Por Luíza Ferreira – 21/07/2023
“Bombas” aprovadas ou tramitando no Congresso Nacional representam o pior da política de destruição socioambiental promovida pela extrema direita
Guaranis fecham rodovia em protesto contra o PL 490 l Foto: APIB via Twitter
Mesmo com a derrota de Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022, a bancada ruralista aliada do ex-governo segue firme na expansão dos “pacotes de destruição”, conhecidos como um combo de projetos que prevê o desmonte ambiental das políticas de proteção ambiental brasileiras.
Maíra Pankararu, advogada indígena, mestra em Direito e assessora da deputada federal pelo PSOL/MG, Célia Xakriabá, nos lembra alguns dos acontecimentos dos últimos quatro anos que configuram o avanço da tentativa de desmonte: o enfraquecimento dos órgãos técnicos do governo, a perseguição a servidores políticos, queimadas e desmatamentos dolosos em todos os biomas do Brasil, a aprovação de inúmeros agrotóxicos, entre outros.
“Existe uma ilusão no imaginário brasileiro de que para que haja progresso econômico, é preciso “flexibilizar” em algumas agendas, sendo elas quase sempre as de teor socioambiental. Quem perde com isso, claro, é toda a sociedade brasileira, mas sofre mais quem é a população mais desassistida”, diz.
Desde 2018, o Brasil está de volta ao Mapa da Fome, como aponta um levantamento da FAO, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Neste mês, a mesma pasta publicou o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI), que confirmou a piora dos indicadores de fome e insegurança alimentar no Brasil.
Para Maíra, isso não aconteceu do nada, e enquanto “a natureza for tratada apenas como uma “coisa” e alimento for commodity, continuaremos assistindo a degradação do meio ambiente e a massa de famintos ficar cada vez maior”, reforça.
Separamos três ataques, entre projetos de lei e medidas provisórias, para entender o “andar da boiada” do desmonte ambiental no congresso nacional pós-Bolsonaro e no início do governo Lula.
PL 29003/23, o projeto que afronta quinhentos anos de resistência indígena
Aprovado na Câmara dos Deputados, o antigo “PL da Morte’, o PL 490/07, atual PL 29003/23 tramita no Senado. Ele figura no topo dessa lista como projeto de lei que ameaça os povos indígenas, ao propor tornar lei a tese do Marco Temporal. Em suma, o texto prevê a restrição da demarcação de terras indígenas àquelas ocupadas tradicionalmente por esses povos na data da promulgação da Constituição Federal, a 5 de outubro de 1988. Para isso, é esperado que se comprove que essas terras eram habitadas na data da promulgação “em caráter permanente, usadas para atividades produtivas e necessárias à preservação dos recursos ambientais e à reprodução física e cultural”.
Maíra Pankararu denuncia o discurso de segurança jurídica para os proprietários terras e a promessa de uma suposta paz para os conflitos fundiários.
“É preciso deixar claro que são conflitos que eles mesmos criaram e criam até hoje, como também traz totalmente um sentimento de insegurança jurídica aos povos indígenas, já que nossos direitos discutidos na Assembleia Constituinte de 1987-1988 e petrificados no texto da Carta Magna de 1988 nunca falaram de marco temporal nenhum para demarcação de terras indígenas”, diz.
Para a assessora, a tese só ganhou destaque através do poder da bancada ruralista que pressiona para a aprovação de projetos de leis favoráveis aos seus próprios interesses. Outros ataques promovidos pelo PL são:
- Comunidades com “traços culturais alterados” podem ter suas terras retomadas pela União, para destiná-las, de acordo com interesse público ou social, ou destiná-las ao Programa Nacional de Reforma Agrária (art. 16, § 4°);
- Há a previsão de instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico serão implementados sem consulta às comunidades indígenas envolvidas ou à FUNAI (art. 20, parágrafo único);
- Flexibiliza o contato com povos isolados (art. 28).
“Os povos indígenas do Brasil podem não ser muitos em quantidade, mas garantem a qualidade de vida de toda a população do Brasil, pois são os guardiões do meio ambiente. Por isso, lutar contra essa iniciativa legislativa é salvar o futuro não só dos povos indígenas, mas da sociedade brasileira como um todo”, diz Maíra.
Indígenas protestam durante governo Bolsonaro; ameaças, no entanto, não cessaram| Foto: José Rui Gavião via Instituto Socioambiental
MP 1154/2023: um ataque aos direitos socioambientais brasileiros
Com a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a competência da homologação de terras indígenas na mãos do mesmo, começava a se desenhar o fim da tutelagem aos indígenas do Brasil e da política indigenista para dar lugar a uma política indígena, “feita por indígenas e para indígenas”, mas a alegria durou pouco.
A Medida Provisória 1154/2023 foi aprovada pelo Senado Federal em Junho, por 51 votos contra 19 e o texto-base, elaborado pelo deputado Isnaldo Bulhões Jr. (MDB-AL), previa a alteração da proposta original do governo federal e na função de alguns ministérios. Uma das alterações estava a cargo do Ministério dos Povos Indígenas, uma conquista do movimento indígena brasileiro, que deixou de ser responsável pela homologação de terras indígenas, que volta ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP).
A medida também retirou do Ministério do Ambiente a regulação de saneamento da Agência Nacional de Águas (ANA) e de sistemas como o Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico (Sinisa) e o Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos (Sinir).
Para Maíra Pankararu, esse é um “claro ataque aos direitos socioambientais do Brasil”, e muito do que havia sido comemorado em janeiro de 2023, com a eleição de um Executivo mais progressista em relação à proteção ambiental e dos povos indígenas “desmoronou em menos de seis meses”.
“Quem melhor que nós para versar sobre essas as terras que protegemos? Significa dizer que ainda somos “incapazes” – no sentido jurídico da palavra – de falar por nós e pela terra que habitamos. Até 1988 éramos tutelados pelo Estado brasileiro, não tínhamos autonomia, nem voz própria, sempre representados. Foi frustrante ver esse desmonte, principalmente na rapidez que aconteceu, mas ao mesmo tempo significa que devemos estar vigilantes e atentos na defesa de nossos direitos sempre”, comenta.
Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a aprovação da medida é um ataque aos povos indígenas do país.
MP 1150/2022 deixa a Mata Atlântica desprotegida
No dia 24 de maio a Câmara dos Deputados votou o texto final da MP 1150, que deixa a Mata Atlântica, um dos biomas mais degradados e ameaçados do país, desprotegida. Anteriormente o Senado Federal havia feito aprimoramentos no texto da Medida Provisória, que foram derrubados pela Câmara.
“A medida em questão não apenas compromete a efetividade da Lei Especial que tem o propósito de proteger o bioma onde reside a maioria da população brasileira, mas também prejudica os esforços de recuperação de áreas degradadas ao propor alterações no Código Florestal”, comenta Maíra Pankaruru.
A medida também deixa as Unidades de Conservação (UCs) desprotegidas, pois interfere na aplicação da legislação responsável pela gestão das UCs, como os parques nacionais. O texto segue para sanção do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e se aprovado, “significará um dos maiores retrocessos ambientais que o Brasil já experimentou e abrirá portas para a derrocada ecológica do país”, completa.
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Para a advogada, a bancada ruralista no Congresso Nacional é extremamente organizada e sedimentada, dispondo de muitos recursos para garantir a aprovação de projetos de lei de acordo com os seus interesses.
“Acredito que esse seja só o começo, estamos no início da legislatura e já tivemos de enfrentar essas pautas duríssimas. À medida que nosso mandato e outros se destacam no sentido de defender o meio ambiente, os povos indígenas, quilombolas, do campo, mulheres, enfim, minorias por sempre invisibilizadas e com pouca ou nenhuma representatividade, os ataques se endurecerão”, diz.
Bioma mais ameaçado do país, a Mata Atlântica está ameaçada l Foto: Reprodução
Artimanhas anti-ambientais
Maíra ainda expõe um fenômeno comum: o uso de expressões “mansas e palatáveis” pelos parlamentares como “adaptar”, “aperfeiçoar” e “flexibilizar” para esconder o intento de destruição, o que dificulta muito o trabalho de parlamentares em favor da pauta ambiental. Entre os exemplos mais comuns dessa estratégia, estão os projetos de lei sobre garimpo em terras indígenas, muitas vezes propostos com o nome de “garimpo sustentável” ou “garimpo ecológico”.
“São inúmeros PLs nesse sentido que vemos tramitar todos os dias, sempre sob o pretexto de que “o Brasil não pode parar”, muitos propondo o avanço em terras indígenas e em unidades de conservação, como se essas fossem entraves ao progresso econômico”, afirma.
Mas a realidade se opõe ao que os ruralistas tentam pregar. Como reforça a advogada, “a proteção de terras indígenas e unidades de conservação asseguram o sucesso da economia do país”, que é baseado na agricultura para exportação.
“Quem, senão os povos indígenas, garante água limpa e solos com nutrientes? É preciso acabar com a cultura de que somos inimigos ou que somos obstáculos para o crescimento do Brasil, pelo contrário, é por causa de nossas práticas ancestrais que ainda está garantido o mínimo de salubridade para se viver aqui”, diz.
Nas últimas eleições, o Brasil elegeu, em paralelo, um Poder Executivo mais progressista e um Poder Legislativo mais conservador. Nesse cenário, há muito trabalho a ser feito para mitigar os danos que continuam sendo causados pelo legislativo liberal e conservador, e, como reforça Maíra, “pouco afeito às causas socioambientais”.
Para ela, embora no Brasil, assim como no resto do mundo, o povo enfrenta uma crise climática e é olhado com atenção sobre o que fará com os seus biomas nativos, o Poder Legislativo continua a propor e aprovar leis contra a proteção ambiental e em favor do caos climático.
“Hoje já experimentamos as consequências dessas escolhas, mas no futuro pagaremos ainda mais caro, pois a natureza cobrará seu preço”.
Ataques contra as mulheres
Neste ano, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, sugeriu que os ataques aos ministérios do novo governo se relacionam com as questões de gênero, afinal, são ataques aos ministérios das mulheres.
Maíra corrobora com essa perspectiva, e ressalta quem esteve e ainda está sendo atacada na política:
“Antes foram Marina Silva (MMA) e Sônia Guajajara (MPI), agora Nísia Trindade, do Ministério da Saúde. No legislativo temos as seis deputadas federais que passam por processo de cassação, Célia Xakriabá, Juliana Cardoso, Talíria Petrone, Erika Kokay, Fernanda Melchionna e Sâmia Bomfim. Quão mais combativas e assertivas as mulheres são, mais ataques sofrem dessa estrutura política machista, racista, conservadora e patriarcal”, diz.
A intensificação de uma agenda de ataques às parlamentares e às políticas ambientais está na conta do governo Bolsonaro, que deu poder a quem estivesse pronto para destruir a natureza e perseguir os defensores do meio ambiente.
“Foi durante o governo Bolsonaro que houve uma média de três mortes de ativistas por mês, que não houve nenhuma demarcação de terra indígena, que nos vimos no meio de um caos pandêmico, envoltos em fake news produzidas e difundidas pelo próprio governo”, comenta.
Nesse momento, a mobilização para barrar os desmontes socioambientais é crucial e uma das principais medidas nessa luta é pressionar deputados e senadores para que votem projetos alinhados com a proteção ambiental e às populações mais vulneráveis.
“Também acho importante votar em pessoas comprometidas com as causas socioambientais, assim não teríamos de ser sempre reativos, mas poderíamos ser propositivos, legislando a partir dos valores constitucionais da proteção do meio ambiente e da proteção da vida”, finaliza.