Por Bárbara Poerner

Apesar do conservadorismo e avanço da extrema-direita no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, os estados foram palco de lutas sociais negras e campesinas determinantes para a história do Brasil

Artur em manifestação na cidade de Florianópolis, SC. Foto: arquivo pessoal.

Artur Favaretto em manifestação na cidade de Florianópolis (SC). l Foto: Arquivo pessoal.

“Cria de movimento estudantil”. Essa é uma das formas que Artur Favaretto usa como autodefinição. O historiador viu sua militância ganhar forma com o movimento negro, no período de sua graduação em sua cidade natal, Florianópolis, capital de Santa Catarina. O estado foi o segundo que mais votou em Jair Bolsonaro nas eleições de 2022, perdendo apenas para o Acre, e ajudando o sul do Brasil a garantir o posto de região onde o atual presidente ganhou em todos seus estados. 

Entretanto, nada disso aconteceu sem a oposição de movimentos sociais, feministas, negros, indígenas e campesinos paranaenses, gaúchos e catarinenses. 

 “Embora, sim, Santa Catarina seja majoritariamente bolsonarista, existe muita resistência. Foi aqui que surgiram grandes nomes da política brasileira e bases centrais do movimento comunista, dos movimentos do campo, da pedagogia, e de outros espaços. São vários elementos que colocam novas possibilidades de construção de enfrentamento”, argumenta Artur.  

Ele destaca as figuras de Antonieta de Barros (1901-1952), a primeira deputada estadual negra do país, e Cruz e Souza, poeta do simbolismo negro, ambos florianopolitanos. Ainda, Leonel Brizola (1922-2004) é filho de camponeses do interior do estado que governou, Rio Grande do Sul; e Oliveira Silveira é um importante intelectual porto-alegrense, que fez parte da proposição do 20 de novembro como Dia da Consciência Negra. Esses são apenas alguns exemplos de personalidades que contribuíram para a defesa dos direitos humanos no país a partir, também, de sua posição geográfica. 

O movimento negro e indígena na região mais branca do país

Artur faz parte dos quase 20% de habitantes catarinenses autodeclarados pretos ou pardos. Isso torna, estatisticamente, Santa Catarina o estado mais branco Brasil. E também o que mais registra casos de injúria racial. Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, houve uma média de 7,8 ocorrências diárias em 2021. 

Os dados não diferem muito do Paraná e Rio Grande do Sul, que têm 34% e 21%, respectivamente, da população autodeclarada negra. 

Para o estudante, “articular o movimento negro em SC é a dificuldade de se perceber minoria. É uma experiência de muita resistência, de reivindicar [nossa] presença na construção desse estado, do campo à cidade”, acrescenta, ao citar a importância da cultura para o povo preto e pardo. Os “clubes”, ele lembra, foram um exemplo. Eram organizações que transitavam entre a arte e o enfrentamento, constituindo espaços de sociabilidade e oposição ao racismo contra a população negra.  

Um deles, em especial, estava localizado na cidade de Porto Alegre. Chamado de Marcílio Dias, o clube foi o embrião do dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra. Na data, um grupo realizou um evento em valorização ao “herói Zumbi dos Palmares” e propôs usar o aniversário do abolicionista como referência para o povo negro, invés do dia 13 de maio, quando ocorreu a assinatura da Lei Áurea. 

Reunião no clube Marcílio Dias. l Foto: Acervo Oliveira Silveira/Reprodução

Artur destaca o papel das lideranças comunitárias, especialmente das mulheres negras, nessa dinâmica. “É preciso reivindicar a centralidade [delas] na construção do movimento negro, em diversas matizes de luta, perspectivas e formas que vem do campo cultural, mas envolvem lutas ambientais, de saneamento, moradia e infraestrutura, todas ainda muito articuladas na figura de uma mulher”, acredita. O estudante sinaliza, contudo, que uma das maiores dificuldades é lidar com a pulverização dos coletivos negros no estado, algo que ele vê justamente como um produto da disputa política na região. 

“Falamos de um [território] que não é só majoritariamente branco, mas também reforça os ideais hegemônicos da branquitude e de uma construção ideológica e político-social. É o que leva, por exemplo, [SC] a ser um estado apoiador do governo Bolsonaro desde 2018, historicamente governado pelas elites de direita, as mesmas familias colocadas frente ao poder, que cerram os espaços de debate do movimento negro”, diz Artur. 

A história da região sul do país é composta, ainda, pelos povos originários. Guaranis, Kaingangs e Laklãnõ/Xokleng estão presentes desde o Rio Grande do Sul até São Paulo. 

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Os Laklãnõ/Xokleng, recentemente, repercutiram nacionalmente ao protagonizarem a disputa jurídica da tese do Marco Temporal no Supremo Tribunal Federal (STF). mas a etnia já resiste contra o genocídio indígenas há décadas. Eles estão na Terra Indígena (TI) Ibirama-Laklãnõ, que contempla as cidades Vitor Meireles, José Boiteux, Doutor Pedrinho e Itaiópolis, todas em Santa Catarina. O território é palco de disputas desde o século XIX, quando o Brasil começou sua política eugenista de branqueamento, até a década de 1970, quando foi duramente impactado pela construção da Barragem Norte.

 

Terra e campo

Em 1979, a granja Macali e Brilhante foi ocupada por camponeses do interior do Rio Grande do Sul. Dois anos mais tarde, em 1981, um novo acampamento surge no estado: o Encruzilhada Natalino. Símbolo de luta contra a ditadura que vigorava à época, as 600 famílias acampadas sofreram grande repressão dos militares. Mesmo assim, o evento foi um dos embriões do atual Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). 

Ceres Hadich, coordenadora nacional do MST no Paraná, explica que essas movimentações despertaram o entendimento que a luta não era local, mas nacional, e que havia a necessidade de uma articulação coletiva. Por isso, em 1984, Cascavel (PR) recebeu o encontro que marcou a criação do MST. Um ano depois, em 1985 realizou-se o primeiro congresso nacional em Curitiba (PR). “Quando começaram essas lutas, já existiam movimentos localizados, a grande novidade foi unificar em torno de uma sigla essa organização mais ampla”, continua ela, que se conectou com a militância campesina durante sua graduação em agronomia na UFPR.

O Paraná ser o estado a gestar o primeiro encontro nacional do MST foi uma questão conjuntural, acredita Ceres. “O movimento se esparrama pelo Brasil nos anos 1990, mas naquele momento, nos anos 1980, estava mais maduro e latente na região sul”, argumenta, ao citar o contexto de redemocratização que o Brasil vivia. As consequências da ditadura militar ainda eram experienciadas no cotidiano, inclusive nas ligas camponesas nos estados do norte e nordeste.

 

Primeiro encontro que gerou o MST em Cascavel, PR. Foto: acervo MST.

Encontro que gerou o MST em Cascavel, PR. l Foto: Acervo MST

O Paraná ser o estado a gestar o primeiro encontro nacional do MST foi uma questão conjuntural, acredita Ceres. “O movimento se esparrama pelo Brasil nos anos 1990, mas naquele momento, nos anos 1980, estava mais maduro e latente na região sul”, argumenta, ao citar o contexto de redemocratização que o Brasil vivia. As consequências da ditadura militar ainda eram experienciadas no cotidiano, inclusive nas ligas camponesas nos estados do norte e nordeste. 

Valorizar o histórico de luta 

Natural do oeste do Paraná, Ceres acrescenta que na região muitas mobilizações também surgiram em torno da Usina de Itaipu. A obra, construída durante a ditadura militar, mobilizou centenas de famílias agricultoras, atingidas pela construção da barragem, a acamparem em frente ao escritório da empresa, em Santa Helena (PR). A realidade impulsiona a criação do Movimento Atingidos por Barragens (MAB), que atua por um novo projeto energético popular para o país.

 Historicamente, os movimentos sociais nacionais compartilham o mesmo período, a partir da redemocratização. Quem explica é Rogério Paulo, coordenador nacional do MAB. Ele cita o trabalho determinante realizado pelo sindicalismo no campo e por alas progressistas das igrejas católica e luterana. “Enquanto organizações, elas criam experiências para construção dos movimentos sociais como MST, MAB, que não surgem do nada, pois já haviam experiências localizadas”, complementa o catarinense filho de agricultores. 

É em Chapecó que surge a decisão de criar um órgão que aglutine as lutas dos atingidos. Mais tarde, em 1997, Curitiba recebeu o I Encontro Internacional de Atingidos por Barragens, com delegações de 20 países. Na ocasião, 14 de março foi oficializado como o Dia Internacional de Luta contra as Barragens, Pelos Rios, Pela Água e Pela Vida.

Primeiro Encontro Internacional de Atingidos por Barragens, em Curitiba (PR). l Foto: acervo MAB.

Mesmo com esse histórico de movimentos sociais, um candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) nunca ganhou uma eleição presidencial na região sul. Contudo, na análise do coordenador Rogério, há duas décadas parecia improvável falar de uma ascensão da extrema-direita e do neofascismo, como presenciamos atualmente. “Com o golpe do Governo Dilma, [essa realidade], principalmente no sul e sudeste, surge, ou ressurge, e cria força a partir da possibilidade do governo atual de dar as condições para que ele pudesse se reproduzir na sociedade”, avalia ele. 

A diferença entre Lula e Bolsonaro nos estados sulinos foi de quase três milhões de votos, ou 17,8%. É um número considerável, mas Rogério destaca que “achar que a luta de enfrentamento será apenas no campo institucional é um equívoco”, visto que, em sua análise, lidamos com uma extrema direita organizada em suas pautas, agendas e intenções. Ou seja, para o coordenador, é preciso amadurecer o trabalho de base entre organizações e sociedade. 

Essa tarefa nunca foi simples ou fácil, e “se fosse fácil, não era pra gente”, acredita Ceres, que reconhece os perigos da luta pela terra, mas mantém a consciência junto da esperança. 

Algo que ajuda o “esperançar” pode ser valorizar a resistência histórica do sul do Brasil, justamente para contrapor o conservadorismo que encontra fertilidade nos estados. Sem esse conhecimento, diz Artur, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná ficam restritos a uma realidade e definição homogênea, que endossa o discurso dos setores dominantes. Para o estudante, é um apagamento deliberado, mas é preciso “preciso disputar e construir outra imagem para [o sul do Brasil].”  

Bárbara Poerner é jornalista.

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