Por Luiza Ferreira
Os Munduruku, no Brasil, os zapatistas, no México e a Revolução Curda, no Oriente Médio, mostram na prática como participação social e democracia podem se aprofundar longe do Estado
Ao longo dos anos, muitos povos e comunidades à margem do Estado têm encontrado maneiras de resistir às estruturas de poder dominantes, lutando por seus direitos e buscando uma autogestão organizada de suas comunidades como uma alternativa aos governos tradicionais, que muitas vezes não atendem às suas demandas e necessidades.
Conversamos com alguns pesquisadores sobre alguns exemplos emblemáticos que resistem nos dias atuais enfrentando contextos bastante diversos e oferecendo “faíscas de esperança e faróis para novos mundo”.
Soldadas do exército curda se abraçam; experiência da revolução de Rojava aprofundou a democracia ao resistir contra o Daesh l Foto: Reprodução
Rojava: mais de dez anos apontando caminhos para outros mundos possíveis
Na região do Curdistão, o povo curdo tem lutado há décadas por sua autonomia e autodeterminação. Em 2012, os curdos do Norte-Nordeste da Síria iniciaram as investidas que resultaram na Revolução de Rojava ou Curdistão Sírio, se tornando um exemplo da construção de uma nova organização social e política, baseada em princípios de igualdade de gênero, democracia participativa e cooperação.
O advogado e pesquisador, Vitor Maia, é quem nos ajuda a contextualizar o acontecimento:
“Ainda que consideremos pouco tempo de território liberado, é um tempo importante demais para provar e provocar uma fissura no tempo, no espaço, na realidade. São dez anos de uma janela do possível, de um tensionamento do que conhecemos, de um avanço no horizonte das próprias possibilidades ditas reais. Isso, ninguém pode tirar ou tomar do povo curdo”, diz.
No movimento, o desenvolvimento de educação de gênero para crianças e adultos é tido como uma prática política de uma vida antipatriarcal, como menciona Vitor.
“Assim como em todos os âmbitos são priorizadas as participações femininas O YPJ (unidade de proteção da mulher) é o braço armado feminino, comandado, ocupado e gerido pelas mulheres. Em todas as instituições existem espaços mistos e espaços exclusivamente femininos, como fomento dessa participação e protagonismo”, diz.
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Para o pesquisador, uma série de fatores tornaram a Revolução de Rojava possível, entre eles a resistência histórica do povo curdo, a situação caótica do Estado Sírio durante a guerra, e o trabalho de ativistas e da militância organizada, que propunha uma leitura crítica da realidade, do patriarcado e do Estado Nação.
“Os curdos representam um grande “problema” para a sociedade ocidental. Não reivindicam um Estado Nacional, mas querem reconhecimento de sua autonomia, da legitimidade de sua luta. Reconhecê-los seria um sinal de que outros mundos existem e são possíveis”, finaliza.
O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) garante a proteção e as fronteiras dos “caracoles” l Foto: Juan Popoca
Zapatistas: uma forma originária de organização social no México
Os povos indígenas da América Latina têm contribuído enormemente na luta pela autogestão e pela liberdade de suas comunidades. Um grande exemplo são os zapatistas, que formam um movimento que veio a público a partir do levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), de 1994, em Chiapas, no México. Segundo a antropóloga e pesquisadora Ana Paula Morel, os zapatistas foram “tecendo, ao longo dos anos, uma organização social autônoma que encontrou ressonâncias em muitos outros mundos”.
Com o levante do EZLN, os zapatistas disseram um “já basta” há centenas de anos de colonização e opressão, como comenta Ana Paula. Eles criaram suas próprias configurações: educação, saúde, comunicação e governo a partir da autogestão e da autonomia.
Raúl Ornelas, em seu artigo “A autonomia como eixo da resistência zapatista: Do levante armado ao nascimento de Caracoles”, reforça que a autonomia para os zapatistas não é só um projeto político “mas um processo de criação autogestiva da vida social nestas comunidades”, pois resistiram nas condições mais adversas possíveis, entre perseguição, hostilidade e pobreza.
No movimento, as mulheres zapatistas são vozes fundamentais na luta pela autonomia, tendo participado ativamente do levante armado, elas são a base da construção cotidiana nas comunidades, como afirma Ana Paula Morel.
“No entanto, a luta das mulheres zapatistas não pode ser lida somente à luz de uma abordagem feminista tradicional, pois mobiliza os modos de existência e as filosofias mayas, onde tudo é concebido como particular em sua multiplicidade”.
O ensino-aprendizagem autônomo dos zapatistas, comenta a antropóloga, acontece através do “engrandecimento do espírito e do pertencimento à terra”, e constrói uma poderosa crítica ao capitalismo e à colonização.
Frente à negligência do Estado em garantir os direitos dos povos originários, os Munduruku agem na proteção e demarcação de territórios l Foto: Movimento Iperegayu
Os Comitês Populares e a conquista da autonomia
O povo Munduruku, que habita a região amazônica do Brasil, no Baixo, Médio e Alto Tapajós, conserva as suas próprias formas de organização política baseadas em suas tradições e conhecimentos ancestrais. Entre uma dessas tradições está a participação social por meio de assembleias comunitárias, uma das principais formas de tomada de decisões coletivas.
“A assembléia tem o seu desenvolvimento com abertura formal, apresentação dos assuntos a serem abordados, espaço para os conselheiros exprimirem as suas opiniões, grupos de trabalho para aprofundar temas e elaborar propostas, apresentação das propostas pelos grupos, debate e aprovação das mesmas”, menciona o Levantamento Etnológico Munduruku, Terra Indígena Munduruku.
Em dezembro de 2020, uma assembleia reuniu mais de 200 Mundurukus de 47 aldeias, na região do Alto Tapajós, na Terra Indígena Munduruku e Sai Cinza, em um encontro que pretendia articular a defesa do território indígena frente a invasão, cada vez mais recorrente, do garimpo ilegal, e que resultou em uma carta, reinvindicando o território livre de mineração, garimpo e todos os empreendimentos que decorrem na destruição ambiental de suas terras.
Das assembleias também saíram expedições autogestionadas em cada povoado para fiscalizar os territórios e expulsar invasores, cuja presença nos territórios explodiu durante o governo Bolsonaro. Em sua tese “Governo Karodaybi: o movimento Ipereğ Ayũ e a resistência Munduruku”, a pesquisadora Rosamaria Loures mostra como da memória ancestral e da cosmologia surgiu a noção de um governo, batizado de Karodaybi, inspirado na missão ancestral de proteção coletiva das terras.
Foram os Munduruku do Médio Tapajós que começaram a autodemarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, em 2014, através de expedições de indígenas demarcando os limites da Terra Indígena e com isso pressionando o governo a acelerar a publicação de um relatório da Funai, pronto desde 2013. Mobilizações como essa foram fundamentais para a suspensão da construção do Complexo Hidrelétrico do Tapajós, que viria a alegar a TI em vias de ser regularizada.
“Karodaybi era o primeiro guerreiro Munduruku. O mais antigo. Caçava cabeça de inimigos. Esse é o nosso governo. É o Governo Karodaybi, o nosso governo próprio. A nossa terra é ele que governa”, disse uma liderança Munduruku cita por Loures ao explicar escrito “Governo Karodaybi” nas placas por eles elaboradas para a autodemarcação da Terra Indígena Sawre Muybu
No Brasil, existem ainda muitos movimentos que lutam por ampliar o que há de democrático e participativo nas políticas públicas, como reforça Ana Paula Morel, e que “buscam compor nas diferenças a partir das lutas por autonomias dos povos, como a Teia dos Povos”. A pesquisadora ainda acredita que sociedade, participação popular e democracia não são sinônimos de Estado, como no caso do movimento zapatista, que “vivencia um tipo de democracia que é radicalmente participativa e coexiste com as forças estatais muitas vezes no mesmo território”.
Experiências como as do povo curdo, dos zapatistas e dos Mundurukus, podem ser inspiradoras para movimentos sociais no mundo todo, pois buscam romper com as estruturas políticas tradicionais e inaugurar novos caminhos possíveis. Ou, como diria Vitor Maia, “[experiências que] oferecem não só uma faísca de esperança, mas um farol que nos mostre outros mundos”.
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Luiza Ferreira é repórter da Escola de Ativismo.