Por Vitor Janei
Então, como as crianças lutam? De que forma resistem? De que modo elas escapam das estratégias de dominação que lhe são impostas? | Foto: Jenny Sowry/Divulgação
Embora hajam exceções, sabe-se que as crianças, em geral, não estão organizadas em um sindicato, partido ou associação, para fazerem ouvir seus protestos, defenderem seus interesses, reivindicarem seus direitos. Da mesma maneira, elas não formam nenhum exército, tropa ou milícia de resistência, ainda que muitas delas sejam recrutadas pelo tráfico ou grupos armados mundo afora.
Há nessas duas estratégias, o sindicato e o exército, uma certa relação com o Estado, regida por todo um conjunto de códigos, regras, instituições, hierarquias e comandos. Porém, o modo como as crianças resistem é alheio aos carros de som, passeatas, cartazes, votações, eleições de representantes ou aos códigos de honra e de conduta, à hierarquia, patentes, ordens e disciplina.
Então, como as crianças lutam? De que forma resistem? De que modo elas escapam das estratégias de dominação que lhe são impostas? De que maneira rompem com as técnicas de controle, administração e governo de seus corpos nas instituições? De que jeito elas recusam os discursos, expectativas, modelos, padrões, clichês, representações, imagens e ideias que imperam sobre elas? Como elas fazem para que suas manifestações e gritos de protesto sejam ouvidos?
Fundado em 2000, o sindicato União das Crianças e Adolescentes Trabalhadores da Bolívia (Unastbo), foi criado por crianças trabalhadoras que reivindicavam que seus direitos fossem respeitados. Em 2014, o sindicato conseguiu que a Assembleia Nacional aprovasse uma reforma do Estatuto da Criança e do Adolescente do país, para reduzir a idade mínima de trabalho para dez anos em casos excepcionais. Fonte: Lorena Arroyo, BBC Mundo
Resistir não é apenas bater de frente com o inimigo, confrontar-se, chocar-se, opor-se. O embate, seja ele físico ou político, é apenas uma entre muitas estratégias que pode ser adotada. A dialética é somente um jeito de ver o jogo de forças, ela reúne uma diversidade de elementos e as reduz a um jogo de opostos e de contraditórios, a dois pólos, em que a contradição é o motor da diferença. Há outras maneiras de resistir. Na perspectiva de Gilles Deleuze, o ato de criação é, de certa maneira, ato de resistência. Resistir é criar, resistir é inventar.
Muitas das perguntas colocadas pelas crianças para nós se encontram na dimensão daquilo que ainda não é conhecido, naquilo que é possível inventar, numa dimensão anterior às perguntas e respostas já formuladas, dos problemas já construídos e resolvidos, com soluções dadas e correspondentes. As crianças habitam o desconhecido. Tudo é novo, é estreia, inauguração, primeira vez. Nada está dado, tudo está em aberto. Tudo está para ser criado e inventado.
Para Anete Abramowicz, “a infância é uma espécie de outro do mundo”. Talvez as crianças possam nos ajudar a pensar um novo modo de pensar a resistência, a dar um novo início às lutas políticas, a criar outras formas de resistir e pode ser que nesse encontro com a criança, nasça uma “infância da resistência”, um modo infantil de luta política.
Cito dois exemplos: o primeiro tem a ver com a atual campanha eleitoral para a presidência no Brasil. É possível ver, nos últimos meses, toalhas estampadas com os rostos dos candidatos sendo vendidas nas ruas e esquinas pelo país afora. E, as vésperas do primeiro turno, as mídias sociais divulgaram um “toalhaço”, manifestando apoio a um dos presidenciáveis. Ver pessoas desfilando com suas toalhas é algo irreverente, insólito, inusitado. Parece até “coisa de criança”, no bom sentido do termo.
O segundo, é o projeto “Motoca na praça”, realizado pela Escola Municipal de Educação Infantil “Armando de Arruda Pereira”, em que as crianças ocupam o centro da cidade de São Paulo usando triciclos. Elas visitam parques, praças, museus e outras instituições públicas e privadas, acompanhadas pelas professoras. Experimentam o espaço urbano de modo novo, inédito. E, “o que é inédito para as crianças, muitas vezes é inédito para a cidade”, como afirma uma das docentes que participa da proposta.
Neste sentido, afirmar uma “infância da resistência” tem a ver com tirar a resistência do “seu” lugar e situá-la em outros lugares, reconectá-la com o intensivo no mundo, com as forças intempestivas que habitam o cosmos e arrancá-la dessas formas caducas e engessadas de luta política. É preciso inventar um novo modo de pensar a resistência, ter um novo início a partir de um lugar minoritário, molecular, intensivo.
O imperativo “Lute como uma criança” tem o intuito de provocar o pensamento e o ato político. Lutar como uma criança não é imitá-la ou assemelhar-se a ela, mas sim pensar e agir de modo infantil política, conceber a resistência à maneira da criança, de modo novo, outro, inédito e inventivo. Talvez pudéssemos falar de um devir-criança da resistência. Devir não é imitar, assemelhar-se ou tornar-se outra coisa num tempo sucessivo. Sendo assim, devir-criança não é tornar-se uma criança ou imitá-la, muito menos infantilizar-se. Devir é encontro, entre acontecimentos, movimentos, ideias, multiplicidades, diferenças, afetos.
Mais do que tentar aprender ou apreender na infância outras formas de resistir, é necessário instaurar zonas de vizinhança, espaços de encontros, de atravessamentos, de contaminação e de contágio com a infância; uma tentativa de reconectar a resistência com o intensivo no mundo, com as forças intempestivas que habitam o cosmos, com os fluxos que atravessam a sociedade, a fim de reinventarmos nossas estratégias de resistência e criarmos novas formas de luta política.