curadora da CriptoCuia Belém. 

Ela ainda conta que falta de conectividade é proposital para que as pessoas que vivem na região Norte não acessem recursos, oportunidades e espaços em contraponto às demais regiões do país. Ela também aponta que essa precariedade nada acidental é  sobre controle, exploração e extrativismo intelectual. “As informações e dados sobre a Amazônia circulam em rede em tempos de Big Tech’s e satélites rodando os céus da Amazônia, mas para além disso, é importante refletir também de que forma o Norte consegue se inserir nesse espaço e disputar.” completa Vic.

Para ela, a construção de espaços como os da CriptoCuia e da CryptoBera para pessoas nortistas também denota um ambiente de acolhimento e segurança. “É um espaço feito para pessoas como nós, para que nos sintamos à vontade e acolhidos… trazendo as perspectivas e atravessamentos das nossas particularidades, que são regionais e são territoriais, assim como são atravessadas por nossos corpos também”, conclui Vic. 

TEXTO

Paula Amaral

(ela/dela, elu/delu) Ativista amazônida, pessoa LGBTIA+, atua com a pauta de Cuidados Digitais e Integrais, especializada em Saúde Mental e Integral, é também, comunicadora e mobilizadora social. Atualmente é coordenadora de projetos da Na Cuia e faz parte da coalizão COP das Baixadas, participou de programas como o Cidadão Digital, sendo pessoa embaixadora do Safer Internet Day (SID) em 2024, iniciativas da ONG SaferNet Brasil.

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