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Território é cultura e fé: como a intolerância religiosa anti-indígena é instrumentalizada em disputas de terra

Queimas de casas de reza cresceram em territórios em disputa enquanto a evangelização avança nas aldeias no Mato Grosso do Sul

Entre 2019 e 2021, sete casas de reza foram queimadas em territórios Guarani Kaiowá

Foto: Tereza Amaral/GrisLab

“Em 2020, minha avó Roberta Ximenes, de 82 anos, uma liderança religiosa do meu povo, teve sua casa de reza incendiada. Nela, minha avó protegia objetos sagrados do meu povo que tinham mais de 200 anos”, denunciou Tatiane Sanches, do Povo Guarani Kaiowá, durante a 49ª sessão do Conselho de Direitos Humanos (CDH 49).

Ela qualificou essas ações e a invasão de igrejas evangélicas nos territórios como parte de um extermínio cultural. “Queimar uma casa de reza representa uma violência tão profunda que atinge nosso corpo, mente e alma”, disse a indígena.

Segundo dados da Aty Guasu – Grande Assembleia dos povos Kaiowá e Guarani –, entre 2019 e 2021 foram pelo menos sete casas de rezas incendiadas. Segundo organizações, há um avanço do racismo religioso contra os povos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.

Mas isso não é novidade.

A violência secular aos povos indígenas se efetiva de diversas formas. Desde a invasão dos colonizadores europeus, há uma luta constante por (sobre)vivência por parte dos povos indígenas. E a resistência se dá, de maneira conectada, entre a luta pelo território, por sua religião e por sua existência.

Ódio no poder

Cinzas da casa de reza de seu Getúlio e dona Alda, na reserva de Dourados

Foto: povo Guarani Kaiowá via Cimi

O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) aponta como uma das causas deste aumento a legitimação do atual presidente da República Jair Bolsonaro que, segundo o CIMI, atua diretamente contra os povos indígenas.

Uma das ações que impactou a situação dos conflitos no campo foi o desmonte da Fundação Nacional do Índio (Funai), gerando mais conflitos em territórios demarcados e não-demarcados. Entidades indígenas denunciam que hoje, o órgão que os deveria proteger, é um balcão de negócios que atende ao interesse de garimpeiros e empresariado ligado ao agronegócio.

O biólogo Daniel Cangassu explicou esse processo de desestruturação da Funai que ocorreu no governo de Jair Bolsonaro. Ele ficou no cargo de coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira Purus da Funai, entre os anos de 2010 e 2019. Sua função seria a de localizar, proteger os povos indígenas isolados e de recente contato no sul do Amazonas.

No entanto, de acordo com o biólogo, entre 2018 e 2019 ele começou a ser pressionado a desenvolver expedições de missionários evangélicos em territórios indígenas.

Cangussu afirmou que as missões evangélicas com a finalidade de converter povos originários ao cristianismo aumentaram com a nomeação de Damares Alves, que esteve à frente do Ministério de Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos entre 2019-2022. Ele afirmou que teve conflitos com Damares, que hoje concorre ao Senado, durante anos por conta desse tipo de investida em áreas de indígenas isolados.

“Num ambiente político de desconstrução de direitos, a antipolítica mantém vínculos estreitos com as ações intransigentes e intolerantes de igrejas neopentecostais. Tornaram-se ferramentas para promover o descrédito à vacinação, a desestimular as comunidades que lutam por seus direitos fundamentais e a propagar o divisionismo interno, demonizando as religiões e crenças dos povos e comunidades originárias e tradicionais”, disse a vice-presidenta do CIMI, Irmã Lúcia Gianesin. 

Um relatório divulgado pelo CIMI em 2020 demonstrou que o aumento preocupante de violência contra os povos originários ocorreu logo no primeiro ano da gestão de Bolsonaro.

O documento aponta que em 2020 o aumento nos casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” dos povos originários. De acordo com o texto, a violência foi ainda maior do que o número alarmante registrado em 2019, primeiro ano de governo de Jair Bolsonaro.

Foram 263 casos registrados em 2020 e em 2019, 256, o que um acréscimo de 141% em relação a 2018, com 109 registros. Os números de 2020 atingiram pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados.

“O segundo ano do governo de Jair Bolsonaro representou, para os povos originários, a continuidade e o aprofundamento de um cenário extremamente preocupante em relação aos seus direitos, territórios e vidas, particularmente afetadas pela pandemia da Covid-19 – e pela omissão do governo federal em estabelecer um plano coordenado de proteção às comunidades indígenas”, acrescenta o relatório.

Evangelização

Kaiowa entre instrumentos tradicionais guarani e uma cruz do cristianismo

Foto: Egon Shaden, 1949 via PIB/Socioambiental

As queimadas nas casas de rezas, que envolvem invasão, danos ao patrimônio e outros tipos de ataque, expressam a violência contra os povos originários. Desde o período colonial, as tentativas de evangelizar os povos indígenas buscam enfraquecer o modo que estes povos têm de professar suas diversas fés. Atualmente, o avanço das igrejas neopentecostais em territórios indígenas, gera um alerta da imposição do cristianismo.

De acordo com o relatório de “Intolerância religiosa, racismo religioso e casa de rezas queimadas em comunidades Kaiowá e Guarani”, elaborado pela Kuñangue Aty Guasu e pelo Observatório da Kuñangue Aty Guasu (O.K.A), missões de evangelização tem avançado em territórios indígenas. Igrejas como a Pentecostal Deus é Amor estão cada vez mais presentes nos territórios, causando, de acordo com o relatório, danos físicos, espirituais, psicológicos e materiais contra os guardiões da ancestralidade dos povos originários.

O documento de Kuñangue Aty Guasu também evidencia os grandes riscos que rezadores e rezadoras sofrem por conta do crescimento dessas igrejas nestes territórios. A denúncia também destaca perseguições, torturas, espancamentos contra as anciãs nhandesys — termo utilizado pelos Guarani e Kaiowá se referindo às rezadoras e curandeiras tradicionais. Segundo o relato, as violências são praticadas por homens vestidos de “crentes”. E que “as nhandesys torturadas, em sua maioria, são mulheres idosas e suas filhas têm pouco contato com o espaço urbano.”

Ex-pajés

Em 2018, o documentário “Ex-Pajé” tratou da evangelização de indígenas no Brasil. A narrativa conta a história de Perpera, um pajé que se sentiu obrigado a se converter ao cristianismo por causa do racismo religioso. “Antes as pessoas buscavam o pajé, agora elas tomam aspirina”, disse Perpera no documentário.

O historiador Diego Rogério, professor e mestrando em Ensino em História pela UNIRIO, explica que o racismo religioso teve um papel central no processo de colonização, desde o Século 16. Segundo ele, esse tipo de intolerância e prática de conversão foi usada como justificativa das ações dos colonizadores no continente americano. Nesse sentido, o cristianismo foi utilizado como meio de “civilizar” os povos originários, demonizando as práticas culturais e de fé dos indígenas.

“O racismo religioso atual possui raízes históricas trazidas por quem via povos indígenas e africanos como incivilizados, forçando-os a falarem suas línguas, vestirem suas roupas e negarem seus deuses enquanto eram exterminados e escravizados”, disse.

No livro “A Conquista da América: a Questão do Outro”, de Tzvetan Todorov, que apresenta diálogos entre Cristóvão Colombo e a Coroa Espanhola, há uma firme convicção de Colombo sobre como a colonização da América seria uma missão dada por Deus, visando o recolhimento de recursos para a “conquista” de Jerusalém.

Feridas coletivas

O rezador Cassiano Romero em frente à uma casa de reza

Foto: Funai

O relatório de Kuñangue Aty Guasu, detalha as consequências desta perseguição religiosa. Segundo a entidade, as violências atingem, coletivamente, os corpos físicos, espirituais e psicológicos dos povos. Também contribuem para o extermínio da medicina ancestral e das práticas tradicionais realizadas pelas parteiras, rezadeiras, e anciãs Kaiowá e Guarani.

As invasões nos territórios, envolvendo garimpeiros e fazendeiros ligados ao agronegócio, se beneficiam das queimas das casas de reza e da evangelização, afinal, para os povos indígenas, cultura e território são sinônimo e os rezadores e rezadoras têm ligação com as lideranças mais ativas na luta pela demarcação de terras.

Em 2019, houve uma tentativa da Procuradoria de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, de retirar igrejas evangélicas da denominação “Deus é Amor” da Terra Indígena Jaguapiré. No entanto, a Procuradora Geral da República, em Brasília, julgou que a medida poderia provocar ainda mais conflitos.

Enquanto isso, o documento de Kunãngue Aty Guasu é categórico: “É urgente a proteção, o fortalecimento e a valorização das anciãs Nhandesys, parteiras, Jarys, mulheres indígenas Kaiowá e Guarani defensoras de direitos humanos, frente aos projetos de extermínios anti-indígenas que vem sendo executado contra os nossos corpos, contra o nosso modo de ser Guarani e Kaiowá.”

Danielle Louise é jornalista de São Luís/MA. Atua diretamente como comunicadora popular em questões sociais, de direitos humanos, política e esportes. Atualmente trabalha na Agência Tambor e na Federação de Trabalhadores Rurais do Maranhão (FETAEMA)

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