Luh Ferreira
Educadora Popular, ativista, doutora em Educação
Encantada com o mundo, indignada com a situação dele
Comboio: programa em transição energética para comunicadores e jornalistas abre inscrições
Comboio: Programa formativo em transição energética para pessoas comunicadoras abre inscrições
Bem-vinda, Bem-vinde, Bem-vindo!
Justiça Climática não é opção: é a flecha que guia a resistência e o futuro. Por isso, acreditamos que só é possível uma transição energética justa acontecer se ela for inclusiva, conduzida e protagonizada pelas mãos de todo mundo.
Não adianta trocar energia gerada por petróleo pela gerada pela energia eólica, se ela devasta comunidades tradicionais e a biodiversidade. Não basta eletrificar sem pensar nos impactos da mineração nos povos. E daqui parte o Comboio.

O Comboio é um programa formativo online para pessoas comunicadoras que buscam unir suas vozes e aprimorar seus conhecimentos sobre transição energética justa e popular enquanto transformam saber em prática e prática em novas narrativas potentes. Será uma jornada de aprendizado e produção de conhecimento e divulgação sobre os desafios, dilemas e oportunidades que envolvem a agenda da transição energética justa através de lentes como a eletrificação, a mobilidade e o transporte de cargas.
Ao longo de outubro de 2025 até janeiro de 2026, durante 4 meses, os participantes farão um percurso de criação de narrativas e elaboração de práticas, nos moldes de uma redação de produção de conteúdo, associado à aulas teóricas que visam fornecer um panorama crítico, analítico e baseado em evidências sobre transição energética justa, crise climática, transportes, mobilidade, mineração e temas ainda pouco explorados como eletrificação da frota de caminhões pesados.
O processo formativo irá envolver os participantes em um percurso de criação de narrativas e elaboração de práticas, nos moldes de uma redação de produção de conteúdo, associado à aulas teóricas que visam fornecer um panorama crítico, analítico e baseado em evidências sobre transição energética, crise climática, transportes, mobilidade, mineração, eletrificação da frota de caminhões pesados e boas práticas comunicacionais.
A carga horária prevista do curso é de 6 horas semanais, incluíndo teoria, prática e muito aprendizado.
O programa conta com uma bolsa para os aprovados no valor de R$1.200 reais mensais para garantia da dedicação das pessoas participantes e aulas de inglês focada na temática do curso.
Nesta edição, serão selecionadas 10 pessoas comunicadoras que atuam com produção de conteúdo para redes sociais e produção de textos e tenham vontade de aprender mais sobre transição energética e contar histórias e construir novas narrativas a partir de uma perspectiva ativista, territorializada e crítica sobre transição energética.
Sobre a Escola de Ativismo
O Comboio é uma Iniciativa da Escola de Ativismo.
A Escola de Ativismo é um coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.
O coletivo é formado por um grupo multidisciplinar de ativistas, que se organiza de maneira distribuída e não hierárquica, por meio de princípios orientadores em diversas regiões do Brasil.
Esse programa é para mim?
Você atua como comunicador em um veículo ou canal? Cria e divulga saberes, tecnologias sociais, conteúdos informativos ou atua em redes ou coletivos? Você tem interesse em saber mais sobre transição energética e crise climática? Em se conectar com outras pessoas comunicadoras e profissionais da áreas para socializar histórias, trajetórias, vivências e aprendizagens?
A formação tem o objetivo de contribuir para a formação de comunicadores em todo o país, além da articulação de redes e produção de materiais. Se você enxerga sua vida nesse percurso, esse programa é para você.
Você pode estar num começo de jornada na comunicação ou com uma carreira mais estabelecida, o importante é que esteja vinculado à organizações e/ou coletivos de comunicação ou produza conteúdo para redes sociais.
É essencial que os participantes tenham 6 horas disponíveis por semana para às atividades do programa, como aulas e momentos coletivos, além de tempo para se dedicar à criação e estudo. Possivelmente as atividades irão ocorrer das 19h às 21h (Horário de Brasília) em ao menos dois dias por semana.
Se você é uma pessoa que:
– Compreende o que é a mudança Climática e deseja aprofundar os conhecimentos em temas relacionados à crise climática, transição energética, boas práticas comunicacionais, eletrificação, transporte e mobilidade;
– Faz parte de comunidades e territórios atingidos por problemáticas provenientes da poluição, mineração, empreendimentos energéticos, indústria petroleira, agronegócio e que queiram fazer parte da elaboração de soluções para essas questões;
– É comprometida com o antirracismo, anti-LGBTQIAPN+fobia, anticapacitismo, o combate ao machismo e às demais formas de opressão;
Tenha criatividade e vontade de produzir materiais que tragam novos olhares e narrativas para novos problemas e velhas questões;
– Tenha senso crítico e esteja aberta a pautar a temática de transição energética justa e popular em seus coletivos, veículos, meios de comunicação e perfis em redes sociais
– Esteja disposta à entrar numa jornada de aprendizagem que envolva participação e curiosidade, buscando sempre colaborar com participantes diversos de todo o país;
O Comboio tem um compromisso com a diversidade e por isso incentivamos que pessoas negras, de comunidades tradicionais, mulheres, jovens e povos LGBTQIAP+ se inscrevam no processo seletivo.
Como eu faço para me inscrever?
Para se inscrever acesse o formulário, clicando aqui.
As inscrições vão até meia-noite do dia 21/09/2025.
Se tiver qualquer dúvida pode escrever para contato@ativismo.org.br
Resumindo
O que é? É o Comboio – Programa em transição energética para comunicadores e jornalistas
Quanto custa? Nada!
Quanto você vai receber de apoio? Bolsa: R$ 1200 por mês por quatro meses
A formação é focada em que? Transição energética justa e popular, transportes pesados, mobilidade, eletrificação de frota, mineração, salvaguardas
ambientais.
Qual a carga horária? 6 horas semanais
Quais os resultados esperados? Aprendizagens sobre transição energética, criação de redes, produção de materiais para redes sociais e site.
Tá, mas quando? Entre outubro de 2025 e janeiro de 2026!
E o link do formulário? Tá aqui!
Cronograma
Período de Inscrições: 09 até 21 de setembro
Contato com pessoas selecionadas: 26 de setembro
Período do programa: 29 de setembro até 31 de janeiro (com recesso).
Divulgação dos conteúdos online: à combinar em conjunto com a Escola de Ativismo
Bem-vinda, Bem-vinde, Bem-vindo!
Pistas para identificar, enfrentar e denunciar injustiças climáticas
Pistas para identificar, enfrentar e denunciar injustiças climáticas
As injustiças resultantes das questões climáticas amplificam desigualdades sociais, mas a luta coletiva é capaz de defender os territórios e a vida.

O agravamento das mudanças climáticas vêm causando impactos profundos em todo o mundo, mas não afeta todas as pessoas da mesma forma. A intensidade dessas consequências é marcada por fatores como região, território, cor da pele e classe social.
As injustiças resultantes das questões climáticas amplificam as desigualdades sociais que atravessam a sociedade. Mas como identificar essas desigualdades e saber quando há injustiças no território? Como entender se alguma situação que ocorre na minha comunidade pode ser decorrente das mudanças climáticas? E como enfrentar esse problema para garantir o direito à vida digna e para assegurar que comunidades historicamente vulnerabilizadas permaneçam em seus territórios?
A Escola de Ativismo ouviu duas especialistas nesta área para que nos ajudem a procurar pistas para identificar, enfrentar e denunciar injustiças climáticas. Ambas concordam que nessa discussão é necessário ouvir e envolver as comunidades tradicionais e seus saberes ancestrais antes de considerar tomadas de decisão que impactam o meio ambiente.
Mudanças de humor do tempo
Se nas cidades os efeitos mais trágicos são sentidos em desastres, enchentes e deslizamentos, os problemas enfrentados pelas comunidades originárias e tradicionais são ainda mais constantes devido à forte conexão das pessoas com o meio ambiente. Essas comunidades, historicamente excluídas das decisões políticas e ambientais, seguem resistindo diante de ameaças constantes à sua existência e aos seus modos de vida. Um dos caminhos para a promoção da justiça climática, segundo especialistas e ativistas, é justamente garantir que esses grupos estejam no centro do debate e da construção de soluções.
Mas muitos fatores tornam injustiças climáticas invisíveis. Um deles é a naturalização da desigualdade. Nos territórios que sempre viveram com ausência de políticas públicas, esses problemas acabam sendo vistos como “normais” e não como uma violação de direitos.
A liderança quilombola e agricultora agroecológica Nilce Pontes, do Quilombo Ribeirão Grande /Terra Seca, no município de Barra do Turvo (SP) é integrante da Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras (RAMA), militante da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e acompanha os movimentos agroecológicos a nível nacional e internacional, defendendo a importância da conservação dos territórios quilombolas e colaborando na elaboração de técnicas agrícolas.
Vivendo no meio da Mata Atlântica, ela afirma que os territórios quilombolas estão sendo impactados e é possível perceber as alterações nos ambientes e nos modos de vida das comunidades. As mudanças climáticas têm deixado o solo mais ressecado, as águas mais escassas e mudado até os hábitos de cultivo para a produção de alimentos – uma injustiça com quem cuida do meio ambiente.
“Antes a gente percebia que tinha época certa de plantar as coisas. Hoje a gente planta, mas não é aquele mesmo formato de produção. A gente plantava, por exemplo, feijão, arroz, milho, mandioca, banana, hortaliças, entre outras variedades aqui no território. Hoje a gente não consegue mais respeitar os ciclos lunares, uma vez que tem chuva quando deveria ter sol e tem sol quando era pra ser época de chuva. Essa alteração, essas mudanças de humor do tempo, a gente percebe que têm impactado também no processo de conservação das nossas sementes, das nossas mudas e raízes. O formato com que o solo tem respondido a essas mudanças, com secas excessivas, com enchentes, ou mesmo na forma como o vento afeta o território. Para nós é perceptível essa alteração. Eu sinto uma confusão enorme com relação ao clima e se para a gente é complexo, para as plantas é ainda mais”, explicou.
Essa alteração e adaptação forçada, imposta a quem sempre preservou e manteve os biomas em pé, é uma das diversas formas de injustiça e de violação de direitos.
“Eu identifico as injustiças no meu território quando eu deixo de viver o meu modo de vida e passo a viver as práticas impostas por pessoas que não vivem o dia a dia da comunidade. Seja no modo de me alimentar, no de comunicar, no modo de vestir. Ensinar tecnologia para nós é nos ensinar a fazer adaptação dos nossos modos de vida. Então quando não tem essa interação para mim é uma violação de direito”, afirmou Nilce .
Para ela, outra injustiça climática presente nos territórios quilombolas está ligada aos processos de licenciamentos e a forma com que a legislação ambiental trabalha o seu conceito de preservação. O Projeto de Lei 2.159/2021, conhecido como “PL da Devastação” tem preocupado indígenas e quilombolas de todo o Brasil. A decisão pode marcar o maior retrocesso ambiental em décadas.
Entre as propostas do PL, já aprovado no Senado, está a restrição da necessidade do licenciamento ambiental para áreas que ainda não tiveram o processo de regularização territorial finalizado. Com isso, essas comunidades deixam de ser ouvidas, sendo deixadas de fora de decisões que impactam diretamente os territórios que ocupam e preservam. Nas redes sociais, povos tradicionais, ativistas, ambientalistas, organizações da sociedade civil, movimentos sociais, defensores do meio ambiente e dos direitos humanos se mobilizam com a campanha #VetaLula. A articulação pede o veto integral do presidente ao PL.
Para Nilce, os saberes técnicos não são suficientes e, sozinhos, podem permitir que injustiças aconteçam. “É preciso respeitar os modos e práticas de vida das comunidades. Não associam o conhecimento técnico com o saber tradicional, o saber ancestral. O campo tecnológico tem desenvolvido tecnologias e não tem levado em consideração o território e as práticas dos territoriais”, disse.
Quilombolas, indígenas e populações extrativistas são, e devem ser reconhecidos por sua contribuição para o equilíbrio climático. São essas comunidades que, com sabedoria ancestral e resistência diária, indicam os reais caminhos para a sustentabilidade e para um equilíbrio entre sociedade e natureza, através de suas vivências com a terra, com as águas e com o fogo.

Nilce Pontes é liderança quilombola e atua na defesa do meio ambiente e dos territórios quilombolas / Foto: arquivo pessoal
Desigualdades sociais e práticas possíveis
A bióloga, educadora ambiental e mestra em Desenvolvimento e Meio Ambiente, Sarah Lima, participa da construção do movimento socioambiental cearense e coordena o programa Clima de Urgência do Instituto Verdeluz. Ela explica que as injustiças climáticas referem-se à distribuição desigual das consequências das mudanças climáticas, especialmente sobre povos indígenas, comunidades tradicionais e periféricas, que são as que menos contribuem para o problema e as que menos estão preparadas para enfrentá-lo.
Eventos extremos estão cada vez mais intensos e frequentes. Alguns exemplos são: alagamentos após chuvas torrenciais, que inundam as casas; deslizamentos de terra, que destroem a vida de quem mora em zonas de risco; ondas de calor que afetam a saúde; escassez hídrica, que atinge principalmente grupos e territórios vulnerabilizados; dentre outros.
“Se pararmos para pensar nos territórios que sofrem injustiças climáticas, perceberemos que as pessoas têm uma cor de pele específica. No geral, são grupos sociais que já enfrentam diversas outras violações socioambientais, como ausência de saneamento básico, de áreas verdes, de corpos hídricos limpos e de acesso à saúde, à educação de qualidade, à mobilidade e ao lazer. As desigualdades sociais aprofundam a injustiça climática”, informou Sarah.
Mas há ações possíveis para mitigar os efeitos das mudanças climáticas nesses territórios. A educadora ambiental afirma os desafios são imensos e que é necessário haver políticas públicas comprometidas, desenvolvimento de tecnologias, incentivos fiscais, educação ambiental e governança participativa.
“Precisamos zerar as emissões de gases de efeito estufa, não só a nível local, mas também a nível global, afinal vivemos no mesmo planeta. Essas emissões só serão zeradas com uma transição energética justa, popular e inclusiva, que abandone todo e qualquer tipo de combustível fóssil, com a proteção dos biomas brasileiros, zerando desmatamentos e queimadas e com a gestão adequada de resíduos sólidos e líquidos”, explicação
Para adaptar territórios, também há práticas possíveis, especialmente soluções baseadas na natureza. “Algumas medidas são: melhoria da infraestrutura de drenagem das chuvas, como pavimentação permeável, telhados e jardins verdes; criação e conservação de áreas verdes; reflorestamento; recuperação de corpos hídricos poluídos; recuperação de encostas; painéis solares em casas e espaços comunitários; mapeamento de áreas de risco e remanejamento adequado de famílias em zonas de risco; agroecologia e hortas urbanas. São muitas as possibilidades, que devem ser feitas respeitando os territórios e as pessoas”, pontuou Sarah.
Como denunciar
No campo ativistas vemos, com frequência, denúncias após violações de direitos humanos e dos direitos da natureza. Manifestações contra a devastação dos territórios mostram ao governo, empresas e ao mundo que existem caminhos melhores, mais justos e sustentáveis, pensando no presente e no futuro. Esse movimento vai na contramão do lucro e considera o bem viver dentro das comunidades ameaçadas.
Sarah Lima diz que ao notar violações ambientais é importante acionar os órgãos públicos de cada localidade, seja em nível municipal, estadual e federal. “Órgãos de fiscalização ambiental, polícia ambiental, Ministério Público, Defensoria Pública da União, Comissão de Direitos Humanos e parlamentares comprometidos com a justiça socioambiental. Além disso, é essencial a formação de uma rede com coletivos e organizações do movimento socioambiental, que possam pressionar as denúncias”, explicou.
Mas enfrentar as injustiças socioambientais e denunciá-las pode potencializar a insegurança de quem já enfrenta outras vulnerabilidades. Denunciar requer cuidados principalmente no Brasil, que é o segundo país mais perigoso do mundo para ativistas ambientais. Diariamente, ativistas ambientais e lideranças territoriais enfrentam a insegurança e a violência ao corajosamente decidirem expor situações e realizar denúncias.
Por isso, busque uma rede de apoio e se proteja se realizar ações. Conte com canais de confiança, organizações ambientais e redes de ativismo que atuam na defesa dos direitos territoriais e da justiça climática. O descaso e a invisibilização também são desafios dentro da agenda climática. Muitas vezes as denúncias não recebem a devida atenção por parte do poder público, o que reforça a sensação de impunidade e desamparo.
Também é possível contar com as redes sociais como instrumentos importantes para fazer com que as denúncias alcancem mais pessoas. Muitas vezes, os impactos ambientais não são expostos e documentados de forma fidedigna, com recortes por território, etnia, classe ou gênero. Isso invisibiliza as desigualdades e dificulta o reconhecimento de que há injustiça.
Luta contra o sistema e respeito aos modos de vida
Em um cenário marcado por profundas desigualdades sociais, raciais e ambientais, as vozes das comunidades são resistência e construção de futuros possíveis. A luta por justiça climática exige o reconhecimento e o respeito aos modos de vida tradicionais, à autonomia dos territórios e à força coletiva de quem cuida da terra.
Nilce destaca que a verdadeira preservação passa pela valorização das práticas e saberes das comunidades. Sarah aponta a urgência da organização coletiva e da ocupação de espaços de decisão como estratégia. Ambas mostram que a transformação só é possível quando feita a muitas mãos, coragem e esperança.
“Cada comunidade tem a sua expertise de conservação do território, conservação da vida, as suas relações políticas, sociais, culturais e étnicas, desde que não haja interferência, não já respeitam o modo de vida das pessoas no quilombo. Isso já contribui com a justiça climática e com a preservação do meio ambiente”, afirma Nilce.
“Lutar contra um sistema que não nos quer vivos é um grande desafio, mas é o único caminho possível. Lutar coletivamente é o meio mais potente de conseguirmos mudanças na sociedade, de defender os territórios e a vida. Então, encorajo as juventudes a se mobilizarem e se organizarem, porque só assim podemos transformar a realidade! Temos uma enorme capacidade, força e criatividade para adiar o fim do mundo. Não dá para deixar que discutam sobre as nossas existências e o nosso futuro sem nós, precisamos ocupar esses espaços e ecoar as nossas vozes! Como diz Paulo Freire, é preciso ter esperança, do verbo esperançar; e esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo”, finaliza Sarah Lima.

Sarah Lima é bióloga, educadora ambiental e participa da construção do movimento socioambiental cearense
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Letícia Queiroz
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Organização promove formação em comunicação estratégica em redes sociais para quilombolas
Organização promove formação em comunicação estratégica em redes sociais para quilombolas

Estão abertas as inscrições para o processo seletivo do ECOAR Quilombola. O projeto oferece uma formação voltada para o fortalecimento da presença e a potência de comunicadores e influenciadores quilombolas nas redes sociais.
Voltado para quem já atua na criação de conteúdo digital e deseja aperfeiçoar sua estratégia de comunicação, o ECOAR Quilombola é um espaço de troca, aprendizado e construção coletiva. Entre os objetivos da iniciativa está alavancar os perfis de micro-influenciadores / comunicadores quilombolas para que haja uma representação maior e mais diversificada de vozes quilombolas no ambiente digital.
Entre os critérios necessários para participar estão: ter uma conta no Instagram e/ou TikTok e/ou YouTube, criar conteúdos que tratem de algum aspecto da luta e/ou da cultura quilombola e fazer publicações há pelo menos dois meses, com periodicidade mínima quinzenal, em pelo menos uma destas plataformas. Também é preciso estar disponível para seis encontros online em setembro, nos dias 08, 11, 12, 22, 24 e 26/09, na parte da manhã, entre 8h e 12h, horário de Brasília e ter disponibilidade para viajar de 10 a 21 de Novembro, para uma possível atividade presencial (ainda não confirmada).
As pessoas selecionadas receberão uma bolsa no valor de R$ 5.000,00 para a participação no programa e um kit suporte com itens que possam ajudar na criação de conteúdo, como um celular, luzes e acessórios, ou pacote de internet, de acordo com avaliação prévia da equipe.
O projeto é organizado pela Pulso Conteúdo e pela Pajubá, duas empresas de comunicação focadas em causas progressistas e de impacto social, em conjunto com iniciativas nacionais e internacionais que atuam pela conservação das florestas tropicais e pelos direitos de comunidades tradicionais do Brasil.
Para saber sobre o programa, sobre os critérios de participação, atividades, resultados esperados e cronograma de atividades, acesse ecoar.me. No site também está disponível o formulário de inscrição.
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Escola de Ativismo
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Escola de Ativismo contrata pessoa educadora e mobilizadora para Programa Educativo na temática de Transição Energética Justa
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Seleção pública recebe currículos e cartas de apresentação até o dia 27 de julho. Veja os critérios para concorrer
A Escola de Ativismo busca uma pessoa que possa atuar em sistema ‘home office’, com disponibilidade para viagens, para realizar atividades de mobilização e educação ligadas a um programa educativo que terá como público-alvo comunicadores populares e como tema central a transição energética justa. A contratação compreende o período de 5 meses, de agosto de 2025 até dezembro de 2025, com inicio imediato em 04 de agosto de 2025.
1. A prestação de serviço prevê as seguintes atividades:
– Preparação, elaboração e realização de atividades, sejam reuniões, encontros, formações e oficinas em modo online ou presencial;
– Elaboração de metodologias ativas e dinâmicas de educação popular em justiça climática, sistematizando as mesmas;
– Trabalhar junto a equipe da Escola de Ativismo na articulação e desenvolvimento processos de aprendizagem junto com organizações, movimentos parceiros e participantes de um programa educativo;
– Participar de reuniões de alinhamento com equipe em modo online para articulação e execução das atividades, bem como apoiar na elaboração de relatórios de entregas;
– Produção de textos e/ou outras peças de comunicação com o objetivo de engajar os participantes do programa educativo;
2. Perfil profissional
Procuramos por pessoas com experiência de atuação em articulação, mobilização e aprendizagem junto a movimentos sociais, coletivos ou organizações que atuam em causas socioambientais, na pauta climática e na defesa dos Direitos Humanos. Vivências enraizadas nos territórios, raça, gênero e sexualidade também poderão ser usados como critérios de escolha.
É imprescindível estar alinhada/o com os valores e princípios da Escola de Ativismo. Devido às características do trabalho, o profissional deve ter discrição e habilidade de lidar com assuntos sensíveis e confidenciais, capacidade de trabalhar individualmente e também em grupo.
Habilidades desejadas para a vaga:
– Ser ativista ou possuir histórico de atuação junto a movimentos sociais e organizações socioambientais;
– Boa habilidade para articular diferentes frentes, mantendo diálogos e trabalhos com diversos atores;
– Organização, criatividade, dinamismo, iniciativa e comprometimento com prazos e entregas;
– Experiência em educação popular, com construção de roteiros e facilitação de atividades;
– Ter experiência na área e na temática de mudanças climáticas e justiça climática;
– Acesso pleno à internet, com hábito de trabalhar em sistema home office com equipes multidisciplinares, com agenda flexível;
– Ser um bom usuário da internet, especialmente no envio e gerenciamento de e-mails, reuniões/conferências online e mensageria (Signal/Whatsapp);
– É desejável, mas não obrigatório, que a pessoa tenha experiência na área de transição energética com temas como: Eletrificação, combustíveis fósseis, transportes.
– É desejável, mas não obrigatório, que a pessoa tenha experiência com processos educativos voltado pra comunicadores;
3. Processo seletivo
O processo seletivo será realizado em etapas, sendo (i) a primeira por pelo envio de currículo e carta de apresentação; (i) a segunda via entrevista; e (iii) por fim, a divulgação do resultado.
3.1 O currículo e a carta de apresentação devem ser enviados para ESTE FORMULÁRIO (CLIQUE NESTE LINK) até o dia 27/07/25 às 23h59 (horário de Brasília). A carta deve descrever a trajetória pessoal e profissional da pessoa candidata, assim como as razões pelas quais está interessada na vaga. Materiais multimídia (fotos, vídeos, links) que narrem sua trajetória serão aceitos e incentivados;
3.2 A etapa de seleção e entrevistas acontecerá em 28/07/25 a 31/07/25 . A EA entrará em contato com as pessoas selecionadas para o agendamento da entrevista. Cada entrevista contará com cerca de 40 minutos de duração e será realizada de modo online. O link será enviado pela EA no dia de seu agendamento. A Escola de Ativismo se reserva o direito de incluir outras fases de seleção, caso o nome da pessoa escolhida não seja definido somente por meio da entrevista.
4. Regime de contratação, valores e prazos
Regime de contratação de pessoa jurídica para atuar em média 30h/semanais, pelo período de 5 meses em sistema de home office, com disponibilidade para viagens, a ser pago via nota fiscal de serviços até o 5º dia útil subsequente ao mês em que prestou serviço. Será disponibilizado o valor de R$ 20.000 (vinte mil reais), pagos em cinco parcelas de R$ 4.000,00 (quatro mil reais), pagos mensalmente. Sobre esse valor não incidirão férias ou outros abonos. Início em 04 de agosto de 2025. Finalização em 04 de janeiro de 2026.
5. Despesas adicionais
Todas as despesas com transporte, estadia e alimentação em atividades presenciais serão de responsabilidade da EA, mediante apresentação de notas fiscais e recibos, conforme disponibilidade de recursos.
Chamada de Artigos: Edição especial da Revista Tuíra “Educação e Ativismos”
Chamada de Artigos: Edição especial da Revista Tuíra “Educação e Ativismos”

Montagem com quatro capas das edições da revista tuíra
Prezados(as) pesquisadores(as), educadores(as) e ativistas,
A Revista Tuíra anuncia uma chamada de artigos e ensaios para sua próxima edição especial, dedicada à crucial interseção entre Educação e Ativismo.
Em um cenário global cada vez mais marcado por crises complexas – da emergência climática às profundas desigualdades sociais – o papel da educação e do ativismo como catalisador de mudança se mostra mais vital do que nunca.
Buscamos contribuições que explorem as múltiplas formas pelas quais a educação, em seus diversos formatos e espaços (formais, não-formais e informais), pode nutrir o engajamento, fomentar a consciência crítica e capacitar indivíduos e comunidades para a ação. Igualmente, queremos artigos que analisem como o ativismo, em suas diversas manifestações, pode informar e ser informado por práticas educativas, gerando aprendizado, mobilização e impacto real.
Estamos particularmente interessados em trabalhos que abordem, mas não se limitem a, os seguintes eixos temáticos:
- Pedagogias do Ativismo: Como a educação pode ser um espaço para o desenvolvimento de habilidades e conhecimentos para o ativismo, incluindo educação para a justiça climática, direitos humanos, equidade racial e de gênero.
- Ativismo como Ferramenta Educativa: Estudos de caso e análises de movimentos sociais e ativismos que utilizam estratégias educativas para engajar o público e disseminar conteúdos contra hegemônicos.
- Educação para a Resistência: O papel da educação na construção de capacidades de resistência frente a desafios socioambientais e ordem neoliberal.
- Diálogos Intergeracionais: A transmissão de conhecimento e experiências entre gerações no contexto do ativismo e da educação para a ação.
- Desafios e Oportunidades: Análises críticas sobre os obstáculos e as potencialidades da articulação entre educação e ativismo em diferentes contextos geográficos e políticos.
Convidamos acadêmicos(as), pesquisadores(as) independentes, educadores(as) e ativistas a submeterem artigos originais, ensaios teóricos e revisões de literatura que contribuam para aprofundar o debate e fortalecer as pontes entre esses campos essenciais para a construção de um futuro mais justo e sustentável.
Acesse aqui todas as edições da Revista Tuíra – ISSN 2675-9047
Prazos e Normas:
- Prazo final para submissão: 05 de setembro de 2025
- Notificação de aceite: 30 de outubro de 2025
- Publicação da edição: entre novembro de 2025 e primeiro trimestre de 2026
Para diretrizes detalhadas sobre formatação e processo de submissão, por favor, entre em contato no e-mail: velot_wamba@riseup.net
Contamos com suas valiosas contribuições para enriquecer este debate fundamental e inspirar novas práticas na intersecção entre educação e ativismo.
Atenciosamente,
A Equipe Editorial da Revista Tuíra

Tuíra foi uma ativista e liderança indígena que ficou conhecida como a mulher que parou a construção do Belo Monte com um facão
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“Eu sou feliz é na comunidade” – um olhar sobre a luta pelo bem viver coletivo nos territórios
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A felicidade nas comunidades se manifesta como uma forma de resistência coletiva mesmo diante dos desafios diários. O cuidado, a união, a fé e a força são os pilares que sustentam essa alegria compartilhada como ato político.

Montagem com quatro fotografias feitas em comunidades tradicionais mostram cocos babaçu, tambores, casa feita de barro perto das árvores e bandeira com a mensagem “Cuidar da terra, alimentar o povo”. – Fotos: Letícia Queiroz
“Eu sou feliz é na comunidade, na comunidade eu sou feliz”, diz uma canção muito conhecida e cantada nos encontros em comunidades tradicionais… Assim foi também ao fim do mês de junho, quando ela foi entoada com muita emoção na Comunidade Alegria, em Timbiras, no interior do Maranhão, na região dos Cocais. O território que carrega o sentimento de felicidade no nome tem a alegria da união, de estar em contato com a natureza, de dormir com o céu estrelado e acordar com o canto dos passarinhos.
No Maranhão a região dos cocais abrange 17 municípios. Caracterizada por uma formação vegetal dominada por palmeiras como o babaçu, a paisagem é encantadora. As palmeiras, em diferentes tamanhos, formam o que de longe parece com elevações que se movimentam com a força dos ventos.
Na região é possível perceber a alegria das comunidades, mesmo diante dos desafios diários. É que a felicidade se manifesta como uma forma de resistência. É sobre sorrir sem esquecer de lutar e lutar de forma coletiva para a construção do bem viver. O que pode explicar isso é justamente a coletividade. A alegria é coletiva porque a luta também é. Nas comunidades, ninguém luta por si só. As aspirações em um território tradicional não são individuais e o que se busca são vitórias coletivas. Sendo assim, as alegrias também são de um grupo.
Um trecho da música “Eu sou feliz é na comunidade” diz:
A nossa comunidade luta por libertação,
para formar uma corrente e quebrar a opressão.
Com o trabalhador unido as coisas vão melhorar.
Luta por Reforma Agrária para na terra plantar.
Tantos pobres sem a terra, sem ter casa pra morar.
Lutam pelos seus direitos para a vida melhorar.
A nossa comunidade se reúne todo dia.
A nossa comunidade se transforma em alegria”.

Comunidades tradicionais no Maranhão preservam o meio ambiente e resistem ao avanço do MATOPIBA –
Foto: Letícia Queiroz
Nas comunidades, a felicidade é construída nos saberes compartilhados, na terra cultivada, nos cantos, nas rezas, nos festejos, no reencontro com a ancestralidade. O fato de pertencer a um território tradicional, com autonomia e identidade, é uma fonte de felicidade. É saber quem se é, de onde se vem e por que se luta. A felicidade também está na partilha de alimentos, nos trabalhos em mutirões, nas celebrações, nos cuidados entre gerações.
É lindo perceber que o cuidado com as outras pessoas é muito presente nas comunidades originárias e tradicionais. É sobre compreender que para cuidar de si é preciso cuidar das pessoas da comunidade porque elas também fazem parte de quem você é. Nos quilombos, entre os e as indígenas, nas comunidades camponesas, ribeirinhas, ciganas e tantas outras, cuidar do outro é cuidar de si mesmo e do território, da memória e da cultura de onde se vive.
O cuidado coletivo é parte do modo de viver. Esse cuidado, que fortalece o todo, também é um ato político e contribui para a alegria em forma de autoestima e autoconfiança. Com afeto e ativismo ancestral, mulheres negras dentro dos seus territórios e dos movimentos sociais consolidaram redes para fortalecer a identidade e reafirmar orgulho pela negritude.
Alegria que brota da terra

Coco babaçu e suas palmeiras são usados de váriadas formas, seguindo os saberes e tecnologias ancestrais – Foto: Letícia Queiroz
Olhar para a chuva caindo sobre as árvores verdinhas dá uma paaaaaz! Ter a certeza de que vai saborear frutos das estações, contar com a pesca, com as roças, as criações soltas que garantem comida na mesa é alegria! A infinidade de sabores que refletem a diversidade e a riqueza da vegetação nativa são riquezas, assim como a variedade de ervas medicinais no quintal de casa.
Cuidar da natureza como tratamos nosso próprio corpo é um ato de amor e cuidado.
Acompanhar o tamanho das pindobas – palmeiras de Babaçu em fase de crescimento – também é felicidade. Principalmente na região dos Cocais. E só de pensar em uma palmeira de babaçu e na sua serventia integral dá uma felicidade. Isso porque as árvores são tão ricas e o seu aproveitamento é uma prática sustentável que contribui para a economia local e preservação do meio ambiente.
Nos cocais, os cocos que caem são coletados por quebradeiras de coco para extração do azeite e leite de coco – muito usados na culinária tradicional. A farinha produzida a partir do mesocarpo do coco de babaçu é remédio para imunidade. A casca do coco, quando não é transformada em artesanato, vira carvão dentro das caeiras para serem usados nos fogareiros. A palha é manuseada com cuidado e transformada em formatos mais variados possíveis de cofos, cestos, abanos, esteiras, telhados de casas… Um tronco que cai, vira adubo orgânico, o paú. É incrível como nada se perde.
As tecnologias ancestrais e os saberes populares são riquezas e pontos fortes das comunidades. Essa felicidade pode não contagiar quem não compartilha as mesmas vivências. Mas quem vive sabe. E se alegra!
Felicidade como espiritualidade

Manifestações de fé fazem parte do cotidiano das pessoas em comunidades tradicionais – Foto: Letícia Queiroz
É muito comum o apego à fé nas comunidades tradicionais e a alegria que pulsa nesses espaços também pode ter relação com a espiritualidade. Os rituais e as festas tradicionais fortalecem a esperança em dias melhores. E isso alimenta a alegria, mesmo diante da dor.
A espiritualidade pode ser mais do que crença. Tem relação com o sagrado, com a terra, com os ancestrais, com os encantados e com o tempo da natureza. A espiritualidade está no toque dos tambores, nos sons das rezas, nas orações silenciosas ou só no pensamento. No banho de rio que limpa o corpo e a alma.
Para muitas pessoas, a espiritualidade oferece força, sentido e esperança. E é por isso que nos encontros que reúnem as comunidades tradicionais para tratar de determinados assuntos, sempre é esperado um momento espiritual. E geralmente acontece antes da abertura de qualquer evento, durante as místicas. Um momento de expressão de fé, de poesia, de expressão corporal, de palavras de ordem, de canto, dos símbolos, das ferramentas de trabalho.
A mística com espiritualidade nas comunidades é também sobre o pedido de licença antes de iniciar qualquer atividade. Essa prática é comum em diversas culturas e religiões e demonstra reconhecimento da presença de forças ou entidades espirituais que habitam o espaço.
Certa vez, na comunidade Alegria, uma liderança chamou atenção de visitantes no início de uma atividade com a presença de ativistas e movimentos sociais quando discussões importantes começaram sem um momento de espiritualidade. Isso diz muito sobre a importância da religiosidade para as comunidades. Para quem tem fé e acredita, pedir proteção é essencial.
A canção sobre felicidade na comunidade também fala sobre fé. “Nós cantemos um bendito, depois um “pelo sinal”, uma lê o Evangelho e todos vamos comentar”. E uma das estrofes fala sobre conquistas de direitos. “Os pobres fizeram um plano, isto eles querem ganhar, lutar pelos seus direitos para a vida melhorar”.
E dá pra melhorar e ser ainda mais feliz! Com os territórios livres de invasões e com lideranças livres de ameaças por defenderem seus territórios. Nas comunidades, queremos viver longe das cercas, da mineração, de plantações de eucalipto e do agronegócio. Distante das violações de direitos e sem nenhuma proximidade com agrotóxicos e pulverizações aéreas. Queremos viver com território titulado, ter segurança, água de qualidade, moradia digna e educação e saúde para o povo.
Dizer que é feliz na comunidade não é sobre aceitar as coisas como elas estão. É sobre reafirmar que a alegria está dentro do território, e não fora dele. É sobre saber que não está sozinho e ter certeza que vale a pena a luta e o esperançar.
É não conhecer individualismo e rejeitar muros altos que afastam a vizinhança. É uma alegria que resiste, que encontra beleza nos vínculos e na certeza de que há chão firme onde pisar, terra boa pra plantar e água limpa pra beber e pra banhar.

“Cuidar da terra, alimentar o povo” estão entre as prioridades das comunidades tradicionais – Foto: Letícia Queiroz
TEXTO
Letícia Queiroz
Jornalista, quilombola, comunicadora popular e ativista antirracista
publicado em
TEMAS

Navegar pelas águas do rio às margens de uma comunidade tradicional também é felicidade – Foto: Letícia Queiroz

Eu sou feliz é na comunidade. Na comunidade eu sou feliz. (bis) - A nossa comunidade luta por libertação, pra formar uma corrente e quebrar a opressão. O trabalhador unido as coisas vão melhorar. Luta por Reforma Agrária para na terra plantar. Tantos pobres sem a terra, sem ter casa pra morar. Lutam pelos seus direitos para a vida melhorar. A nossa comunidade se reúne todo dia, a nossa comunidade se transforma em alegria. Nós cantemos um bendito, depois um "pelo sinal", uma lê o Evangelho e todos vamos comentar. Os pobres fizeram um plano, isto eles querem ganhar, lutar pelos seus direitos para a vida melhorar.
(Esse texto foi escrito por Letícia Queiroz, comunicadora quilombola, após o Encontro de Segurança Integral para comunidades tradicionais na região dos Cocais. O encontro aconteceu em junho de 2025 e contou com a participação de integrantes da Escola de Ativismo)
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Bença, Seu Antônio: a vida rio, território e sonho de um quilombola do Vão Grande
Bença, Seu Antônio: a vida rio, território e sonho de um quilombola do Vão Grande
No quilombo de Vão Grande, o quilombola é exemplo de como lutar e se organizar, mas também de como sonhar e plantar rezando o que se colhe sorrindo.
Essa matéria faz parte do especial “Onde nasce o fogo: conhecimento ancestral e brigadas anti-incêndio” feita em parceria pela Escola de Ativismo e Fundo Casa. Confira mais matérias clicando aqui.

Ilustrações: Ana Clara Moscatelli
Em toda virada de 18 para 19 de março, a casa de Seu Antônio já amanhece em festa. É a celebração anual de São João, tradição que embala a história de sua família há décadas. “[Meu pai] adoeceu muito e minha avó prometeu para o santo que se ele curasse, faria festa. Ele melhorou. Ele se chamou José. E foi assim até ele morrer”, conta o quilombola de Vão Grande, no interior do Mato Grosso. Agora, essa tradição sagrada continua através de suas mãos.
Para ele, é impossível dissociar a fé do seu cotidiano. “Nossa devoção é muito grande aqui, através de nós sermos quilombolas e de nós recebermos aquilo que nossos pais ensinaram pra nós”. Filho caçula, ele nasceu e cresceu no quilombo aprendendo os ritmos da terra e das águas. Vive da pesca artesanal e da agricultura de subsistência, modos de trabalho e vida compartilhados pela maioria dos quilombolas da região.
Conheça mais sobre essa história de luta
+JAUQUARA VIVO – Um rio é muito mais que suas águas para as comunidades quilombolas do Mato Grosso
+Tio Antônio do Vão Grande
+Como uma comunidade pode comemorar o aniversário de um rio e impedir sua destruição
Seu orgulho é poder receber todo mundo em seus aposentos, fazendo festa – seja para os santos, seja para o rio. “A casa da cidade é tudo murada, e aqui é aberto, vendo a natureza, vendo as plantas, os matinho aí, os bambu, tudo verdinho… Como diz o ditado: aqui até onde não chove a mata é verde”, diz ele.
Figura querida e respeitada em Vão Grande, Seu Antônio é aquela pessoa que todos cumprimentam com afeto. “Bença, tio”, pedem todos que passam por ele. Isso foi observado por Silvio Munari, professor e integrante da Escola de Ativismo que desenvolve projetos com o quilombo desde 2019. “É uma pessoa que conhece todas as pessoas ali da comunidade e tem muito respeito pelas outras lideranças”.

Seu Antônio à beira do rio Jauquara
Foto: Escola de Ativismo
Orgulho ancestral
Assim como hoje ele é inspiração para muitos moradores, seu pai também já foi um dia – e segue sendo. “Meu pai não sabia ler, não sabia escrever, mas de experiência não tinha professor que derrubava ele”, relembra Seu Antônio sobre o sonho do seu genitor de ter uma escola no quilombo. O desejo se materializou na Escola Estadual José Mariano Bento, que hoje atende toda a região do Vão Grande e homenageia uma das mais importantes lideranças quilombolas da história local – seu pai, o José.
Contudo, hoje outra ameaça mobiliza a comunidade: o governo estadual quer municipalizar a escola do quilombo, transferindo sua gestão para o município. Mas o povo de Vão Grande não arreda o pé. “Nós queremos nossa escola, nossa estrutura, tudo o que conquistamos dentro do nosso território. Queremos não apenas manter, mas engrandecer ainda mais o que temos”, defende Seu Antônio.
Encontro das águas
A vida de Seu Antônio flui, ou é, a água. Baixius, comunidade onde vive, fica à margem direita do rio Jauquara, junto de Camarinha e do Morro Redondo. “Nosso rio é a fonte da nossa vida. Foi aqui que nossos antepassados pararam e formaram nossas comunidades”, explica Seu Antônio sobre a importância das águas que garantem não só o trabalho, renda e alimentos do quilombo, mas também a espiritualidade e as memórias da ancestralidade.
Em 2021, após anos de resistência, os quilombolas de Vão Grande conseguiram barrar na Justiça a construção de uma Pequena Central Hidrelétrica (PCH) que ameaçava devastar o ecossistema local. “O que fizemos? Documentamos tudo, vídeos, fotos, organizamos um baixo-assinado. Graças a Deus, nosso apelo chegou ao Ministério Público e conseguimos proteger nosso território”, relembra Seu Antônio, figura essencial na mobilização.
Essa articulação, que começou em 2018, deu origem ao Comitê Popular do Rio Jauquara, iniciativa criada pelos moradores de Vão Grande e região para defenderem suas águas sagradas, criado com o apoio da Escola de Militância Pantaneira em parceria com a Sociedade Fé e Vida e Escola de Ativismo. Como marco, o dia 28 de abril foi escolhido primeiro como efeméride do protesto, depois como data para celebrar o aniversário do rio Jauquara. “Todo ano, graças a Deus, nós comemoramos com missa e festa o aniversário do nosso rio, porque todos nós sabemos que dependemos dessas águas para viver”, destaca Seu Antônio.
Silvio, que acompanhou de perto esse processo, não esconde sua admiração. Se quando o professor conheceu o líder quilombola ele era tímido, “ver Seu Antônio se transformar nesse defensor público do rio, enfrentando autoridades com um protocolo de consulta debaixo do braço, foi inspirador”.
Tal protocolo referenciado por Sílvio está baseado na Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário, que garante o direito à consulta prévia, livre e informada sobre qualquer projeto que afete territórios tradicionais. “Junto com a Escola de Ativismo, criamos esse documento para nossa segurança. Ele é nosso instrumento de luta”, explica Seu Antônio com a autoridade de quem conhece cada linha do acordo.
Mas nem só de luta vive seu Antônio. Para ele, a riqueza transcende o significado material. Cada reza a São João, cada peixe pescado no rio Jauquara, cada aula na escola José Mariano Bento, cada roça de mandioca: tudo é um ato de resistência, mas também de celebração da vida e uma afirmação de que um quilombo é mais do que um lugar no mapa. É um modo diferente de existir no mundo.
Por isso, sair do quilombo não é uma possibilidade. “Eu nunca tive vontade de sair do meu território, porque eu sei que aqui é uma terra quilombola”, reforça. “Nossa descendência aqui é muito feliz. Porque aqui o que nós pede, Deus dá. Essa é uma terra de vivência, é um lugar de vida. Todo mundo que vem aqui em nosso território, gosta. E nós recebemos. Aqui é um lugar muito sonhador, de paz e de saúde”, finaliza ele.
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O que é o fogo para os povos tradicionais? Saberes ancestrais para manter a terra em pé
O que é o fogo para os povos tradicionais? Saberes ancestrais para manter a terra em pé
Na época de queimadas, o fogo é visto como vilão. Mas é um aliado antigo que, empregado com sabedoria, pode até conter seus efeitos mais devastadores; ouvimos aqui a experiência que vêm dos territórios quilombolas
Essa matéria faz parte do especial “Onde nasce o fogo: conhecimento ancestral e brigadas anti-incêndio” feita em parceria pela Escola de Ativismo e Fundo Casa. Confira mais matérias clicando aqui.

Ilustrações: Ana Clara Moscatelli
Para os povos tradicionais, o fogo é muito mais que chama — é herança, ferramenta e cuidado. Seu uso se aprende com escuta, tempo e os ensinamentos de anciãs e anciãos, passados de geração em geração como parte do modo de viver, plantar e proteger seus territórios.
Entre quilombolas, indígenas e tantas comunidades que preservam os biomas vivos, o fogo é usado para limpar o solo, renovar áreas de extrativismo, cuidar das roças e prevenir grandes incêndios. É uma prática antiga, baseada na observação da natureza: o tempo da terra, o vento, a umidade, a lua. Uma tecnologia ancestral que transforma o fogo em instrumento de manejo, proteção e continuidade da vida. Longe de ser ameaça, o fogo tradicional promove equilíbrio entre gente e ambiente, e resiste, mesmo quando ameaçado por queimadas descontroladas vindas de fora, sem respeito nem escuta.
Mas é preciso estar aberto e ouvir. Para isso, conversamos com algumas lideranças quilombolas do Território Kalunga — o maior quilombo em extensão do país, reconhecido como Sítio Histórico e Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), sobre a importância do fogo para as comunidades — e fomos longe.
Alvino Cesário de Torres, de 62 anos, que nasceu e cresceu na comunidade quilombola Vão de Almas, no interior de Goiás, nos lembra que o fogo sempre foi parte da vida na roça: “Aprendi com o meu pai que o fogo tem hora. Não é de qualquer jeito, não. Tem o dia certo, o tempo certo, o vento certo. E a gente sabia disso olhando o céu, sentindo a terra. É assim que se protege a roça, as nossas casas. É assim que sobrevive no mato.”
Seu Alvino carrega um conhecimento vivo, construído pela própria experiência e passado de geração em geração. “Sempre ensinei os meus filhos, sobrinhos e quem vem nos visitar também aprende sobre o tempo do fogo, o jeito de fazer aceiro, de respeitar a terra. Porque se a gente não passar isso pra frente, ninguém vai cuidar como a gente cuida”, completa Seu Alvino.
O aceiro, citado por ele, é uma faixa de terra limpa — sem vegetação — aberta ao redor das áreas onde o fogo será usado de forma controlada. Essa técnica tradicional é aplicada pelas comunidades para proteger roças, matas e casas, funcionando como uma barreira de segurança que impede que o fogo se espalhe além do planejado.
E foi assim que, com o tempo, esses saberes viraram base para a organização das brigadas comunitárias. Hoje, o conhecimento ancestral se une à força coletiva no combate ao fogo, e ganha ainda mais força no Território Kalunga, que se estende pelos municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre de Goiás. Homens e mulheres quilombolas atuam em diversas brigadas voluntárias e também compõem as equipes do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo), órgão vinculado ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), responsável por ações de prevenção e combate a incêndios florestais em todo o país.
Criado para atuar em áreas sensíveis, o Prevfogo promove o uso consciente do fogo, forma e contrata brigadistas comunitários por meio de editais específicos — inclusive voltados para comunidades quilombolas — e integra saberes tradicionais ao planejamento técnico do manejo, como propõe o Manejo Integrado do Fogo (MIF).

Sirilo Rosa, Josemi Francisco e Joaquim Fernandes, brigadistas quilombolas do PrevFogo/Ibama
Foto: Alcileia Torres
Nesta região do Cerrado, a articulação tem se mostrado referência. Atualmente, cerca de 120 quilombolas atuam em brigadas locais, sendo que mais de 75 deles integraram o programa do Prevfogo desde 2011. Esses brigadistas ajudam a proteger não apenas suas próprias comunidades, mas também outros biomas pelo Brasil — e além das fronteiras. Em 2023, brigadistas Kalunga foram enviados ao Canadá para apoiar missões internacionais. Em 2024, estiveram no combate a incêndios na Amazônia, no Pantanal e também na Bolívia. O que nasce do cuidado com o próprio território se transforma em referência global de preservação — aliando tradição, estratégia e pertencimento.
“Estou no Prevfogo desde 2013. Com o aumento dos incêndios — principalmente em 2017, quando enfrentamos um fogo de nível 3 e perdemos muita coisa — percebemos que era hora de voltar a colocar em prática os saberes tradicionais do nosso povo e fortalecer a criação de mais brigadas. A gente ficou anos sem poder usar essas técnicas por causa da política do fogo zero. Mas ali ficou evidente: era o momento de trazer o fogo de volta como aliado, não como inimigo. Precisava ser usado com respeito, como os antigos faziam.” relata Joaquim Fernandes, chefe da brigada Prevfogo no Território Kalunga.
A experiência de Joaquim revela uma grande mudança: práticas ancestrais que antes eram invisibilizadas começam a ganhar espaço também nas políticas públicas e ambientais. É nesse caminho que o Manejo Integrado do Fogo (MIF) se fortalece como estratégia — resgatando os saberes tradicionais de uso consciente do fogo e aproximando-os do manejo técnico na prevenção de incêndios.

Brigadistas atuam na prevenção de incêndios com técnicas ancestrais
Foto: Vitor Saraiva/ICMBio
Na prática, o MIF é um conjunto de técnicas que transforma o fogo em ferramenta de proteção. Ele é utilizado, por exemplo, para queimar, de forma planejada e segura, o excesso de vegetação seca, como folhas, galhos e capins, que, quando acumulado, pode se tornar combustível para incêndios de grandes proporções.
E a necessidade de controle não é por acaso: segundo o MapBiomas, mais de 97% das áreas queimadas no Brasil entre 1985 e 2023 tiveram origem humana, provocadas, em grande parte, por práticas agropecuárias e desmatamento.
Essa queima controlada reduz os riscos durante o período de seca intensa, quando o fogo — provocado por essas ações ou, em menor escala, de forma natural — se espalha com facilidade e provoca danos severos à fauna, à flora, às comunidades locais e também às populações urbanas, que sentem os reflexos no clima, na saúde e no ar que respiram.
“Na temporada crítica, a gente faz ronda nas comunidades, dá palestra nas escolas e ensina como usar o fogo do jeito certo e com segurança. No fim da chuva, fazemos a queima prescrita. E durante a seca, nosso trabalho é cuidar para que o fogo não fuja do controle”, conta Josemi Francisco, também integrante da brigada Prevfogo no Território Kalunga. “Desde que voltamos a fazer o manejo com a queima prescrita, muita coisa mudou na região”, acrescenta.
Quem vive nas comunidades também sente essa mudança. Dona Neuza Fernandes, de 54 anos, moradora da comunidade Vão de Almas, agradece a presença constante das brigadas: “Sou muito grata aos meninos da brigada. É só mandar mensagem que eles aparecem. No passado, o fogo já chegou bem perto da nossa casa, fogo vindo de fora, sabe? Mas hoje eles ajudam a proteger antes mesmo do fogo chegar. Fazem as queimas no tempo certo, do jeito certo. Com eles por perto, a gente se sente mais seguro. Eles estão de parabéns”, afirma ela.
Uma das estratégias mais importantes dentro do Manejo Integrado do Fogo é a queima prescrita — prática que, há gerações, orienta o uso do fogo de forma controlada para proteger roças, limpar áreas de cultivo, renovar o solo e evitar incêndios de grandes proporções. Atualmente, essa técnica é aplicada em áreas previamente definidas, com base em estudos do terreno, da direção do vento, da umidade e das condições climáticas. Por se tratar de uma ação planejada, a queima prescrita precisa de autorização de órgãos ambientais competentes e deve seguir protocolos específicos de segurança, garantindo que o fogo cumpra seu papel sem causar danos ao território.

“Desde que voltamos a fazer o manejo com a queima prescrita, muita coisa mudou na região”, diz Josemi Francisco.
Foto: Vitor Saraiva/ICMBio
O fogo é aceso em trechos específicos e vai sendo controlado à medida que avança, sempre com a presença de brigadistas e lideranças que conhecem o tempo da terra e a lógica das chamas. Todo o processo é acompanhado de perto, garantindo que o fogo cumpra sua função sem ultrapassar os limites. A ideia é simples e eficiente: queimar no final das chuvas, quando o clima ainda permite controle, para proteger a natureza no auge da seca.
Mas o clima já não é mais o mesmo. A seca tem chegado mais cedo, o calor aumenta a cada ano — e isso afeta diretamente o trabalho das brigadas.
“Além do calor excessivo, as mudanças climáticas têm sido um dos principais desafios pra nós, brigadistas e moradores das comunidades — ainda mais por estarmos numa região com muitas serras. Hoje, o que mais impacta é o clima mesmo. Menos chuva, mais calor… tudo isso tem mudado muito e interfere diretamente no nosso jeito de trabalhar”, conta Sirilo Rosa, que também integra o quadro de brigadistas quilombolas da região.
Lideranças quilombolas contam que o fogo tinha seu tempo certo para ser aceso. Costumava-se queimar em abril — muitas vezes na sexta-feira da Paixão — ou então em outubro, depois das primeiras chuvas. “Chovia muito naquele tempo”, dizem. A natureza tinha ritmo — e o fogo obedecia. Hoje, com os efeitos extremos do clima, esse equilíbrio mudou. A chuva veio menos, parou mais cedo — e a seca, que antes se firmava só em maio, agora começa já em março, dois meses antes.
Mesmo com as mudanças no clima, os ensinamentos não se perderam. A técnica usada pelos mais velhos para conter o fogo — com ramos verdes de buriti como abafadores — ainda ecoa no presente. Hoje, nas mãos dos brigadistas, esse saber ganha novo significado: se une ao manejo técnico, sem perder a raiz ancestral que ensinou, antes de tudo, que o fogo pode ser guiado, e não temido.
Esse cuidado com o tempo do fogo segue vivo, e se atualiza a cada ano, diante das novas condições do clima.
No início deste ano (2025), por exemplo, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO) iniciou a queima prescrita já em março, antecipando-se à seca que chegou mais cedo e ao aumento do risco de incêndios. Com as mudanças no clima e a previsão de um período seco mais severo, foi necessário agir antes do pico da estiagem para proteger o território, a biodiversidade e as comunidades que habitam e cuidam dessa região.

Brigadistas se reúnem no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros para 1ª queima prescrita
Foto: Vitor Saraiva/ICMBio
Na imagem, sorrisos cobertos de fuligem celebram um feito importante: a realização da primeira queima prescrita no Parque. Homens e mulheres de diferentes idades e lugares se reúnem, muitos voluntariamente, para colocar o conhecimento em prática. São brigadistas quilombolas e de outras regiões da Chapada, unidos por um propósito comum: proteger o Cerrado, preservar vidas, cuidar da terra.
Nesta etapa, o saber tradicional caminha lado a lado com o manejo técnico. Um completa o outro. E juntos, esses conhecimentos seguem atuando — calorosamente, todos os anos — para que o fogo cumpra seu papel sem ultrapassar os limites do cuidado. Para que o Cerrado siga se renovando com equilíbrio. Para que as espécies que vivem ali possam seguir seus ciclos, livres, no tempo da natureza.
E mesmo com o uso consciente do fogo, com a queima prescrita e o manejo ancestral sendo colocados em prática ano após ano, é preciso dizer com clareza: os grandes incêndios não nascem dentro das comunidades tradicionais, nem em áreas protegidas.
Eles vêm de fora, das cercas abertas por tratores, dos ventos carregados pelas queimadas ilegais, do descaso de quem vê a terra apenas como lucro. Surgem em grandes propriedades rurais, onde o fogo é usado sem escuta, sem cuidado, sem limite. As chamas atravessam cercas, se espalham pelos ventos e atingem a todos, mas não de forma igual. São as comunidades negras, tradicionais e periféricas que mais sentem os impactos dessa destruição. É o racismo ambiental em sua forma mais marcante: quando os territórios de quem cuida da terra são devastados para sustentar o conforto e o lucro de quem a explora.
E os números confirmam aquilo que os territórios já sentem na pele há muito tempo. Segundo dados do MapBiomas (2024), o Cerrado foi o bioma mais atingido por fogo no Brasil em 2023, com mais de 8,2 milhões de hectares queimados — o equivalente a mais de 50% de toda a área queimada no país naquele ano. E não é nas áreas protegidas que o fogo começa: mais de 95% das áreas queimadas em 2023 estavam fora de unidades de conservação ou terras indígenas, reforçando que os incêndios têm origem majoritária em áreas privadas, especialmente ligadas à agropecuária.
Esses incêndios que devastam o Cerrado, a Amazônia, o Pantanal e a Caatinga não são acidentes — são consequências diretas do avanço do agronegócio e do desmatamento em áreas que deveriam ser protegidas por políticas públicas. Nessas regiões, o fogo é usado como caminho para abrir novas fronteiras agrícolas, renovar pastagens ou preparar o solo para monoculturas. As queimadas, muitas vezes ilegais ou mal conduzidas, fogem do controle, atravessam cercas, invadem áreas protegidas, atingem comunidades tradicionais e colocam em risco vidas humanas, animais e florestas inteiras.
Os efeitos não ficam no campo. A fumaça e o calor dessas queimadas se espalham, agravando a crise climática nas cidades, provocando ondas de calor extremo, ar seco, doenças respiratórias e escassez de água. Em setembro de 2023, por exemplo, Goiânia e Cuiabá registraram sensações térmicas superiores a 45 °C, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET). A combinação entre calor extremo e queimadas levou a um aumento de até 30% nos atendimentos por problemas respiratórios em unidades de saúde pública, conforme levantamento de secretarias estaduais.
Mas em meio ao colapso, os territórios tradicionais continuam mostrando que há outro caminho possível. Enquanto o ar das cidades se torna cada vez mais seco e tóxico, são comunidades rurais, quilombolas, indígenas e periféricas que seguram o fio da preservação. São elas que protegem o que ainda resta de floresta, que mantêm vivas as nascentes e que, mesmo impactadas, seguem ensinando como cuidar da terra sem destruí-la. É ali, onde o fogo nasce com sabedoria, que também nascem soluções para um futuro mais consciente e equilibrado.
Povos tradicionais não apenas conhecem o tempo do fogo — eles o respeitam. E são justamente esses saberes ancestrais que seguem como algumas das estratégias mais potentes e necessárias para manter os nossos biomas vivos.
No Brasil, as comunidades quilombolas são exemplo vivo de preservação ambiental. De acordo com estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), em parceria com a The Nature Conservancy Brasil (TNC Brasil) — organização internacional voltada à conservação da biodiversidade —, mais de 83% da vegetação nativa está preservada dentro dos territórios quilombolas oficialmente reconhecidos. Onde há gestão coletiva da terra, há mais floresta em pé, nascentes protegidas e equilíbrio climático.
Não à toa, o Território Kalunga foi o primeiro do Brasil a receber o reconhecimento da Organização das Nações Unidas (ONU) como um TICCA — Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais. O selo internacional destaca lugares onde comunidades mantêm a natureza viva a partir de seus próprios modos de vida, cultura e organização coletiva. E é isso que o Kalunga representa: não apenas números, mas caminhos. Ali, entre as montanhas e os rios preservados, os saberes antigos seguem acesos. Onde o fogo é guiado com responsabilidade. Onde a floresta não é só paisagem: é vida vivida, defendida e partilhada.
Até aqui, aprendemos que saber a hora de acender o fogo é mais do que técnica — é memória viva. E foi para preservar essa história que nasceu o primeiro Museu do Fogo da América Latina, em Cavalcante (GO), dentro do Território Kalunga.
Inaugurado em setembro de 2022, a iniciativa foi idealizada pela BRIVAC (Brigada Voluntária Ambiental de Cavalcante) — que atua há anos na prevenção de incêndios na região — e hoje o espaço se consolida como um marco na valorização das práticas tradicionais e na educação ambiental da Chapada dos Veadeiros.

Foto: Museu do Fogo/Instagram
O museu abriga um acervo que mostra, na prática, como os saberes quilombolas e indígenas seguem vivos nas ações de prevenção e cuidado com o fogo. Com peças, vestimentas, equipamentos de combate, registros e histórias sobre o Manejo Integrado do Fogo (MIF), o espaço é também um símbolo: da resistência que se transforma em política pública, da cultura que se transforma em ferramenta de cuidado, da chama que nunca se apaga.
O local conta com conteúdos audiovisuais, sensoriais e interativos, como telas educativas narradas por quilombolas e legendas em libras. Além de uma sala imersiva multissensorial, que recria os impactos vividos pelos brigadistas e oferece uma experiência sensível e real. Os visitantes podem participar também do Desafio do Fogo, uma atividade interativa que testa os conhecimentos e reforça, de forma lúdica, a importância do cuidado com o território.
O Museu do Fogo está aberto à visitação durante todo o ano, com entrada gratuita. Recebe escolas, grupos e visitas guiadas, promovendo o diálogo entre gerações, territórios e saberes. Também comercializa produtos próprios, como camisetas, garrafas e materiais educativos, uma forma de fortalecer a sustentabilidade do espaço e ajudar a manter viva essa chama de memória, cultura e resistência.
No fim, é nas comunidades tradicionais, onde o fogo nasce, que também nascem as respostas. E essa chama — ancestral, resistente e viva — é a que pode reacender o futuro. Essa chama vem de longe…
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Organização e resistência: Como montar uma brigada anti-incêndio para proteger sua comunidade
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O que a experiência da Brigada Quilombola do Vão Grande, em Barra dos Bugres, ensina para quem quer organizar uma brigada que proteja o território mas também seja símbolo de resistência e organização
Essa matéria faz parte do especial “Onde nasce o fogo: conhecimento ancestral e brigadas anti-incêndio” feita em parceria pela Escola de Ativismo e Fundo Casa. Confira mais matérias clicando aqui.

Ilustrações: Ana Clara Moscatelli
Em diversas regiões do Brasil, povos quilombolas e outras comunidades tradicionais têm enfrentado, ano após ano, os efeitos devastadores dos incêndios florestais — que, cada vez mais, colocam vidas, culturas e territórios em risco. Ao mesmo tempo, essas mesmas comunidades têm mostrado que o caminho da preservação passa pelo fortalecimento de práticas ancestrais e pelo acesso ao conhecimento técnico. É nesse cruzamento que surgem as brigadas comunitárias: grupos organizados que atuam no combate ao fogo com sabedoria tradicional, ciência e ação coletiva.
A Brigada Quilombola do Vão Grande, em Barra do Bugres (MT), é uma dessas referências. Criada em 2020 após um incêndio de grandes proporções, ela se tornou símbolo de resistência, organização e cuidado com o território. A seguir, você entende como essa brigada foi formada — e o que a experiência do Vão Grande pode ensinar a outras comunidades do Brasil.
- Entenda a necessidade (e a possibilidade) de criar uma brigada
Tudo começou com um incêndio. Rafael Bento, liderança da comunidade, conta: “Para começar alguma coisa, você tem que ter um porquê. Em 2020, o fogo quase queimou nossas casas e roças. A gente se reuniu e decidiu que precisava resgatar nosso conhecimento e aprender mais.”
Nem toda comunidade tem estrutura pronta — mas muitas têm essa mesma urgência. Observar o território, identificar os riscos e ouvir os mais velhos sobre como o fogo era usado antes é o primeiro passo.
- Conheça o seu território
Cada comunidade tem sua geografia, seu bioma, seus ciclos e desafios. No Vão Grande, por exemplo, o fogo chega sempre pelos morros e serras, vindos de áreas externas — geralmente de fazendas ou vilas vizinhas.
“Quem mora na comunidade precisa conhecer bem sua área: saber quando o fogo chega, de onde vem e como pode ser contido. A gente queimava capim em maio e junho, quando a umidade está alta. Isso ajudava a proteger no período da seca”, explica Rafael.
- Busque formação e apoio institucional
A comunidade do Vão Grande buscou apoio junto ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) da Estação Ecológica Serra das Araras, participou de um edital do Fundo Casa e conseguiu recursos para compra de equipamentos. Hoje, sua brigada é equipada e atuante. Uma verdadeira referência para os quilombos do Brasil.
Conheça mais sobre essa história de luta
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O ICMBio é o órgão responsável pela gestão das unidades de conservação federais e atua com ações de preservação da biodiversidade em áreas protegidas, incluindo o apoio a brigadas comunitárias.
Além disso, é possível procurar apoio junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que, por meio do Prevfogo, abre editais públicos para formação e contratação de brigadistas, fornecendo suporte técnico, o que é considerado uma grande oportunidade para quilombos do país.
Outras instituições como associações locais, secretarias municipais e estaduais, institutos de pesquisa, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e organizações como o Fundo Casa podem ser importantes aliados.
- Resgate os saberes tradicionais — e organize o coletivo
“No início, combatíamos fogo com galho de árvore e aceiro. Mas entendemos que não dá mais pra enfrentar o fogo só assim. Precisamos de estratégia”, conta Rafael.
A brigada do Vão Grande reúne homens e mulheres quilombolas de várias idades — inclusive um senhor de 76 anos, o seu Francisco, guardião da comunidade. A organização inclui funções divididas: quem conhece a área, quem opera os equipamentos (como soprador e abafador), quem cuida da alimentação, quem mapeia os pontos críticos. Tudo é organizado coletivamente.

A Brigada do Vão Grande se reúne antes ir para a ação.
Foto: Divulgação
A técnica: unir o ancestral ao científico
A brigada aplica o Manejo Integrado do Fogo (MIF), que inclui a queima prescrita — uso controlado do fogo em áreas estratégicas no período pós-chuvas — e o aceiro, faixa limpa para evitar que o fogo ultrapasse limites.
“Hoje a gente queima entre 10h e 13h, no período úmido, com licença e planejamento. E sempre respeitando a natureza do lugar”, afirma Rafael Bento.
- Fogo com estratégia é cuidado, não destruição
Brigadas como a do Vão Grande mostram que o fogo, quando guiado com respeito e sabedoria, protege. Protege casas, roças, vidas. Segundo o MapBiomas (2024), 97% das queimadas no Brasil têm origem humana — e, em 2023, 95% ocorreram fora de áreas protegidas, muitas ligadas à expansão da monocultura e à grilagem de terras.
Os quilombos que protegem o Brasil
De acordo com dados do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e da The Nature Conservancy Brasil (TNC Brasil), mais de 83% da vegetação nativa está preservada dentro dos territórios quilombolas oficialmente reconhecidos.
Essas comunidades não apenas enfrentam as queimadas: elas também ajudam a conter o avanço da destruição, mantendo vivas as florestas e contribuindo para o equilíbrio climático que afeta comunidades tradicionais e cidades em todo o país.
Dados do Prevfogo/Ibama apontam que, nos últimos anos, quilombolas, indígenas e ribeirinhos passaram a compor boa parte das brigadas florestais contratadas em editais públicos — demonstrando que o cuidado com o território vem de quem o conhece profundamente. De dentro pra fora.
Quer conhecer melhor a comunidade do Vão Grande e sua história?
Confira a Cartilha do Protocolo de Consulta do Vão Grande e o livro Narrativas do Interior, produzidos com apoio da Escola de Ativismo.
Cartilha do Protocolo de Consulta da comunidade quilombola Vão Grande: https://escoladeativismo.org.br/wp-content/uploads/2023/07/PROTOCOLO-POPULAR-CARTILHA-versao-final-web.pdf
Livro Narrativas do Interior: https://escoladeativismo.org.br/wp-content/uploads/2022/04/Narrativas_do_Interior_LIVRO_digital.pdf
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Comunicação, arte e outras tecnologias e sabedorias ancestrais na voz de quilombolas da Baixada Maranhense
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Com versos potentes e sons ancestrais, comunicadores e comunicadoras transformam a arte em ferramenta de resistência, identidade e expressão comunitária

O que é comunicação para você? Você se considera um comunicador ou comunicadora no seu território, comunidade ou coletivo? Em algumas comunidades tradicionais, comunicar faz parte do cotidiano e pode ser tão orgânico e enraizado na vivência coletiva que muitas vezes nem chega a ser entendida enquanto algo formal. Ela é pensada para manter viva a memória e fortalecer a identidade coletiva e, para isso, as comunidades não contam apenas com uso de tecnologias associadas à inovação e progresso. As tecnologias ancestrais, que são os conhecimentos, práticas e ferramentas desenvolvidas ao longo de gerações, são muito importantes quando o objetivo é a preservação cultural, a defesa de direitos, realização de denúncias e a articulação política.
Na Baixada Maranhense, quilombolas de várias comunidades, em diferentes territórios, fazem comunicação ancestral que se baseia na resistência e na preservação da identidade cultural negra.
Essa região é considerada uma das maiores riquezas naturais do Maranhão. Localizada no extremo norte do estado, o território tem mais de 1,7 mil hectares de extensão e conta com 21 municípios. Trata-se de uma vasta planície em constante transformação, moldada pelo movimento das águas que altera a paisagem diariamente. A região se destaca por suas características fisiográficas marcantes, como terras baixas, planas, inundáveis, caracterizadas por campos, matas de galeria e manguezais. Os tempos seco ou de chuva decidem a paisagem da vez. Entre rios e lagoas, a natureza se renova, formando o maior conjunto de bacias lacustres do Nordeste.
E essa baixada é também uma das regiões com maior concentração de população negra do Maranhão e com a maior quantidade de comunidades quilombolas no estado, segundo o Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM). Na região cheia de belezas naturais e de cultura, quem transmite histórias, conhecimentos e tradições de geração em geração, utiliza a arte para se comunicar.
A oralidade, muito forte nas comunidades tradicionais, atrelada com a cultura, virou uma ferramenta poderosa. Com música, cordéis e tambores, comunicadores e comunicadoras quilombolas da mesma região fazem uma comunicação que denuncia injustiças, conta histórias, combate racismo e fortalece narrativas e os laços comunitários.
Voz que se levanta
Antônio Chagas Pereira (o Chagas Maranhão) tem 58 anos, é do Quilombo Bom que Dói e Faxina, no Território Pau Pombo, em Santa Helena (MA) e tem a voz afinada como a principal ferramenta de comunicação. Cantor e compositor, ele usa os ritmos e melodias para abordar temas que vão do ativismo ao romantismo.
Uma das suas canções fala sobre respeito às pessoas negras, LGBTQIAPN+ e combate à violência contra a mulher. Confira a letra abaixo (ou clique aqui para ver o vídeo de Chagas em nosso Instagram):
Nosso movimento chegou para mostrar para a população
Quero dizer uma coisa tão certa para o povo do meu Maranhão
Não aceitamos mais preconceito, racismo é crime e sempre dá prisão
Vamos respeitar os LGBTs e acabar com a discriminação
A cada minuto uma mulher sofre
Feminicídio e pra quê agressão?
Se a mulher foi feita para amar
Então ame com educação
Mulher quer carinho, mulher quer amor
Em mulher não se bate nem com uma flor
Mulher quer carinho, mulher quer amor
Em mulher não se bate nem com uma flor
A liderança quilombola é membro do grupo Show do Quilombo, que faz apresentações com foco na cultura e tradição dos povos quilombolas e também é mestre do Tambor de Crioula.
- O Tambor de Crioula é forma de expressão de matriz afro-brasileira, com forte presença no estado do Maranhão, que envolve dança circular, canto e percussão de tambores. Seja ao ar livre, nas praças, no interior de terreiros, ou então associado a outros eventos e manifestações, é realizado sem local específico ou calendário pré-fixado e praticado especialmente em louvor a São Benedito. Essa manifestação da cultura popular maranhense não tem uma época fixa de apresentação, mas pode-se observar uma concentração maior nos períodos que correspondem ao carnaval, às festas de São João e a partir do 2° sábado de agosto, quando ocorrem também as rodas de bumba-boi. Tradicionalmente, toda a festividade de bumba-meu-boi é encerrada com um tambor de crioula.
- – Fonte: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
Chagas Maranhão conta que a paixão pela comunicação em forma de arte começou no carnaval. “Meu amor pela cultura começou assim: eu sempre tive amor pelo carnaval. E no carnaval eu aprendi a compor músicas. Comecei a cantar em blocos tradicionais da nossa cidade, nos bairros, conheci o Bumba Boi de Orquestra, fiz os testes e passei e ingressei. Depois fui para o Tambor de Crioula. Hoje me considero um mestre do Tambor de Crioula”, disse.
O compositor tem a música e a cultura como partes importantes da luta do movimento quilombola.
“Acho que a música na minha vida foi muito importante porque a cultura que nós vivemos é muito rica e eu queria que todas as pessoas do nosso quilombo pudessem ver e ouvir. As músicas falam de tudo que traz felicidade pra gente”, contou.
O artista diz que também compõe canções românticas. “Músicas no ritmo brega, lambada e forró. Tenho dois CDs gravados e tenho mais três músicas novas. Tenho feito minha história na cultura desse jeito. Eu gosto da cultura e sei como fazer”, afirmou concordando que entende que a música pode sim ser uma ferramenta poderosa para expressar denúncias sociais, políticas e econômicas, conscientizando e mobilizando a população.

Chagas Maranhão é cantor, compositor e liderança quilombola da Baixada Maranhense / Crédito: Letícia Queiroz
Cantores e cantoras conhecidos/as nacionalmente também costumam usar a música para fazer protestos e denúncias. Elza Soares interpreta a música Maria da Vila Matilde e canta “Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180” – contato para denunciar violência doméstica. A canção encoraja mulheres a buscar ajuda em casos de agressão.
Bia Ferreira faz da música verdadeiros protestos. Ela canta feminismo e antirracismo e outras lutas. Uma das letras mais conhecidas é “Cota Não É Esmola”. A artista argumenta que as cotas são uma medida necessária para corrigir séculos de injustiças e desigualdades acumuladas.
A música “Preto Demais” do carioca Hugo Ojuara, cantor de roda de samba, escancara o racismo estrutural do Brasil. “É que ele é preto demais, corre demais. Fala demais, sorri demais. Tá estudando demais, comprando demais. Viajando demais e assim não dá mais”.
Tambores como ferramenta de comunicação
A comunicação com musicalidade também está nos instrumentos. Para os povos quilombolas do Maranhão, o tambor, além de ser um símbolo de resistência, memória e identidade cultural, é uma linguagem ancestral que comunica por meio do ritmo. O toque do tambor alegra, transmite paz, cura, afeto, conexão com os antepassados e comunica a resistência e a preservação da memória de seus ancestrais.
Os tambores já foram usados para comunicação em comunidades africanas, enviando mensagens a longas distâncias. Na Baixada Maranhense os tambores continuam comunicando. Raimundo de Jesus Ribeiro, do território quilombola Sudário, em Pinheiro (MA), afirma que o tambor está entre os instrumentos mais importantes para a população negra e quilombola do estado. O artista, que toca tambor de Crioula e participa de festas tradicionais que tem a percussão como um dos principais atrativos, diz que desde que nasceu escuta as batidas.
“O tambor de crioula quando eu nasci já existia aqui no quilombo. Todos os meus antepassados tocavam e eu aprendi com eles. Também tocavam forró de caixa, o Bumba Boi. Tudo isso eu via. E aquilo me trouxe inspiração. Hoje sou eu quem repasso para os companheiros e companheiras mais jovens”, disse.
Seus toques variam em tom, volume e cadência, são capazes de expressar sentimentos, contar histórias e transmitir mensagens sem precisar de palavras. A complexidade dos seus sons cria uma ponte entre o corpo, a emoção e a memória coletiva. Quem toca e escuta concorda que o tambor também traz sensação de paz.
“A pessoa pode está triste, mas se tocar o Tambor de Crioula já melhora. O som do tambor desperta toda a tristeza e vem a alegria, o ânimo. O som mexe com a gente e torna o clima totalmente diferente”, afirmou Raimundo.

Tambores fazem parte das festividades das comunidades quilombolas do Maranhão /
Crédito: Letícia Queiroz
Versos que informam
Você já pensou em rimar para se comunicar? Essa é uma estratégia usada por outra liderança quilombola da Baixada Maranhense.
Manoel de Jesus, de 61 anos, é do quilombo Janaubeira, em Santa Helena no Maranhão e viu nas rimas do cordel uma oportunidade para falar sobre a luta quilombola da região. O co-fundador do MOQUIBOM, que é bisneto de escravizados, fez do cordel um documento para ajudar seus aliados. A partir das histórias que ouvia dos seus pais ele contou como foi a vida difícil de um dos seus ancestrais.
A comunicação foi tão poderosa que os versos que narram a história valorosa ecoaram por todo canto. As palavras verdadeiras sobre pessoas tão guerreiras foram uma maneira certeira de documentar sem gerar espanto. O cordel serviu de base para o laudo antropológico da comunidade. Na época buscaram histórias antigas e o cordel sobre negro Bernardo nunca mais será esquecida.
“A poesia foi a maneira que achei para documentar a história. Para que não ficasse perdida. Decidi falar em versos porque fica mais fácil para as pessoas assimilarem. O povo não gosta muito de ler, por isso fiz os versos”, explicou Manoel.
TEXTO
Letícia Queiroz
Jornalista, quilombola, comunicadora popular e ativista antirracista
publicado em
TEMAS
A liderança disse que sua luta começou muito cedo e que quis contribuir com o movimento quilombola mesmo com todos os desafios impostos. “Fui vítima desse sistema e fui alfabetizado aos 22 anos. Meus pais eram analfabetos, mas tinham uma sabedoria muito grande. Hoje somos reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares e estamos nessa luta pela titulação”, afirmou.
Manoel tem todos os versos do cordel na cabeça. Com toda gentileza, declama as rimas com delicadeza.
“Meus pais me contaram” – história do Negro Bernardo
Inspirai-nos musa no reino dos trovadores
para contar uma história que muito interessa aos senhores
aconteceu no século passado, o ano não lembro mais
em uma fazenda no serrano vivia o avô do meu pai
era escravo na fazenda, vivia uma vida de cão
tinha a profissão de ferreiro, consertava engenho, fazia foice e facão
nunca pegava em dinheiro, vivia sempre solteiro e sonhava com a libertação
mas um dia ele gritou “eu não aguento mais sofrer!”
vou embora desse lugar e se Deus me ajudar de fome não vou morrer.
O fazendeiro quando viu ficou bravo como leão
deu-lhe uma pisa tão grande e mandou fechar o porão
três dias ele passou na completa escuridão
com o corpo cheio de chagas deitado naquele chão
não lhe deram um copo d’água, imagine um pedaço de pão
pediu a Deus nessa hora, valei-me minha senhora “dê minha libertação”
depois de três dias abriram a porta com a cara de mal
levou Bernardo até o tronco e lhe deu um banho de sal
que reclamava no momento “não é justo apanhar de um homem”
eu vou viver agora no mato e vou comer das frutas bravas
das mesmas que o bicho come
só tenho o facão como bagagem e faltava o principal:
não tinha arroz nem farinha, nem mesmo uma rede ele tinha
e dormia no girau.
Três meses se passaram e rezava pra Virgem Maria
ouvindo o rugido das feras
e tendo a lua como dia
acordou de madrugada com o canto do acauã
viu uma campina verde chamada de Pirinan
viu uma casa sozinha e uma simpática velhinha fazendo café da manhã
Bernardo contou sua história e a velhinha acreditou
olhou para ele e sorriu e disse “meu filho a escravidão acabou”
ele deu um grito tão grande e a Deus agradeceu
casou-se com Juliana que muitos filhos lhe deu
nas margens do rio fez um rancho
chamou de centro do gancho e com 102 anos morreu
quem ouviu toda essa história pensa que não foi assim
vai até a minha casa e veja uma balança que de herança deixou pra mim.

Manoel recitando cordel durante encontro de lideranças quilombolas na Baixada Maranhanse /
Crédito: Letícia Queiroz
A estratégia de Manoel com a resistência criativa alcança pessoas que muitas vezes não dão atenção. É que a rima organiza a fala, dá ritmo à denúncia, conecta o ouvinte ao orador, facilita a escuta e gera identificação.
Essa técnica tem um papel poderoso nas lutas sociais e pode ser uma arma poética. Ela pode ser usada em formas de expressão como a poesia falada, o rap, e como os slams, por exemplo, muito utilizados principalmente nas periferias de várias cidades do Brasil para expor violências e desigualdades. O Slam Resistência é um movimento artístico e político que une poesia falada e luta social. Surgido como espaço de voz e escuta, ele promove o protagonismo de jovens que usam a palavra como ferramenta de denúncia, identidade e transformação.
Nessa discussão, seu Manoel sabe bem da sua habilidade e que a comunicação e as batalhas (de rima e da comunidade) terão continuidade.
“Se a gente morrer nessa luta nosso sangue será semente. Outros nascerão. Essa é só uma página que escrevi. A história continua e essa geração vai escrever a próxima página”, disse o artivista.
Guerreiras da comunicação
Vértine Brito Rodrigues é da nova geração de comunicadores da Baixada Maranhense. Do Quilombo São Raimundo, município de Santa Helena, aos 23 anos ela entende que “todo mundo é comunicador, cada um de uma forma diferente”. E que “se soubermos usar nossa comunicação de forma eficaz vamos poder levar a luta muito além do que possamos imaginar”.
A jovem diz que em 2023 foi indicada pelo Núcleo Mulheres Guerreiras da Resistência do MOQUIBOM para fazer registros e textos informativos. “Decidimos que precisávamos criar uma rede onde pudéssemos fazer divulgações e cobrar nossos direitos”, disse Vértine.
Foi então que ela começou usar o próprio celular, câmera fotográfica e as redes sociais do movimento para fazer publicações. Atualmente a jovem participa de formações e oficinas sobre comunicação e utiliza as ferramentas de forma estratégica.
“A comunicação é muito importante, ainda mais quando se fala sobre ser quilombola. Uma comunicação eficaz é essencial. Através das nossas páginas transmitimos reivindicações sobre nossos direitos, sobre os impactos do agronegócio nas nossas comunidades, quando se tem ameaças sobre lideranças quilombolas”, disse Vértine.
Para as comunidades quilombolas, a comunicação vai além da fala ou da escrita — ela é território, história, luta e resistência. Comunicadores e comunicadoras da Baixada Maranhense mostram que a comunicação estratégica, seja ela cantada, falada, rimada, declamada ou escrita é essencial na defesa do território, na documentação da memória e na valorização da identidade quilombola. Quando feita a partir do próprio povo, com sua linguagem e seus modos de viver, a comunicação se torna uma forma de continuar resistindo e existindo.
(Esse texto foi escrito por Letícia Queiroz, comunicadora quilombola, após Encontro de Segurança Integral para quilombolas de municípios da Baixada Maranhense. O encontro aconteceu em maio de 2025 e contou com participação da Escola de Ativismo, que identificou os comunicadores e comunicadoras citados nesta reportagem durante oficina de comunicação popular estratégica e segura para integrantes do MOQUIBOM).
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