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Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

Você conhece Lenira? Projeto retrata luta da ativista em defesa das trabalhadoras domésticas

O material pedagógico multimídia “Caminhos para pensar o Brasil com Lenira Carvalho” é lançado neste sábado (27), durante o Dia das Trabalhadoras Domésticas

 

Por Letícia Queiroz – 27/04/2024

Lenira Carvalho foi uma importante liderança das trabalhadoras domésticas no Brasil. Nascida em 1932 em Porto Calvo, interior de Alagoas, aos 14 anos começou a trabalhar como empregada doméstica e quase 30 anos depois se engajou na luta por direitos trabalhistas. Ela fundou, com outras trabalhadoras, a Associação das Trabalhadoras Domésticas do Recife, que se tornaria o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Recife. Lenira foi também uma das fundadoras do Fórum de Mulheres de Pernambuco, movimento feminista ainda atuante. Até agosto de 2021, quando morreu, a ativista construiu um legado muito importante para a luta das trabalhadoras domésticas.

Lenira não foi só uma líder, mas uma pensadora que trouxe ao mundo um olhar original e profundo sobre uma série de temas que atravessam a sociedade.Afinal, o trabalho doméstico remunerado atravessa a sociedade brasileira, mas a população conhece muito pouco sobre o cotidiano e o significado dessa tarefa a partir do ponto de vista das próprias trabalhadoras. São muitos os desafios enfrentados pela categoria que há poucos anos, graças ao ativismo de mulheres como Lenira Carvalho, começou a ter acesso a direitos trabalhistas básicos e fundamentais. 

Neste sábado – 27 de abril, Dia das Trabalhadoras Domésticas – quatro institutos lançam o projeto “Caminhos para pensar o Brasil com Lenira Carvalho”. Trata-se de uma publicação que reúne roteiros pedagógicos para discutir vários temas a partir do trabalho doméstico e do legado de Lenira.  

A ideia então é disponibilizar conteúdos para educadores, lideranças e ativistas pensarem e promoverem as discussões em diferentes espaços. Seja em sala de aula, na educação formal, ou em espaços de formação política e em movimentos populares.

O projeto nos lembra que é necessário debater dentro dos nossos coletivos e fora deles, sobre as desigualdades estruturais e experiências diárias de opressões cotidianas naturalizadas no trabalho doméstico. Discutir o tema nos leva a abordar questões relacionadas aos elos com a escravização, classe social, questões trabalhistas, organização da categoria e movimentos feministas ao longo do processo de luta e conquista pelos seus direitos das trabalhadoras.  

O livro “A luta que me fez crescer e outras reflexões” e o documentário “Digo às companheiras que aqui estão”, disponibilizados no site do projeto, mergulham na história e no pensamento de Lenira Carvalho e promovem discussões profundas e necessárias sobre as trabalhadoras domésticas.

Clique aqui para acessar a publicação “Caminhos para pensar o Brasil com Lenira Carvalho”. A iniciativa é fruto de um projeto de pesquisa realizado pelo SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia, a Parabelo Filmes, o Centro de Cultura, Linguaguens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (CECULT-UFRB) e o Instituto Federal do Sertão Pernambucano – Campus Floresta. O projeto contou com apoio da Fundação Friedrich Ebert Brasil e da Fundação Open Society.

Eu vou plantar a Caatinga no teu coração

“Isso parece uma coluna, mas é uma carta de amor e cartas de amor são feitiços poderosos, elas carregam palavras vivas, daquelas que nos desacostumamos a sentir.”

Por Raquel Kariri – 28/04/2024

No dia 28 de abril celebra-se o dia da Caatinga l Crédito: Codevasf via Flickr/Creative Commons

Eu sei. Você deve ter ouvido e visto coisas horríveis sobre a Caatinga. Imagens de solo rachado, gado morto e ressecado e mulheres esfarrapadas com latas de água na cabeça. Imagino que você tenha ouvido histórias sobre como aqui não temos água, há pouca comida e somos destinados à fome. 

Claro que você pode se esquivar, afinal, porque alguém quereria um roçado de ausências no coração? Mas se você me der uma chance, além de plantar eu vou fazer chover em tua alma. Eu não, a Caatinga. 

Como? Bem, isso parece uma coluna, mas é uma carta de amor e cartas de amor são feitiços poderosos, elas carregam palavras vivas, daquelas que nos desacostumamos a sentir. E quando as palavras estão vivas, elas fazem coisas conosco, cutucam, nos tiram do eixo. Elas comunicam paixão e eu confio nessa força encantada. Eu confio que do meu coração, consigo soprar meu amor pela Caatinga bem no centro do teu. 

Não pense que somos tão diferentes assim. Sim, eu sou uma mulher caatingueira e isso significa que eu possuo um duplo na minha alma, a Caatinga. Mas olha, não é sobre região geográfica, é sobre dança de espíritos. E talvez, até o fim dessa carta, você sinta também. 

Um duplo é uma força que se irmana com nosso espírito, se movem juntos, se comunicam e dali retiram forças e pesares. Mas há algo que preciso dizer sobre duplos: eles são, antes de tudo, selvagens. 

Sabe aquela frase de Guimarães Rosa: “perto de muita água tudo é feliz”?, uma frase nunca representou tanto um bioma. Você já viu a Caatinga em tempos de muita água? Ela não se poupa! Ela transborda! Suas cores ficam vivas, vivíssimas! Uma infinidade de tons de verde colorem tudo! Que bonito, precisa ver! São tantos que nem a IA é capaz de criar. E os frutos? Pequi, Umbu, Cajá, Pitanga, Pitomba, Seriguela.. Puxa, ela não se poupa!

Entende? É isso que ela nos ensina: quando houver muita água, quando houver muita alegria, muito amor, não se poupe! Não há porque não dividir com todes. Se há vida, exploda! É um grande ensinamento que coloca em xeque a mesquinhez que se espalhou pela antivida chamada capitalismo. Essa antivida que drena mundos de encantaria, forças de celebração e não permite que tomemos ensinamentos com os espíritos das florestas.

Essa mesma antivida que interrompeu nossa conexão com a encantidade, como ensina Cacique Chiquinho Pankaxuri, e nos deixa apáticas, adoecidas, gananciosas, tristes, mergulhadas apenas em um mundo de humanos. Mas sabe o que é bonito? A Caatinga é uma exterminadora de antivida. No meu tempo sobre a Terra, presenciei muitas tentativas de deixá-la dócil, obediente, domesticada para o bel prazer dos homens que a querem outra, mas ela não se dobra. 

E todas que não se dobram pagam um preço. O corpo da Caatinga não se parece com o corpo das florestas desejadas pelos homens brancos. Sua autenticidade não se reflete no espelho de Narciso. Te parece com alguém? Será que com você? A tua beleza, a tua autenticidade, tua maneira única de estar no mundo também já foi menosprezada? 

Mais: você já foi menosprezada por simplesmente ser você?

Então, temos algo em comum. Então, temos algo em comum com a Caatinga. Talvez, o que você julgava distante, sempre esteve junto a ti. Afinal, se mesmo sendo apontada como inadequada, tendo tuas capacidades e potências menosprezadas, tua vida invizibilizada, se mesmo retirada as melhores condições você ainda floresce, você ainda explode em vida… Deixa eu te contar: Sim, você também é uma filha da Caatinga. Bem-vinda, a gente tava te aguardando. 

Raquel Kariri é jornalista, co-fundadora Escola Livre de Ancestralidades Kariri e colunista da Afoitas.

 

“Reforma agrária popular é justiça histórica”: os movimentos e as aprendizagens da luta pela terra

Por Bárbara Poerner – 17/04/2024

 

 

Movimentos sociais mostram na prática como a reforma agrária significa defesa da democracia, reparação social e resistência climática

O MST completou 40 anos em janeiro de 2024 l Foto: Greiciane Souza

Não há história mais antiga no Brasil que o roubo e a concentração de terras: é a base do projeto colonial e da invasão europeia. E seus efeitos são bastante sentidos até hoje na falta de soberania alimentar e desigualdade, assim como no modelo agroexportador e latifundista. E não à toa também que os movimentos populares de luta pela terra que reivindicam a reforma agrária – e também urbana – assumiram um papel de protagonismo tão significativo no país.

Desse modo, a agenda da reforma agrária é uma disputa, mas passa, explica Darci Frigo, integrante da Coordenação Nacional do Terra de Direitos, por condições institucionais, vinculadas às políticas públicas de redistribuição de terras. O conceito é diferente daquele debatido na década de 1980, continua ele. Com a mudança de modelo de desenvolvimento no campo, a luta reforma agrária passou a significar também luta ambiental, preservação das águas, produção de alimentos saudáveis não dominados pelas tecnologias transgênicas ou pelo agrotóxico.

O coordenador defende, então, a terminologia “reforma agrária popular”, que é capaz de unir aquilo que deveria ser a política institucional, mas que só acontece quando há a luta pela terra. “A luta pela terra e luta pela reforma agrária convergiram no discurso e no imaginário popular com a possibilidade de acesso à terra, seja pela via pública, seja pela luta social. Hoje, elas reúnem todos esses povos diferentes (indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais etc.) que estão no campo e que querem manter viva a biodiversidade, a floresta, a água e produzir alimentos saudáveis”.

Pensar nisso é revisitar e reparar a história do Brasil, argumenta, Ceres Hadich, da Coordenação Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Trata-se de “fazer uma justiça histórica, ainda que tardia, a todos os povos do campo que historicamente foram expropriados do direito do acesso à terra”.

Embora a Constituição Federal de 1988 defenda o conceito de uso social da terra, dados mostram que 45% da área rural está nas mãos de menos de 1% das propriedades privadas no Brasil, conforme a análise dos Censos Agropecuários, realizada pela OXFAM. Isso é um problema grave, diz Darci, porque “sempre entendemos que a concentração da terra significava também concentração de poder”.

Ele acredita que o Brasil “não consegue superar o paradigma da concentração da terra, que dá muito poder ao latifúndio, e hoje isso está traduzido no poder do agronegócio tanto no Congresso Brasileiro como na sociedade”. Apesar de existir um superávit do ponto de vista da balança comercial, é possível ver, ao lado de um grande latifúndio, pessoas passando fome, continua Darci, que destaca a falta de soberania alimentar do país.

Isso impede o êxito da justiça social, sendo uma das grandes ameaças destacadas pelo coordenador “é que o fortalecimento do agronegócio e desse grande e velho latifúndio não permite que a sociedade, de fato, seja democrática”.

A fome, por exemplo, está diretamente relacionada com isso. São 90,4 milhões de brasileiros que passam fome ou têm dificuldade para se alimentar, segundo dados compilados em 2022 pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).

Por isso movimentos sociais, como o MST, defendem uma agenda de reforma agrária que “reveja e reverta essa estrutura concentrada de terras e permita a construção de um projeto popular e soberano para a agricultura e para a sociedade brasileira”, diz Ceres. É uma forma de pensar, a partir do direito à terra, formas de acessar o direito à natureza, ao trabalho digno, à alimentação agroecológica etc. “A reforma agrária, na sua integralidade, é um conjunto de políticas públicas que olham para a questão econômica e acesso do direito à terra, mas mais do que isso, que é capaz de incidir sobre as diferentes dimensões da nossa vida”.

É, continua ela, uma nova proposta de experiência humana. “Pensar em processos que permitam às pessoas se humanizar, se educar, se transformar, se libertar. A educação, a cultura e outras formas de expressar a vida são fundamentais para a gente também construir e reconstruir relações entre seres humanos mais humanizados. Por aí que passa o nosso conceito de reforma agrária”.

Uma marcha do MST na Bahia l Foto: Arquivo/Reprodução

Luta pela terra é resistência climática

As referências de reforma agrária popular e luta pela terra no Brasil são inúmeras. Ceres destaca o Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis, que consiste em plantar 100 milhões de árvores em dez anos nas escolas do campo, cooperativas, centros de formação técnica, praças, avenidas e nas cidades, fortalecer a produção de alimentos saudáveis nas áreas de assentamentos e acampamentos do MST, denunciar o modelo destrutivo do agronegócio e seus impactos ao meio ambiente, e foi lançado em 2020 pelo movimento em todo Brasil.

Essa é uma vitória que só acontece por conta da organização popular. “Nosso movimento se coloca como mais uma organização que usa dessas ferramentas de luta como uma forma de colocar o debate da reforma agrária para a sociedade, e de, concretamente, organizar o povo para fazer a pressão social. Fomos entendendo, ao longo dos anos, que a gente só alcança conquistas com o povo organizado e mobilizado – independente de governo, de período histórico”, acredita Ceres.

Em sua visão, estamos “estamos diante de uma possibilidade histórica de avançar nessa perspectiva e é papel efetivo do Estado brasileiro prover essas políticas para estabelecer a justiça social, o que passa pela reforma agrária no Brasil. Atualmente, duas das três grandes prioridades do governo Lula passam diretamente pela causa da reforma agrária, que é o combate à fome e que é o cuidado com o meio ambiente.”

Ceres acredita que se não existissem esses movimentos, hoje haveriam ainda menos áreas com cobertura florestal preservada no país e teríamos cada vez mais dependência da produção de alimentos com variedades cada vez mais reduzidas. “Então, o papel desses movimentos é apresentar outro projeto popular soberano de agricultura agroecológica, com a produção de alimentos saudáveis”, defende Darci.

A reforma agrária, nesse sentido, “se juntou à luta de toda a sociedade por melhorias nas condições ambientais porque onde tem o latifúndio, tem destruição, tem o fim da floresta, tem a ameaça gravíssima do fim da biodiversidade. Tudo isso é importante para o futuro da humanidade e são esses movimentos que levantam quotidianamente as bandeiras para continuar essas lutas, seja no campo ou seja, às vezes se somando às lutas de setores urbano”, finaliza o coordenador.

reunião em cooperativa

Velório do Massacre Eldorado do Carajás, 1996. l Foto: Arquivo MST

17 de abril: dia de luta

O Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária, instituído oficialmente em 2022, é uma referência ao massacre de Eldorado do Carajás, que aconteceu no dia 17 de abril de 1996, no Pará. Na ocasião, 21 trabalhadores rurais foram mortos pela Polícia Militar enquanto protestavam pela reforma agrária.

“O episódio foi muito marcante na história do movimento de luta pela terra, e também pelo ponto de vista da violência e impunidade. Até hoje, lutamos para que haja o reconhecimento da violência do Estado e da milícia contra os camponeses”, explica Ceres Hadich. Ela explica que, por causa disso, o mês referenciado como Abril Vermelho é mais do que uma simbologia, mas demonstra um exemplo concreto da organização entre os trabalhadores sem terra.

Darci Frigo pensa semelhante. Segundo ele, dia 17 de abril é uma memória da violência que, historicamente, marca a disputa por terra no país. Contudo, ele destaca a importância de relembrar o episódio como uma forma de “dizer que esses movimentos sociais, que surgiram no processo da redemocratização do nosso país vieram pra ficar e pra ter longa vida”. 

Anualmente, o MST prepara uma série de atividades, marchas e mobilizações para o Abril Vermelho. Neste ano, o destaque é a campanha “Ocupar, Para O Brasil Alimentar”. Ceres ainda cita o lançamento do Programa Terra da Gente, a marcha que está ocorrendo há alguns dias na Bahia com assentados do estado, e a mobilização na Curva do S, em Carajás, que ocorre hoje. Até agora, o movimento já realizou 24 ocupações em 11 estados brasileiros, mobilizando mais de 20 mil famílias assentadas.

Comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto denunciam ataque em territórios na Bahia

Nota por Escola de Ativismo, Comissão Pastoral da Terra e Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais

01/04/2024

 

 

A escalada violenta contra as comunidades e povos tradicionais no Oeste da Bahia parece não ter fim. Nesta quinta-feira, 04 de abril de 2024, os territórios de uso coletivo das comunidades de Fecho de Pasto de Morrinhos, Entre Morros e Gado Bravo, localizados nos municípios de Jaborandi e Correntina, tiveram seus territórios violados por prepostos de fazendeiros do agronegócio.

Neste ato violento destruíram mais de 120m de cerca, arrancaram cancelas e derrubaram os ranchos usados como alojamento pelos fecheiros, deixando-os aterrorizados.

Relatam eles que seus gados podem se perder, com grandes prejuízos e riscos para a sobrevivência de suas famílias. E, mais que isso, podem se deslocar em direção à rodovia, com risco de provocar acidentes e outros transtornos. Na tentativa de evitar estas situações, as famílias se reuniram no dia 06 de abril de 2024, para recolocar a cancela que havia sido retirada e evitar que os animais fugissem, enquanto recolhem o gado solto na área do fecho. 

Mais uma vez, os fecheiros foram surpreendidos por decisão judicial que tenta criminalizá-los e impedi-los de exercer o seu direito ancestral de viver em seus territórios tradicionais, cuidando do que resta do Cerrado em pé, em benefício de todos.

Questões jurídicas

A ação que destruiu as benfeitorias das comunidades foi realizada pela Polícia Militar de Coribe em cumprimento a um mandado judicial de reintegração de posse. No entanto, a ação da polícia extrapolou a área em questão, atingindo também território de outra comunidade. A atuação da polícia parece não ter seguido o rito necessário ao cumprimento do mandado, tendo sido realizado de maneira arbitrária, uma vez que a Casa Militar foi consultada e informou não ter recebido o mandado.

O processo judicial que ensejou a decisão foi proposto pela Associação do Fecho de Pasto de Entre Morros para proteger a posse histórica e tradicional da sua área de fecho diante da invasão de uma empresa do agronegócio. Frisa-se que esta área já foi reconhecida e delimitada como Área de Fecho de Pasto pela SDA – Superintendência de Desenvolvimento Agrário, órgão gestor das terras públicas do Estado da Bahia.

Após 19 anos do início da ação judicial e 15 anos depois da sentença, o atual Juiz da Comarca de Coribe, em tutela antecipada, decidiu pelo adiantamento dos efeitos da sentença, determinando que fosse cumprida a reintegração de posse da área utilizada tradicionalmente pelos fecheiros, mas em favor da parte ré – a empresa. 

Não se pode falar em posse a ser reintegrada à empresa, já que as terras sempre estiveram em posse das comunidades até ser ameaçada pela empresa. O processo também incorreu em uma série de irregularidades e com a violação do direito à defesa da comunidade, que foi impedida de produzir provas orais, testemunhais e periciais. A empresa foi, portanto, favorecida no curso do processo, sem ter apresentado nenhuma prova da posse alegada. 

Essas irregularidades foram apontadas pela Associação de Fundo de Pasto, sem que fossem consideradas. Ao contrário, o recurso de apelação contra a decisão de reintegração, interposto em 2010, não foi, até a data de expedição do mandado de reintegração, enviado ao Tribunal, que é o órgão competente para julgar o recurso. Ato processual que deveria ter sido realizado de imediato.

Somado a esses absurdos processuais, o magistrado que sentenciou na época contra a comunidade tradicional, de maneira infundamentada e com cerceamento de defesa, foi posteriormente afastado e aposentado compulsoriamente no ano de 2015. Isso porque infringiu deveres funcionais da magistratura no período em que esteve à frente da Comarca de Coribe relacionados à questões agrárias, como abertura e trancamento de matrículas de imóveis sem observar as devidas formalidades.

Missão do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) no Oeste da Bahia

Os territórios sob ataque receberam a visita da Comitiva da Missão do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), entre os dias 17 e 22 de março, quando foram identificadas violações sistemáticas de direitos de povos e comunidades tradicionais. A Comitiva cumpriu diversas agendas com comunidades e órgãos públicos em Barreiras e Correntina. O objetivo da missão foi ouvir os relatos das comunidades sobre as violações de direitos ocorridas nos territórios a fim de denunciá-las aos órgãos competentes e propor recomendações que possam ajudar a frear os ataques e a garantir aos povos seu acesso à terra e aos territórios.

Omissão do Estado da Bahia

As comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto do Oeste da Bahia, lutam para que se cumpra a Constituição da Bahia, reconhecendo o direito à posse das terras pelos moradores da região, que as utilizam de forma comunal há centenas de anos. A ausência da regularização fundiária dos territórios por parte do Governo do Estado tem deixado as comunidades expostas à violência e violações de seus direitos. É urgentíssimo que o governo não mais se omita, ou mesmo deixe de ser conivente, e passe a frear a grilagem das terras nessa região, acelerando as ações discriminatórias, além do bloqueio das matrículas de fazendas que incidem irregularmente sobre as comunidades.

Fotos e divulgação: CPT, AATR e Escola de Ativismo

Do regime militar à democracia das chacinas, é preciso dizer a verdade no dia da mentira

Por Gustavo Assano – 01/04/2024

 

 

Da experiência militante do Cordão da Mentira, que há 12 anos desfila no dia do golpe militar, uma reflexão sobre a disputa histórica narrativa sobre o que foi a ditadura e o que é a democracia brasileira

Desfile de 2023 do Cordão da Mentira à frente do “Monumento às Bandeiras”, em São Paulo (SP), denuncia massacre colonial l Foto: Arquivo/Reprodução

É muito significativa a história do nascimento do Cordão da Mentira, bloco carnavalesco organizado por diferentes movimentos sociais e artistas engajados da cidade de São Paulo. Todo primeiro de abril, desde 2012, o Cordão percorre as ruas do centro de São Paulo e apresenta-se como um “desfilescracho” para “descomemorar” a realização do golpe empresarial-militar. O desfile não nasceu de uma provocação acadêmica ou vocação institucional. Surge de uma reflexão gerada por um conflito entre sambistas que frequentavam a roda do celebrado “Samba da Vela”. Numa noite de segunda-feira, no começo da década de 2010, uma ex-presa militante torturada, frequentadora do espaço, reconheceu entre os músicos da roda de samba um de seus torturadores, que respondia pelo apelido Pachequinho, ex-agente do DOPS e discípulo do abominável delegado Sérgio Fleury Paranhos. Em estado de choque e abalada, não pôde engolir a presença da face de seu passado traumático sorrindo, cantando e saboreando da fruição e descontração festiva e dignificante de canções populares de ampla tradição. Refiro-me à tradição da roda de samba brasileira, transmitida por gerações de ex-escravizados, imigrantes esbulhados e tantos agrupamentos que originaram a gente de mãos calejadas que forjaram a coragem da alegria mesmo selando caminhadas de vida marcadas por catástrofes sociais e individuais. A velha militante passou mal, e, ao ser socorrida, narrou os motivos de sua reação. Estava ali, na suposta era da “página virada”, dos balanços de superação da “ditabranda”, seu carrasco a celebrar a vida com as vozes e tradições herdadas dos degredados da terra.

O caso despertou a indignação de uma parte dos frequentadores da roda e um racha se formou no movimento. Para alguns dos sambistas que faziam parte da prestigiada roda, um impasse incontornável estava colocado. O que significa para um sambista que honra a história dos antepassados de seu ofício tomar como aceitável o convívio com um agente dos porões da ditadura? Houve um esforço de politização, de construir um debate real que apresentasse o que havia de escandaloso da situação apresentada. No entanto, tais esforços foram abafados. Pachequinho recebeu apoio dos principais integrantes da roda do Samba da Vela e seguiu até sua morte gozando do prestígio do movimento e com direito a homenagens póstumas. Gozou da ausência de incômodo compartilhada entre os facínoras da história sangrenta do Estado brasileiro. 

No entanto, uma parte dos sambistas da Vela romperam com o espaço, julgando ser insuportável conviver com tão ensurdecedor silêncio sobre o que se decidiu tomar como aceitável e natural: o apagamento de uma injustiça sem nome. Se o Estado, o STF e parte da classe política de esquerda tomava como aceitável a anistia, que acabou sendo apenas para militares, ali havia a chance de fazer diferente, de mostrar que no samba justiça não era um ritual vazio. Num primeiro momento se cogitou organizar um ato, mas logo surgiu a ideia da criação de um experimento artístico, inicialmente sugerido como uma peça de teatro, para então evoluir nas discussões para um híbrido entre procissão, teatro de rua e bloco carnavalesco. 

Assim surge a ideia do Cordão da Mentira: um ato político que jogaria todo o esforço organizativo não apenas no elenco de pautas urgentes declamadas em microfones de carro de som, mas principalmente na consistência do tratamento expressivo de uma obra de arte de intervenção no espaço público.

Ainda estávamos nos primórdios do processo da criação da Comissão Nacional da Verdade, ainda não havia se propagado a paranoia conservadora sobre o trabalho de apuração e reparação institucional sobre os crimes da ditadura, processo que, apesar dos seus limites e sabotagens limitadoras de seu alcance executivo, despertou a radicalização de extrema direita na politização das casernas. A rememoração dos crimes da ditadura ganhou aspectos de convenção de evento oficial para as primeiras gerações nascidas após o término da promulgação da constituição de 1988 e os consensos de pacificação neoliberal da democracia de presidencialismo de coalização. Era como se não houvesse urgência no ato rememorativo, como se não houvesse frescor nas consequências geradas, como se não fosse possível sentir o cheiro infecto dos porões de tortura em nossa era e como se os rastros de mutilações psíquica e em carne viva no processo de brutalização social herdados não compusessem os contornos da ordem democrática – o novo parâmetro de normalidade de médio termo que supostamente enterrou tão sombrio período da nossa história.

Assim, nos primeiros anos do Cordão, os cortejos eram pensados nos termos da tarefa de despertar as ruas de um falso senso de normalidade e superação, como se o cotidiano automatizado das ruas de São Paulo fosse em verdade um cenário de peça de teatro, uma casca de superfície desbotada que esconde uma estrutura que tem como fundamento uma máquina de moer e um sistema de iniquidades tida como face do progresso, inclusive por parte da esquerda. Era preciso dizer com todas as letras, alto e em bom som: a normalidade é uma mentira. Os números e falas eram pensados com deboche direcionado aos consensos liberais, com irreverência a uma esquerda no poder que se manteve tímida e omissa sobre os consensos coagidos da “transição para a democracia” e com forte ímpeto paródico direcionado aos resquícios da extrema-direita de outrora. Costurando uma miríade de pontos de vista que seriam divergentes em outros contextos de atuação em espaços de esquerda, todos envolvidos mergulhavam nas reuniões em debates sobre a geografia crítica da cidade, alternando homenagens em lugares em que militantes tombaram lutando por liberdade e escrachos cênicos a espaços que apoiavam ou eram centrais para fundamentar a violência institucional. Sua estética engajada inicialmente ambicionava denunciar crimes esquecidos para uma conjuntura dessensibilizada sobre este passado, tido como remoto, revelando o índice de um passado que não passa. O desafio era convencer as pessoas da atualidade deste período nefasto, a proximidade contemporânea do que a miopia despolitizante induziu a tratar como distante.

As Mães de Maio e Mães de Manguinho à frente do cortejo do Cordão da Mentira l Foto: Twitter/@RobertoSungi/Reprodução

A mentira vira “mito”

Em poucos anos, no entanto, a tomada das ruas com deboche à mentira da normalidade democrática encontrou seu limite quando a extrema-direita radicalizada tomou o poder e impôs ao país um novo patamar de autoritarismo e mentiras. De um período de apatia sobre a ditadura, vivemos agora uma disputa por hegemonia na narrativa histórica sobre o presente, em que a reconstituição mítica do golpe de 64 e a heroicização dos seus torturadores não é um caso isolado escandaloso, mas plataforma de poder com base social de massa e formulação corrente feita com paixão de militância engajada. 

Com a revelação bombástica da tentativa frustrada de instauração de uma nova ditadura militar sob o golpismo bolsonarista, esta sensação de distância fria perdeu sua razão de ser. Mesmo os mais empedernidos defensores de outrora de uma perspectiva liberal de “página virada” sobre o regime ditatorial não podem deixar de sentir no cangote os suspiros arrepiantes de um velho fantasma, recolocado em cena com nova roupagem de legitimidade social. 

No entanto, para terror dos desavisados por cegueira consentida e calafrio dos que não guardaram ilusões sobre as consequências de conciliações extorquidas, há certa dificuldade em lidar com o movimento contraditório que a nova politização conservadora coloca sobre o debate. Além do desejo por restauração de uma era de ouro defendida com mentiras, há o monopólio sobre a elocução pelo desejo por ruptura, representado pelo bolsonarismo que sobreviverá sem Bolsonaro. 

A resposta de Lula, pregando um quietismo de ocasião para reiterar a “página virada” já não responde aos anseios de períodos em que a politização de direita era de baixa voltagem, como no contexto das conciliações costuradas nos primeiros mandatos lulistas. Contra as mentiras do verde-amarelismo do novo conservadorismo radical brasileiro, a aposta deve ser a mentira de uma normalidade nunca conquistada? O combate às velhas mentiras será travado com a lapidação de novas? Não é possível acreditar que será um restauracionismo de um progressismo republicano desenvolvimentista que prega não haver vestígios da ditadura na democracia de chacinas que instaurará algum novo regime de verdade. Contra a atualização de símbolos da ditadura em comícios com dezenas de milhares de pessoas com camisas da CBF, a omissão como solução soa como um atestado de morte política.

Uma nova forma de politização também traz desafios para as formas de conceber o sentido combativo da memória do golpe de 64. O tema escolhido para o desfile do Cordão da Mentira deste ano foi “De golpe em golpe: tá lá um corpo estendido no chão”. O título articula o duplo movimento de duro trabalho de reflexão que a situação exige que atravessemos: por um lado, pensar sobre o mesmo fenômeno enquanto sucessão reiterada, repetitiva, de continuidade de uma tendência histórica que desdobra os massacres contínuos iniciados quando caravelas europeias primeiro atracaram em praias do “Novo Mundo”; por outro lado, trata-se de um evento excepcional, um marco inaugural que deve ser pensado nos termos de sua singularidade, os termos de situação nova inaugurando um novo patamar de modernização conservadora. O desafio está em entender que uma dimensão não desmente a outra.

reunião em cooperativa

Cortejos do Cordão da Mentira denunciam violência policial l Foto: Sato do Brasil/Cordão da Mentira/Divulgação

O dever de dizer a verdade

Por um lado, há a tendência de apagamento do sentido de continuidade de campos sociais já esbulhados e oprimidos, de tal forma que a ditadura representou a agudização e radicalização de uma vocação exterminista e desagregadora do Estado brasileiro já existente muito antes do golpe de 64. Como se os vestígios de terror ideológico e centralização do poder de dominação social fosse um ponto fora da curva nas condições normais de temperatura e pressão institucionais, como se o autoritarismo não estivesse incrustado na legalidade institucional brasileira desde o berço. O que cria a miopia, que perdurou por anos, de que em 64 o regime era brando e apenas após o AI-5 teria começado a violência aterrorizante, ignorando o trucidamento da organização sindical em meio urbano ou rural, os inquéritos sobre universidades, os expurgos entre dissidências nos meios militares de baixa patente, e tomando como fatos de menor relevância a censura, a invasão de igrejas com cúrias progressistas, suspensões de habeas corpus, etc.

Por outro lado, há o equívoco de tratar a era inaugurada pelo golpe de 64 no Brasil como mais um grão de areia no grande deserto de genocídios encadeados na história da subjugação dos povos degredados em holocaustos coloniais. Sem a devido cuidado, corre-se o risco de ignorar o salto organizativo nas formas de extirpar do território nacional toda e qualquer forma de dissidência e inconformismo – este o real propósito do golpe, e não uma reação “por incômodo com a democracia” como prega certa narrativa romântica e rósea que tenta fingir ser efetiva a conquista da liberdade democrática. É tal formulação que impede de ver, por exemplo, a ampliação do sistema carcerário como uma continuidade tendencial de forma de controle de populações pobres, afinal oprimidas desde sempre, em que a política de contra-insurgência militar contra a “ameaça comunista” passa a se voltar contra o tráfico de drogas, a justificação política e jurídica para o massacre de pobres, pretos e periféricos. Também não seria tomado como tema de reflexão a modernização do mundo do crime com o entrelaçamento entre esquadrões da morte (como o capitaneado por Fleury) e inteligência militar de polícia política, passando o know-how de perícia militar para agentes que faziam bicos de segurança ilegal para a contravenção (bicho e tráfico de drogas) enquanto trabalhavam nos porões, gerando a modernização do crime, o surgimento das disputas territoriais da era das facções, e as condições de expansão do mercado ilegal de segurança ilustrado com os serviços contratados para assassinar Marielle Franco em 2018. Ou seja, ficaria sem reflexão a especificidade da aurora do poder miliciano e sua disseminação.

Não encarar a singularidade da era inaugurada é tratar com indiferença estes temas, como se fossem indistintos a tantos outros temas da pilha secular de cadáveres empilhados em nossa história. Tal postura significaria deixar sem menção um novo patamar quantitativo e qualitativo no aprofundamento do extermínio sistemático dos povos indígenas durante a tutela militar, como comprova a quase extinção do povo kinja, autodenominação dos Waimiri Atroari, nas obras da rodovia BR 174 Manaus-Boa Vista, assim como o genocídio da população negra durante a era da democracia de chacinas, deixando sem crítica a criação da Polícia Militar nos moldes hoje naturalizados. Pior, ficaria sem debate o equívoco triunfalismo de certa esquerda que comemorou uma suposta derrota das forças militares, como se fossem uma força despolitizada e coadjuvante por mero desprestígio circunstancial, certeza que permitiu que todos ficassem de queixos caídos com a ascensão de Bolsonaro. Não haveria balanços sobre o que significa a sobrevivência de serviços de inteligência e arapongagem que continuaram em funcionamento durante o período democrático, com a manutenção de órgãos como o SNI comandados por militares. Um amontoado sem fim de injustiças que permanece sem confronto.

Não apontar a face mutilada de uma sociedade colapsada e tutelada por uma polícia, um poder militar, um sistema político, um código civil e paradigmas de desenvolvimento econômico todos legados da ditadura militar e preservados nas aspirações governativas inclusive da esquerda no poder significa uma recusa a olhar-se no espelho e, ao não ter coragem de confrontar a própria face, os próprios auto-enganos e ilusões perdidas, condena-se a viver sem perceber o real tamanho das armadilhas e batalhas do tempo presente. No dia da mentira, dia dos 60 anos do triunfo da infâmia e covardia, o dever de dizer a verdade se impõe com maior força. Muito apropriado quando o imperativo de lidar com contradições e impasses se torna um dever. Na omissão, não há confronto com a verdade, e se a verdade não é encarada, a justiça é uma mentira e as páginas viradas, meras mordaças auto-impostas, novas formas de conformismo para tornar aceitável o convívio com derrotas que calam fundo. Mas tá lá mais um corpo estendido no chão, nos lembrando de que nossos mortos têm voz, e só podem falar através de nós.

Gustavo Assano é professor e coordenador do núcleo ArtEmancipa, mestre em filosofia e doutorando em teoria literária e literatura comparada e pesquisa teatro da cidade de São Paulo há 20 anos.

Cursinhos populares estão pintando as universidades brasileiras de povo

Por Bárbara Poerner – 27/03/2024

 

 

Conheça projetos de pré-vestibulares gratuitos e voluntários que ensinam como transformar realidades por meio da educação popular

Uma turma do cursinho Afirmação, no Rio Grande do Sul l Foto: Arquivo/Reprodução

“Tenho que dizer que se pinte de preto, que se pinte de pardo”, disse o revolucionário argentino Ernesto “Che” Guevara em um discurso na universidade de Las Villas, em Cuba, no ano de 1959. “Não só entre os alunos, mas também entre professores. Que se pinte de operário e camponês, que se pinte de povo, porque a Universidade não é patrimônio de ninguém e pertence ao povo de Cuba”, anunciou, propondo uma revisão radical da forma como o ensino superior era visto até aquele momento na América Latina.

Mais de sessenta anos depois das palavras de Che, o acesso à educação superior ainda é muito desigual no Brasil. Embora o perfil de discentes das faculdades e universidades esteja mudando ao longo das duas últimas décadas devido às políticas de cotas e articulações de movimentos sociais, o cenário ainda é pouco diverso e, para muitos, inacessível. Isso se reflete nos dados: o número de brasileiros com 25 anos de idade que têm o ensino superior completo é de apenas 19,2%, diz o IBGE.

Os cursinhos populares são um modo de desafiar esse modus operandi. Eles são pré-vestibulares gratuitos onde, normalmente, todos os docentes e colaboradores são voluntários. O objetivo é auxiliar os estudantes a ingressarem na universidade, mas não só.  

Ao proporem uma nova lógica de acesso à educação, tais projetos impulsionam uma práxis de comunidade, solidariedade e redução das desigualdades. “Além [do Afirmação] me possibilitar ingressar na faculdade, também me possibilitou o convívio com colegas mais jovens e a formar novas opiniões em questões de gênero, raça e política. Vai muito além do cursinho, eles acolhem o aluno”, exemplifica Daiane da Silva Rosa, uma universitária que reencontrou o caminho do estudo após 20 anos sem entrar em uma sala de aula. 

Daiane foi aluna do Afirmação, cursinho popular localizado no centro de Porto Alegre (RS) e fruto de uma parceria da Escola Estadual Júlio de Castilhos com militantes do Levante Popular da Juventude. Hoje, ela estuda Serviço Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Para mim, ter passado no vestibular significa que nunca é tarde para recomeçar e poder mostrar para os meus filhos que a educação vale a pena, e que mesmo que não tenhamos condições financeiras de pagar um [cursinho] particular, eles podem conseguir também, como eu consegui”, conta a estudante. “É para que o jovem veja que pode ocupar lugar nas faculdades, que não é só quem tem dinheiro que consegue.” 

Nicoly Donati, que foi professora de química da estudante e é uma das coordenadoras do projeto, acredita que isso torna os cursinhos populares uma experiência diferente dos ambientes escolares convencionais. Para ela, “o primeiro impacto dos cursinhos populares é fazer as pessoas entenderem que a realidade delas pode ser diferente, que o lugar delas é dentro do ensino superior e esse é um direito que elas têm”.  

Para o +Nós, cursinho popular que atua em algumas cidades e bairros do estado do Rio de Janeiro, ir além das quatro paredes da sala de aula é essencial. O projeto “não tem só a intenção de ser um curso comunitário, mas sim um movimento de educação popular”, conta Ana Carolina, co-coordenadora e docente de redação, gramática e literatura na unidade do Complexo do Alemão. Ela ainda acrescenta que “defendemos abertamente o fim do vestibular, pois ele é processo de exclusão. E quem vai ser excluído são essas parcelas da população que são mais marginalizadas e que enfrentam uma desigualdade educacional muito grande”.  

Pioneiro na experiência, o atual Instituto Cultural Steve Biko começou em 1992, na cidade de Salvador (BA), como um cursinho voltado para a população preta e parda com o “propósito de inserir pessoas negras politizadas e conscientes dentro da universidade”, afirma Jucy Silva, diretora pedagógica do espaço. A ideia foi inserir uma disciplina diferente, chamada de cidadania e consciência negra, na grade do pré-vestibular.  

Desde então, muita coisa mudou no cenário educacional brasileiro. A Lei de Cotas foi aprovada em 2012 e, em meados de 2000, surgiu o ENEM. A diretora lembra que, há 30 anos, uma pessoa negra oriunda da escola pública demorava mais tempo para ingressar na universidade e não era comum vê-las ocupando cadeiras de cursinhos preparatórios. Hoje, o Steve Biko tem alunos de todas as idades, inclusive estudantes do ensino médio, e ampliou sua atuação para além das aulas preparatórias, mas Jucy destaca que ainda existe uma longa trajetória para garantir o direito ao ensino para a população preta e parda no país.

Uma turma do cursinho +Nós l Foto: Arquivo/Reprodução

Superando os desafios 

Movimento de Educação Popular Inclusiva do Jurunas, realizado em parceria com a Universidade Estadual do Pará (UEPA), atua no bairro homônimo em Belém (PA), começou na década de 1970, passou por um hiato e voltou em meados de 2015. Gabriel Pacheco, professor de História e um dos coordenadores do projeto, explica que o critério de seleção prioriza os estudantes que já residem no bairro, a fim de facilitar a locomoção e também driblar um problema comum entre os cursinhos populares: a evasão.  

Uma estratégia do Afirmação para lidar com a mesma adversidade foi criar o grupo de acolhimento, no qual existe um contato direto com os alunos e alunas a fim de entender a realidade individual de cada. Além disso, existem os núcleos de atividades extracurriculares, comunicação, financeiro e coordenação. “Nenhum grupo tem mais importância ou mais voz do que o outro, são só grupos com tarefas diferentes”, explica Isadora Franck, professora de física e co-coordenadora.  

Tal disparidade no acesso à educação começa muito antes do ensino superior. São 52 milhões de brasileiros que não completaram o ensino médio – ou porque abandonaram, ou porque nunca frequentaram a escola; sete em cada 10 são pretos ou pardos. “O racismo provoca muito fracasso na vida escolar de um jovem negro ou uma jovem negra. O racismo tem efeitos perversos e que impede mesmo a pessoa terminar o ensino médio, a pessoa entrar na universidade. Às vezes ela entra, mas ela não consegue permanecer”, argumenta Jucy.  

Ana também cita o desafio da evasão, mas acrescenta outro que se manifesta no estado carioca: a violência. “Esse problema interfere diretamente na atuação do pré-vestibular, principalmente se ele é localizado dentro de comunidades de favela”, conta a professora, que destaca como o +Nós atua também com reforço escolar para remediar o problema e oferecer espaços seguros de acolhimento. 

reunião em cooperativa

“Eu vejo a educação popular como um trabalho de esperança dos cidadãos que queremos, e onde eles podem chegar”, diz professora do +Nós l Foto: Arquivo/Reprodução

Construindo a educação popular

Desde criança, Gabriel desejava dar aulas de história. Foi no cursinho popular Jurunas onde ele conseguiu concretizar esse desejo e ampliar sua visão de mundo. Segundo o historiador em formação, fazer parte da “grande família” que é o projeto serviu para refrescar sua prática pedagógica. Ao sentir que está ajudando as pessoas com aquilo que ele sabe fazer de melhor, Gabriel acredita “que cada vez mais você está contrariando o sistema, que tenta cada vez mais fazer essas pessoas desistirem e somente aceitarem as coisas”. 

Um dos métodos do Jurunas para abordar temas sociais foi incluir a matéria “Interdisciplinar”, onde são tratados assuntos da atualidade como feminicídio, prisões, fome, escassez hídrica e lixo. A potência do projeto, para o coordenador, está em manter o acesso ao ensino público, gratuito e de qualidade, indo na contramão do ideal de privatização. 

Os cursinhos também são espaços de formação de professores, defende Isadora. Foi o que aconteceu com ela e Nicoly. Hoje, ambas estudam o curso de licenciatura em física e química, respectivamente, motivadas pelas experiências que tiveram no Afirmação. 

Os impactos não se mantêm só na vida do estudante, mas sim ampliam-se para sua família e território. “Conseguimos fazer um trabalho que alcança essas famílias e essas comunidades formando uma rede”, diz Jucy. O estudante “consegue ter uma melhor percepção do que é ser negro na sociedade e eles também têm acesso à história dos nossos ancestrais, nossos antepassados de forma positiva e também consegue se instrumentalizar para poder combater o racismo fora do Instituto Steve Biko, dentro da universidade e também fora dela”. 

Essa prática de ensino ligada às experiências que ultrapassam o caráter conteudista tradicional estão presentes em inúmeros cursinhos populares e são, para Ana, uma formação de cidadania. Ser professora no +Nós expandiu sua leitura de mundo e, hoje, ela é adepta do verbo esperançar, de Paulo Freire . “Eu vejo a educação popular como um trabalho de esperança dos cidadãos que queremos, e onde eles podem chegar”, finaliza. 

Brotei: a perspectiva de uma semente de Marielle

Por Vitória Rodrigues – 13/03/2024

 

 

Com 13 anos quando Marielle foi assassinada, a ativista Vitória Rodrigues transcreve sua trajetória e angústias enquanto jovem que sonha com a política e fala sobre o impacto da ex-vereadora em sua vida

Nota da Edição: O texto foi publicado antes das revelações das investigações da Polícia Federal que culminaram na acusação dos irmãos Domingos e Chiquinho Brazão como mandantes.

Há exatos seis anos, eu tinha treze anos de idade e ela tinha trinta e oito. Eu estava  no último ano do ensino fundamental. E tinha o hábito de sair da escola e andar até o quarteirão ao lado, onde minha mãe trabalhava como diarista numa casa. Tinha que dar um abraço nela.

Quando cheguei lá, abracei minha mãe. Logo depois, ela minha mãe começou a limpar o chão enquanto a televisão estava ligada. Meio-dia é hora de RJTV, que eu logo comecei a ver. Mostrava as imagens de uma mulher bonita e do seu motorista, também bonito. Falava de morte. Fiquei nervosa, mas me sentei para ver o que acontecia.

Naquela época, eu já tinha alguma consciência política — como muitos da minha geração, nossa formação democrática começou pela página de Facebook Quebrando O Tabu. Mas eu não sabia quem era aquela mulher. Só sabia que me sentia triste, desolada e como se uma parte de mim tivesse ido embora também. 

Aos meus treze anos de idade, eu vi a Marielle Franco, de trinta e oito, ir embora. Diferente dos outros dias, o RJTV1 foi todo sobre o assassinato da Marielle e do Anderson. Aquilo me indicava que era sério. Diferente dos outros dias em que passava no trabalho da minha mãe, só fui embora quando o telejornal acabou.

Quando decidi partir, abracei a minha mãe e fui ao ponto de ônibus pensando que a mãe da Marielle jamais poderia abraçá-la de novo. Naquele busão sem ar-condicionado no calor da Pavuna e de São João de Meriti, minhas lágrimas angustiadas se misturaram com o meu suor. Péssimo dia.

Cheguei em casa e meu Galaxy J5 Prime nunca fez tantas pesquisas. Passaram-se horas. Queria saber quem era Marielle Franco, o que ela fazia, porque fazia. Nela, vi muito do que eu acreditava. Eu nunca tinha visto uma mulher negra e sáfica ser política. Na época eu não entendi, mas aquilo me inspirou. Muito.. Me vi nela. As notícias falsas que eu li eram numerosas e aquilo me doía o coração. Eu estava confusa, enfurecida e ensandecida.

Já depois de muito pesquisar e estudar para concurso público de ensino médio, era noite. Com a minha avó, resolvi ver o RJTV2 pra ver se tinha alguma novidade. Naquele dia, a imagem da Cinelândia tomada por pessoas me emocionou muito. Prometi que seria determinada e sensível como a Mari. Desde o dia 15 de março, espero alguma explicação para o crime. Mas criei as minhas próprias respostas a esse absurdo. E quem me ajudou foi a revolta. 

Anos de espera e de luta

A revolta pelas desigualdades que eu vivi e vivo me fez focar na educação como forma de mudar de vida — de comprar uma casa, de ter carteira assinada, de poder sonhar. Um ano depois do dia 15 de março de 2018, eu estava estudando na escola dos meus sonhos. E naquele dia, o Coletivo Feminista levou quem quisesse para o Redes da Maré, do ladinho d’onde eu havia acabado de começado a estudar.

Na favela lar da quinta vereadora mais votada em 2016, naquele dia acontecia a abertura de uma exposição que homenageava a vida de três ativistas negros: a data de falecimento de Marielle Franco também era data de nascimento de Abdias do Nascimento e de Carolina Maria de Jesus.

As pessoas faziam discursos emocionados e tinham várias fotos da Marielle. Queria ser um terço do que ela é, pensei. Naquela semana, muitos dos meus professores falaram da Mari porque a conheciam e sabiam quem ela era. Tinham votado nela. Faltava muito, mas gostaria de votar em alguém como Marielle. Poderia eu ser uma referência assim um dia?

O sonho de ser mais

Estudar do lado da Maré e da Favela de Manguinhos significava não saber se eu voltaria pra casa tranquila. O ano do primeiro aniversário de morte da Marielle foi marcado por tiroteios em que minhas aulas eram interrompidas constantemente. Fiz um projeto de lei para o Parlamento Jovem Brasileiro e comecei a achar que poderia sonhar, sim, com a política.

Quanto mais eu me envolvia com projetos e lia o que diziam referências para mim, mais ficava nítido que eu gostaria de ser eleita para fiscalizar o poder público de forma integral. Sempre que surgia uma entrevista em que a jornalista perguntava o que eu gostaria de fazer, me era simples dizer uma única palavra: política.

Minha mãe, que me abraçava e ainda abraça todo dia, costumava ficar apavorada com essa ideia de querer fazer a diferença na vida pública. Dizia que eu ia morrer como a Marielle. Isso me assustava, mas nunca me parava de idealizar essa possibilidade. Tinha um medo quando dizia que queria, sim, viver a vida partidária pelo Brasil.

E é, de fato, difícil dizer isso. Eu sou uma mulher jovem de esquerda e a política massacra a mulheres todos os dias, especialmente meninas jovens de esquerda. Não imagino as coisas que as parlamentares Brasil afora escutam e enfrentam. A Marielle enfrentou.

Acredito que se tem uma coisa que a Franco ensinou é que a política pode ser do meu jeito e para o que eu acredito. Eu sempre gostei de assistir aos discursos que o Instituto Marielle Franco publicou via YouTube e é lindo ver essa mulher que eu tanto me inspiro falando com tanta veemência. Tinha uma firmeza linda na voz dela. Sinto muitas saudades do que não vivi com Marielle. Acho que eu já a teria conhecido pessoalmente se ela estivesse aqui.

Durante o último ano do ensino médio, tive muitas dúvidas se deveria escrever minha monografia sobre as milícias no Rio de Janeiro. Com tantos acadêmicos que são homens brancos, parecia não ser pra mim discutir violência. Quando meu orientador contou que a dissertação de mestrado da Mari era sobre as Unidades de Polícia Pacificadoras, fez muito sentido querer falar de necropolítica — a minha principal inspiração política falava disso. E tanto ela dizia e lutava, que incomodava quem promove o caos que atinge diariamente o nosso povo. 

Seis anos

Já fazem seis anos daquele dia em que eu, no ensino fundamental, vi pela TV a Cinelândia tomada por gente chorando e clamando por justiça. Agora estou entrando na faculdade e vejo como a ausência da Marielle fez com que eu germinasse a presença da força em mim.

No meu coração, sinto que conheço a Marielle, sim. Sei que poucas a conheciam como ninguém, mas existe a sensação de que ela vive muito em mim. Não sei. Só sei que sinto alguma coisa muito forte quando vejo uma foto dela ou lembro dela, e sinto vontade de fazer tudo o que nunca foi feito. Essa, talvez, seja a força que ela queria transmitir.

Eu bem que fui convidada e poderia me candidatar esse ano. Mas não pensei muito porque sempre ficou muito claro com o que aprendi com ela que a revolta deve ser organizada. E antes de fazê-la, a gente precisa estudar e aprender antes de fazer o que sempre sonhamos em fazer.

Penso sempre em como seria com ela aqui. O que ela estaria achando da política federal? Será que ela teria ido na minha escola? Será que ela teria sido eleita para outro cargo? Será que eu não ia me inspirar tanto assim em alguém?

Nesses dias, fui almoçar em comemoração ao aniversário de uma pessoa importante pra mim, a Beatriz. Acabamos falando de Marielle, e algumas semanas antes dela dispersar semente, minha amiga disse que a conheceu na escadaria da Câmara Municipal. Bonita, alta, atenciosa, ela desligou o telefonema em que estava para ouvir as sugestões da Bia sobre as mudanças do clima. Ficou muito claro ali que a presença dela tinha uma aura de força muito grande. Eu queria muito ter vivenciado isso.

Não me culpo por não ter acompanhado o trabalho de Marielle Franco antes de sua morte — eu era uma criança. Criança esta que estava numa escola municipal do Rio que ela sabia, mais do que ninguém, que estava ruim. E falava disso sempre e lutava para que mudasse. E eu sou muito grata por isso. E isso me faz querer saber mais e mais sobre a Mari sempre.

Minha mãe também resolveu abraçar o questionamento pelo assassinato da Mari. Dona Regina ainda fica com receio da vida que almejo ter algum dia, mas sabe que a gente precisa estar com a caneta na mão pra fazer tudo o que os que tem a caneta na mão se recusam a escrever e assinar.

Em 2024, quero parar de perguntar quem mandou matar a Marielle. Daqui uns anos, espero fazer um texto emocionado sobre como cheguei onde ela me inspirou a sonhar em estar. Acharam que matariam ela com tiros. Estavam enganados. Os projéteis disparados viraram incontáveis sementes espalhadas pelo mundo. Eu sou apenas uma delas. E brotei.

 

Pautemos o debate sobre aborto: nossas vidas não podem mais esperar

Por Maria Paula Monteiro* – 08/03/2024

 

 

Em artigo, Maria Paula Monteiro diz que o ambiente favorável para discussão do aborto tem que ser criado. “Organize-se! A vida das mulheres não pode mais esperar”, diz.

Protesto em 2023 em São Paulo l Foto: Gabriela Moncau via Brasil de Fato/CC

Quero contar a história de Aline. Mulher negra que, aos 36 anos, se viu grávida de seu terceiro filho, depois de ter tentado se reaproximar do ex-companheiro que a violentava. Criar e cuidar de duas crianças sozinha era difícil. Faltava dinheiro para as contas básicas no fim do mês, mesmo Aline se desdobrando como doméstica durante o dia e feirante aos finais de semana. Aline se mudou do interior para a capital para viver com o companheiro e não tinha mais contato com a família. Foi espancada durante a segunda gestação e o ex-companheiro era a única pessoa que conhecia na cidade. Precisava de ajuda, mas só teve a ele para recorrer. Grávida, não tinha condições e nem queria ter mais um filho desse homem violento. Ele disse o endereço de uma senhora que fazia abortos porque também não queria outro filho.

Os atendimentos só eram feitos de madrugada para não levantar suspeitas. Aline foi até lá sozinha. E aguardou, sozinha, em um quarto escuro, porque essa mulher tinha um filho em alcoolismo que ficava agressivo quando bebia. Sozinha, Aline deitou em uma cama de lençol sujo e aguardou que aquela senhora, utilizando uma agulha de costura, finalizasse o procedimento. Sozinha, Aline voltou para casa, sentindo dores e sangrando, para começar um outro dia de trabalho e cuidado com os filhos. 

O movimento feminista é repleto de histórias como a de Aline. Algumas sobrevivem para contar os relatos, outras não tem o mesmo fim. Qual a responsabilidade do Estado nisso tudo? 

Quando centenas de mulheres se reuniram na esplanada dos ministérios, em Brasília, em agosto de 2018, a pauta do aborto parecia mais viva do que nunca. Tenho cenas gravadas na memória que nunca vou esquecer do Festival pela Vida das Mulheres: mães amamentando suas crianças enquanto participavam de rodas de conversa, batalhas de rap, trocas de saberes com parteiras, balões verdes e roxos subindo no céu durante a passeata. Foram muitas palestras, personalidades relevantes da política do país presentes, vigília e manifestação na porta do Supremo Tribunal Federal (STF), audiência pública e participações riquíssimas.

O Festival foi organizado em virtude da audiência pública convocada entre 3 e 6 de agosto de 2018 para debater a ADPF 442, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, protocolada por Anis Instituto de Bioética e pelo PSOL em 2017. Dois meses depois, Jair Bolsonaro era eleito presidente do Brasil e a possibilidade de descriminalização do aborto, que parecia tão eminente à época, começou a ser abafada e atacada dia após dia.

Foram quatro anos muito difíceis para o movimento feminista, mas encontramos nesse terreno árduo muita força e solidariedade para seguir em luta. Foi também nesse período que aconteceu o crescimento da campanha “Nem Presa Nem Morta”, que luta pela descriminalização do aborto no país, e que as organizações do selo “Futuro do Cuidado”, envolvidas na pauta, também se fortaleceram. 

Durante esse tempo, vivemos o esforço de fazer valer o direito ao aborto a meninas de 10 e 11 anos que foram estupradas, nos vimos diante da necessidade de organizar logísticas de resistência em hospitais para tentar contornar a perseguição fundamentalista aos profissionais de saúde e às vítimas de violência. Digo no plural porque foi um verdadeiro esforço de ativismo, comunicação e estratégias de mobilização que envolveu diversos movimentos, de abrangências nacionais e estaduais. Sem contar as portarias e cartilhas absurdas do Ministério da Saúde, que tentaram dificultar mais o acesso ao aborto legal. Isso tudo em meio à pandemia do coronavírus.

Também nesse período vimos nossas “hermanas” conquistarem o direito ao aborto legal após anos de muita luta nas ruas. A aprovação da legalização do aborto na Argentina, no final de 2020, foi extremamente importante para potencializar as mobilizações em todos os outros países da América Latina, especialmente no Brasil, que é vizinho próximo. Em seguida, veio a descriminalização na Colômbia (2022) e no México, em 2023.  

Chegamos em 2023 no Brasil, sob um governo democrático, mas ainda com um Congresso de maioria anti-direitos. Se por um lado, em nível judicial, tivemos o voto favorável da ex-ministra Rosa Weber na ADPF 442 em setembro de 2023, as tentativas de barrar o tema entre os parlamentares não são poucas – muito menos desprezíveis. 

O PL do Estatuto do Nascituro, por exemplo, voltou para a pauta da Câmara dos Deputados no final de 2022 e conseguiu ter a votação barrada por articulação das parlamentares feministas com obstrução e pedido de vistas. Agora, pode voltar a tramitar a qualquer momento: uma deputada do Rio de Janeiro, Chris Tonietto (PL), conseguiu 305 assinaturas (59% da Câmara), para que o PL siga em regime de urgência. 

O projeto pretende tornar o aborto em crime hediondo, inclusive nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e de fetos anencéfalos, além de garantir personalidade jurídica para o feto. Com isso, até mesmo processos de fertilização in vitro seriam prejudicados, já que equipara em direitos os embriões às pessoas nascidas vivas. 

Digo isso tudo porque, enquanto ativistas de direitos humanos e pela democracia, temos a missão de nos alinharmos às mulheres feministas que estão pautando a luta urgente por aborto legal. Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto de 2021, mais de 5 milhões de mulheres de até 40 anos já abortaram no país. Um número muito alto se pensarmos que anualmente são feitos 1.800 abortos pelo SUS, em média, segundo a plataforma AbortoNoBrasil.info, de Instituto AzMina. 

São milhões de abortos feitos de forma insegura, que têm condições mais insalubres e perigosas a depender das condições financeiras, sociais, da região em que a pessoa se encontra. Aborto é um procedimento de baixa complexidade quando feito com medicamentos seguros e recomendados pela Organização Mundial de Saúde. É inaceitável que aborto seja uma das principais causas de morte materna no país. São mortes evitáveis.

É a vida das meninas, mulheres e demais pessoas que gestam que está em risco, diariamente. Ser militante feminista e ouvir cotidianamente relatos de violência e negligência do Estado é angustiante. Ouvi recentemente de uma feminista que admiro muito, a coordenadora da Casa Tina Martins, em Belo Horizonte, que todos os dias ela acorda com ódio. E que é esse ódio que a mobiliza para lutar todos os dias.

A criminalização do aborto hoje condena mulheres brasileiras à morte, a sequelas graves de saúde, a violências e traumas irrecuperáveis. Nossas vidas precisam indignar todo o corpo de ativistas do país, mas não só indigná-los: é preciso mobilizá-los. Temos a chance única de pressionar o STF para pautar novamente o julgamento da ADPF 442, e isso só será feito quando toda a sociedade estiver debatendo sobre aborto.

É preciso trazer o assunto e defendê-lo em todos os espaços. No grupo de amigos, nas redes sociais, na mesa do bar. É preciso, também, fortalecer as mobilizações em torno do aborto legal. A Frente Nacional Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto tem 16 Frentes Estaduais que se organizam no país, com formas de contato para poder dialogar e fortalecer.

O ambiente favorável para a discussão sobre a legalização do aborto será criado por nós. Organize-se! A vida das mulheres não pode mais esperar. 

 

*Maria Paula Monteiro é jornalista, ativista e uma das fundadoras do Coletivo Feminista Várias Marias, em Sete Lagoas, Minas Gerais.

Quais são as táticas e desafios da luta por direitos reprodutivos na América Latina

Por Luiza Ferreira – 08/03/2024

 

 

Como mulheres e pessoas que gestam na América Latina estão mudando leis injustas para garantir que aborto seja um direito, não um crime

A “onda verde” na Argentina conquistou a legalização do direito ao aborto l Foto: Emergentes via Brasil de Fato/CC

No dia 30 de setembro de 2023, a ministra Rosa Weber se aposentou do Supremo Tribunal Federal (STF), pouco antes de completar 75 anos, idade constitucional limite para integrar a Corte. Dezoito dias antes de se aposentar, ela assumiu a presidência do STF e no mesmo dia liberou para julgamento uma ação apresentada pelo PSOL e pelo Instituto de Bioética (ANIS) em 2017 sobre a descriminazação do aborto. Faltando oito dias para o fim de seu mandato, no dia 22 de setembro, em voto de 129 páginas, a ministra, que é relatora do caso, disse sim para que o aborto deixe de ser considerado crime se provocado até as primeiras 12 semanas de gestação.

Para a ministra, os artigos 124 e 126 do Código Penal não estão de acordo com a Constituição Federal atual, e a pena atribuída a gestante que realiza o aborto é desproporcional. A criminalização do aborto voluntário, diz ela, que aplica sanções penais às mulheres e aos profissionais que realizam tais procedimentos, “versa questão de direitos, do direito à vida e sua correlação com o direito à saúde e os direitos das mulheres”. 

No entanto, o julgamento foi suspenso depois de um pedido de destaque do ministro Luís Roberto Barroso. Tal pedido diz respeito a levar o julgamento para o plenário físico, pois ele acontecia em ambiente virtual da Corte.

No Brasil, o aborto só é permitido em caso de gravidez decorrente de estupro, risco para a vida da pessoa que gesta e se o feto for portador de anencefalia. Se uma mulher ou pessoa com útero provoca um aborto ou autoriza alguém a realizar o procedimento em qualquer outra situação, a pena de detenção aplicada é de um a quatro anos, tanto para a pessoa que gesta quanto para a pessoa que auxiliou a realização da interrupção da gravidez.

“Embora tenhamos uma decisão no STJ que médicos não podem denunciar uma mulher ou pessoa com útero por abortos clandestinos, sabemos que, na prática, isso ainda pode acontecer e o entendimento dos juízes, especialmente de primeira instância, podem não ser o mesmo do Supremo. Então uma mulher que recorre ao aborto inseguro acaba se sujeitando a muitos riscos, seja com uma clínica clandestina, com medicamentos falsos, com métodos caseiros perigosos”, comenta Maria Paula Monteiro, jornalista, ativista e uma das fundadoras do Coletivo Feminista Várias Marias, em Sete Lagoas, Minas Gerais.

Para ela, o aborto é uma prática que nunca deixará de existir, mesmo que seja criminalizada. Por isso mesmo, a descriminalização representa um grande avanço em termos de justiça reprodutiva, e é papel do Estado se responsabilizar pela garantia do direito à vida e à saúde de pessoas que gestam.

Fundamentalismo religioso: entrave contra o direito da mulher 

Segundo Maria Paula, um dos maiores desafios do Brasil hoje é a força que tem o discurso fundamentalista na política. Discurso esse que encontra vazão no pensamento cotidiano de uma população extremamente religiosa: segundo a pesquisa Global Religion 2023, do Instituto Ipsos, 89% dos brasileiros acreditam em um poder superior e 76% seguem uma religião. 

Para a ativista, são poucas as igrejas que não misturam a fé com a política, e, com uma grande parte da população sendo religiosa e o número de grupos neopentecostais crescendo exponencialmente nos últimos anos, o discurso pró-vida entra em cena contra o menor sinal da pauta sobre o direito ao aborto alcançar novas proporções. 

“Levantam a bandeira contra o aborto, sob a crença de que assim são “a favor da vida” e demonizam totalmente mulheres que fazem a decisão por interromper a gestação, seja por qualquer motivo. Cria-se uma imagem de que as mulheres que defendem a legalização do aborto seriam assassinas, diabólicas”, diz. 

Ainda segundo a militante, entre os fundamentalistas religiosos não existe espaço para o debate sobre saúde pública, o foco é o campo da moral que pretende defender a vida mas defende, na realidade, a morte, “porque mata e persegue milhares de mulheres (e demais pessoas com útero) todos os anos”. 

Muitos desses grupos fundamentalistas, aponta, se colocarm contra o aborto até mesmo em casos de estupro, anencefalia do feto e em risco para a vida mulher, o que evidenciari a pouca importância dada para a dignidade humana para além do nascimento. 

Desde que o mundo é mundo: o aborto no Brasil 

A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2021 revela que 1 em cada 7 mulheres brasileiras já passou por um aborto antes dos 40 anos. De forma alarmante, 52% dessas mulheres realizaram a interrupção da gravidez antes dos 19 anos. A disparidade é evidente, pois as mulheres negras enfrentam maior negligência e obstáculos para acessar serviços, representando 47,9% das internações e 45,2% das mortes relacionadas ao aborto.  

Ainda no Brasil, uma mulher a cada 28 internações morre no Sistema Único de Saúde, por falha na tentativa de realizar um aborto.  Segundo dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS), só entre 2021 e 2022 foram 483 mortes. 

“Uma mulher que recorre ao aborto inseguro acaba se sujeitando a muitos riscos, seja com uma clínica clandestina, com medicamentos falsos ou com métodos caseiros perigosos”, comenta a ativista fundadora do Coletivo Várias Marias.  

A interrupção da gravidez ser algo legalizado é realidade em muitos países – inclusive acaba de se tornar um direito constitucional na França. Enquanto isso, no Brasil, mulheres tem se organizado em para tentar minimizar os impactos do aborto inseguro e por alternativas seguras para que se faça cumprir o direito das mulheres e pessoas com útero de decidirem sobre o seu próprio corpo. 

Segundo Maria Paula, foram as brasileiras que descobriram que o misoprostol, conhecido como Cytotec recomendado para tratar casos de úlcera, era um medicamento abortivo, e assim “passaram a utilizá-lo para abortar de forma mais simples e segura, no final dos anos 1980”.  

A alta demanda pelo remédio parece ter chamado a atenção das autoridades, que começaram a cercear a sua comercialização no início dos anos 1990. Oito anos depois, o misoprostol viria a ser permitido somente se administrado dentro dos hospitais, dificultando ainda mais o acesso às mulheres que procuravam um método seguro de interrupção da gravidez. O tema suscitou novas discussões no Congresso Nacional entre os anos de 2005 e 2007, durante os dois governos do presidente Lula (PT). 

“Infelizmente, a organização dos deputados anti-aborto foi muito forte, com discursos enérgicos e organização da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e Contra o Aborto, que hoje conta com mais de 200 parlamentares”, relembra a ativista. 

Todos os dias, é preciso falar sobre o aborto

Nesse momento acendido pelo voto de Rosa Weber, a principal estratégia dos movimentos feministas para pressionar os demais ministros a acompanharem o voto de Rosa Weber é mobilizar o debate contínuo do tema, levando a pauta para os mais diversos canais de comunicação: nos jornais, nas revistas, nas redes sociais, entre outros.  

“É preciso tomar a narrativa como nossa, em defesa do direito à saúde, da liberdade das mulheres e por justiça reprodutiva. Precisamos seguir falando sobre aborto, em todos os lugares que estivermos, para ajudar o tema a deixar de ser um tabu”, diz Maria Paula.  

Para ela, ainda é necessário se propor a desmentir boatos e argumentos contrários apresentando dados científicos e fatos que comprovem a necessidade de incluir, de uma vez por todas, o aborto no debate da saúde pública.  

Onda verde

Assim como Maria Paula, integrante do coletivo Várias Marias, milhares de feministas e ativistas latinoamericanas tem se pronunciado cada vez mais contra a criminalização do aborto, ocupando as ruas de seus respectivos países em prol dessa luta. A onda verde, como ficou conhecida a luta pela legalização do aborto na Argentina, tomou conta da América Latina e não tem pretensão de parar até que todo o continente faça coro às políticas em defesa ao direito de decisão das mulheres e pessoas que gestam. 

Cuba, Guiana, Guiana Francesa e Uruguai eram os únicos países da América Latina que haviam legalizado o aborto até dezembro de 2020. Poucos dias antes daquele ano acabar, a Argentina se juntou ao grupo. No país vizinho, o Senado do país aprovou a sua legalização até a 14ª semana da gestação. Depois de décadas de luta dos movimentos feministas argentinas pela garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, a lei 27.610 deu lugar à antiga lei de 1921, em vigor 101 anos depois de sancionada, e que considerava a interrupção da gravidez um crime, excetuando os casos de estupro ou risco de vida para a pessoa gestante. 

A chamada onda verde – manifestações gigantescas pelo aborto legal e seguro – que tomou conta da Argentina em 2020 transformou o país em um símbolo da luta pela descriminalização e legalização do aborto, inspirando demais movimentos feministas na América Latina.  

Dois anos depois, em fevereiro de 2022, o avanço veio da Colômbia com a descriminalização do aborto até a 24ª semana de gestação. Após o período, a interrupção só poderá ser realizada em caso de risco de vida da pessoa gestante, em caso de estupro ou malformação do feto. 

Outra vitória latinoamericana dessa vez veio do México, que descriminalizou o aborto no dia 6 de setembro deste ano. Foi a Suprema Corte mexicana que tomou essa decisão, após ter autorizado os estados a realizarem abortos no ano anterior, em 2021. No entanto, desta vez, ao declarar inconstitucional a criminalização do aborto, a Corte revogou os artigos do Código Penal que puniam essa prática, garantindo que mulheres e profissionais da saúde não sejam mais sujeitos a prisão por aborto em qualquer parte do país. 

Ainda que grande parte da América Latina mantenha a interrupção da gravidez como uma prática proibida, esses países demonstram um caminho viável na batalha pelos direitos reprodutivos das mulheres. E as decisões recentes fornecem um exemplo tangível de como políticas mais inclusivas e progressistas podem ser implementadas para garantir a autonomia e os direitos das mulheres e pessoas com útero sobre suas próprias decisões reprodutivas. São movimentos que tem servido de inspiração e modelo para as políticas brasileiras serem repensadas nesse aspecto. 

No caso da Argentina, uma das principais diferenças na mobilização, como pontua Maria Paula, é que lá a pauta é mais englobada pelos movimentos de esquerda e ativistas. Já no Brasil, o tema fica restrito não apenas à ao movimento feminista como à uma parte dele. 

“Falta envolvimento de mais pessoas com a pauta falando sobre ela nos espaços, sem tabu, abraçando a causa como prioritária, não deixando em segundo plano, tratando como identitária”, afirma a ativista. Com a reeleição do presidente Lula, há uma janela possível, acredita. Mesmo com os entraves das bancadas evangélicas e mais conservadoras, as ativistas enxergam o potencial de tão logo emplacar a descriminalização no país. Como reforçou a jornalista, os movimentos sociais e parlamentares da base progressista têm o papel fundamental de seguirem pressionando o governo federal e a imprensa para evitar o engavetamento da pauta por mais tempo.  

“As mulheres não podem mais esperar. Nunca teremos o momento ideal para tratar de aborto no país. Quem construirá esse momento somos nós mesmas”, finaliza.

 

Tecnoautoritarismo: o que a “Abin paralela” nos diz sobre mecanismos de vigilância e democracia?

Por Luiza Ferreira – 29/02/2024

 

 

Entrevista com o pesquisador Vinícius Fernandes revela alguns dos impactos e estratégias do tecnoautoritarismo no Brasil e no mundo

Crédito: Access Now via CC 4.0

No começo deste ano, a confirmação da suspeita da existência de uma Abin paralela através das investigações da Polícia Federal acrescentou ao gosto amargo do legado do bolsonarismo. Segundo as investigações, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) teria sido usada de forma ilegal para espionar políticos, jornalistas e autoridades adversárias ao governo de Jair Bolsonaro, com o intuito de favorecer o clã do ex-presidente.

Os ministros do STF Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia e o ex-governador do Ceará e hoje ministro da Educação Camilo Santana estariam entre as autoridades vítimas do esquema criminoso de monitoramento. A atuação paralela da instituição se dava através da utilização do software israelense First Mile. 

A PF realizou operações contra Alexandre Ramagem (PL-RJ) e Carlos Bolsonaro, onde encontrou indícios da obtenção de “materiais” ilegais através da agência, fruto do monitoramento criminoso. De acordo com as investigações, o filho do ex-presidente era quem chefiava o núcleo político da espionagem, sem o aval da Justiça, de adversários políticos, autoridades e jornalistas. A PF já teria indícios de que Jair Bolsonaro seria um dos favorecidos com informações do esquema de espionagem ilegal. 

As revelações colocam em foco a questão da atuação clandestina da agência durante o governo de Bolsonaro, e levantam sérias preocupações sobre o uso criminoso de uma instituição pública e de dispositivos de vigilância pelos governos de extrema-direita para controle e acesso à informações privilegiadas e favorecimentos pessoais. E isso também implica na segurança coletiva da população brasileira. Quem fala um pouco mais desses impactos é o pesquisador Vinícius Fernandes da Silva, da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa.

Escola de Ativismo: Há novidade na atuação clandestina da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo Bolsonaro? Como isso impacta a segurança coletiva e a privacidade dos ativistas?

Vinícius Fernandes da Silva: Sim e não. Vamos lá. A Abin foi criada em 1999, sendo sucessora direta do Serviço Nacional de Informações (SNI), o órgão responsável pelas informações que orientavam a repressão da ditadura a militantes, ativistas, partidos políticos, sindicatos, mídia, igreja, entre outros. Portanto, a Abin herdou um know how, um modus operandi do SNI, isso muito pela forma como o processo de redemocratização foi tutelado pelos militares, não havendo uma ruptura, mas sim uma continuidade. Mesmo instrutores, a mesma cartilha, reproduzindo a mesma lógica. Após a redemocratização, o uso para fins políticos já ocorreu, como no caso de 2002 com denúncias de que agentes da Abin participaram de uma operação que determinou a desistência da ex-governadora do Maranhão, Roseana Sarney, à disputa pela Presidência da República. Também tivemos um caso revelado em 2008 com grampos da agência em alguns parlamentares, no qual a Abin negou a participação, mas gerou o afastamento da cúpula do órgão.

Entretanto, neste caso recente do governo Bolsonaro, as provas são irrefutáveis. A Abin através do contrato 567/2018, de caráter sigiloso, utilizou a ferramenta de vigilância de 26 de dezembro de 2018 até 8 de maio de 2021, monitorando, segundo denúncias, adversários políticos, ativistas, senadores, governador e até ministro do Supremo Tribunal Federal STF. Na sociedade da informação atual, a utilização destas ferramentas de vigilância, no caso, o FirstMile com capacidade de monitoramento em tempo real de até 10 mil donos de celulares a cada 12 meses, gera enorme insegurança da privacidade dos ativistas.

EA: O que isso nos diz sobre o estado da vigilância hoje no mundo contra a sociedade e movimentos sociais?

VFS: Com a constante evolução tecnológica, a capacidade técnica e instrumental do Estado exercer o seu legítimo uso da força aumenta. Com isso, as ações em zonas de anomias, caracterizadas por lugares de ausência de direitos, potencializam o dano ao Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, a tecnologia fora das regras democráticas irá perpetuar ações de violência estrutural dentro da dinâmica patriarcal e eurocentrada do mundo.

Desde o caso Snowden, em 2013, quando o ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança (NSA) revelou documentos da agência e da CIA sobre a espionagem em massa de cidadãos estadunidenses, além da interceptação de conversas privadas de lideranças mundiais da época, como Dilma Roussef e Angela Merkel, a tecnologia ampliou o poder do estado.

A empresa dona da tecnologia espiã, a Cognyte (ex Verint), não por acaso é uma empresa israelense, pertencente a um estado militarizado, testando suas ferramentas de vigilância contra o povo palestino. O exército brasileiro é o maior comprador da tecnologia no país, gastando mais de 82 milhões de reais entre 2014 e 2023.

Nos países latino-americanos, de histórico recente de ditaduras militares, temos ainda uma preocupação maior pela herança do estado à margem das regras com a justificativa da segurança pública dos homens de “bem”. 

EA: Qual é o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) no controle e supervisão das atividades de inteligência, especialmente em casos de espionagem ilegal?

VFS: Como já decidido pelo STF, as atividades de inteligência da Abin não operam em campo de exceção dos direitos fundamentais. Pelo contrário, as atividades se submetem às regras do Estado Democrático de Direito e respeito aos direitos fundamentais (ADPF 695). Portanto, as ações descritas pela Abin Paralela são ilegais e devem ser julgadas de acordo com a lei.

Recentemente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) provocou o STF através da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 84), sugerindo que a Corte dite regras a serem seguidas até que haja uma regulamentação específica sobre o tema. A PGR entende que há uma lacuna constitucional na regulamentação da questão, então acionou o STF para que garanta balizas provisórias à salvaguarda dos direitos fundamentais à intimidade e à privacidade, e à inviolabilidade do sigilo das comunicações pessoais e de dados, até que o Congresso faça o seu papel em legislar sobre o tema.

A última movimentação da ADO, o Ministro Cristiano Zanin, relator do caso, abriu prazo de dez dias (iniciado em 02/02) para que o Congresso Nacional preste informações sobre a regulamentação do uso de ferramentas de vigilância. É uma medida de praxe, porém mostra o interesse na celeridade do assunto na Corte.

EA: Como a utilização de informações obtidas ilegalmente pela Abin pode ter impacto na integridade de processos democráticos e nas relações políticas no Brasil? Como isso impacta na defesa da democracia brasileira?

VFS: Ainda saberemos melhor de acordo com o progresso das informações o tamanho do impacto da Abin Paralela. Os primeiros relatos, como o divulgado em reportagem da TV Band, demonstra uma lista com pelo menos 21 nomes, citando deputados, senadores da CPI da Covid, ex-bolsonaristas, ex-governador e ministros do STF.

Nessa lista, há nove senadores que integraram a CPI da Covid, entre os quais o presidente da comissão, Omar Aziz (PSD-AM) e o relator, Renan Calheiros (MDB-AL). Outro integrante da CPI que teria sido espionado é o Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), líder do governo no Congresso. Além do ex-governador de São Paulo, João Doria, entre outros nomes.

O teor político da ação demonstra a utilização das ferramentas do Estado para além das regras do jogo democrático, expondo o uso do espaço público para a manutenção do poder. As medidas necessárias devem ser tomadas, não podemos aceitar novas impunidades ou anistias.

EA: Quais são os principais mecanismos de vigilância utilizados hoje pela extrema-direita para monitorar jornalistas, políticos e autoridades, conforme indicado pela investigação em curso?

VFS: O FirstMile é mais uma das diversas tecnologias utilizadas de forma invasiva pelo Estado. Através do projeto Defendendo o Brasil do Tecnoautoritarismo, a Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa observou o uso de diversas ferramentas e técnicas por parte do Poder Público, como:

Projeto Excel, o projeto foi instituído pela Portaria nº26/2020, Secretaria de Operações Integradas/SEOPI visando viabilizar o compartilhamento de dados das Secretarias de Segurança Pública dos Estados à Diretoria de Inteligência/DINT para gerar uma base de dados focada em desenvolvimento de inteligência de segurança pública. A Data junto a outras entidades da sociedade civil enviaram um ofício ao Ministério Público Federal sobre o caso;

Harpia Tech e Pegasus, ambas as tecnologias visam a uma maior vigilância do cidadãos possibilitando a coleta, cruzamento e análise de dados pessoais podendo gerar perfis detalhados. Representam um evidente exemplo de software de espionagem, com a SEOPI liderando o processo de aquisição de ambas. O caso foi analisado pelo TCU que, no entanto, não impediu a contratação;

Cortex, sistema utilizado pela Agência Brasileira de Inteligência que possibilita o acesso a câmeras rodoviárias e monitoramento de pessoas. Entenda mais sobre a atuação da Data junto à sociedade civil frente ao MPF aqui.

Cadastro Base do Cidadão, uso de decreto para facilitar a interoperabilidade dentro dos sistemas públicos, inclusive quanto à serviços de inteligência. O Decreto 10.046/2019 desconsidera normas de proteção de dados pessoais e representava um risco à população pela falta de procedimentos para o tratamento de dados. O caso foi analisado em julgamento conjunto da ADI 6649 e ADPF 695, tornando-se um caso emblemático dentro da disciplina da proteção de dados pessoais.

EA: Em sua visão, existe uma tendência global de governos de extrema-direita utilizarem órgãos de inteligência para alcançar seus objetivos políticos? Vimos isso especialmente nos EUA, que utilizavam da espionagem em massa para vigiar não só a população norte-americana, mas outras…

VFS: Sim, temos diversos exemplos só do uso do First Mile ao redor do mundo, possuindo um histórico documentado de violações aos direitos humanos. Há registros da utilização das tecnologias para perseguição e violação de direitos de opositores no Sudão e, em Myanmar, os sistemas estiveram relacionados no incidente que levou a prisão de mais de 12.000 e ao assassinato de 1.600 pessoas.

EA: De que forma a sociedade civil pode se proteger contra possíveis abusos de vigilância e espionagem ilegal por parte do Estado?

VFS: A sociedade civil deve pressionar por uma regulamentação das ferramentas de inteligência dentro dos direitos fundamentais de proteção dos cidadãos. Devemos promover um ambiente em rede de fortalecimento da sociedade civil, capacitando e orientando para as melhores práticas de proteção e preservação deste espaço conquistado democraticamente. Devemos incidir nos poderes públicos para que haja um sistema de freios e contrapesos, onde os três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) tenham autonomia para que exerçam as suas funções, mas com um controle externo dos outros poderes, sempre em um contexto de accountability. O controle cidadão também deve fazer parte desta narrativa, promovendo a participação de organizações do terceiro, academia, ativistas em mecanismos de transparência e efetivo diálogo com as demais instituições públicas.

EA: Quais são as medidas recomendadas para fortalecer a transparência e prestação de contas nos órgãos de inteligência, visando evitar práticas de espionagem ilegal e garantir o respeito aos direitos individuais?

VFS: É necessário um desenho normativo claro e objetivo que determine em lei as regras para a utilização destas ferramentas, a partir do artigo 5º da Constituição, dos direitos e deveres individuais e coletivos, da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, sobre interceptações telefônicas, e a Lei nº 9.883, de 7 de dezembro de 1.999, que institui o Sistema Brasileiro de Inteligência, cria a Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

Toda atividade policial deve ser resguardada pela autorização jurídica pertinente, observando a discricionariedade, o devido ordenamento legal e a proteção dos dados sensíveis dentro dos direitos fundamentais.

*Vinícius Fernandes da Silva é graduado em gestão de políticas públicas e mestre em mudança social e participação política pela USP, atuando em temas relacionados à democracia, segurança pública e artes.

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Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

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