De Tuíre a Tuíra Kayapó, o encontro com a onça

Luciana Ferreira

Escolhemos deixar esse texto fluido em respeito aos acontecimentos e suas reverberações. Optamos por obedecer a um conjunto de palavras novas que aprendemos, todas no idioma Mēbengokrê, mesmo correndo o risco de cometer equívocos ortográficos, tendo em vista nossa infância no universo Kayapó. Tais palavras estão marcadas graficamente em itálico. Em notas de rodapé acrescentamos mais elementos a determinados pontos de nossa narrativa.

Ainda assim, queremos aproveitar essa nossa infância indígena para ousar um registro com a temperatura e a intensidade que uma multidão de atravessamentos mobilizaram e modificaram em nossos corpos. É no corpo, e sobretudo em nossa pele, que carregamos as marcas do encontro com Tuíra. As pinturas que marcam nossa pele nos movimentam, de tal modo que nos produzem outra pessoa. E, nesse sentido (quer dizer, no sentido de que as marcas que estão em nosso corpo nos fazem devir-outra), entendemos também o pensamento como um corpo. Tentaremos, com este texto, descrever um pouco de nossa aventura e, ao mesmo tempo, narrar os acontecimentos que nos atravessaram. Desta forma, tentamos registrar uma experiência singular.


O caminho

Desde que decidimos ir ao seu encontro, demos seguimento aos nossos estudos e pesquisas. Buscamos referências sobre sua vida, sua história, sua militância, e localizamos muitas coisas: fotos, vídeos, reportagens, textos, livros e toda sorte de registros genéricos sobre a vida de Tuíra. Ir ao seu encontro, vê-la e ouvi-la foi um modo de falar desta importante liderança indígena.

Nossa expedição para encontrá-la teve pitadas de emoção. Obviamente não poderia ser diferente, já que estávamos prestes a conhecer um mito. Deixo o céu cinzento de São Paulo e sua garoa que anuncia a chegada do inverno; outro companheiro de empreitada, Cássio, parte de Belo Horizonte, ambos com destino à quente e úmida Marabá. A temporada de chuvas atingiu seu ponto alto: chuvas torrenciais caíram dia e noite sobre a cidade durante nossa estada.

Uma ponte destruída pela força da chuva inviabilizou nossa passagem, fazendo com que tivéssemos que dar a volta em outros municípios para chegar à Terra Indígena Las Casas, o que tornou nossa viagem ainda mais demorada. Foram cerca de 12 horas de carro com dois ótimos companheiros – Wallassy, o motorista especialista em estradas alagadas, e Adriano, mais conhecido como Pingo, coordenador geral da Associação Floresta Protegida (AFP), criada pelo povo Kayapó em apoio à sua formação política e econômica, para a proteção e conservação de seus territórios e em defesa dos direitos e da cultura indígena.

Segundo o site da Associação Floresta Protegida1, o povo Mēbêngôkre-Kayapó está distribuído em mais de 50 aldeias, localizadas em seis terras indígenas (Badjônkore, Baú, Capoto/Jarina, Kayapó, Las Casas e Menkragnoti), que compreendem uma área total de 11 milhões de hectares entre o centro-sul do Pará e o norte de Mato Grosso. Estes territórios estão localizados em uma região também conhecida como “arco do desmatamento” e vêm sofrendo nas últimas décadas enorme pressão de mineradoras, madeireiras, usinas hidrelétricas, grandes fazendas de gado e obras de infraestrutura.

Tuíra vive na aldeia Kaprãnkrere2, na Terra Indígena Las Casas, situada no município de Pau D’Arco, a cerca de 340 quilômetros de Marabá, um percurso que demora aproximadamente cinco horas de carro. A Terra Indígena leva esse nome por conta de um antigo posto de atração do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) estabelecido na região na década de 1940 e que homenageava o Frei Bartolomeu de Las Casas, um dos primeiros defensores dos direitos dos indígenas à época da chegada dos colonizadores europeus no novo continente.

2 A escrita das palavras é resultado de um pacto entre os professores Kayapó em curso de formação apoiado pela AFP. Todas as demais formas de representar as palavras em Mēbêngôkre cabem no mesmo argumento.

Pelo caminho atravessamos lugares marcantes na história do Brasil. Alguns deles são caminhos obrigatórios para qualquer um que deseja chegar até a terra de Tuíra. Outros foram caminhos que o acaso dos alagamentos proporcionou.

Primeira Paragem: Eldorado dos Carajás

Passando por Eldorado dos Carajás, observamos muitas barracas de militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O movimento realiza anualmente, em abril, atos em memória dos 19 mortos em uma marcha que reuniu cerca de 1.500 trabalhadores sem-terra na região, sendo que dez deles foram executados à queima-roupa pela Polícia Militar do Estado do Pará, no que ficou conhecido como Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996.

O tempo parece não passar em Eldorado. Ao retornar da viagem, busquei na internet vídeos e imagens que me pudessem confirmar esta sensação. Algo que se confirmou. A estrada, o acostamento, o monumento com as estacas fincadas no chão continuam lá. Como que nos dizendo o óbvio: que não podemos esquecer o que aconteceu naquele local. Mesmo 22 anos depois, o povo sem terra e suas bandeiras seguem ali fazendo seus memoriais para exigir justiça e garantir que barbáries como aquela não voltem a acontecer.

Em uma bandeira pude ler os dizeres: “Lutar não é crime!”.

Segunda Paragem: Pau D’Arco

Na sequência passamos por Pau D’Arco, onde ocorreu a execução de 10 trabalhadores rurais em maio de 2017. Diferentemente de Eldorado, a cidade de Pau D’Arco não tinha bandeiras, barracas ou sinal de memorial por seus mortos. O lugar, bem pequeno e com pouco comércio, desenvolveu-se à beira da BR-155.

Um caminho sem dúvida marcado por uma trágica história. Um estado feito de disputas de terra, de violência e muita desigualdade. Os meses de Abril e Maio seguem Vermelhos no sul do Pará.

A chegada

Finalmente, na noite de 11 de abril, chegamos à aldeia de nossa liderança indígena: Kaprãnkrere, na Terra Indígena Las Casas. De cara, vimos poucas luzes, sinal de que a energia elétrica não chega ali. Há apenas um gerador, ligado parte da noite, que ilumina os rostos pintados das crianças sob o céu noturno estrelado. Neste momento percebemos que um dos motivos pelos quais os povos indígenas são contra as usinas hidrelétricas é extremamente material: a energia elétrica não chega até eles. A energia dita “limpa” gera impactos diretos na vida do povo indígena e sequer ilumina esta aldeia.

Nos chama a atenção o posto de saúde indígena, grande e iluminado. Um prédio moderno como os que encontramos nas cidades.

Uma aldeia típica Kayapó: o centro vazio, certamente para as festas e rituais, com as casas no entorno, uma ao lado da outra, algumas atrás, formando uma segunda fileira de moradias. E, olhando mais de perto, do lado de fora do carro, vimos casas de alvenaria sendo construídas ao lado de casas de palha. Uma imagem que muito nos intrigou.

A casa de Tuíra estava cheia. Algumas mulheres estavam lá no entorno dela. O mistério aumentava pois não conseguimos vê-la rapidamente. Até que a vimos, nua, com as mulheres pintando seu corpo. Deixando-a bonita e preparada para nos receber? Talvez…

Seriam pinturas de festa? Pinturas de guerra? Não sabíamos…

Cumprimentamos Takaktô (Dudu), seu marido e cacique da aldeia. Cumprimentamos as mulheres, as crianças. Pingo, nosso guia, nos ensina os cumprimentos: Akàmatmej3 (“boa noite” em Mēbêngôkre, a língua do povo Kayapó, como vamos chamar daqui em diante). Tuíra nos olha e sorri. Um sorriso tímido, sorriso de uma senhora.

3 Na grafia das palavras em Kayapó, o j possui som de i.

A revista

Depois que as mulheres concluíram a pintura no corpo de Tuíra, sentamos em círculo e contamos um pouco a ideia da revista. Falávamos pausadamente enquanto Pingo, Dudu e Kaprãnpoi (outra liderança da aldeia), faziam a tradução e ouviam atentamente nossa apresentação. Para tornar nosso encontro mais tranquilo, propusemos iniciar nossas conversas para composição do texto da revista na manhã do dia seguinte, parando para o almoço e continuando no período da tarde. Tuíra ficou animada! Sorriu e nos acompanhou até a casa de costura, onde ficaríamos hospedados.

A casa de costura

Encontramos uma casa organizada, com várias máquinas de costura e alguns retalhos. Descobrimos então a origem dos vestidos que as mulheres Kayapó vestem no dia a dia. Pingo nos conta a história de que uma indígena foi até a cidade consultar um médico. Ela estava nua4, o que espantou uma senhora que igualmente aguardava o atendimento. A mulher foi até sua casa, costurou um vestido com os retalhos de tecidos de algodão que tinha e vestiu a índia Kayapó. No retorno à aldeia, sucesso! O vestido foi aprovado pelas mulheres indígenas, sendo adotado por todas. São coloridos, divertidos, leves e possuem cada um uma singularidade interessante, uma vez que elas não usam vestidos iguais apesar de serem todos do mesmo modelo: reto, cavado, formato de tubo, bolsos laterais e uma aba na frente. Lindo!

4 Lembramos do texto Erro de Português, de Oswald de Andrade: “Quando o português chegou/ Debaixo de uma bruta chuva/ Vestiu o índio/ Que pena!/ Fosse uma manhã de sol/ O índio tinha despido/ O português.”
Pensamos nesta ação antiga de “vestir” que os portugueses tiveram há mais de 500 anos, ao impor sua cultura, seu modo de vida aos que aqui viviam. Mais uma vez e tantas vezes vimos isso acontecer, nós estamos sempre a vestir o índios, mesmo nas manhãs de sol…

Os vestidos, que já tiveram confecção na cidade, hoje são feitos na aldeia pelas mulheres Kayapó, que os costuram rapidamente em máquinas sem motor.

Descobertas

A noite foi algo completamente mágico. Quente e úmida como de costume nas regiões amazônicas, céu estrelado de um tanto que era impossível contar. Assim como estava impossível contar ou discriminar os sons dos bichos que estavam à nossa volta – eram tantos que o sono demorou a aparecer – percebemos o quanto nossos sentidos ficam confusos na cidade. Os sons comuns dos carros, ônibus, buzinas, música alta, dos aviões, das ferramentas, das pessoas conversando, silenciados pelos sons assustadoramente altos da floresta, dos anfíbios, insetos, aves noturnas, animais grandes e pequenos, uns mais próximos, outros bem distantes, que rondavam nossos corpos esticados nas redes.

Amanheceu um dia lindo. Clima ameno, pouco calor, muita umidade. Os pássaros nos acordaram com berros infinitos. Os galos, moradores da aldeia também apareceram para demarcar seus territórios!

Tuíra nos trouxe uma garrafa de café e nos saudou com um bom dia:
Akátimej!”

Rapidamente tomamos e agradecemos: “Mejkumren” (que significa “muito bom”), e seguimos com ela para sua casa. Dudu e Kaprãnpoi nos esperavam sentados.

Ligamos o gravador e combinamos de conversar sobre três assuntos principais: História de Tuíra; Luta – Tuíra Guerreira; Vida atual – Tuíra mãe e avó, aprendizados e ensinamentos.

A história de Tuíra

O pai de Tuíre nasceu na aldeia Kubēnkrãkêj – a aldeia-mãe. A mãe nasceu em Kokrajmoro, lugar onde conheceu o pai de Tuíre e onde Tuíre nasceu. Quem lhe deu este nome foi sua avó, dito e grafado deste modo: Tuíre5, com “E”. Ao perguntá-la sobre a origem de seu nome, ela confirma: “foram os kubēns6 que começaram a me chamar de Tuíra” – e neste momento não conseguimos identificar se havia um incômodo por parte dela quanto a esta mudança em seu nome.

5 Esta revelação em relação ao nome de nossa entrevistada sofrerá alterações ao longo do texto. Deixaremos mais evidente nossa intenção ao chamá-la hora de Tuíra, hora de Tuíre.

6 Kubēns é o modo como os Mēbêngôkre referem-se ao homem branco.

Sua família morou na mesma aldeia até Tuíre completar 17 anos, quando então mudaram-se para Kubēnkrãnkêj, aldeia de origem de seu pai, onde Tuíre permaneceu até seus pais falecerem. Mudou-se de lá ainda jovem, já com um filho nos braços, para a aldeia Àukre. Um dia foi visitar sua irmã na aldeia Gorotire e conheceu Dudu. Casaram-se pouco tempo depois. Os pais de Dudu e Tuíre são da mesma aldeia. A mãe de Dudu era de origem Xikrin-Kayapó. Os avós de Tuíre, tanto materno quanto paterno, eram caciques das aldeias Kubēnkrãkej e Kokrajmoro e se dedicaram a defender bravamente seus territórios. Guerreavam entre si antes do contato relativamente recente com os brancos.

Tuíre nos contou com pesar que seu avô Betikré, muito conhecido entre o povo Kayapó, resistiu e lutou o quanto pôde. Ao estabelecer uma relação de amizade com um kubēn, foi iludido e acabou caindo em uma armadilha. Mataram o avô, cacique, guerreiro, e o povo percebeu o quanto esta relação poderia ser perigosa. Tuíre revela que essa amizade com um homem branco “amansou” o avô e sua morte enfraqueceu a luta, deixou os guerreiros desorientados. A morte dos mais velhos e a aproximação dos brancos deixaram o povo Mēbêngôkre mais vulnerável: “Tudo foi ficando mais difícil”, revela.

Tuíre considera que a morte do avô materno está diretamente ligada à aproximação dos kubēns. Seu avô não pôde ser substituído: era único, um guerreiro valente. O modo amistoso como aquele homem branco se aproximou do avô de Tuíre, sem brigas, pelo contrário, com grande amizade, deixou a aldeia quieta. Perguntamos a Tuíre: “O que mudou de lá pra cá? Como você vê esta aproximação dos brancos?”

Ela nos conta que os brancos de antes vinham atrás de onça. A pele que custava caro. A seringueira e seu ouro branco, o látex, que também é extraído de uma árvore chamada Caucho. Hoje o homem branco procura outras coisas: ouro, madeira, minérios que estão nas terras dos indígenas. Para Tuíre, “os homens brancos do governo são mentirosos. Oferecem coisas para o povo. Mas o que precisamos mesmo, que é nossa terra, eles tiram da gente! O governo não consulta os indígenas. Ele decide de longe e manda! Nós índios continuamos aqui defendendo nosso território. Esta é a terra dos meus pais, dos meus avós. Os brancos não são daqui, não podem vir aqui pegar a nossa terra!”

Quando Tuíre se torna Tuíra!

Segundo Tuíre, seus avós e seus pais sempre a incentivaram a se tornar uma guerreira. Ela foi formada para defender o território de seu povo. “Aqui tem remédio, tem comida, tem peixe, tem tudo. Tem aqui alimento nativo que fortalece o índio. Os kubēns trazem doenças, veneno, agrotóxico.” Quando teve seu primeiro filho, se deu conta de que precisava proteger a floresta, a terra, a água, tudo isso também para os novos que chegavam. Neste sentido ela percebe que as crianças representam a continuidade, o futuro do povo Kayapó.

Seguimos com a conversa. Fomos tateando os movimentos dela, os sinais de disposição em avançar na produção de nossa relação. Atentos, buscamos nas lembranças de Tuíre aquele dia, mais de uma década atrás, em que ela usou seu facão contra a instalação de uma usina hidrelétrica, em favor do povo indígena. Ela nos conta que os Kayapó souberam da construção da Usina Hidrelétrica de Kararaô, hoje Belo Monte, por dois antropólogos que trabalhavam com algumas aldeias. Eles explicaram para a então liderança Bepkororooti Kayapó, também conhecido como Paulinho Paiakã7, primo de Tuíre como seria o projeto. Rapidamente mobilizaram recursos para levar o máximo de indígenas à audiência pública agendada na cidade de Altamira. Segundo a narrativa de Tuíre, chegaram indígenas de todos os lados, cortando caminhos pela terra, riscando as águas dos rios com suas canoas, flutuando entre nuvens. Vieram de ônibus, barcos e aviões pequenos, todos lotados de guerreiros Kayapó.

7 Liderança Kayapó, internacionalmente conhecida na década de 1990, pela denúncia contra a exploração da Amazônia, exposto na mídia pela acusação de abuso, hoje reside na aldeia Aukrê como referência do povo.

Perguntamos então a Tuíre: “Você já sabia o que fazer? As lideranças indígenas combinaram o que fariam na audiência?” Nossa expectativa era de compreender o sentido das táticas usadas naquela ação ainda viva quase três décadas depois. Mas Tuíre, com aqueles olhos miúdos e profundos, como uma onça em descanso, apenas sorri e responde:
“Eu já sabia o que fazer. Fui com o espírito preparado!”

Tuíra revela que, durante a audiência, quando o diretor da Eletronorte José Antonio Muniz começou a falar sobre o projeto, ficou muito brava. Sentiu que estava sendo desrespeitada por ele. Levantou-se e caminhou até a mesa onde estava o diretor e esfregou o facão nas duas faces dele demonstrando que estava pronta para o confronto: “Vocês podem vir.”

“Mas e depois?” – perguntamos a Tuíre o que as lideranças e demais indígenas, presentes naquela oportunidade que ganhou repercussão mundial, disseram.

Neste momento, Dudu, que estava sentado, pediu para falar. Disse-nos que todas as lideranças que estavam ali levantaram e saudaram Tuíre. Fizeram uma dança e cantaram o canto da vitória! A partir deste dia, Tuíre, uma indígena valente, guerreira, conhecida apenas por seu povo, passa a ser reconhecida internacionalmente. É a partir deste dia, deste ato, que Tuíre torna-se Tuíra, com “A” no final, e passa a ser uma referência. Nasce o mito, mulher, guerreira, indígena Kayapó. Para nós, esta é uma marcação importante da história e do texto.

Tuíre é a pessoa que nos conta sobre sua vida, sobre seu nomadismo, sobre sua família, expõe suas preferências, sua pintura, seus filhos. TuírA é a imagem, o símbolo, a guerreira do povo Mēbêngôkre, que tem disposição para lutar, caçar, brigar para defender o território e a cultura de seu povo.

Tuíre é a mulher, indígena Mēbêngôkre.

TuírA é a imagem, a guerreira que empunhou seu facão pelo povo Kayapó.

Denominada pelos kubēns, vamos adotar este nome como referência às ações de luta, de guerra, de relação com a sociedade branca.

Mas, para termos certeza, perguntamos a ela: “E como você gostaria de ser chamada, então?”

Ela responde com um sorriso: “Tuíre foi o nome que minha avó me deu!

O gesto

Queríamos entender melhor os sentidos daquele gesto. O que seria este facão encostado nos dois lados da face?

Perguntamos à Tuíra, mas é Dudu quem encena e narra exatamente o significado destes objetos projetados ao alto ou que encostam em uma face.

Dudu busca uma borduna – uma espécie de cajado muito utilizado pelos indígenas nas manifestações, nas atividades fora da aldeia8. Falava ao mesmo tempo que encostava o objeto em meu companheiro de Escola, Cássio. Ele faz o gesto e seu corpo dança. Ele narra o sentido de passar o facão na face dos dois lados para pedir que o outro o respeite. E reforça que a borduna é utilizada pelos homens e o facão pelas mulheres.

8 É sempre curioso, quando encontramos indígenas em Brasília, especificamente em alguma audiência pública na Assembleia Legislativa, vermos ali na porta diversas bordunas que não podem entrar, pois são consideradas armas.

Dudu diz:
Se kubēn fala com respeito, elas abaixam o facão [e neste momento ele salta para trás e abaixa a borduna]. Se kubēn fala com desrespeito, não deixa a mulher falar, ela ergue o facão” – e salta novamente, agora com a borduna para cima.

O medo

A conversa me impactou profundamente. Meus olhos sentiram a vibração dos gestos de Dudu, do dedo indicador de Tuíra que ajudava a explicitar seus pensamentos. Seus olhos que se apertavam para afirmar sua valentia. Tamanha intensidade no movimento de seus corpos, uma agitação que me atravessava ao ponto de marejar os olhos. Começava a perguntar a mim mesma se Tuíra sentiu algum medo. Porque eu sentia: sentia medo da borduna que se levantava, sentia os olhos energizantes de Tuíra que daquele momento em diante se transformara na onça que esperávamos encontrar desde nossa partida. Como no momento em que o onceiro vai se transformando em onça em Meu tio o Iauareté, de João Guimarães Rosa9. A presença dela nos trazia um medo diferente: uma espécie de encantamento, um agito no peito, uma descarga de adrenalina, um arrepio. O efeito Tuíra tomava meu corpo. Ela nos atravessava com uma energia impressionante. Então, venço meu medo e pergunto:

9 Conto presente no livro Estas Estórias, de João Guimarães Rosa, publicado pela editora Nova Fronteira em 2015.

“Tuíra, do que você tem medo?”

Não tenho medo de nada!”, ela responde com a serenidade das onças, afirmando que, se alguém deve temer, são os brancos. Os brancos é que devem ter medo dela. E continua: “Não tenho medo nem de onça! Um dia eu estava com Dudu e Paiakã, passando pelo Rio Vermelho, quando duas onças vieram ao nosso encontro. Eles ficaram com medo, não gostaram não. Eu estava com meu facão e olhei para elas. Elas olharam para mim e se foram!” E acrescenta: “Não tenho medo de morrer! Estou pronta para caçar, para lutar, para me defender e defender os meus!

Ela conta (e Dudu confirma) que ele é bem mais medroso do que ela. Lembram que um dia, na aldeia Gorotire, Tuíre estava com bebê pequeno no colo quando ouviu um bando de porcões (porcos selvagens) passando. Ela deixou o bebê, pegou um machado e saiu para pegar um dos porcos. Tuíre não só abateu um dos porcos selvagens, como também trouxe a caça para casa. Esta é uma atividade tipicamente masculina entre os Kayapó. Mas Tuíre estava desde 1989 acima das convenções, das divisões do que era próprio destes universos. Tuíre mistura as dimensões do masculino e feminino. Após aquele ato da audiência pública em Altamira em que Tuíre tornou-se figura pública, constituiu-se também em liderança indígena, participando das reuniões com os caciques e sendo convidada para as atividades, atos e manifestações de toda ordem. Tuíre passou a ser ouvida pelo seu povo e pelos líderes, tornando-se uma nova Betikré do povo Kayapó.

Até os dias de hoje, Tuíra é reconhecida como a única mulher Kayapó com tal notoriedade. No cenário nacional, temos hoje Sônia Guajajara, mas até então tínhamos apenas o nome de Tuíra como referência feminina em torno da causa indígena.

Tuíre mãe, avó e guerreira!

Perguntamos como funcionava este acúmulo de atividades. Tuíre nos disse que passou por diversas aldeias. Esta condição do nomadismo, presente no modo como ela explica seu pensamento e sua história, é bastante interessante. Tuíre tem dois filhos, um neto de três anos e outro a caminho.

Nos diz que está contando a sua história para o neto. E vai fazer isso também com o que está para nascer. Está contando sobre ela e seus antepassados para que ambos também sintam vontade de lutar pelo seu povo, encorajando-os assim como ela foi encorajada por seus avós.

Não sei escrever, não sei falar português, mas eu luto! Meus netos vão estudar e vão ser guerreiros melhores do que eu!”, diz Tuire.

Ela manifesta muita preocupação com o futuro do povo. Segundo Tuíre, de modo geral os Kayapó procuram manter a cultura viva, a língua, os rituais, as músicas e danças. Mas revela também que alguns elementos estão se perdendo. Hoje em dia realizam somente uma festa com as mulheres, as demais são todas com homens. Sente também que a juventude poderia estar mais engajada nas atividades da aldeia: “O futebol está mais interessante para os mais jovens do que as danças, os rituais… Tem menino aqui que não sabe mais a música do milho”, acrescenta.

A luta, os aprendizados

Fizemos uma provocação à Tuíra sobre os aprendizados ocorridos com as lutas. Por muitos anos, os indígenas conseguiram impedir que o projeto de barramento no Xingu acontecesse, mas Belo Monte saiu do papel, então temos aí um cenário de talvez pequenas vitórias, seguido de uma contundente derrota. O que teria Tuíra a dizer sobre isso? O que diria aos povos que estão enfrentando situação semelhante de barramentos em outros rios, como o povo Munduruku no Tapajós?

Tuíra revela a percepção de que a Funai (Fundação Nacional do Índio) e o governo estão sempre em acordo, um acordo contra os interesses dos indígenas. Ela conta a história de um representante da Funai na época da construção da Usina de Belo Monte. Ele foi até ela e a convenceu de que todos os demais povos do Xingu estavam em comum acordo sobre a construção da usina, que apenas ela estava em desacordo. Eles disseram que a construção traria muitos benefícios para o povo Kayapó.

O governo prometeu nos ajudar se a usina fosse construída. A promessa era de fazer somente uma barragem! Nada disso foi cumprido, nosso povo continua sem nada. Tem muita barragem sendo planejada e nosso povo virá com força! O telhado da escola caiu, as crianças aqui estão sem estudar. Eles mentem! Não acredito mais no governo. Não negocio nada com o governo!”

Parece que Tuíra neste momento começa a elaborar pela primeira vez a questão que lançamos. Ela visivelmente expressa no olhar os possíveis aprendizados desta relação entre indígenas e Estado e nos faz lembrar o texto clássico de Pierre Clastres, A Sociedade Contra o Estado10, em que o filósofo e etnólogo expõe a ideia de que as sociedades ditas primitivas deixam de ser pensadas a partir da imagem do Estado como doador único de sentido e, com ou sem Estado, passam a ser reconhecidas como sociedades contra o Estado por trilharem um caminho natural de não afirmar as instituições como fundamentais para sua sobrevivência.

10 Pierre Clastres. A Sociedade Contra o Estado. Ubu, 2017

Tuíra continua:
É preciso ter cuidado com o governo. Nós estamos longe do Xingu aqui, mas vamos continuar cuidando dele. As barragens são muito perigosas, precisamos cuidar dos nossos rios.”

Tuíra afirma que, apesar de estarem distantes do Xingu, continuam a zelar por ele. Percebemos que o povo Kayapó sempre esteve muito ativo na interrupção dos barramentos, principalmente no Xingu. Hoje os povos mais atingidos por Belo Monte é que têm buscado seus direitos, e as grandes manifestações já não contam com o mesmo volume de indígenas Kayapós. No entanto, continuam travando suas batalhas.

Revelam Tuíra, Dudu e Kaprãnpói que um projeto da Ferrovia Paraense, um empreendimento do governo do Estado do Pará, está em andamento. A ferrovia vai passar a três quilômetros da Terra Indígena Las Casas e existe grande preocupação por conta das crianças. Outro empreendimento que tem unido não só o povo Kayapó, mas também o povo Munduruku e outros, é o empreendimento da Ferrogrão, obra que impactará cerca de 19 povos devido ao seu traçado, que pretende ligar o Mato Grosso ao Pará por trilhos.

Os Kayapós estão atentos. Sabem exatamente como as coisas acontecem no governo do Pará: não há abertura para conversas, para ponderações. O recado é claro:

Não vamos aceitar nada. Aqui não vão existir obras grandes que venham do governo. Esta ferrovia não será construída aqui! Vamos à luta e vamos bloquear esta construção.”

“O que fazer, então?”, pergunto, preocupada com os empreendimentos que vão impactar todos estes povos.

Precisamos estar juntos!”, diz Tuíra.

Uma provocação: “E se o presidente viesse aqui com bastante dinheiro para fazer outras barragens, o que você diria?”

Nós liberamos uma barragem com a mão esquerda. Sou representante Kayapó e venho defendendo tudo o que temos. Eu deixei a barragem acontecer e eles tinham que arcar com o compromisso deles: melhorar a vida dos Kayapós. Hoje eles estão ricos, a energia está funcionando, mas e aqui na minha aldeia? Aqui não tem energia. Aqui não tem nada. Vou conversar com os outros parentes e vamos cobrar isso!

Nesta parte final da conversa Tuíre era já Tuíra, a onça encarnada, a gesticular e falar alto. Uma voz aguda penetra nossos ouvidos disputando com a chuva forte que cai do lado de fora da casa de costura. Esta mudança de comportamento de Tuíre foi percebida por nós aos poucos. Ao chegarmos, encontramos uma senhora, uma Tuíre calma, tranquila, tímida, sorrisos frequentes numa face relaxada. Uma onça em estado de anestesiamento, como quando precisa de cuidados. Onde estaria a guerreira? À medida que Tuíre recorda suas memórias, as perguntas vão fazendo seu pensamento vibrar e algo se passa. Ela passa a olhar-nos fixamente nos olhos, ela gesticula, ergue a voz. Afirma com o corpo suas posições. Nos impõe sua presença guerreira: Tuíra está aqui! A onça agora acordada. Acabou-se o efeito do anestésico estamos inebriados do efeito Tuíra! Sua presença forte, determinada, despossuindo a nossa subjetividade ao impor a sua e dizer que não sente medo. Ao dizer que vai acertar as contas com o governo. Ao dizer que está sempre pronta para a guerra!

Essa energia em defesa da vida é o que mais nos falta neste ambiente opaco, que chamamos de civilização. _

Se preferir, baixe o PDF da revista Tuíra #01.

plugins premium WordPress