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Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

O que o avanço do fundamentalismo nas eleições para os Conselhos Tutelares tem a nos dizer

Por Vitória de Oliveira – 09/10/2023

 

 

Nas duas últimas eleições para os conselhos tutelares, o Estatuto da Criança e  do Adolescente (ECA) ficou em segundo plano para uma porção significativa do eleitorado e dos candidatos; a ativista Vitória de Oliveira examinou as causas e consequências dessa movimentação

Um levantamento feito pelo CMDCA de São Paulo mostrou que 53% dos conselheiros que tomaram posse em 2020 são ligados a denominações neopentecostais. | Foto: Agência Brasil

Único no mundo, inovador e pioneiro: essas são algumas palavras que nos ajudam a definir a importância dos Conselhos Tutelares no Brasil. Porém, eles também são vítimas de uma falta de regulamentação unificada entre municípios, com a  precarização, além de servirem como trampolim político para a extrema-direita. Se as eleições deste ano mostram alguma coisa é que os Conselhos são um espaço de disputa. E os dados corroboram: neste ano, a eleição teve participação recorde, com aumento de 25,8% no número de votos em relação ao último pleito, em 2019.

Um panorama histórico

Mesmo que pareça evidente que cada pessoa deva ter seus direitos respeitados, as crianças e adolescentes não eram – e de uma certa forma, ainda não são – vistas como sujeitos com garantias fundamentais que devem ser asseguradas. A visão, tão essencial para essa parcela da população, só começou a mudar há menos de quarenta anos.

Sendo o instrumento de direitos humanos mais ratificado no mundo, a Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), realizada pelo Fundo das Nações Unidas em 1989, foi um compromisso assumido por 196 países — o único país a não assinar o documento são os Estados Unidos da América. A CDC, debatida por anos e enfim aprovada com 54 artigos, fez com que a legislação de proteção às crianças e adolescentes avançasse em todo o globo (menos nos Estados Unidos).

E não à toa, um ano depois e após a promulgação da Constituição Federal (que inclusive menciona crianças e adolescentes como sujeitos de direitos no artigo 227), o Brasil rapidamente entendeu que deveria tratar o assunto como prioridade: em julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi criado, no que foi uma das primeiras iniciativas de ratificação da CDC no mundo, logo após o fim da ditadura militar — um período sombrio e de negação de direitos.

O ECA, então, foi constituído num momento de reconstrução do país e de volta da participação popular na construção de políticas públicas. Substituindo o Código de Menor, o ECA nos proporciona uma mudança de paradigma significativa e garantidora de direitos. 

Ainda sendo desenhado

Todo esse contexto serve para dizer que os Conselhos Tutelares, órgãos autônomos e não-jurisdicionais criados a partir do ECA, não surgem do nada. Eles foram criados para fazer com que o ECA seja  seguido, protegido e efetivado em todos os municípios brasileiros. 

Apesar de serem independentes, as condições de trabalho e toda a regulamentação dos Conselhos é definida pela Prefeitura. Então, apesar de não haver qualquer vínculo de subordinação, os Conselhos são dependentes do poder Executivo. Os salários variam, a formação recebida por Conselheiros não é regulamentada e até mesmo a quantidade de verba disponibilizada pelos municípios é bastante díspar. 

Os requisitos do concurso público para tornar-se Conselheiro não são os mesmos em todas cidades: enquanto a cidade A pode solicitar provas sobre conhecimentos sobre o ECA, a cidade B pode simplesmente solicitar um exame psicotécnico para atestar que as candidaturas são aptas à eleição.

A data da publicação do edital que dispõe sobre a eleição para Conselheiros Tutelares também fica a critério da Prefeitura e do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA). A falta de um processo unificado entre as cidades brasileiras mostra que apesar de revolucionário, os Conselhos Tutelares ainda estão em construção. E isso também é motivo de disputa.

No alvo do extremismo

Apesar de todos os problemas envolvendo a precarização, todo espaço de poder é um espaço político. Construído a partir da luta de uma sociedade civil preocupada em proteger o ECA, a escolha local de conselheiros começou a ser vista como um alvo da extrema-direita e do proselitismo religioso já há algum tempo.

E o crescimento do envolvimento de igrejas na decisão de políticas públicas não deve ser visto com surpresa, muito pelo contrário: se o Conselheiro Tutelar é geralmente encarado como uma instituição das comunidades, não há exemplo maior de desenvolvimento e influência no território brasileiro do que as igrejas evangélicas.

Eleições desse ano tiveram recorde de participação popular | Foto: Agência Brasil 

O livro-guia é a Bíblia

Para quem enxerga a salvaguarda ECA como a máxima da missão do órgão, é no mínimo esperado que o candidato ao Conselho tenha envolvimento com a garantia do direito de crianças e adolescentes. Mas não é o que vem acontecendo.

O Conselheiro Tutelar pode ter a sua crença, partido e exercer a sua identidade como cidadão. O que não deve acontecer é o trabalho deste profissional ser guiado por outro documento que não o ECA.  

Em 2020, um levantamento feito pelo CMDCA de São Paulo mostrou que 53% dos conselheiros que tomaram posse em 2020 são ligados a denominações neopentecostais. Toda essa articulação expõe o plano de expansão e influência de igrejas nas instituições que compõem o Estado democrático de direito.

No relatório, “Vamos ocupar o Conselho Tutelar: Moralismos e a desinformação nas eleições do Conselho Tutelar”, publicado pelo Observatório da Desinformação do Sleeping Giants Brasil, é possível ver as articulações digitais de bolsonaristas nessas eleições: o deputado Gustavo Gayer (PL-GO) disse em culto que era preciso votar em Conselheiros Tutelares ligados à igreja “para que quando algum militante for falar de ideologia de gênero na sala de aula, essas pessoas terão autoridade de entrar lá e falar: Aqui não!”. Já a deputada estadual Índia Armelau (PL-RJ) divulgou um contato que repassaria uma lista de candidatos (já que parlamentares não podem apoiar publicamente candidatos) e afirmou em vídeo que é preciso “zunir a esquerda do Conselho Tutelar.”

Formação política da extrema-direita

Fica muito explícito que, para os fundamentalistas, defender o Estatuto da Criança e do Adolescente, é sinônimo de propagar valores de esquerda. Essa visão é impulsionada pela desinformação e pelo projeto de expansão de influências da extrema-direita. Tanto é que os Conselhos Tutelares são vistos como um espaço de formação política da extrema-direita. 

Quando as igrejas lançam seus candidatos, investem financeiramente em suas campanhas com seriedade, além de se articularem estrategicamente para ocupar as redes sociais e usarem dos cultos para realizarem propaganda eleitoral. Isto é curioso, visto que a escolha da sociedade pelos Conselheiros não é exatamente uma eleição, mas uma votação local. 

Os votos, conquistados através de uma divulgação massiva baseada na desinformação e até mesmo da locação de automóveis para transportar fiéis até seus colégios eleitorais, não são importantes apenas para eleger, mas para servir como uma métrica da força que determinado grupo tem. Isso nos leva a um ponto preocupante quando olhamos para os Conselhos.

 São muitos os casos de Conselheiros Tutelares eleitos que tiram vantagens do cargo que, apesar de não ter a mesma influência que uma vereança por exemplo tem, são significativas. O contato com mais comunidades se expande, e daí surge a chance de se utilizar do cargo como um trampolim político, seja como uma candidatura ou cabo eleitoral. 

Pela falta de investimentos e regulamentação nos Conselhos nos municípios, depois de um tempo, os Conselheiros interessados em crescer politicamente percebem as dificuldades de realização do trabalho, além da baixa remuneração. Suplentes são chamados e percebe-se que o comprometimento com os direitos de crianças e adolescentes nunca foi prioridade.

Não bastam olhares atentos

Apesar das complexidades na vida dos Conselheiros que encaram o ECA como a máxima do trabalho, o Conselho Tutelar é um espaço que merece toda a atenção do mundo: é local de acolhimento, proteção e zelo pelos direitos humanos. Se as eleições não eram tão decisivas para o futuro de certos municípios há algum tempo, agora servem como uma corrida eleitoral antecipada.  

Para que não hajam mais casos de intolerância religiosa ou influência na interrupção da realização de aborto de vítimas de violência sexual (o que é um direito), a sociedade civil não precisa apenas pautar os Conselhos Tutelares fora de ano de disputa pelo cargo de Conselheiro, mas ocupar comunidades e chegar nas pessoas, de fato.

Depois de quatro anos de uma Assistência Social liderada pela ex-Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Damares Alves, indicado pelo fundamentalista religioso-cristão Jair Bolsonaro, e de um bolsonarismo entranhado nos municípios brasileiros, é preciso entender que os efeitos de suas políticas ainda ecoam e afetam o Brasil inteiro.

Há muitos espaços vazios que estão sendo tomados pela fé e pelo extremismo. Pensar em um projeto de disseminação de uma cultura democrática e cidadã não é pensar apenas em salvar os direitos de crianças e adolescentes, mas uma sociedade inteira: é preciso frear a disseminação desse vírus altamente proliferativo chamado extrema-direita.

Festival Fala! alia cultura, ancestralidade e comunicação como ação política

Por Luiza Ferreira – 29/09/2023

 

 

Realizado entre 21 e 23 de setembro, em Recife (PE), o evento debateu diversidade, jornalismo de causas, cultura popular e resistência climática

Foto: Festival Fala l Divulgação

“Os movimentos sociais históricos deste país precisam parar de olhar a comunicação como instrumental, só para a divulgação das causas. Comunicação é um campo político, um campo de ação política”, disse Ana Veloso, jornalista e professora da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE).

As palavras da professora, durante o terceiro dia do Festival FALA! 2023 de Comunicação, Cultura e Jornalismo de Causas, realizado entre os dias 21 e 23 de setembro, em Recife (PE), ilustram alguns dos atravessamentos abordados nas mesas e oficinas dos três dias de evento. 

No centro das discussões, a luta pela construção de uma comunicação popular, que fuja dos velhos paradigmas e que se interesse por contar novas histórias, de outras maneiras e com novas vozes da diversidade e que esteja no centro da ação política, encarando também a necessidade da comunicação ser realizada pelos povos e por seus territórios.

Quem comanda a organização do Festival é o Instituto FALA, organização que nasceu “para promover e reverberar o encontro de novas agendas, formas e linguagens de um jornalismo baseado em causas e experiências”, juntamente com os veículos Alma Preta, Ponte Jornalismo, 1 Papo Reto e Marco Zero Conteúdo.

A noite de abertura, na quinta-feira (21/09), homenageou o poeta recifense Miró da Muribeca, que faleceu no ano passado. O poeta foi escolhido por comunicar seus anseios, sentimentos, emoções e denúncias através da poesia e da performance pelas ruas do Recife. 

Narrativas ancestrais para uma nova comunicação

 

Mãe Beth de Oxum, que participou da mesa “Comunicação e ancestralidade: memória e linguagem para a transformação”, trouxe em sua fala a indignação com a falta de representavidade do povo negro e dos povos de terreiros na comunicação feita no Brasil. Para a Yalorixá, que comanda uma rádio em sua comunidade, é preciso abrir cada vez mais espaço para os comunicadores populares liderarem a informação em seus territórios a partir de investimento governamental na democratização dos meios de comunicação.

“A gente começou a se apropriar da comunicação e a dar oficinas quando a gente entende essa importância. Essa rádio que nós temos no nosso terreiro e na nossa comunidade é um produto de uma resistência. As rádios comunitárias foram muito perseguidas, as que sobraram foram cooptadas pelas igrejas. A gente precisa de uma mídia para formar e trazer a sociedade civil para ocupar esse espaço. Cadê a rádio do povo preto, do povo indígena?”, questionou.

Géssica Amorim, fundadora do Acauã, coletivo de jornalismo de Pernambuco, reforçou a importância de se produzir um jornalismo em que “todo mundo e todo lugar importa, independente de onde veja e onde esteja”.

Comunicar o território

 

A discussão sobre o protagonismo dos povos e de seus territórios esteve presente em todos os no Festival FALA!. André Fidelis, do Força Tururu, coletivo de midiativismo de favela, sempre se viu incomodado com a forma que a mídia retratava as mazelas da sua comunidade, e isso serviu de mote principal para criação do coletivo, “que trabalha a comunicação popular e comunitária para ecoar vozes e enfrentamento das desigualdades sociais”. Para André, é preciso falar na linguagem das pessoas da comunidade, uma “linguagem que gere empatia, reflexão e ative nas pessoas reflexão sobre os problemas da própria comunidade”. 

Foi a mesma possibilidade de comunicar o seu próprio território que Takumã Kuikuro encontrou no cinema uma forma de perpetuar a cultura dos povos indígenas. Além de cineasta, Kuikuro é idealizador do 1º Festival de Cinema e Cultura Indígena (FeCCI).

“Estamos trabalhando dentro da nossa comunidade, estamos lutando para nos tornar protagonistas das nossas próprias histórias. Valorizando nossa cultura, nossa língua, nossos costumes através do cinema. No nosso trabalho como realizadores e documentaristas, nós nos sentimos como comunicadores da floresta”, ele disse, durante a mesa “Incidências climáticas: meio ambiente e direito à vida em pauta”.

O que pode o jornalismo de causas?

 

Foi durante a roda de conversa “Questões identitárias ou estruturais? O que pode o jornalismo de causas”, que Ana Flor Fernandes, Cristian Góes, Raquel Kariri e Rosane Borges debateram sobre a identidade dentro do processo comunicacional e na construção do jornalismo de causas.

Para Raquel Kariri, o debate hoje posto sobre identidade no Brasil é um debate que provoca um imenso apagamento dos povos indígenas do Brasil. 

“Ou eu falo para comunicar outro mundo, ou eu falo para reativar minha rede de magia e encantaria para fazer frente ao esvaziamento neoliberal ou não estamos fazendo nada. Ou reativamos a magia a partir do nosso território, ou então a gente vai passar pelas ruínas desse planeta de forma indigna. Que tenhamos a capacidade de nos unir, mas também para a anunciação de outros mundos, outras vidas de encantaria”, afirmou a ativista.

A educadora Ana Flor Fernandes trouxe a necessidade de romper com processos violentos contra toda forma de diversidade, em especial às vidas trans e travestis no Brasil, que foram construídos por algumas instituições, entre elas o próprio jornalismo, a partir da perspectiva de uma “biopolítica da transfobia”, que constitui socialmente um modo de viver e um modo de pensar que rejeita a existência da travestilidade e de corpos trans. 

“Eu tenho certeza que se a gente for capaz de construir um Brasil bom para as travestis, ele vai ser um país bom para a imensa maioria das pessoas também”, finalizou a pesquisadora de gênero, sexualidade e política.

Quer ler mais? Confira a nossa cobertura do Festival Fala! no Instagram da Escola da Ativismo ou leia nossas matérias especiais sobre o encontro: 

> Por uma comunicação que construa novos mundos: a identidade como estrutura e o papel do jornalismo de causas
> “A história oficial do brasil é desinformação” — indo além do trauma bolsonarista para pensar sua superação

“A história oficial do brasil é desinformação” — indo além do trauma bolsonarista para pensar sua superação

Por Pedro Ribeiro Nogueira – 23/09/2023

 

 

Debate durante o Festival Fala! propõe a educação midiática como um olhar para a própria história e a comunicação como ação política

(Da esquerda para a direita) Ana Veloso, Catarina de Angola, Ariel Bentes e mediadora Martihene Oliveira durante a roda de conversa “Educação Midiática: caminhos para combater a desinformação e o discurso de ódio” | Foto: Pedro Ribeiro Nogueira/ Escola de Ativismo

Quando pensamos em desinformação, discurso de ódio e ascensão da extrema-direita, é inevitável que voltemos os nossos olhares para o que foi o processo do governo Bolsonaro, sua chegada ao poder e quais tentáculos permaneceram fincados no debate público e na política brasileira. Afinal, foi um período traumático, no qual a desinformação efetivamente contribuiu para uma política genocida que causou mortes em massa durante a pandemia do Covid e ataques aos biomas, povos tradicionais e populações periféricas.

Porém, para superar e ultrapassar esse estado de coisas, é necessário olhar mais longe e examinar as raízes, imaginar e inventar estratégias de formação crítica, educação de mídia e combate à desinformação.

“A gente fala da importância das pessoas checarem as informações, mas a gente só vai conseguir isso quando as pessoas conhecerem a própria história. Somos um país estruturalmente desigual e a desinformação está a serviço dessa estrutura” apontou Catarina de Angola,  jornalista pernambucana, fundadora da Angola Comunicação, durante o 4º FALA! Festival de Comunicação, Cultura e Jornalismo de Causas, que aconteceu entre os dias 21 e 23 de agosto em Recife (PE).

A fala de Catarina expandiu a noção de desinformação. Segundo a comunicadora, a história oficial do Brasil é desinformação. E a mídia, assim como a academia, sempre esteve a serviço de uma história que desumaniza existências não-brancas e transgêneras. “A educação midiática é antes de tudo a capacidade de a gente refletir criticamente sobre nossa história”, pontuou.  “A gente falava de polarização política, mas é uma disputa desigual de narrativas. E a gente disputa esse campo por existir,  por nosso corpo circular nos espaços”.

 

Comunicação enquanto ação política

 

A noção defendida pela jornalista da história brasileira como desinformação e da comunicação como elemento estruturante da mobilização popular, esteve em íntimo diálogo com a fala de Ana Veloso, professora da UFPE e coordenadora da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadoras com Visão de Gênero e Raça. 

Ela ressaltou que a mídia tradicional tentou se credibilizar durante a pandemia fazendo o que deveria ser seu dever: combater o negacionismo, a desordem informativa e o autoritarismo. “Mas, ao fazer isso, eles se colocaram como ‘o jornalismo profissional’, descredibilizando o jornalismo independente da mídia disruptiva. Parecia que a velha mídia patrocinada pelo agro e capital nunca tinha praticado desinformação”. 

De acordo com a pesquisadora, é preciso que a sociedade civil “ocupe espaços e vá pra cima” do governo federal para discutir política pública de comunicação, regulamentação democrática da mídia e das plataformas digitais. “Os movimentos sociais históricos desse país precisam parar de olhar a comunicação como instrumental, só para a divulgação das causas. Comunicação é um campo político: um campo de ação política!”, disse.

E provocou: “A gente devia ser ousada. Por que não discutir uma educação para tomar a mídia? Para construir nossas próprias plataformas? Temos que bater na porta, mas se não abrir a gente tem que arrombar e criar nossas mídias para fazer plataformização da vida contra as plataformas e os algoritmos do racismo e da morte. O povo sabe, o povo entende, não são vítimas nos territórios, são protagonistas de suas histórias e precisam se reconhecer numa mídia que reafirme isso”, concluiu.

 

Recortes

 

Mas como será uma mídia e uma educação midiática que esteja ao lado da vida, contrariando a necropolítica em cada passo? Ao contar sobre a Abaré – Escola de Jornalismo, um coletivo de educação midiática de Manaus, a co-fundadora Ariel Bentes trouxe apontamentos importantes. Segundo ela, a Abaré surge, durante a pandemia, da necessidade de um recorte das Amazônias – no plural, pois são muitas – que destoe de um jornalismo e de uma comunicação “feitas por brancos e sudestinos”.

Ela lembra que a Abaré foi criada enquanto Manaus atravessava uma crise brutal por conta da Covid 19 e da negligência do governo federal, que deixou que pessoas morressem sem oxigênio. Bentes reclama que tanto o jornalismo hegemônico, como o independente, ajudaram a reforçar a noção de uma “cepa amazônica” do Covid. “Estávamos, então, sendo duplamente massacradas”, lamentou.

Para contrabalancear isso, a Abaré se focou em produzir textos e fazer campanhas que combatiam esse preconceito e desinformação. Nos últimos tempos, o coletivo tem realizado oficinas em diversas escolas pelo Estado do Amazonas, para formar jovens que possam multiplicar leituras críticas de mídia.

“Nossa ideia é que os jovens conversem com a tia, com o avô, com os pais e ajudem a espalhar essa educação midiática. As pessoas geralmente acreditam em desinformação porque um parente enviou, tem essa relação emocional”, disse.

E não pararam por aí: durante as eleições de 2022, foram ao bairro da Compensa, em Manaus, para conversar com a população e panfletar sobre desinformação. “É o bairro mais estigmatizado pela mídia e quisemos ir lá para fazer o corpo-a-corpo. E muito da educação midiática demanda isso: de ir pra rua, de encontrar as pessoas, de colar lambe, de panfletar”, concluiu.

Quer ler mais? Confira a nossa cobertura do Festival Fala! no Instagram da Escola da Ativismo ou leia nossas matérias especiais sobre o encontro: 

> Por uma comunicação que construa novos mundos: a identidade como estrutura e o papel do jornalismo de causas
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Por uma comunicação que construa novos mundos: a identidade como estrutura e o papel do jornalismo de causas

Por Mario Campagnani – 23/09/2023

Ana Flor Fernades, Raquel Kariri, Cristian Góes e Rosane Borges durante a roda de conversa / Foto: Nayara Almeida

Escrever sobre o que acontece no mundo, definir que informações são importantes de serem divulgadas não é apenas reportar, mas também alterar, construir a realidade. A opção adotada pela imprensa comercial na construção da imagem do que é o Brasil, o brasileiro, chegou a um momento de colapso, tanto na questão da credibilidade como também na dificuldade de se adaptar às novas formas de se comunicar. Se a partir daí vemos uma possibilidade de construir algo novo por meio do jornalismo de causas, da comunicação ativista, há também a imensa responsabilidade de não acabar perpetuando esses antigos valores.

Porque ao falar dos problemas estruturais, o jornalismo de causas também precisa se identificar como parte dessa estrutura, e pode acabar reformulando, mas mantendo as opressões se não houver um incômodo, uma vontade de construir novas formas de pensar, ressaltaram os participantes do debate “Questões identitárias ou estruturais? O que pode o jornalismo de causas”, realizado durante o Fala! Festival de comunicação, cultura e jornalismo de causas.

Para Raquel Kariri, da Escola Livre de Ancestralidades Kariri, é necessária uma reconfiguração do jornalismo a partir do debate da ancestralidade, o debate que os povos indígenas vêm trazendo. A primeira questão, segundo ela, é a necessidade de reconhecer que o mundo, a biosfera, está em colapso.

“Ou eu falo para comunicar outro mundo, ou eu falo para reativar minha rede de magia e encantaria para fazer frente ao esvaziamento neoliberal ou não estamos fazendo nada. Ou reativamos a magia a partir do nosso território, ou então a gente vai passar pelas ruínas desse planeta de forma indigna. Que tenhamos a capacidade de nos unir, mas também para a anunciação de outros mundos, outras vidas de encantaria”, afirmou a ativista.

Dentro desse esvaziamento nada é por acaso, lembra o jornalista Cristian Góes, coordenador na Mangue Jornalismo. O projeto político de construção do Brasil precisou de uma forma de ver o mundo onde o diferente, o inimigo, foi um papel imposto a todos aqueles que não eram homens brancos.

“Tudo que não era o ‘nós’ eram os outros, os de fora, dentro dessa ideia europeia de estado nação. Os outros eram invasores nessa concepção europeia. Aqui no Brasil, onde a configuração é diferente, esse papel do outro foi colocado nas populações negra, nos povos tradicionais”, afirmou Góes, acrescentando que discutir o jornalismo de causas é discutir a questão de estrutura do Brasil.

“Pensar o jornalismo de causas sem meter o dedo na estrutura, mobiliza mas não transforma. Não é apenas trazer a cultura só pela cultura, não é só trazer as questões da identidade para cima da estrutura, mas é pensar essas questões mexendo nela. Inclusive, é preciso libertar o jornalismo aprisionado nas instituições. Esse modelo está falido, em parte pelo trabalho das mídias independentes, mas precisa ser radicalizado, para que não fiquemos numa espécie de superfície do campo jornalístico. Eu quero que façamos jornalismo identitário, com ancestralidade, mas indo a fundo, sem ficar só na superfície”.

 

Os caminhos da invisibilização

A comunicação hegemônica, que é parte desse projeto estrutural que vem levando o mundo ao colapso, atua de formas perversas com esses corpos que lutam por reconhecimento. No debate foram apresentados os conceitos de invisibilidade pela ausência e pela presença. A primeira é aquela que apenas ignora, que não abre espaço para essas histórias, como se elas não existissem. A outra é quando a própria representação é feita de uma forma que não está interessada na descrição, no aprofundamento dessas vidas e histórias, mas sim na construção dessas figuras como inimigos, sujeitos matáveis, como ocorre com a população negra, os sem-terra e as travestis, por exemplo.

A educadora Ana Flor Fernandes, pesquisadora de gênero, sexualidade e política, lembra quando era criança e voltava da praia com sua família em Recife e, ao passar por uma avenida que era ponto de trabalho sexual de travestis, as pessoas fechavam as janelas dos carros, havia um medo daquelas pessoas que ela também sentia. Ao escrever sobre isso, sobre ter se tornado algo que ela mesma inicialmente tinha medo, ela também começou a pesquisar sobre o papel da imprensa na construção desse sentimento.

“Meu trabalho costura de alguma forma o que o jornalismo foi capaz de fazer com essa identidade. Não foi apenas a polícia durante a ditadura militar que fez com que as travestis fossem presas. Foi também pelo o que o jornalismo é capaz de subjetivar, quando você assiste ou lê sobre aquela determinada identidade, sobre quais vidas são passíveis de luto”, citando o trabalho de jornais como a Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo, que na década de 1970 publicava manchetes como “Perigo! As travestis estão à solta”.

Ana Flor, contudo, afirma que o caminho para que o jornalismo de causas não perpetue essas mesmas práticas da mídia hegemônica é dar mais atenção e abrir espaço, lembrando que essas histórias e vidas não são apenas sobre violência e dor.

“Eu escolhi algo que é muito difícil para uma travesti negra, eu escolhi ser feliz. Hoje temos visto as travestis disputando a política, nós queremos estar nesses espaços. Nós queremos e precisamos estar em espaços como este festival falando de construir outras propostas de mundo, sobre o que é importante para o Brasil. Porque, se o país é bom para as travestis, não tenho dúvidas que será bom para quase todas as pessoas” disse Ana.

A professora Rosane Borges, que mediou a mesa, trouxe como conclusão que a luta política no jornalismo está na bandeira de defesa do que é humano. “Precisamos defender a humanidade do outro, não se trata de ser um bom ou mau jornalismo, mas que tipo de humanidade queremos construir”.

Quer ler mais? Confira a nossa cobertura do Festival Fala! no Instagram da Escola da Ativismo ou leia nossas matérias especiais sobre o encontro: 

> “A história oficial do brasil é desinformação” — indo além do trauma bolsonarista para pensar sua superação
> Festival Fala! alia cultura, ancestralidade e comunicação como ação política

 

 

Leituras, escutas e materiais para entender – e enfrentar – a extrema-direita

Por Debora Pio – 15/09/2023

 

 

Separamos livros, trabalhos acadêmicos e podcasts que discutem o fenômeno da extrema-direita no Brasil e no mundo

A ascensão da extrema-direita é um fenômeno que assusta. Ela tem crescido e feito cada vez mais estrago no mundo, por meios institucionais e na ação política de movimentos conservadores. Suas práticas ficam ainda mais evidentes em momentos como nas tentativas de golpe das últimas eleições brasileiras, a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, ou na destruição do Palácio do Planalto, em oito de janeiro deste ano em Brasília. Além de produzir atos violentos em si, ela também utiliza o ecossistema das redes sociais para se espalhar com muita rapidez e pouca regulação.

Mas a extrema-direita seria apenas uma antítese à democracia? Estudos apontam que ela é mais complexa do que isso. Suas práticas incluem desinformação, apego às pautas de costumes, fake news e muito ódio às minorias. Seus efeitos ainda são incalculáveis, mas começam a apresentar certa previsibilidade depois que cientistas de diversas áreas passaram a se debruçar sobre o problema.

Por isso, é importante que a gente esteja disposto e atento para compreender este fenômeno e saber como combatê-lo. Abaixo, realizamos uma curadoria de conteúdos para compreender o que é a extrema-direita, como suas ideias têm sido disseminadas e como devemos encará-la.

Livros para entender a extrema-direita

 

O mundo do avesso – Leticia Cesarino

Lançado em 2022, o livro aborda o populismo, pós-verdade, negacionismo, conspiracionismos e outros processos emergentes em um mundo onde a internet se tornou a principal arena de comunicação política.

“Zuero” e politicamente incorreto

O senso de humor da extrema-direita brasileira, conhecido principalmente por meio do intenso uso de memes, normalizou discurso de ódio contra mulheres, nordestinos e membros da comunidade LGBTQIAP+. De acordo com Luiza Foltran, pesquisadora do Monitor do Debate Político no Meio Digital da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, a estética “zuera” também pode ser considerada uma das portas de entrada do bolsonarismo. 

Sobre o autoritarismo brasileiro – Lilia Schwarcz

No texto, Schwarcz faz o exercício de derrubar o mito da cordialidade brasileira através de dados estatísticos e um exame nas origens do autoritarismo brasileiro. Ela aborda ainda nossa herança colonial, marcada pela escravidão e lógicas de dominação.

 

Red Pilled – O fascínio do ódio digital – Luke Munn

O livro traz um apanhado de histórias de pessoas comuns e análise de sites e redes sociais da extrema-direita, discutido por especialistas em estudos de mídia, de raça e gênero, psicologia e ciência política. O autor vai desenhando o passo a passo de como o ódio se infiltrou em corações e mentes no mundo digital.

A era do capitalismo de vigilância – Shoshana Zuboff

Zuboff chama a atenção para as consequências das práticas de empresas de tecnologia sobre todos os setores da economia. As big techs, como são conhecidas as principais empresas de tecnologia do mundo, vêm produzindo um enorme volume de riqueza e poder que, através das redes sociais, são negociados sem o nosso consentimento.

Fascismo: um alerta – Madeleine Albright

Depois da Segunda Guerra Mundial, o globo enfrentou o embate pela retomada da democracia. A autora argumenta que o fascismo não apenas perseverou, como continua sendo uma ameaça à paz internacional. O livro foi best seller #1 no New York Times no ano de 2018.

Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro – Raymundo Faoro

Mais uma publicação nacional para compreender a política no Brasil e suas origens. De onde brota o conservadorismo? No texto, Faoro (1925 – 2003) explora as raízes do patrimonialismo brasileiro, que se apropria dos aparatos políticos-administrativos e usa o poder público em benefício próprio.

Podcasts para entender o conservadorismo

Extrema direita: a onda reacionária que conquistou um país – Politiquês

A extrema direita clássica – Curso História e Política II

Retrato Narrado – Rádio Novelo

 

Misoginia, memes, espelhamento invertido: o que une e organiza a extrema-direita brasileira

Por Danilo Mekari – 13/09/2023

 

 

Quais são os padrões de comportamento e táticas que marcam o movimento da direita radical no Brasil

Extrema-direita se apropriou de táticas de manifestação associadas à movimentos progressistas e os tornou-as mais violentas| Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A década de 2010 ainda engatinhava quando um deputado federal carioca considerado “excêntrico” começou a ganhar espaço midiático, em programas na TV aberta como Superpop, Pânico e CQC. Em suas frequentes aparições, o parlamentar destilava racismo e homofobia sem pensar duas vezes.

“Dessa forma, Jair Bolsonaro chegava à superfície usando seu repertório de esgoto”, define o professor Michel Gherman, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). 

Alguns anos depois, em 2018, o capitão reformado do exército foi eleito presidente do Brasil com quase 58 milhões de votos. Já no ano passado, o candidato à reeleição recebeu ainda mais votos – exatos 58.206.322 – e, por muito pouco, não foi escolhido para um segundo mandato à frente do maior país da América Latina.

A expressiva votação de um representante da extrema-direita em eleições consecutivas deixa claro como o movimento radical ganhou musculatura para virar um fenômeno político e eleitoral no Brasil. Como mostramos anteriormente, o território brasileiro concentra hoje mais redes de extrema-direita do que todos os países europeus somados.

Especialistas presentes no seminário internacional Direita Radical em Debate, realizado no final de agosto em São Paulo, apontam alguns padrões de comportamento ultraconservadores como elementos que unem movimentos da extrema-direita brasileira: misoginia, uso de memes e da estética “zuera”, espelhamento invertido da realidade e revisionismo histórico.

Masculinismo

A misoginia é uma das marcas registradas do bolsonarismo e também pode ser considerada uma porta de entrada aos movimentos de extrema-direita. Essa é a visão de Bruna Camilo, doutora em Ciências Sociais e autora da tese “Masculinismo: misoginia e redes de ódio no contexto da radicalização política no Brasil”.

Para ela, não foi à toa que as questões de gênero ganharam tanta centralidade nos últimos anos: afinal, ao controlar conceitos de gênero, também controlam-se relações de poder. “O movimento masculinista é extremamente patriarcal e misógino, no qual as mulheres são vistas como aproveitadoras e perigosas”, observa Bruna. “E o bolsonarismo engloba esse movimento, promovendo discursos de submissão e exclusão feminina.”

O crescimento da cultura digital, impulsionada pela evolução tecnológica, transformou a internet em um espaço de disputa política. E foi no ambiente digital, aproveitando-se do anonimato e da impunidade, que se estabeleceu a manosfera, uma rede de comunidades ultra machistas que combatem o empoderamento das mulheres e defendem ideias antifeministas e sexistas. É nesse bojo que ganham força movimentos de masculinismo tóxicos como os celibatários involuntários (incel) e os red pill.

A filósofa e youtuber Contrapoints explica mais sobre os incels e os red pills no vídeo acima

“São grupos que defendem menos empoderamento e mais ‘empauduramento’. Aliás, todos eles seguem fielmente Olavo de Carvalho”, acrescenta Bruna, classificando o falecido como um significativo “orientador da misoginia”. Como exemplos práticos de violência cotidiana utilizada por esses homens, ela cita o uso de termos como “merdalheres” e “conservadias” e, com asco, descreve casos em que misóginos usaram aplicativos de relacionamento para se encontrar com mulheres que se descreviam como progressistas e, no momento do sexo, gritavam “Bolsonaro!” assim que ejaculavam.

“Zuero” e politicamente incorreto

O senso de humor da extrema-direita brasileira, conhecido principalmente por meio do intenso uso de memes, normalizou discurso de ódio contra mulheres, nordestinos e membros da comunidade LGBTQIAP+. De acordo com Luiza Foltran, pesquisadora do Monitor do Debate Político no Meio Digital da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP, a estética “zuera” também pode ser considerada uma das portas de entrada do bolsonarismo. 

O ecossistema virtual da direita radical, que engloba hackers e gamers, em sua vasta maioria homens e jovens, aposta na cultura da trollagem para – usando uma frase conhecida do bolsonarismo – “combater tudo o que está aí”.

“Muitos jovens entraram no movimento por meio da ‘zuera’, e ficam restritos à ela. Outros, porém, se politizaram nesse processo, virando ativistas digitais”, aponta Foltran, citando como exemplo os assessores do gabinete do ódio, grupo de servidores públicos que produziam desinformação de maneira sistêmica e oficial durante o governo Bolsonaro.

A pesquisadora cita também o salto de popularidade do conceito de “politicamente incorreto”, que usa a ambiguidade para defender que o establishment é enviesado por ideias de esquerda. “Eles não se enxergam como machistas, racistas e homofóbicos, mas sim contrários aos movimentos feministas, negros e gays. Podemos olhar para a ‘zuera’ bolsonarista como algo amplo. A ironia e o sarcasmo são características muito presentes na cultura brasileira, e nesse caso elas foram politizadas pela extrema-direita.”

Domínio no Youtube

Em agosto de 2022, a integrante do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Internet e Política da PUC-Rio, Letícia Capone, realizou um levantamento que evidencia o domínio dos canais de extrema-direita no YouTube brasileiro. A pesquisa mostrou que, durante uma semana, os 256 canais atrelados à ideias de extrema-direita somaram 88 milhões de visualizações e tiveram 14,7 milhões de interações, ao passo que os 104 canais do espectro à esquerda tiveram 20 milhões de visualizações e 3 milhões de interações. (Imagem: The Intercept Brasil)

Espelhamento invertido

Uma característica notável do movimento de extrema-direita no Brasil é o uso de um conceito que especialistas definem como “espelhamento invertido”. Trata-se da apropriação da linguagem e de elementos comumente relacionados ao ideário esquerdista, como as táticas de bloqueio de estradas e acampamentos, que se antigamente eram ligados à luta por reformas agrária e urbana, hoje têm aspectos golpistas e antidemocráticos.

“É o hackeamento da luta”, afirma Pedro Arantes, da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo. “Surge assim uma nova cultura reacionária, uma identidade e orgulho de ser direita.”

Para Letícia Cesarino, professora do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina e assessora especial no Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, essa bifurcação identitária cria uma lógica de guerra suicida. “Seguindo esse pensamento [muito bem exemplificado nesse meme], o inimigo é igual a mim – só que o meu oposto. Essa é a forma mais extrema de diferença, pois só pode ter um de nós ocupando aquele espaço.”

Uso do revisionismo histórico para transformar a ditadura em defesa da democracia foi adotada por grupos conservadores l Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Brasil Paralelo e o revisionismo 

Para além de guiar a misoginia bolsonarista, Olavo de Carvalho também está por trás da “guinada militante” da produtora Brasil Paralelo, segundo a pesquisadora do Laboratório de História Política e Social (LAHPS) da Universidade Federal de Juiz de Fora, Mayara Balestro, que produziu um mestrado sobre a empresa.

Fundada em 2016, a Brasil Paralelo produz materiais audiovisuais cujo foco central é a história do Brasil. Com um discurso extremamente meritocrático, na análise da pesquisadora, a empresa baseia suas produções em dois pilares: o revisionismo histórico e o ultraliberalismo. Foi no canal do Brasil Paralelo no YouTube, por exemplo, que o ex-chanceler Ernesto Araújo defendeu que fascismo e nazismo “são fenômenos de esquerda”.

Assim como outros grupos, a organização se radicalizou ainda mais com a vitória de Bolsonaro em 2018. “Foi o Olavo que deu a ideia da Brasil Paralelo ser uma empresa militante, pois apenas vender cursos não seria suficiente para resgatar os bons valores do Brasil”, observa Mayara. 

Conhecida como “Netflix da direita” por oferecer planos de assinatura mensal, a organização deve sobreviver à queda de popularidade do ex-presidente, segundo a pesquisadora. “É um projeto de longo prazo, que ocupa não apenas as redes sociais, mas também o território, por meio de uma parceria com o G10 Favelas, por exemplo, e que tem como público-alvo educadores de todo o país”, analisa. Segundo informações da própria empresa, a Brasil Paralelo possui hoje mais de 500 mil assinantes. 

Gramática antissemita

Com relação à perspectiva revisionista, Michel Gherman cita ainda as referências de Bolsonaro a David Irving, um dos mais famosos negacionistas do Holocausto. Em sua visão, o governo Bolsonaro e os grupos da direita radical adotam uma gramática antissemita, que prega a destruição de grupos minoritários.

“A extrema-direita tem um projeto de passado e quer recuperar a ideia que os direitos originais são deles, da branquitude”, crê. “Hoje temos o desafio de letrar as pessoas para uma perspectiva antifascista, pois na última década setores importantes da sociedade brasileira foram letrados para uma perspectiva pós-fascista”, finaliza Gherman.

De onde surgiu – e como se move – a nova onda de extrema-direita no Brasil e no mundo

De onde surgiu – e como se move – a nova onda de extrema-direita no Brasil e no mundo

Especialistas explicam características do movimento global de popularização do ultraconservadorismo que absorveu boa parte da direita tradicional e normatizou ideias retrógradas

Manifestação bolsonarista em Santa Catarina contesta as eleições em 2022 fazendo saudações nazistas

Foto: Reprodução

Pesquisas mostram que, hoje, o Brasil concentra mais redes de extrema-direita do que todos os países europeus somados. No início de 2022, a plataforma Antifascist Europe catalogou mais de 400 organizações extremistas no continente, ao passo que o Brasil já conta com mais de 530 células de extrema-direita, concentradas nas regiões sul e sudeste do país, de acordo com uma pesquisa feita pela ONG Anti-Defamation League no mesmo período.

“As minorias se adequem [às maiorias] ou simplesmente desapareçam.” A frase, que poderia ter sido dita por Adolf Hitler, foi proferida em João Pessoa, capital da Paraíba, em fevereiro de 2017, por aquele que seria eleito presidente do Brasil alguns meses depois: Jair Bolsonaro. 

Em um discurso de menos de um minuto, o então deputado federal reuniu alguns dos principais fundamentos políticos que – segundo especialistas presentes no seminário internacional Direita Radical em Debate, realizado no final de agosto em São Paulo – caracterizam a atual onda de extrema-direita global: nativismo, autoritarismo e populismo. 

De acordo com eles, essa nova onda apresenta um movimento radical de direita cada vez mais heterogêneo, midiático e normalizado. “As barreiras entre as direitas se transformaram”, observa o cientista político holandês Cas Mudde.

A quarta onda da direita radical

Especialista em extremismo político e populismo na Europa e nos Estados Unidos, Mudde considera que vivemos atualmente a quarta onda da direita radical desde o período pós-Segunda Guerra Mundial. Enquanto as primeiras estavam ligadas aos fiéis remanescentes do movimento fascista, a partir da terceira onda, nos anos 1980, a questão migratória ganha centralidade. “Até aqui, a extrema-direita era vista como outsider”, pontua. 

Essa realidade muda nos primeiros anos do século XXI, quando três eventos marcantes, com impacto global, deram novo fôlego aos movimentos radicais de direita, configurando a quarta e atual onda: o ataque às Torres Gêmeas em 2001, a recessão econômica em 2008 e a crise de refugiados em 2015.  

“O elemento que mais define essa onda é a popularização da extrema-direita”, acredita Mudde, lembrando que hoje as políticas públicas defendidas pelos radicais de direita não se limitam aos seus partidos. “A Dinamarca, por exemplo, é um dos países mais antiimigração da Europa, mesmo sendo governada por um partido social democrata. Isso significa que a direita tradicional e a radical se parecem cada vez mais, e mostra como as posições da direita extremista estão sendo normatizadas”, avalia.  

Um dos efeitos dessa normatização passa por diminuir a estigmatização do movimento, que começa a atrair mais apoio das elites econômicas e até mesmo intelectuais, antes majoritariamente avessas ao radicalismo político. Nesse sentido, o pesquisador considera o Brasil um exemplo perfeito da quarta onda: normatização de posturas ultraconservadoras radicais, combate à população LGBTQIAP+, misoginia e a radicalização do movimento, que resultou inclusive na tentativa de golpe em 8 de janeiro. 

“Apesar de ainda não ter uma estrutura partidária que seja claramente de extrema-direita, o movimento no Brasil conta com a simpatia das estruturas militar e evangélica e do lobby pró-armas, setores que nas últimas décadas vinham apoiando a direita tradicional, mas que se deslocaram para a extremidade.” 

Fascista, populista e autoritária

No governo Bolsonaro, o feriado de Sete de Setembro foi utilizado como um grande palanque nacionalista e patriótico. Durante quatro anos, o mandatário se apropriou da comemoração da Independência do Brasil e, mesmo durante a pandemia de Covid-19, promoveu desfiles cívico-militares e apoiou a organização de atos pró-governo. Ainda, o presidente aproveitou a data para exaltar o golpe militar de 1964 e, já de olho nas eleições, fazer críticas agressivas aos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e ao sistema eleitoral.

Coordenador do Observatório da Extrema Direita, Guilherme Casarões enxerga nessas manifestações, para além da óbvia exploração de um sentimento nacionalista, um bom exemplo de “tirania da maioria”, situação em que os interesses de minorias são constantemente atravessados em favor de uma maioria eleitoral. “Trata-se de um governo autoritário, que busca ressignificar o conceito de democracia por meio de noções como ‘supremo é o povo’”, afirma. 

Para além de autoritário, o governo Bolsonaro pode ser considerado autocrata, na opinião de André Singer, cientista político e professor da USP. “Há evidências de que o governo Bolsonaro tentou manipular as eleições de 2022. Para um projeto de poder absoluto como esse, é fundamental que haja a reeleição, que chancela pela maioria e dá muita legitimidade ao regime autoritário”, analisa. À lista de evidências de que o governo Bolsonaro era autocrático e autoritário, o professor soma ainda a retirada de autonomia de instituições de estado, como a Polícia Federal, a concentração de poder em si mesmo e a articulação para capturar as Forças Armadas ao seu projeto de poder.

No entanto, Singer afirma que o movimento bolsonarista não deveria ser considerado populista. “Inclusive, ele tem caráter antipopulista, já que o bolsonarismo tem o objetivo de destruir o campo popular na política”, opina. Para ele, também não há elementos suficientes para dizer que trata-se de fascismo. “Não vejo o bolsonarismo como um movimento de extrema-direita que vise conter uma revolução da classe trabalhadora, diferentemente da origem do fascismo, quando, após a Primeira Guerra Mundial, o Biênio Vermelho na Itália é derrotado pelo movimento fascista dirigido por Benito Mussolini.”

Diferentemente do fascismo histórico, Singer também não vê no governo Bolsonaro a construção de um estado voltado para a guerra. Contudo, o professor cita uma tendência fascista clássica muito presente no governo de Jair Bolsonaro: a exploração de mecanismos do inconsciente coletivo por meio da propaganda. “Foi criado um sistema delirante, muito além das teorias conspiratórias e notícias falsas”, que praticamente estabeleceu uma realidade paralela. “Isso não se trata de direita tradicional ou de extrema-direita, mas sim de fascismo.” 

A pesquisadora do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), Camila Rocha, pondera que esses conceitos – populismo, autoritarismo e fascismo – “não transparecem a existência de novos elementos da direita contemporânea, como o uso de mídias digitais, a cruzada anti-gênero, a erosão da legitimidade da ordem política neoliberal e corrosão democrática.”

Atos radicalizados como o de o8 de janeiro deste ano simbolizam o recrudescimento da extrema-direita

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ressentimento econômico

A pesquisa “Polarização política no Brasil”, realizada em novembro de 2021 pelo Instituto Locomotiva, revelou que 18% do eleitorado brasileiro se identificava com a extrema-direita, ao passo que somente 6% se enxergava na direita tradicional. 

 Para Eduardo Costa Pinto, professor de Economia Política da UFRJ, essa guinada pode ser creditada a um ressentimento econômico “de uma parte da sociedade que ascendeu” durante os primeiros governos Lula e o ciclo das commodities “e depois perdeu” com os efeitos da crise econômica, social e política que o país viveu na década seguinte.

 “Esse é o gancho central do crescimento da extrema-direita como fenômeno de massas. O movimento surfa muito bem na onda de degradação das condições do trabalhador”, avalia o docente. “Essa onda vai continuar crescendo enquanto não houver mecanismos de distribuição de renda mais eficazes.” 

Entulho autoritário

Na construção civil, é chamado de entulho qualquer resto e fragmento inútil dos materiais utilizados na obra. Pois o professor da Faculdade de Direito da USP, Conrado Hubner Mendes, pega emprestada esse significado para definir o governo Bolsonaro como um “entulho autoritário”. O jurista considera cinco categorias para estudar o que chamou de “processo de autocratização brasileiro”:

1. Redução de controle e centralização – formalizada juridicamente por normas legais, pode ser vista na militarização dos quadros do poder executivo e na redução de transparência pública;

2. Violação da autonomia institucional de órgãos governamentais – acometeu principalmente a área ambiental, por meio de pressão (assédio permanente) e desmonte administrativo (nomeação de pessoal desqualificado);

3. Construção de inimigos – a realização intensa da retórica política teve como alvo grupos sociais como cientistas, jornalistas e ambientalistas, entre outros, que foram sistematicamente desacreditados para semear desconfiança permanente;

4. Ataque ao pluralismo e às minorias – através de práticas discriminatórias, corroendo a luta pelos direitos fundamentais;

5. Legitimação da violência e obscurantismo – aprovando o porte de armas e estimulando o “desaparecimento” de quem é considerado diferente.

“O repertório que Bolsonaro deixa de legado para as práticas institucionais é a fadiga da legalidade”, aponta Mendes. “Agora, os sentidos de controle jurídico precisam estar mais afiados para não deixar os autocratas irem tão longe, e hoje temos o desafio de reajustar esse arranjo institucional por completo.”

Extrema-direita pós-Bolsonaro

Mesmo após deixar a presidência, ser declarado inelegível até 2030 e estar cercado de escândalos de corrupção, o ex-presidente ainda é considerado o grande líder brasileiro da extrema-direita atual.

“Para onde o Brasil está indo?”, questiona Cas Mudde. “Bolsonaro perdeu as eleições, mas o bolsonarismo ganhou força. O Brasil hoje é um país dividido, e grande parte dessa polarização não é ideológica, mas sim afetiva, sobre como você se sente em relação ao outro.”

Proteção espiritual é segurança integral na defesa de povos e seus territórios

Muito conectada ao respeito e consequente conservação dos territórios, proteção espiritual e psicossocial de povos indígenas e tradicionais ainda é um desafio.

Por Elvis Marques, em parceria com a Revista Casa Comum*

 

Cortejo de celebração e resistência • 01/02/2019 • Belo Horizonte (MG)

Foto: Mídia NINJA

“Um grande ensinamento que os povos indígenas nos têm transmitido, desde tempos imemoriais, é o de saber conviver, nos espaços que habitamos, com diferentes seres e, ao mesmo tempo, saber respeitar a terra, sem reduzi-la à condição de mero recurso. Para alguns povos indígenas, a terra é mãe, pois tem a capacidade de fazer germinar a vida e acolher todos os seus frutos.” 

Essa breve descrição do significado da terra para os povos indígenas está no histórico jornal Porantim, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), no encarte pedagógico de abril de 2015.

Tati, como prefere ser chamada, é ativista cultural e ambiental, militante do movimento negro feminista, quilombola, educadora popular, formada em História e especialista em Estudos Culturais e Políticas Públicas. O longo currículo, no entanto, não foi necessário para lhe ensinar algo básico: o significado de território e de bem viver. 

A mesma frase, reimaginada e com outras palavras, repete-se ainda hoje. Isis Tatiane da Silva, de 42 anos, nasceu e foi criada em um território de vasta beleza, como ela mesmo classifica: o quilombo do Curiau, situado no estado do Amapá. “Entendo território como um conjunto de especificidades que compõem um quilombola. É o conglomerado onde existe um movimento étnico-racial, cultural, religioso e ambiental”, explica.

Em consonância com a visão da ativista, Porantim traz uma fala famosa do Cacique Seattle ao receber uma oferta pelo território de sua etnia:  

“Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos os insetos a zumbir são sagrados nas tradições e na crença do meu povo. Esta água brilhante que corre nos rios e regatos não é apenas água, mas sim o sangue de nossos ancestrais. Se te vendermos a terra, terás de te lembrar que ela é sagrada e terás de ensinar aos teus filhos que é sagrada.” 

Diante de tamanha importância aos povos tradicionais, indígenas, quilombolas e tantos outros, como é possível pensar e colocar em prática a segurança dos territórios dessas populações e de seus ancestrais e encantados? Como é possível pensar a segurança espiritual desses povos, conectada, em sua grande maioria, com o respeito e, consequentemente, conservação do espaço que ocupam?

Proteção do sagrado

Tati conta que devido a toda a luta travada pelo povo negro e seus movimentos no Brasil por longos séculos, é imprescendível não pensar na proteção da coletividade em seus diferentes aspectos, como o espiritual. “Nós trabalhamos com os territórios, e não dá para dissociar o que é pertinente dentro desse local durante as formações de proteção, como o aspecto espiritual.”

Constituída em 2011, a Escola de Ativismo é um coletivo independente cuja a missão é fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, como campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

No caso específico da segurança integral, Marcia Maria Nóbrega, antropóloga da Escola de Ativismo, explica que essa temática de atuação do coletivo abarca várias dimensões, como a digital, de informação, física, patrimonial e organizacional. Nesse campo, a Escola atua com toda a diversidade de povos e comunidades tradicionais, assim como com as organizações e movimentos populares que os apoiam.

“Na trajetória da Escola, atuamos muito com oficinas, em espaços de escuta das demandas das comunidades e das organizações, e, nesse processo, entendemos que os aspectos psicossociais e espirituais são fundamentais para como esses povos se organizam. Por entender essa importância, é algo que temos incorporado em nossas oficinas de segurança integral”, contextualiza Marcia. 

Marcia explica que tem ouvido muito nas oficinas que nunca alguém ou algo está seguro se não há uma proteção espiritual. “Por isso temos tentado entender como podemos trazer essa sabedoria dos povos tradicionais para os processos formativos e para os planos de ação e segurança elaborados junto às organizações e comunidades.”

Processo de escuta 

Com uma metodologia de ensino baseada em Paulo Freire, patrono da educação brasileira, Marcia destaca que as oficinas de proteção integral buscam ouvir, primeiramente, como e onde as pessoas se sentem seguras, seja em casa, com a família ou junto à sua comunidade.

“E teve uma fala, certa vez, de um indígena que disse se sentir seguro quando tem ‘domínio’, que, em suas palavras,  é ter conhecimento de que todo lugar tem ‘dono ou mestre’, domínio sobre determinado lugar. Ou seja, geralmente o mestre do lugar é uma entidade espiritual que tem alguma atuação sobre determinado espaço, como um rio. Então a frase dele é: ‘eu me sinto seguro quando entendo o domínio daquele espaço, quando conheço e respeito à ancestralidade daquele local.’”

“Durante uma oficina em um país da América Latina muito ameaçado para defensores, ouvi a seguinte frase de uma liderança: ‘nada começa se a gente não se protege espiritualmente, e quem abre os trabalhos são os tambores, a nossa principal arma de resistência”, diz Márcia Maria. Segundo a antropóloga, a necessidade de olhar para a proteção em toda a sua integralidade, incluindo o aspecto espiritual, sempre tem aparecido para a Escola de Ativismo. 

Atualmente, o desafio é destinar mais atenção justamente para o campo espiritual e psicossocial. “Não tem como alguém se sentir seguro se não está em paz com o seu corpo, seu território e com os seus espíritos. E aí começamos a rever a nossa metodologia de como atuamos com esses grupos, de modo que possamos incorporar essas duas dimensões que andam juntas”, avalia Marcia.

Saiba mais 
Materiais do Cimi e da Escola de Ativismo aprofundam o assunto:
> Encarte Porantim: Territórios e espaços de viver [link];
> A Internet Também É Nosso Território (2023)
[link];
> 
Folder: Segurança se faz com os nossos e as nossas (2023) [link] ;
> LabCuidados: Ansiedade (2022)
 [link];
> 
Guia para o desenvolvimento de uma avaliação de risco e medidas de segurança (2023) [link].

*Matéria publicada em 29/08 pela Revista Casa Comum em parceria com a Escola de Ativismo.

Belo Levante: jogo reúne experiências ativistas para potencializar insurgências

Por Velot Wamba – 23/08/2023

Lançado pela Autonomia Literária e pela Escola de Ativismo, jogo reúne 126 cartas com experiências de ação política

 

O que é o Belo Levante? À primeira vista, é um jogo de cartas com diversas opções de jogabilidade com tema de fundo ativista, adaptado para o Brasil pela Autonomia Literária e a Escola de Ativismo e com lançamento previsto para outubro. Mas é muito mais que isso: é um rol de experiências e pensamento que compila o saber acumulado por ativistas dos quatro cantos do mundo, que refinaram suas considerações sobre práticas de ação direta no calor das lutas mundo afora.

São 126 cartas divididas em cinco naipes de cartas: Táticas, Princípios, Teorias, Histórias e Metodologias. Inclusive, na versão brasileira do jogo, as cartas de Histórias são baseadas em lutas realizadas, sobretudo, no Sul global. E o conjunto total das cartas possibilita uma compreensão lúdica e acurada das diversas etapas necessárias para realizar uma ação direta bem sucedida para desafiar o status quo, que vão desde uma ação de cartazes criativa até a realização de uma greve geral. Dessa forma, são úteis tanto para o ativismo comunitário quanto para o desafio de parar uma cidade!

As cartas são amplamente referendadas na plataforma de ativismo internacional Beautiful Trouble, que conta com a contribuição de mais de 170 ativistas de movimentos de base dos cinco continentes do planeta, totalizando sete idiomas e contando com a contribuição de notáveis estrategistas de diversos movimentos, como Arundhati Roy, George Monbiot, Vijay Prashad e Mark e Paul Engler, por exemplo. E são justamente as experiências reais que dão profundidade e efetividade ao que é apresentado em Belo Levante.

Além disso, a Escola de Ativismo é responsável pela edição brasileira do jogo Belo Levante (em parceria com a editora Autonomia Literária), dando ênfase ao universo do ativismo local e olhando com maior apuro para as práticas do Sul Global, o que deu uma roupagem muito atualizada e condizente com os grandes desafios que todo ativista enfrenta nos dias atuais.

Veja na galeria acima uma amostra dos cards e propostas do Belo Levante

As possibilidades de jogabilidade das cartas são diversas, desde o simples divertimento em formato de competição até modalidades que sempre ressaltam um ângulo possível para se analisar a efetividade e sucesso de uma ação. É possível de ser usada em oficinas, momentos de planejamento de ações e para diversão.

A carta de jogo “Planeje uma ação criativa”, por exemplo, é perfeita para movimentos sociais ou grupos ativistas refletirem sobre uma futura ação. Com 3 pilhas de cartas (Táticas, Princípios e Teorias), os participantes dão nome ao problema que enfrentam (clima, por exemplo) e identificam seu objetivo – digamos, a exploração de fracking no nordeste. Tirando uma carta de cada pilha, é possível criar uma ação hipotética. Usando as cartas de estratégia, você pode melhorar e reinventar a ação proposta e, com a carta “Avalie sua ação”, é possível analisar sua ação sob diversos enfoques diferentes.

Além das cartas de jogabilidade, o jogo apresenta seis tipos de cartas que, em conjunto ou de forma isolada, nos ajudam a entender toda a ciência por detrás de uma ação bem efetivada.

São elas:

– TÁTICAS: Formas específicas de ações criativas, como um flash mob, um bloqueio ou uma greve geral.

– PRINCÍPIOS: Percepções a partir de conquistas que podem guiar ou oferecer subsídios para o planejamento de ações criativas.

– TEORIAS: Conceitos gerais e ideias que podem nos ajudar a entender como o mundo funciona e como podemos transformá-lo.

– HISTÓRIAS: Relatos de ações e campanhas memoráveis com análises sobre o que funcionou, o que não deu certo e por quê. Essas histórias são úteis para ilustrar como princípios, táticas, teorias e metodologias podem ser aplicados na prática e de modo bem-sucedido.

– METODOLOGIAS: Modelos estratégicos e exercícios práticos para ajudar você a avaliar sua situação e planejar sua campanha.

– DEBATES: Controvérsias eternas (tais como mudar o mundo ou mudar a nós mesmos?) que devem ser exploradas de forma constante.

Ao fim e ao cabo, o Belo Levante é uma caixa de ferramentas essencial na mão de organizações, coletivos e ativistas. Saiba como adquirir sua cópia em pré-venda pelo site da Autonomia Literária.

Margaridas: um olhar sobre os muitos ativismos das mulheres dos campos, florestas e águas

Por Vitória Rodrigues – 17/08/2023

A ativista Vitória Rodrigues esteve na Marcha das Margaridas e conta seus aprendizados com as lutas das trabalhadoras rurais

Mulheres em luta durante a Marcha das Margaridas de 2023 | Foto: Vitória Rodrigues

Entrar na área delimitada do Parque da Cidade para a maior marcha de mulheres da América Latina na manhã do dia 15 de agosto foi como se imergir num fundo mar de esperança. Afinal, lá começava, repleta de diversidade, mais uma edição da Marcha das Margaridas, organizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG). Como frutos do sol, as mulheres do campo, da floresta e das águas que não paravam de chegar esbanjavam sorrisos no rosto e uma energia radiante para reivindicar o que já deveria ser seu.

Naquela manhã, a programação havia começado com uma sessão solene no Senado Federal, homenageando a Marcha. No mesmo dia, foi finalmente aprovado o Projeto de Lei que indicava a inclusão de Margarida Maria Alves no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria

Foi assim, que após 40 anos de um assassinato bárbaro na frente de sua casa, a grande homenageada do encontro teve sua luta em vida por ser mulher, sindicalista e trabalhadora rural que ameaçava os interesses de poderosos, reconhecida. Para além disso, suas sementes se espalharam mais longe do que ela jamais ousou imaginar. A resistência está firmada.

Corpos-territórios
 

Nas tendas espalhadas na grama antes da entrada no Pavilhão de Exposições, havia de tudo um pouco: oficina de batuque feminista, de danças populares, plenárias, painéis temáticos, feira. Nesta última, havia um palco em que mulheres declamavam poemas, cantavam canções e passavam as mais diversas mensagens para quem transitasse debaixo daquela tenda, observando, comprando e apoiando produtos de mulheres de todos os estados do país.

Muito perto dali, uma iniciativa importantíssima acontecia: o Coletivo Jurídico estava reunido com advogadas e membras da Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Distrito Federal e do Ministério Público para orientar as margaridas em um plantão que aconteceu nos dois dias de Marcha. As mulheres no Coletivo prestavam orientações jurídicas com o objetivo de promover a segurança e a integridade das margaridas.

A fila do credenciamento para entrada no Pavilhão só aumentava. E quando finalmente se pôde entrar no evento, com o pulso coberto por uma pulseira, se desvelou um verdadeiro oceano de margaridas. Carregavam consigo suas malas, chapéus, bandeiras com palavras de ordem e de seus estados também. Mais importante que isso, usavam seus corpos-territórios para dizer que a hora de fazer a reforma agrária e acabar com as violências de gênero é agora.

Margaridas

Lúcia Lima (57) é uma das milhares de mulheres que estavam lá. Moradora de Brejo da Madre de Deus (PE), a agricultora foi à Marcha porque quer representar inclusive quem não pôde estar lá. “Eu vou explicar sobre a participação que tive aqui, o que eu vi, o que eu aprendi, para as minhas companheiras. Vou repassar pra daqui a quatro anos a gente possa vir aqui todas juntas.”

Duas crianças seguram folhas de protesto pela defesa do rio Jauquara

Lúcia na fila para tirar fotos com o banner ‘Marcha das Margaridas 2023: eu fui’ | Foto: Vitória Rodrigues

Há também companheiras que interromperam suas atividades como agricultoras, mas jamais como ativistas pela terra. Maria Rosa Silva, de 74 anos, de Montes Claros (MG), é agricultora aposentada e afirma que foi para Brasília porque acredita na força das margaridas. “A gente conhece a terra, a luta, a gente sabe das coisas. A força da mulher é muito boa. E elas [militantes] não fazem pensando nelas, mas por todas e eu admiro muito isso.”

Maria Rosa a caminho de oficina sobre agroecologia | Foto: Vitória Rodrigues

Com diferentes atividades de variados temas acontecendo simultaneamente, as margaridas pediam também o fim das diversas formas de violências que existem contra mulheres e isso só é possível com a colaboração de todo mundo. Um dos margaridos presentes no evento é Manoel Soares, de 37 anos, que veio de Igarapé-Miri (PA). Ele diz que a educação contra o machismo e as violências contra as mulheres precisam acontecer, principalmente para os homens que convivem com as margaridas.

Manoel junto a suas companheiras de luta de Igarapé-Miri | Foto: Vitória Rodrigues

Semear soberanias

Ao lado inverso do imenso pavilhão que também funcionava como acampamento, mulheres organizaram oficinas como forma de acolher e semear não só a luta, mas afetos também. As atividades sobre corpo e sexualidade, soberania digital e espaços voltados para mulheres com suas filhas faziam com que o ambiente se tornasse acolhedor para aquelas viajantes.  

Apesar de muitas terem viajado dias e dias para comparecer aos dois dias de evento, a energia seguia nas alturas mesmo com a chegada da noite, onde outras pessoas também chegaram: ministros de estado. A Abertura Político-Cultural da 7ª edição da Marcha contou com diferentes ministérios do Governo Federal, além de parlamentares, secretarias e delegações estrangeiras.

Depois da Abertura com algumas promessas de mudanças de chefes de ministérios, aconteceu a noite cultural, um espaço de descontração e que marca tradicionalmente o fim do primeiro dia de evento. Esse evento não é apenas fundamental por explorar as diversidades de diferentes artistas, mas também para relaxar as trabalhadoras, que teriam de acordar cedo para o café da manhã, que começa a ser servido às 04h. 

Marcha nas ruas

Já na manhã do segundo e último dia da Marcha das Margaridas, a concentração em direção à Esplanada dos Ministérios aguarda as mulheres por uma hora até começarem a marchar às 7h, tendo o Congresso Nacional como destino final, onde o presidente Lula e ministras fariam pronunciamentos. Neste momento, mulheres pegam suas bandeiras, caracterizações e o que mais quiserem para passar cerca de quatro quilômetros exibindo toda a sua força.

Com duas faixas que antecedem a Esplanada ocupadas durante um significativo período de tempo, mulheres em carros de som comandam palavras de ordem poderosas e discursos que fortalecem a ideia de que a Marcha é necessária. Alguns carros passam ao lado buzinando para demonstrar apoio, que é respondido com gritos e palmas das mulheres de todo o Brasil.

São cerca de cem mil mulheres, com faixas, bandeiras e os cantos reforçam que a disposição em garantir o que já deveria existir se reafirma.

Galeria de fotos da Marcha das Margaridas | Foto: Vitória Rodrigues

O apoio e a solidariedade também estiveram presentes na Marcha. Um dos coletivos que estava presente em ambos os dias de Marcha é o Borda Luta do Distrito Federal, que surgiu em 2016 como uma pequena iniciativa de duas mulheres solidárias à ex-Presidenta Dilma Rousseff, durante o processo do golpe político-empresarial. Atualmente, o grupo que usa linhas, agulhas e tecidos como forma de ativismo conta com mais de sessenta colaboradoras voluntárias.

A coordenadora do coletivo é a Dirnamara Guimarães (57), servidora pública aposentada e artesã. “Toda a minha existência hoje tá voltada pro BordaLuta. Somos artevistas políticas, bordadeiras e arteiras. Entendemos que a luta política se dá pelo discurso e pela ação, mas também pela estética. Conseguimos alcançar muitas consciências através da imagem, e através disso conseguimos conversar, acolher e trocar.”

“Conseguimos nos encontrar uma vez por semana para construir a nossa luta e no decorrer desse tempo, espontaneamente escolhemos que o nosso lugar é na rua. Na rua, mulheres veem e às vezes conseguimos acolher aquelas que estão em situações de risco. Nossa luta é pelo fortalecimento da luta feminina e contra a violência, por isso também estamos na Marcha.”

Com atrasos, o Presidente Lula chegou ao palanque pedindo desculpas por fazer tantas mulheres esperarem por ele no sol – já que o fim de sua fala sinalizava o fim da Marcha. Baseado na carta dos 13 eixos da edição deste ano foi entregue pela coordenadora do evento, Mazé Moraes, Lula anunciou uma série de decretos: instituição da Comissão de Enfrentamento à Violência no Campo; criação do Programa Quintais Produtivos para promover a segurança alimentar das mulheres rurais; retomada do Programa Bolsa Verde de pagamentos para famílias de baixa-renda em áreas protegidas; formação do Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios; retomada da Política Nacional para Trabalhadores Empregados de fortalecimento a direitos sociais; formação do Grupo de Trabalho Interministerial para construir o Plano Nacional de Juventude e Sucessão Rural; estabeleceu o Programa Nacional de Cidadania e Bem Viver para as Mulheres Rurais; retomou a Reforma Agrária com atenção a famílias chefiadas por mulheres.

Logo após o fim do pronunciamento e assinatura dos decretos, o evento foi encerrado, mas não exatamente assim. A Marcha das Margaridas é construída diariamente por cada mulher brasileira do campo, da floresta e das águas que se dispõe a desenvolver e lutar pelas diversas soberanias que existem, sejam alimentares, climáticas, humanas. As sementes de Margarida estão em todo o território nacional.

A imagem que permanece de um evento tão grande e feito por tantas formas de companheirismo mostra que, apesar de decretos e medidas assinadas, ainda há muito trabalho a fazer nas marchas Brasil afora que são o trabalho das Margaridas. Que em 2027 ainda não tenha-se que pedir pelo fim da violência e pela tão necessária, sonhada e urgente reforma agrária. Avante, Margaridas.

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Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

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