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Luh Ferreira

Educadora Popular, ativista, doutora em Educação

Encantada com o mundo, indignada com a situação dele

Comunicação, arte e outras tecnologias e sabedorias ancestrais na voz de quilombolas da Baixada Maranhense 

Comunicação, arte e outras tecnologias e sabedorias ancestrais na voz de quilombolas da Baixada Maranhense

Com versos potentes e sons ancestrais, comunicadores e comunicadoras transformam a arte em ferramenta de resistência, identidade e expressão comunitária

O que é comunicação para você? Você se considera um comunicador ou comunicadora no seu território, comunidade ou coletivo?  Em algumas comunidades tradicionais, comunicar faz parte do cotidiano e pode ser tão orgânico e enraizado na vivência coletiva que muitas vezes nem chega a ser entendida enquanto algo formal. Ela é pensada para manter viva a memória e fortalecer a identidade coletiva e, para isso, as comunidades não contam apenas com uso de tecnologias associadas à inovação e progresso. As tecnologias ancestrais, que são os conhecimentos, práticas e ferramentas desenvolvidas ao longo de gerações, são muito importantes quando o objetivo é a preservação cultural, a defesa de direitos, realização de denúncias e a articulação política.

Na Baixada Maranhense, quilombolas de várias comunidades, em diferentes territórios, fazem comunicação ancestral que se baseia na resistência e na preservação da identidade cultural negra. 

Essa região é considerada uma das maiores riquezas naturais do Maranhão. Localizada no extremo norte do estado, o território tem mais de 1,7 mil  hectares de extensão e conta com 21 municípios. Trata-se de uma vasta planície em constante transformação, moldada pelo movimento das águas que altera a paisagem diariamente. A região se destaca por suas características fisiográficas marcantes, como terras baixas, planas, inundáveis, caracterizadas por campos, matas de galeria e manguezais. Os tempos seco ou de chuva decidem a paisagem da vez. Entre rios e lagoas, a natureza se renova, formando o maior conjunto de bacias lacustres do Nordeste.

E essa baixada é também uma das regiões com maior concentração de população negra do Maranhão e com a maior quantidade de comunidades quilombolas no estado, segundo o Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM). Na região cheia de belezas naturais e de cultura, quem transmite histórias, conhecimentos e tradições de geração em geração, utiliza a arte para se comunicar. 

A oralidade, muito forte nas comunidades tradicionais, atrelada com a cultura, virou uma ferramenta poderosa. Com música, cordéis e tambores, comunicadores e comunicadoras quilombolas da mesma região fazem uma comunicação que denuncia injustiças, conta histórias, combate racismo e fortalece narrativas e os laços comunitários. 

Voz que se levanta

Antônio Chagas Pereira  (o Chagas Maranhão) tem 58 anos, é do Quilombo Bom que Dói e Faxina, no Território Pau Pombo, em Santa Helena (MA) e tem a voz afinada como a principal ferramenta de comunicação. Cantor e compositor, ele usa os ritmos e melodias para abordar temas que vão do ativismo ao romantismo. 

Uma das suas canções fala sobre respeito às pessoas negras, LGBTQIAPN+ e combate à violência contra a mulher. Confira a letra abaixo (ou clique aqui para ver o vídeo de Chagas em nosso Instagram):

Nosso movimento chegou para mostrar para a população 
Quero dizer uma coisa tão certa para o povo do meu Maranhão
Não aceitamos mais preconceito, racismo é crime e sempre dá prisão 
Vamos respeitar os LGBTs e acabar com a discriminação 
A cada minuto uma mulher sofre
Feminicídio e pra quê agressão?
Se a mulher foi feita para amar
Então ame com educação
Mulher quer carinho, mulher quer amor 
Em mulher não se bate nem com uma flor 
Mulher quer carinho, mulher quer amor 
Em mulher não se bate nem com uma flor

A liderança quilombola é membro do grupo Show do Quilombo, que faz apresentações com foco na cultura e tradição dos povos quilombolas e também é mestre do Tambor de Crioula. 

  • O Tambor de Crioula é forma de expressão de matriz afro-brasileira, com forte presença no estado do Maranhão, que envolve dança circular, canto e percussão de tambores. Seja ao ar livre, nas praças, no interior de terreiros, ou então associado a outros eventos e manifestações, é realizado sem local específico ou calendário pré-fixado e praticado especialmente em louvor a São Benedito. Essa manifestação da cultura popular maranhense não tem uma época fixa de apresentação, mas pode-se observar uma concentração maior nos períodos que correspondem ao carnaval, às festas de São João e a partir do 2° sábado de agosto, quando ocorrem também as rodas de bumba-boi. Tradicionalmente, toda a festividade de bumba-meu-boi é encerrada com um tambor de crioula. 
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  • Fonte: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

Chagas Maranhão conta que a paixão pela comunicação em forma de arte começou no carnaval. “Meu amor pela cultura começou assim: eu sempre tive amor pelo carnaval. E no carnaval eu aprendi a compor músicas. Comecei a cantar em blocos tradicionais da nossa cidade, nos bairros, conheci o Bumba Boi de Orquestra, fiz os testes e passei e ingressei. Depois fui para o Tambor de Crioula. Hoje me considero um mestre do Tambor de Crioula”, disse. 

O compositor tem a música e a cultura como partes importantes da luta do movimento quilombola.

“Acho que a música na minha vida foi muito importante porque a cultura que nós vivemos é muito rica e eu queria que todas as pessoas do nosso quilombo pudessem ver e ouvir. As músicas falam de tudo que traz felicidade pra gente”, contou.

O artista diz que também compõe canções românticas. “Músicas no ritmo brega, lambada e forró. Tenho dois CDs gravados e tenho mais três músicas novas. Tenho feito minha história na cultura desse jeito. Eu gosto da cultura e sei como fazer”, afirmou concordando que entende que a música pode sim ser uma ferramenta poderosa para expressar denúncias sociais, políticas e econômicas, conscientizando e mobilizando a população. 

Chagas Maranhão é cantor, compositor e liderança quilombola da Baixada Maranhense / Crédito: Letícia Queiroz

Cantores e cantoras conhecidos/as nacionalmente também costumam usar a música para fazer protestos e denúncias. Elza Soares interpreta a música Maria da Vila Matilde e canta “Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180” – contato para denunciar violência doméstica. A canção encoraja mulheres a buscar ajuda em casos de agressão. 

Bia Ferreira faz da música verdadeiros protestos. Ela canta feminismo e antirracismo e outras lutas. Uma das letras mais conhecidas é “Cota Não É Esmola”. A artista argumenta que as cotas são uma medida necessária para corrigir séculos de injustiças e desigualdades acumuladas.

A música “Preto Demais”  do carioca Hugo Ojuara, cantor de roda de samba, escancara o racismo estrutural do Brasil. “É que ele é preto demais, corre demais. Fala demais, sorri demais. Tá estudando demais, comprando demais. Viajando demais e assim não dá mais”. 

Tambores como ferramenta de comunicação

A comunicação com musicalidade também está nos instrumentos. Para os povos quilombolas do Maranhão, o tambor, além de ser um símbolo de resistência, memória e identidade cultural, é uma linguagem ancestral que comunica por meio do ritmo. O toque do tambor alegra, transmite paz, cura, afeto, conexão com os antepassados e comunica a resistência e a preservação da memória de seus ancestrais. 

Os tambores já foram usados ​​para comunicação em comunidades africanas, enviando mensagens a longas distâncias. Na Baixada Maranhense os tambores continuam comunicando. Raimundo de Jesus Ribeiro, do território quilombola Sudário, em Pinheiro (MA), afirma que o tambor está entre os instrumentos mais importantes para a população negra e quilombola do estado. O artista, que toca tambor de Crioula e participa de festas tradicionais que tem a percussão como um dos principais atrativos, diz que desde que nasceu escuta as batidas. 

“O tambor de crioula quando eu nasci já existia aqui no quilombo. Todos os meus antepassados tocavam e eu aprendi com eles. Também tocavam forró de caixa, o Bumba Boi. Tudo isso eu via. E aquilo me trouxe inspiração. Hoje sou eu quem repasso para os companheiros e companheiras mais jovens”, disse. 

Seus toques variam em tom, volume e cadência, são capazes de expressar sentimentos, contar histórias e transmitir mensagens sem precisar de palavras. A complexidade dos seus sons cria uma ponte entre o corpo, a emoção e a memória coletiva. Quem toca e escuta concorda que o tambor também traz sensação de paz. 

“A pessoa pode está triste, mas se tocar o Tambor de Crioula já melhora. O som do tambor desperta toda a tristeza e vem a alegria, o ânimo. O som mexe com a gente e torna o clima totalmente diferente”, afirmou Raimundo.

Tambores fazem parte das festividades das comunidades quilombolas do Maranhão /
Crédito: Letícia Queiroz

Versos que informam

Você já pensou em rimar para se comunicar? Essa é uma estratégia usada por outra liderança quilombola da Baixada Maranhense. 

Manoel de Jesus, de 61 anos, é do quilombo Janaubeira, em Santa Helena no Maranhão e viu nas rimas do cordel uma oportunidade para falar sobre a luta quilombola da região. O co-fundador do MOQUIBOM, que é bisneto de escravizados, fez do cordel um documento para ajudar seus aliados. A partir das histórias que ouvia dos seus pais ele contou como foi a vida difícil de um dos seus ancestrais. 

A comunicação foi tão poderosa que os versos que narram a história valorosa ecoaram por todo canto. As palavras verdadeiras sobre pessoas tão guerreiras foram uma maneira certeira de documentar sem gerar espanto. O cordel serviu de base para o laudo antropológico da comunidade. Na época buscaram histórias antigas e o cordel sobre negro Bernardo nunca mais será esquecida. 

“A poesia foi a maneira que achei para documentar a história. Para que não ficasse perdida. Decidi falar em versos porque fica mais fácil para as pessoas assimilarem. O povo não gosta muito de ler, por isso fiz os versos”, explicou Manoel.

A liderança disse que sua luta começou muito cedo e que quis contribuir com o movimento quilombola mesmo com todos os desafios impostos. “Fui vítima desse sistema e fui alfabetizado aos 22 anos. Meus pais eram analfabetos, mas tinham uma sabedoria muito grande. Hoje somos reconhecidos pela Fundação Cultural Palmares e estamos nessa luta pela titulação”, afirmou. 

Manoel tem todos os versos do cordel na cabeça. Com toda gentileza, declama as rimas com delicadeza. 

 “Meus pais me contaram” – história do Negro Bernardo

Inspirai-nos musa no reino dos trovadores
para contar uma história que muito interessa aos senhores
aconteceu no século passado, o ano não lembro mais 
em uma fazenda no serrano vivia o avô do meu pai 
era escravo na fazenda, vivia uma vida de cão
tinha a profissão de ferreiro, consertava engenho, fazia foice e facão
nunca pegava em dinheiro, vivia sempre solteiro e sonhava com a libertação
mas um dia ele gritou “eu não aguento mais sofrer!” 
vou embora desse lugar e se Deus me ajudar de fome não vou morrer. 

O fazendeiro quando viu ficou bravo como leão
deu-lhe uma pisa tão grande e mandou fechar o porão
três dias ele passou na completa escuridão 
com o corpo cheio de chagas deitado naquele chão 
não lhe deram um copo d’água, imagine um pedaço de pão 
pediu a Deus nessa hora, valei-me minha senhora “dê minha libertação”
depois de três dias abriram a porta com a cara de mal 
levou Bernardo até o tronco e lhe deu um banho de sal 
que reclamava no momento “não é justo apanhar de um homem”
eu vou viver agora no mato e vou comer das frutas bravas 
das mesmas que o bicho come
só tenho o facão como bagagem e faltava o principal: 
não tinha arroz nem farinha, nem mesmo uma rede ele tinha 
e dormia no girau. 

Três meses se passaram e rezava pra Virgem Maria
o
uvindo o rugido das feras 
e tendo a lua como dia 
acordou de madrugada com o canto do acauã
viu uma campina verde chamada de Pirinan
viu uma casa sozinha e uma simpática velhinha fazendo café da manhã


Bernardo contou sua história e a velhinha acreditou
olhou para ele e sorriu e disse “meu filho a escravidão acabou”
ele deu um grito tão grande e a Deus agradeceu 
casou-se com Juliana que muitos filhos lhe deu
nas margens do rio fez um rancho 
chamou de centro do gancho e com 102 anos morreu 
quem ouviu toda essa história pensa que não foi assim
vai até a minha casa e veja uma balança que de herança deixou pra mim.

Manoel recitando cordel durante encontro de lideranças quilombolas na Baixada Maranhanse /
Crédito: Letícia Queiroz

A estratégia de Manoel com a resistência criativa alcança pessoas que muitas vezes não dão atenção. É que a rima organiza a fala, dá ritmo à denúncia, conecta o ouvinte ao orador, facilita a escuta e gera identificação. 

Essa técnica tem um papel poderoso nas lutas sociais e pode ser uma arma poética. Ela pode ser usada em formas de expressão como a poesia falada, o rap, e como os slams, por exemplo, muito utilizados principalmente nas periferias de várias cidades do Brasil para expor violências e desigualdades. O Slam Resistência é um movimento artístico e político que une poesia falada e luta social. Surgido como espaço de voz e escuta, ele promove o protagonismo de jovens que usam a palavra como ferramenta de denúncia, identidade e transformação. 

Nessa discussão, seu Manoel sabe bem da sua habilidade e que a comunicação e as batalhas (de rima e da comunidade) terão continuidade.

“Se a gente morrer nessa luta nosso sangue será semente. Outros nascerão. Essa é só uma página que escrevi. A história continua e essa geração vai escrever a próxima página”, disse o artivista. 

Guerreiras da comunicação

Vértine Brito Rodrigues é da nova geração de comunicadores da Baixada Maranhense. Do Quilombo São Raimundo, município de Santa Helena, aos 23 anos ela entende que “todo mundo é comunicador, cada um de uma forma diferente”. E que “se soubermos usar nossa comunicação de forma eficaz vamos poder levar a luta muito além do que possamos imaginar”. 

A jovem diz que em 2023 foi indicada pelo Núcleo Mulheres Guerreiras da Resistência do MOQUIBOM para fazer registros e textos informativos. “Decidimos que precisávamos criar uma rede onde pudéssemos fazer divulgações e cobrar nossos direitos”, disse Vértine.

Foi então que ela começou usar o próprio celular, câmera fotográfica e as redes sociais do movimento para fazer publicações. Atualmente a jovem participa de formações e oficinas sobre comunicação e utiliza as ferramentas de forma estratégica. 

“A comunicação é muito importante, ainda mais quando se fala sobre ser quilombola. Uma comunicação eficaz é essencial. Através das nossas páginas transmitimos  reivindicações sobre nossos direitos, sobre os impactos do agronegócio nas nossas comunidades, quando se tem ameaças sobre lideranças quilombolas”, disse Vértine. 

Para as comunidades quilombolas, a comunicação vai além da fala ou da escrita — ela é território, história, luta e resistência. Comunicadores e comunicadoras da Baixada Maranhense mostram que a comunicação estratégica, seja ela cantada, falada, rimada, declamada ou escrita é essencial na defesa do território, na documentação da memória e na valorização da identidade quilombola. Quando feita a partir do próprio povo, com sua linguagem e seus modos de viver, a comunicação se torna uma forma de continuar resistindo e existindo. 

(Esse texto foi escrito por Letícia Queiroz, comunicadora quilombola, após Encontro de Segurança Integral para quilombolas de municípios da Baixada Maranhense. O encontro aconteceu em maio de 2025 e contou com participação da Escola de Ativismo, que identificou os comunicadores e comunicadoras citados nesta reportagem durante oficina de comunicação popular estratégica e segura para integrantes do MOQUIBOM).

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O que é democracia energética e como ela contrapõe o falso modelo verde brasileiro

O que é democracia energética e como ela contrapõe o falso modelo verde brasileiro

No Brasil, a transição energética tem sido conduzida sob uma lógica centralizadora e focada no mercado, perpetuando os padrões exploratórios e as injustiças observadas em projetos baseados em combustíveis fósseis. Aqui, Bruno Berilli se debruça sobre alternativas à esse modelo.

democracia energética transição

Foto: Luara Dal Chiavon

Ao pensar na geração de energia elétrica, qual é a primeira coisa que vem à sua mente? Para moradores do baixo São Francisco, na divisa da Bahia com Pernambuco, provavelmente vem a palavra “destruição”. Isso porque um programa de desenvolvimento do governo brasileiro escolheu essa região para a construção de uma usina hidrelétrica em 1979. Nove  anos depois, a usina de Itaparica entrou em funcionamento, mas não antes de alagar uma região habitada por milhares de famílias, forçando a retirada abrupta, sem nem mesmo o oferecimento de um abrigo temporário.

Em uma entrevista concedida ao Ministério Público em 2013, um dos afetados relatou o tamanho do problema: “Tem noite que eu não consigo dormir pensando no que era meu e que eu perdi. (…) o que eu fiquei agora só com uma aposentadoriazinha pra eu não morrer de fome.” disse Euclide José da Silva, agricultor e antigo morador da região . Em 2013, O MPF foi até a região para atender uma denúncia de que a Chesf, empresa responsável pelo empreendimento, não tinha cumprido com as promessas feitas 25 anos antes e deixou centenas de pessoas sem nenhum tipo de indenização após terem perdido tudo que tinham para a construção da barragem.

Algumas pessoas podem pensar que isso ocorreu porque a usina de Itaparica é fruto de um período de ditadura e violência política no Brasil, mas então o que explicaria Belo Monte? Uma obra de enormes proporções, tão — senão mais — violenta com a população local e a biodiversidade do Rio Xingu quando comparada com a usina de Itaparica. Idealizada, projetada e inaugurada durante governos democraticamente eleitos, entre 1989 e 2016. 

Em 2022, o STF reconheceu que o direito de consulta prévia dos povos indígenas afetados por Belo Monte foi violado, mas isso pouco significou uma vez que a obra foi concluída e a região já havia sido drasticamente alterada, com impactos irreversíveis para as comunidades locais e para o ecossistema do Xingu. As promessas de desenvolvimento econômico e geração de empregos ficaram distantes da realidade, substituídas pela destruição de modos de vida tradicionais, desmatamento, e pela falta de compensação adequada aos atingidos.

O problema seria então apenas as hidrelétricas? O caso do Parque Eólico Ventos de São Clemente mostra que não. Em 2016, o empreendimento com 126 aerogeradores entrou em funcionamento em Caetés (PE), e a população local, aos poucos, foi percebendo que toda a propaganda positiva sobre o Parque era uma grande mentira. Os moradores descrevem o som dos aerogeradores como “um avião que nunca pousa”, e a intensa poluição sonora impacta diretamente suas rotinas, sua saúde (física e mental) e toda a biodiversidade local — problema excepcionalmente descrito no documentário A Armadilha da Energia Eólica, lançado em 2021 pela Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco – Fetape.

A agricultora Maria Neuma da Silva mostra remédios ansiolíticos e antidepressivos que usa com frequência após sofrer com problemas de saúde mental causados pelos aerogeradores. l Foto: Vinícius Sobreira/Brasil de Fato

No documentário, o agricultor Simão Salgado fala do impacto após a instalação dos aerogeradores: “A gente teve impacto na criação dos animais, as vacas diminuíram a produção do leite em torno de 18 a 20%, a gente teve perda na produção de ovos, (…) e uma grande perda que eu também considerei foi nas abelhas, a minha propriedade tinha muita abelha nativa e eu notei que a abelha desapareceu com o ruído e com o vento.”, lamenta. 

Além disso, a promessa de desenvolvimento econômico local também não se concretizou. A renda da energia gerada segue destinada principalmente para grandes empresas de energia, sem beneficiar as comunidades que agora convivem com os efeitos devastadores da instalação.

Esses três exemplos ilustram uma verdade inconveniente para o tão “verde” setor energético brasileiro: os projetos de energias renováveis têm sido conduzidos sob uma lógica centralizadora e mercadológica e reproduzem os mesmos padrões de exploração e injustiça que caracterizaram os empreendimentos baseados em combustíveis fósseis. O problema, então, não é a fonte de energia em si, mas o modelo de desenvolvimento predatório que guia esses projetos há quase um século, ignorando os direitos das populações afetadas e os impactos ambientais de médio e longo prazo.

O aumento populacional ligado ao aumento da renda per capita, no entanto, exige que cada vez mais energia seja gerada para atender à demanda crescente. Mas como fazê-lo sem perpetuar as violências tão enraizadas no setor? A resposta pode estar em um conceito ainda pouco conhecido: a democracia energética, que propõe que a energia deve ser tratada como um bem público e um direito universal, ao invés de uma mercadoria sujeita às dinâmicas de mercado. Isso significa que a transição energética não pode ocorrer “de cima para baixo”, mas precisa ser construída de forma participativa, onde as populações locais tenham voz ativa nas decisões que moldam seus territórios. 

Este conceito surgiu em 2012 nos Estados Unidos, onde a Trade Unions for Energy Democracy (Da sigla em inglês TUED, que significa Sindicatos pela Democracia Energética), foi criada durante um evento sobre o setor energético global. Nesse encontro, foi reconhecido que o modelo atual de geração de energia, baseado no uso descontrolado de combustíveis fósseis, é insustentável e está levando a uma crise climática global. Ao mesmo tempo, o aumento da influência política das indústrias fósseis e as abordagens baseadas no mercado falham em atender às necessidades das comunidades e do meio ambiente, comprometendo uma transição energética justa. O interessante desse encontro é que eles saíram com um documento que orienta o caminho da Democracia Energética, o relatório Resist, Reclaim, Restructure (Resistir, Recuperar e Reestruturar), que sugere três passos para uma reestruturação geral do setor energético global:

TEXTO

Bruno Berilli

Defensor ambiental e climático, pesquisador das relações entre Energia e Mudanças Climáticas e bacharel em Energia e Sustentabilidade pela UFRB, onde também cursa Engenharia de Energias. Atua na articulação de projetos que unem juventude, justiça climática, comunicação estratégica e formação para a incidência política.

publicado em

TEMAS

princípios da democracia energética

    1. Resistir: Combater as agendas das corporações de combustíveis fósseis que, por meio de seu poder econômico e político, continuam a promover a exploração intensiva de recursos e a bloquear políticas efetivas de proteção climática. 
    2.  
    3. Recuperar: Reivindicar o controle público de setores privatizados ou mercantilizados da economia energética. As privatizações, frequentemente promovidas como “formas de melhorar eficiência e acesso”, geralmente levam a aumento na tarifa de energia, menor qualidade dos serviços e exclusão de comunidades vulneráveis.
    4.  

    Reestruturar: Transformar radicalmente o sistema energético global. Isso significa expandir o uso de fontes renováveis enquanto são implementadas estratégias de eficiência energética e para acabar com a pobreza energética, que ainda afeta bilhões de pessoas no mundo. A reestruturação exige um controle democrático e descentralizado, onde trabalhadores, comunidades e governos locais possam se moldar e se beneficiar diretamente do novo sistema energético.

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Esses princípios são muito bonitos escritos no papel, mas não podem ser mantidos apenas na teoria: eles precisam ganhar vida em iniciativas de energia popular, que coloque as comunidades no centro do processo de geração, distribuição e consumo de energia. A energia popular é caracterizada pela gestão descentralizada, participação direta das populações locais nas decisões e o objetivo de atender prioritariamente às necessidades sociais, em vez de maximizar lucros corporativos. E já existem exemplos de energia popular sendo implementadas no Brasil e no mundo. 

 

No Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro, a ONG Revolusolar apoiou na criação da Cooperativa Percília e Lúcio de Energias Renováveis de energia solar local em 2021, a 1ª em uma favela do Brasil. O processo, batizado pela organização de “energia solar social”, já se repetiu em outras seis localidades do Brasil, e consiste em organizar parcerias para que os próprios moradores da comunidade sejam capacitados como instaladores de energia solar, decidam sobre o local a ser instalado e realizem a  instalação.

“É preciso uma atuação coletiva clara para que os benefícios de uma transição energética cheguem a quem mais precisa.”, disse Eduardo Ávila, fundador e diretor-executivo da Revolusolar, em entrevista para a Folha de São Paulo em outubro de 2024.

No Vale do Jequitinhonha, em 2018, surgiu o projeto Veredas Sol e Lares, proposto pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). O projeto nasceu em um contexto de intensos conflitos fundiários na região, agravados pela exploração de eucalipto, lítio e pelo impacto histórico de barragens – estas que surgiram ali com o objetivo de gerar energia por meio de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs). Na época, as PCHs estavam operando com baixíssima capacidade, e apenas os seus impactos negativos eram sentidos pela população local. Foi então que a comunidade pensou em outros usos para aquelas barragens – e por que não uma usina solar sobre as águas do lago artificial?

Uma usina dessas proporções certamente exigiu grandes articulações e teve grandes impactos, mas, diferente dos exemplos trazidos no início, dessa vez eles foram apenas positivos. Desde o início, as comunidades locais foram envolvidas em todas as etapas, com a criação da Associação dos Consumidores de Geração Distribuída de Minas Gerais. Essa associação, considerada a maior de Geração Distribuída (GD) na América Latina, garante que o controle da energia permaneça nas mãos do povo. Foram envolvidas aproximadamente seis mil pessoas, em mais de 400 atividades de campo, nos 21 municípios que fazem parte da abrangência da usina.

“Não adiantava pensar em uma geração de energia solar em que o povo não fosse protagonista. Não trata-se de chegar e dar para o povo, é chegar e construir com ele”, trouxe Aline Ruas, uma das coordenadoras do MAB em Minas Gerais, em reportagem publicada na Escola de Ativismo.

Veredas Sol e Lares é um exemplo vivo de que uma articulação de movimentos populares com o poder público e a academia pode abrir caminhos para uma transição energética que desafia o modelo centralizador e predatório atual. Em vez de violar territórios e desconsiderar (ou até expulsar) as populações locais, a energia popular coloca o povo e o meio ambiente na base do debate. Outra lógica de energia é possível, mas não sem uma modificação radical em toda a estrutura que hoje rege os grandes projetos de energia. 

O Brasil precisa parar de apresentar o seu setor energético cheio de maquiagem verde como cartão de visitas em todas as conferências internacionais, como tem feito nas últimas COPs e reuniões do G20, arregaçar as mangas e, de fato, construir exemplos de energia popular em larga escala para que – isso sim – possa servir de exemplo para o restante do mundo.

Glossário: alguns termos importantes do setor energético

Usina solar fotovoltaica construída sobre o lago da PCH Santa Marta, que operava com baixa capacidade, e começou a gerar energia em 2023.Foto: Divulgação Veredas Sol e Lares

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    Energia Renovável

     

    Fontes de energia que se regeneram naturalmente, como solar, eólica, hidráulica e biomassa.

     

    Energia Limpa

     

    Fontes de energia que geram baixa ou nenhuma emissão de gases de efeito estufa, além de um baixo impacto no ecossistema de instalação. Podemos dizer, então, que a energia hidráulica é renovável, mas não é limpa.

     

    Transição Energética

     

    Processo de substituição de fontes fósseis por fontes renováveis para reduzir as emissões de carbono do setor energético – setor que mais emite gases que causam o efeito estufa no planeta.

     

    Transição Energética Justa

     

    Agenda que busca garantir que a transição energética não deixe ninguém para trás, buscando principalmente que a transição energética seja financiada pelos países e empresas que mais lucraram com “energias sujas”.

     

    Democracia Energética

    Modelo que propõe descentralizar a produção e o controle da energia, fazendo com que a energia seja tratada como um bem público e um direito universal, ao invés de uma mercadoria sujeita às dinâmicas de mercado.

    Pobreza Energética

     

    Falta de acesso a serviços de energia essenciais ou a uma energia de qualidade a um preço acessível. Vale lembrar que energia pode ser tanto elétrica quanto térmica – para a cocção de alimentos, por exemplo.

     

    Geração Distribuída (GD)

    Modelo de produção de energia elétrica em que os consumidores são responsáveis por gerar a própria eletricidade. É o oposto da Geração Centralizada (GC).

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Caatinga: dos saberes da Terra à adaptação climática – vídeo mostra o que o semiárido brasileiro pode ensinar ao mundo

Caatinga: dos saberes da Terra à adaptação climática

Produção apoiada Escola de Ativismo fala dos desafios para proteger o bioma exclusivamente brasileiro, o semiárido mais populoso do planeta

A Caatinga ensina, a Caatinga é vida, terra que cria e que come a gente…

A aparente aridez do semiárido brasileiro não é o mesmo que a falta de riqueza, de vida. O documentário “Caatinga: dos saberes da Terra à adaptação climática” mostra essa região fora do olhar estereotipado e preconceituoso que parte da população brasileira coloca sobre a região. É por meio de mulheres, protagonistas não apenas do vídeo, mas da forma como as relações sociais se constroem no território, que a narrativa busca mostrar os aprendizados que a vida sertaneja pode trazer para todo o planeta num contexto de desafios climáticos cada vez mais difíceis.

Um ambiente exclusivamente brasileiro, a caatinga é o semiárido mais populoso do mundo, com quase 30 milhões de pessoas, como lembra Carlos Magno, coordenador do Centro Sabiá e também “uma chave para destravar, para desbloquear todo esse conjunto de coisas que fala de adaptação climática no mundo”, comenta Magno.

Ocupando 12% do território nacional, “a Caatinga é um berço, um berço de sabedoria. Um berço onde a gente precisa aprender a beber da fonte da nossa ancestralidade”  afirma a geógrafa Nelzilane Oliveira no documentário. Mesmo com toda essa riqueza, até hoje a Caatinga não é reconhecida como um patrimônio natural brasileiro. O documentário de Raquel Kariri, assim, busca não apenas revelar toda a exuberância da região, mas também é um alerta para o que estamos fazendo com ela.


O curta é resultado do edital “Sem Justiça Climática, Não Há Democracia”. Você pode ver os outros vídeos da série no canal do Youtube da Escola de Ativismo e em nossa página de “Vídeos“. 

O  edital audiovisual ‘Sem Justiça Climática, Não há Democracia’, lançado em julho de 2024, selecionou projetos para apoiar a produção de conteúdos sobre clima e democracia. O objetivo principal é fortalecer a comunicação da agenda climática no Brasil através da produção de conteúdos informativos e criativos em formato audiovisual, sempre protagonizados por ativistas. 

Ativismo cigano desafia estigmas e busca visibilidade e políticas públicas​

Ativismo cigano desafia estigmas e busca visibilidade e políticas públicas

Ativistas ciganas Sara Macedo e Hayanne Iovanovitchi, do Coletivo Ciganagens, falam sobre o movimento de luta e dos desafios dessa população na busca por um mundo mais justo para suas comunidades

Foto: Sara Macedo e Hayanne Iovanovitchi

“A arte e os povos ciganos estão totalmente imbricados”. É assim que Sara Macedo, cigana da etnia Calón e artivista, descreve a riqueza cigana que, mesmo diante de tantas injustiças e silenciamento, seguem mantendo suas culturas, modos de vida e oralidade forte e orgânica. Nos territórios cheios de afeto ou nas estradas, os povos ciganos lutam por políticas públicas enquanto reafirmam que existir e resistir são atos políticos de coragem e amor.

Mas você já ouviu falar sobre os povos ciganos? O que você sabe sobre essa população presente em tantas partes do Brasil e do mundo? Já parou para pensar que talvez o que você “conheça” seja  parte dos estereótipos criados e espalhados de forma preconceituosa? Ou já pensou no motivo de você ouvir falar tão pouco sobre essa população?  

Lideranças ciganas afirmam que o preconceito, a falta de informações e de ações das autoridades impedem o conhecimento pleno sobre esses povos e deixam essas comunidades sem acesso a serviços públicos de qualidade, que respeitem suas especificidades e modos de vida. Os impactos geram violações de direitos, violências e um movimento de apagamento dos povos que são fontes inesgotáveis de cultura e diversidade.

Quem são os povos ciganos?

Os povos ciganos fazem parte do grupo de Povos e Comunidades Tradicionais reconhecidos nacionalmente, assim como indígenas, quilombolas, ribeirinhos e tantos outros. Comunidades tradicionais são grupos que mantêm modos de vida próprios, conectados com seus territórios, saberes ancestrais e formas coletivas de organização. O Decreto  Nº 6.040, DE 7 DE FEVEREIRO DE 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, define essas comunidades como “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”. 

Na teoria, os direitos das comunidades tradicionais são protegidos por uma série de normas, incluindo a Constituição Federal, Convenções Internacionais, leis e decretos. Estes direitos abrangem aspectos como igualdade, não discriminação, acesso à terra e território, educação intercultural, segurança alimentar e nutricional e participação nas decisões que afetam seus interesses. Mas na prática, essas comunidades enfrentam desafios históricos, como a negação de direitos, a violência territorial e a invisibilidade nas políticas públicas.

A cigana Sara Macedo, que também é assessora jurídica popular, bailarina e escritora, conta que “cigano é etnia”, mas também é, “pertencimento, reconhecimento mútuo e comunidade”. Essa relação se mantém firme mesmo diante de tantos estereótipos e discriminações. A jovem diz que um dos grandes desafios para os povos ciganos no Brasil é mostrar sua diversidade e romper com a falsa ideia de como os brasileiros pensam os povos ciganos de forma homogênea. 

“As comunidades ciganas representam um universo marcado pela simbiose ou oposição entre a identidade cultural supranacional e as identidades locais, regionais e de parentalidade em ambientes multiculturais, sejam itinerantes, ou sedentários, em territórios únicos, devido a nossa singularidade. Há tantas particularidades, que uma pessoa cigana de apenas uma etnia e de um território não poderia responder. Se formos pensar por meio da característica étnica supranacional, isso dá o indicativo do tom que devemos ser pensados. Línguas e sub línguas regionalizadas, a oralidade como um preceito muito forte do cigano brasileiro, proibindo a divulgação de nossas línguas como forma de proteção interna, é outro exemplo dessas particularidades”, afirma. Sara ao chamar atenção para a pluralidade dessas comunidades e etnias.

Mesmo diante das injustiças e quase total invisibilidade, os povos ciganos resistem.

Ativista Sara Macedo segura facão durante ação do movimento dos povos ciganos 

Foto: Sara Menezes/arquivo pessoal 

Coletivo Ciganagens

E foi com o objetivo de formar uma rede de apoio mútuo que um grupo de ativistas ciganos criou o Coletivo Ciganagens. Além de fortalecer ações e narrativas ciganas, o grupo leva informação, arte, educação e atua em prol dos direitos dos Povos Ciganos no Brasil de forma sempre pautada pelo ativismo anticolonial, antirracista e antissexista, bem como pela via da integração LGBTQIAPN+.

Sara é uma das integrantes do Coletivo. Ela conta que o grupo surgiu em 2020, durante a pandemia do coronavírus, e segue produzindo e divulgando materiais educativos que somam na luta ativista cigana, como guias e cartilhas sobre diversidade, arte, juventude e mulheres.

A artivista explica que é importante poder contar as histórias sobre povos ciganos com pessoas ciganas sendo protagonistas. “Sempre tive vontade, desde criança, de mudar minha história familiar e comunitária, criar outra narrativa, não me transformar no que a sociedade não-cigana diz da gente. É muito perigoso entrar nessa estrada da assimilação e começar a repetir que as coisas são assim e que nada pode mudar… Ainda mais pra um povo tão associado à resiliência. O coletivo Ciganagens é essa vontade de não caminhar por essa estrada”.

Sara afirma que o Coletivo Ciganagens aborda vários temas. “Desde denúncias relacionadas a tragédias nas comunidades, memoriais de nossas datas, divulgação de vitórias ciganas, materiais educativos, construção de audiovisuais, dança, artes visuais… Enfim, de tudo um pouco, porque infelizmente é necessário, somos um povo altamente desconhecido no Brasil”. 

Invisibilidade cigana e negação de direitos

No Brasil, os povos ciganos enfrentam várias invisibilidades, incluindo a estatística. A falta de dados oficiais sobre a população cigana é uma das barreiras para o acesso a direitos. Por isso, uma das principais reivindicações desses povos é a inclusão no Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) como grupo étnico específico e com a devida contabilização da sua população total.

Sara informa que essa reivindicação é feita desde o começo do século 21 e que o Ministério Público Federal já recomendou que essa contagem seja realizada. “As pesquisas servem para garantir o acesso desta população brasileira aos serviços públicos da área de saúde, educação, trabalho e segurança, bem como para o enfrentamento ao racismo institucional, ao preconceito e à discriminação”, destaca a recomendação.

“Um povo que sequer é contabilizado no território, não tem como ter verba destinada. Ser reconhecido no Estado tem muito haver com quem tem direito à cidadania, e quem não tem”, disse Sara. 

A ativista no movimento cigano Hayanne Iovanovitchi diz que as reivindicações dos povos ciganos perpassam todos os direitos fundamentais. “Ainda hoje o acesso é negado para muitos de nós. Queremos acessá-los como todos os cidadãos brasileiros, mas que nossas especificidades sejam consideradas. Nossas demandas envolvem educação, saúde, cultura, segurança pública, território, pois nossas tradições devem ser consideradas para que consigamos acessar esses direitos dentro da nossa realidade”, explicou. 

Para ela, é urgente dar visibilidade e soluções às lutas e reivindicações dessa população. “Houve uma evolução “pro form” – por formalidade – , os povos ciganos estão sendo colocados em projetos de governo e planos próprios, no entanto, nada muda nas dificuldades enfrentadas. Continuamos vivendo por nossa própria conta e risco.  Os povos ciganos precisam ser realmente enxergados por parte da estrutura para que sejam inclusos e suas especificidades sejam consideradas em cargos de tomada de decisão”, disse Hayanne. 

Coletivo Ciganagens fortalece ações e narrativas ciganas

Foto: Sara Macedo

Desconstruindo estereótipos

Além da invisibilidade e negação de direitos, as comunidades ciganas no Brasil ainda enfrentam as barreiras dos rótulos, generalizações, invenções e estereótipos.  As imagens construídas para justificar exclusões e as narrativas distorcidas reforçam políticas de apagamento, dificultam a inclusão em políticas públicas e alimentam o preconceito cotidiano.

“Só existe, praticamente, o estereótipo cigano. O cigano que é conhecido por uma gigantesca parte das pessoas é o estereótipo e a fantasia, construído por pessoas não ciganas, que sobrevivem de práticas chamadas de “esotéricas” ou “exóticas”. Esse estereótipo gera muito dinheiro no Brasil, principalmente para pessoas que sequer conhecem ciganos de verdade, justificados num ‘misticismo recreativo’”, disse Sara Macedo. 

A situação faz com que o movimento cigano precise concentrar forças em mais um campo de enfrentamento. 

“Infelizmente grande parte de nosso ativismo que deveria estar concentrado em outras pautas, está em combater esse véu das mistificações, chegando ao ponto de perguntarem a pessoas da etnia, porque não nos vestimos igual ao ‘ciganos piratas’. É um trabalho cansativo e que não vemos fim. Cigano não é religião, nem um culto, e não há como ser batizado para se tornar um membro da comunidade. Cigano é etnia, pertencimento, reconhecimento mútuo e comunidade”, explicou. 

A ativista diz que um dos grandes estereótipos é de que os povos ciganos vivem de forma itinerante por critérios culturais e de escolha, uma realidade muito distante da materialidade atual do mundo e da vida dessa população. 

“Hoje no Brasil, praticamente somente a minha etnia, Calón, sobrevive de forma itinerante, ou semi itinerante. Estima-se que 20% dos Calón ainda estão na estrada. Categorizar todas as etnias ciganas como nômades é negar todas as complexidades do mundo que estamos inseridos. Um mundo que expulsa e desterritorializa pessoas por conta de sua racialidade e etnia, assim como da falta de condições materiais, naturais e climáticas para sobreviver como nossos antepassados”, disse Sara.

A ativista e bailarina explica que sedentarizar [fixar residência num determinado lugar] acaba sendo um destino da maioria dos ciganos porque não existem boas condições de estar no trecho, ainda que alguns ainda estejam. “É uma tradição que segundo os mais antigos, tem haver com o trânsito de estar com todos os primos, rotacionar a terra, acesso a novos alimentos, convivência com outras culturas e permanência onde somos bem vindos. Também tem haver com uma veia muito não proprietária, o que acaba gerando outros problemas no presente, como não ter onde sobreviver dignamente, para muitos ciganos que vivem em comunidade. Sei que os indígenas também já viveram assim, e o aldeamento que hoje é bastante defendido para manter as suas existências, também foi uma imposição institucional. Modos de vida diversos são sempre desrespeitados, e há que se lutar muito para não esquecer o que é nosso, e o que não é”. 

O movimento ativista cigano afirma que desconstruir os estereótipos é responsabilidade coletiva e que esse é um passo essencial para construir uma sociedade que respeite todas as formas de existir em diferentes territórios. Há muita luta pela frente. Esse enfrentamento pode gerar um mundo mais justo para as pessoas ciganas. 

“Precisamos de mais de nós dentro da universidade, dos espaços de tomada de decisão e dos espaços de pesquisa. Queremos falar de nós e para nós e queremos que entendam que somos capazes e não precisamos de tutela alguma, conseguimos caminhar com nossas próprias pernas. Precisamos de oportunidades, que nossa existência seja reconhecida e valorizada, pois a formação desse país tem muito de nosso sangue e suor”, finalizou a ativista Hayanne Iovanovitchi. 

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Letícia Queiroz

jornalista quilombola, repórter da Escola de Ativismo

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VIDEO: O que os povos indígenas do Rio Negro ensinam sobre a internet após a chegada da Starlink?​

VIDEO: O que os povos indígenas do Rio Negro ensinam sobre a internet após a chegada da Starlink?

"A chegada da internet Starlink no Rio Negro - O que os povos indígenas ensinam sobre o seu uso" foi realizado pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) com a Escola de Ativismo.

O uso da internet é uma abertura a novas oportunidades, mas também uma ameaça, como no caso dos discursos de ódio, desinformação e golpes. Se essa é uma questão que tem uma escala mundial, o caso da Amazônia, contudo, é singular, com o acesso em áreas remotas popularizado nos últimos anos, em especial com a vinda da internet via satélite da empresa Starlink. Em diversas regiões da maior floresta do mundo, diversas comunidades começaram a ter acesso de forma contínua à rede pela primeira vez. 

O que leva a pergunta: o que a experiência desses povos com essa recente chegada pode ensinar a todos sobre como lidar com a internet? É pelas palavras dos povos indígenas do Rio Negro que o curta-documentário mostra que há estratégias para usar a internet da melhor forma. A sabedoria ancestral se adapta e cria métodos para aproveitar o acesso a novas informações, a possibilidades de ensino à distância, mas sem perder a visão crítica sobre essa ferramenta. Por exemplo, quando vemos como as famílias indígenas lidam com o tempo excessivo das crianças na internet; que pode ser uma importante lição para pais nas grandes cidades. 

Vozes de lideranças, professores e jovens de diversas comunidades se unem nessa reflexão e compartilham seus saberes no filme, que é uma é uma produção da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) com a Escola de Ativismo. Assista abaixo.

Minidocumentário de ativista climática traz reflexões sobre práticas de cultivo sustentável, clima e segurança alimentar

Minidocumentário de ativista climática traz reflexões sobre clima e segurança alimentar

Produção foi apoiada pelo edital ‘Sem Justiça Climática, Não há Democracia”, da Escola de Ativismo

Como as mudanças climáticas afetam os sistemas alimentares? Essa é a pergunta central do minidocumentário produzido pela pesquisadora alimentar e climática Ellen Monielle. Apoiado pela Escola de Ativismo como parte do edital audiovisual ‘Sem Justiça Climática, Não há Democracia’, o material lançado nesta quarta-feira (14) traz reflexões sobre clima, práticas de cultivo sustentável e segurança alimentar. 

O material está disponível, assim como outros feitos pelo edital “Sem Justiça Climática, Não Há Democracia” no canal do Youtube da Escola de Ativismo e em nossa página de “Vídeos

Pensado e desenvolvido por Ellen, o mini documentário gravado em Rio Grande do Norte tem uma abordagem educativa. O material explica que o que chega ao prato das famílias brasileiras é resultado de uma complexa rede de fatores, chamada de sistemas alimentares. “Essa rede está sendo altamente afetada pelas mudanças climáticas”, disse. 

O material reúne entrevistas com agricultores e agricultoras familiares do estado que compartilham as adaptações necessárias diante de um cenário de mudanças climáticas.  

“Eu queria mostrar para as pessoas que as mudanças climáticas têm um impacto grande quando se fala nas questões alimentares e que essas mudanças são impulsionadas por um modo de produção extremamente exploratório, que é a monocultura. Apesar disso, existem pequenos agricultores remando, nadando contra essa maré, enquanto são impactados por um clima em mudança e se adaptam mesmo com todas as adversidades”, afirmou Ellen. 

A ativista acredita que é preciso debater sobre os sistemas alimentares de uma forma central dentro da pauta de mudanças climáticas. 

“Dentro do debate climático essa nunca foi a pauta principal. Para se ter ideia, apenas na COP 27 surgiu o pavilhão de sistemas alimentares. Antes [nas Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima anteriores], o assunto era debatido apenas de forma secundária. Mas é importante que as pessoas comecem a refletir que a comida que chega ao prato delas passou por enormes processos e decisões”. 

O  edital audiovisual ‘Sem Justiça Climática, Não há Democracia’, lançado em julho de 2024, selecionou projetos para apoiar a produção de conteúdos sobre clima e democracia. O objetivo principal é fortalecer a comunicação da agenda climática no Brasil através da produção de conteúdos informativos e criativos em formato audiovisual, sempre protagonizados por ativistas. 

Precarização: “Só as lutas sociais podem resgatar um sentido ao trabalho”

Precarização: “Só as lutas sociais podem resgatar um sentido ao trabalho”

Trabalhadores brasileiros enfrentam jornadas exaustivas que comprometem o convívio familiar e a saúde. Especialistas apontam que essa sobrecarga não é um erro, mas uma engrenagem do sistema de exploração

Foto: Reprodução

Acorda cedo, ainda de madrugada. Escova os dentes, se arruma e arruma também a filha pequena para a escola. Pega a marmita já pronta na geladeira, guarda na bolsa e se despede de seu cônjuge e da criança. Sai de casa e caminha dezessete minutos até o ponto de ônibus mais próximo. O ônibus já vem lotado. Paga a passagem cara e segue viagem em pé. Depois de uma hora e oito minutos, chega a um bairro de classe média, onde espera mais vinte minutos para pegar o segundo ônibus. Meia hora depois, desce e encara mais 12 minutos de caminhada até a empresa. Trabalha das 8h até o meio-dia. Na hora do almoço, esquenta a marmita e permanece por lá mesmo. Não dá tempo de descansar em casa. O tempo que levaria para ir e voltar é maior que o intervalo.

Às 13h, já está a postos, batendo o ponto. Trabalha até 18h45 — deveria ser até 18h, mas, de novo, o chefe pediu para resolver um problema que “não podia ficar para amanhã”. Vai correndo para o ponto de ônibus, mas acaba perdendo dois ônibus por causa do tempo extra no trabalho. Só consegue embarcar às 19h50h. Chega em casa às 22h. Do ponto até a porta de casa, caminha quase correndo, com medo de alguma violência na rua escura e vazia. Ao entrar, mal tem tempo de respirar: come qualquer coisa, dá banho na filha, coloca para dormir. Depois, organiza a marmita para o dia seguinte. Termina tudo às 23h42. Toma um banho rápido e, exausta, se deita. Mas antes de dormir, ativa o despertador para 5h da manhã. No dia seguinte, tudo recomeça. E no outro. E no outro. E no outro… 

Essa é a realidade de muitos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras que enfrentam, com alguma variação da mesma história, intensas jornadas de trabalho no dia a dia.  As horas de expediente somadas ao tempo destinado a deslocamentos e às tarefas domésticas resultam em pouco (ou nenhum) tempo livre. Com a correria e  a rotina sobrecarregada, o convívio com a família praticamente não existe e os trabalhadores e trabalhadoras têm a saúde física e mental afetadas. 

A precarização, escalas exaustivas e a ausência de políticas de cuidado não são falhas do sistema, mas parte dele, assim como os baixos salários. O valor de R$ 1.518,00 como salário mínimo no Brasil é considerado insuficiente porque não cobre o custo real de vida das famílias brasileiras e não garante acesso pleno a direitos básicos como alimentação saudável, moradia digna, transporte, educação, saúde, vestuário e lazer como prevê a Constituição Federal. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), o salário mínimo necessário para suprir essas necessidades básicas em 2025 deveria ser R$ 7.229,32

Mais de 40% dos entregadores de app já sofreram acidentes e um terço vive em insegurança alimentar, segundo pesquisa

Foto: Jaqueline Deister/Brasil de Fato/Reprodução

Traço da sociedade escravocrata

Ricardo Antunes, professor de Sociologia do Trabalho no IFCH/Unicamp e autor dos livros “Sentidos do Trabalho”, “Capitalismo Pandêmico” e “Adeus ao Trabalho?” afirma que uma remuneração insuficiente para garantir o básico à sobrevivência mostra a brutalidade da exploração capitalista no Brasil, que “atinge fortemente a classe trabalhadora industrial, a classe trabalhadora que atua no setor agrícola, o proletariado rural, e também o proletariado de serviços”, afirma.  Essa exploração é ainda mais violenta quando se olha do ponto de vista, dentro da dimensão de classe, gênero e raça. “Negros e negras são mais explorados, indígenas e imigrantes também, quando você olha o cenário latino-americano. Ou seja, a classe trabalhadora sofre o vilipêndio da exploração. E isto singulariza o capitalismo brasileiro, que sempre foi pautado pela superexploração do trabalho”, afirma Ricardo Antunes.

O especialista explica que a exploração do trabalho é um traço da sociedade escravocrata no Brasil. “A burguesia brasileira, em seus grandes núcleos, imaginam que uma jornada de trabalho extenuante não seja um problema para elas, na medida em que elas pensam que estão dando trabalho para os trabalhadores. É uma falsificação. A exploração do trabalho é um traço que caracteriza, que particulariza o capitalismo no Brasil, vale lembrar, mais uma vez, de origem escravocrata. E ele é condição sine qua non [condição indispensável] das desigualdades”, disse Ricardo Antunes. 

O professor acredita que uma das pautas mais importantes do atual debate da classe trabalhadora brasileira é o combate à jornada 6×1. Atualmente essa é uma luta que está no foco de movimentos sociais, sindicatos e coletivos em todo o Brasil.

O movimento Vida Além do Trabalho (VAT), fundado e liderado pelo vereador eleito em 2024, Ricardo Azevedo (PSOL-RJ), defende a redução da jornada de trabalho sem diminuição do salário. A discussão virou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) protocolada em fevereiro de 2025 na Câmara dos Deputados por parlamentares da base do governo Lula. A PEC foi encabeçada pela deputada Erika Hilton (PSOL-SP), que considerou a petição pública online “Por um Brasil que vai além do trabalho” liderada por Rick antes da eleição.

“Nós sabemos que os profissionais no nosso país, especialmente os mais precarizados e mais vulnerabilizados, aqueles que ganham menos e que podem morrer de trabalhar não chegarão muito longe porque as condições de trabalho e a remuneração não permitirão. […] Precisamos olhar para o trabalhador enquanto ser humano que tem uma vida, que tem uma família que muitas vezes precisa abrir mão dos seus sonhos para ficar em uma jornada de trabalho extremamente exaustiva que não leva a muito longe”, disse a deputada Erika Hilton em uma sessão na comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial. 

Um relatório da Oxfam Brasil indica que mulheres e pessoas negras são as maiores vítimas das consequências da informalidade no trabalho rural. 

Foto: Letycia Bond/Agência Brasil/Reprodução

Gênero, raça e classe 

Quem trabalha sob esse regime convive com exaustão e o que seria “tempo de folga” para desfrutar de lazer, vira tempo de trabalho, só que em casa. Trabalhadores concordam que não existe tempo livre tendo em um único dia da semana longe do local de trabalho.  Esse tempo geralmente é o período destinado para organização da casa e da rotina para a volta ao trabalho. 

Essa realidade acende a discussão sobre raça e gênero. É que a situação afeta principalmente mulheres negras, que recebem os menores salários e enfrentam as piores condições de trabalho. As disparidades estruturais refletem as desigualdades históricas. 

Dados do IBGE sobre informalidade e desemprego mostram que o mercado de trabalho é sexista e racista. A pesquisa mostra a disparidade salarial e informa que pessoas pretas e pardas vivenciam mais o desemprego do que as brancas. Quando estão empregadas, as pessoas negras recebem salários menores e são maioria na informalidade.  

A lógica da produtividade a qualquer custo tem aprofundado a precarização também entre jovens periféricos e trabalhadores rurais, que enfrentam ainda o racismo estrutural e a negação sistemática de direitos trabalhistas.

Um relatório da Oxfam Brasil indica que mulheres e pessoas negras são as maiores vítimas das consequências da informalidade no trabalho rural. De acordo com a pesquisa, quase 70% das trabalhadoras e trabalhadores são negras e negros e 58,3% trabalham sem as garantias da legislação trabalhista. A desigualdade também se expressa nos salários. Segundo os dados levantados, homens negros ganham 59,8% e mulheres negras 61,6% a menos que a média. A informalidade atinge 46,1% da população preta e parda.

Os dados indicam a necessidade de uma transformação profunda no campo trabalhista. Apesar das conquistas históricas – fruto de intensas lutas dos trabalhadores e movimentos sociais e sindicais – a evolução e os direitos conquistados até agora ainda são insuficientes para garantir uma proteção plena e justa. 

Foi com esse propósito – de resistência frente à exploração – que nasceram os movimentos sindicais  no século XVIII. Diante de jornadas exaustivas, baixos salários e ausência de direitos, a organização coletiva se tornou uma ferramenta fundamental para reivindicar melhores condições de vida e trabalho. 

O Sindicato dos Mensageiros Motociclistas, Ciclistas e Mototaxista Intermunicipal do Estado de São Paulo (SindimotoSP), surgiu no final da década de 1980 com a necessidade de defender os interesses da categoria.  O diretor-presidente do sindicato, Gilberto Almeida, o Gil, afirma que atualmente a categoria enfrenta diversas formas de precarização “desde o descumprimento de proteção das leis trabalhistas e o afastamento desses trabalhadores das convenções coletivas, dos acordos coletivos da justiça do trabalho e dos instrumentos de proteção do ecossistema das leis trabalhistas até a desregulação e desproteção dentro do universo das leis relacionadas à proteção e à segurança do trânsito”. 

Gil informa ainda que questões que envolvem a segurança no trânsito são ignoradas. Segundo o  SindimotoSP, entre janeiro de 2024 e janeiro de 2025 morreram 900 motociclistas. 

Por causa desses problemas, o grupo tem criado mecanismos para contrapor questões de desregulação, segurança e outras formas de precarização. “A gente vem atuando em diversas frentes, tentando contrapor o lobby dessas empresas. Principalmente nas Câmaras de Vereadores, no Congresso e no Senado, também nas ruas, no fortalecimento, no apoio às manifestações, como as próprias greves. Nós denunciamos fraudes trabalhistas e todas as questão relacionadas à precarização. Toda essa questão de enganação. Toda essa parte voltada para a questão do dumping social das empresas. E aí onde está a nossa atuação. No enfrentamento”,  explicou Gil. 

Existe um processo claro precarização no trabalho de entregadores, como os que atuam em plataformas como Uber, iFood, Rappi e motoboys independentes.A precarização do trabalho nesses setores pode ser entendida de diversas formas, evidenciando a ausência de direitos, a instabilidade e as condições desfavoráveis que os trabalhadores enfrentam no dia a dia.

Ricardo Antunes explica que parte importante da classe trabalhadora brasileira atua em plataformas com o objetivo de ter maiores salários. Mas para isso, acabam trabalhando até 14 horas (ou mais) por dia. “A pessoa destrói o seu corpo produtivo. Morre mais de um motoqueiro entregando produtos em São Paulo por dia. Adoecem trabalhadores e trabalhadoras que trabalham em motos, em bicicletas, intensamente perdendo partes do seu corpo, quebrando partes do seu corpo, afetando a sua cabeça. Há um conjunto imenso de trabalhadores jovens que começam a trabalhar nas plataformas e acabam ficando longos períodos sem nenhum direito. A greve dos trabalhadores de aplicativos mostrou que é inaceitável o nível indigno de remuneração que eles recebem e os níveis precários que pautam as suas condições de trabalho”, disse. 

Durante todo o ano é fundamental pautar os direitos dos trabalhadores e discutir o direito ao  descanso – que deveria ser um direito inegociável, mas virou um privilégio acessível a poucos. 

“É preciso resgatar um trabalho dotado de algum sentido e isso é que as lutas sociais fazem”, finaliza Ricardo Antunes. 

 

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Letícia Queiroz

jornalista quilombola, repórter da Escola de Ativismo

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Por trás do selo de “Alto em Açúcar Adicionado”: a história da luta pela regulamentação da alimentação

Por trás do selo de “Alto em Açúcar Adicionado”: a história da luta pela regulamentação da alimentação

Em entrevista, Ana Paula Bortoletto detalha os perigos dos ultraprocessados, os interesses da indústria e os desafios no avanço do debate sobre alimentação no Brasil

Desde o desenvolvimento do Guia Alimentar para a População Brasileira, há dez anos, e muita coisa mudou no Brasil: saímos e voltamos do Mapa da Fome, a exportação de commodities do agronegócio bateu recordes e o debate sobre insegurança alimentar aumentou. Tanto é que desde outubro de 2022, alimentos e bebidas começaram a contar com um elemento essencial em suas embalagens: o selo frontal que alerta para quantidades alarmantes de açúcar, sódio e gorduras saturadas.

O selo frontal é exibido sempre que o alimento contém ao menos um dos nutrientes em níveis superiores aos preestabelecidos pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Atualmente, pessoas publicam memes baseados no selo, refletem sobre a compra de um produto nos supermercados e veem com mais explicitude o que contém no alimento que vão consumir.

Como toda conquista significativa para a população brasileira é gerada a partir de luta e pesquisa, fomos buscar entender onde e porque o selo começou a ser gestado. Também queríamos buscar entender mais sobre a potência dos ultraprocessados, os riscos da insegurança alimentar e como o debate da alimentação se entrelaça com a democracia.

Por isso, conversamos com a Ana Paula Bortoletto Martins, professora doutora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da USP, pesquisadora científica do NUPENS/USP e da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da USP.

Ana Paula foi essencial para a implementação do selo: na época da disputa e do debate com a Anvisa, trabalhava no IDEC (Instituto de Defesa de Consumidores) como Coordenadora do Programa de Alimentação Saudável. Com uma bagagem de enfoque na área de Regulação do Ambiente Alimentar, Bortoletto respondeu às nossas perguntas com entusiasmo e a sabedoria de que a evidência é chave para transformar vidas através de mudanças sistêmicas.

Escola de Ativismo: O ataque aos direitos humanos leva a políticas públicas muito mais frágeis, suscetíveis a desmontes. Os entrelaços da cidadania a com alimentação nem sempre são feitos de uma forma clara no debate público. Como a alimentação se relaciona com a democracia?

Ana Paula Bortoletto Martins: Acho que hoje no Brasil e no mundo, há o reconhecimento de olhar para alimentação como um direito.É fundamental que tenhamos espaços de construção de políticas que favoreçam que esse direito seja alcançado da sua forma mais plena e completa.

Todos os modelos que temos  de implementação de políticas que tiveram algum tipo de restrição à democracia, de ditadura, de totalitarismo, ou seja qual for o modelo, faz com que se tomem decisões muito baseadas em olhares parciais, a fim de não respeitar o culto alimentar. É a falta da diversidade de arranjos possíveis para o sistema alimentar funcionar de uma forma saudável. A democracia é, sem dúvida, fundamental para a garantia da segurança alimentar de uma forma plena e completa.

"A indústria de ultraprocessados é uma grande provocadora da crise climática. Ela demanda matéria-prima de commodities e com isso favorece a produção em larga escala, monoculturas etc. Por si só, a matéria-prima dessa cadeia produtiva já gera um sistema alimentar que impacta o meio ambiente. E para aproveitar essa crise, desenvolve estratégias para fazer parecer que seus produtos são mais sustentáveis".

Você mencionou desafios. Um dos maiores que vivemos é a crise climática. Com que olhar você vê esse aproveitamento, por exemplo, da indústria diante das mudanças do clima?

A indústria de ultraprocessados é uma grande provocadora da crise climática. Ela demanda matéria-prima de commodities e com isso favorece a produção em larga escala, monoculturas etc. Por si só, a matéria-prima dessa cadeia produtiva já gera um sistema alimentar que impacta o meio ambiente. E para aproveitar essa crise, desenvolve estratégias para fazer parecer que seus produtos são mais sustentáveis — o que na verdade não são.

São respostas parciais as que são feitas em relação a produtos ultraprocessados plant-based [feitos com plantas], em relação a selos, embalagens disfarçadas para dizer que eles são sustentáveis e responsáveis em relação ao meio ambiente. A lógica de produção acaba sendo muito mais perversa e com impacto muito mais negativo do que esses produtos que parecem ser sustentáveis. 

Isso atrapalha porque confunde as pessoas. As pessoas acham que estão fazendo uma escolha que é favorável para o meio ambiente, quando o que está por trás é um sistema alimentar que pouco o favorece. Não tenho visto nenhum caminho que a indústria de ultraprocessados tenha desenvolvido para, de fato, se colocar [como mitigadora de impactos].

A indústria vai pelas possibilidades de greenwashing, de parecer que é, mas, no fundo, a forma como eles estão organizados tende a ser muito mais impactante do que essa fachada, em relação a transporte, em relação a embalagem, em relação a como eles lidam com os fornecedores, o respeito aos agricultores, a exploração dos pequenos agricultores para fornecer matérias-primas.

Uma certa vez a gente leu um texto por aqui, da Alessandra Munduruku, em que ela fala que na cidade grande não é possível você andar pela rua e você talvez pegar uma fruta tão facilmente numa árvore. Na aldeia em que ela vive, o alimento que comem é compartilhado, tem ali, está na terra, está no território. A gente não vê mais isso nas nossas cidades. Mudou muito a nossa forma de comer fruta?

Na verdade, pelos dados que temos da pesquisa de orçamentos familiares, o consumo de frutas sempre foi muito baixo. Não podemos  dizer que a mudança da urbanização provocou essa redução no nível populacional. É interessante olhar os dados porque, mesmo com o aumento do consumo de ultraprocessados, não muda tanto o consumo de frutas e hortaliças, que já é baixo. É um dos desafios enormes que a gente tem além de restringir o que é processado, é como poder aumentar o consumo e essa diversificação de alimentos saudáveis.

Eu entendo essa questão que você traz como uma percepção, né? Desse afastamento das pessoas em relação à natureza, à valorizada onde vem o alimento, ou de pensar que pode ter um alimento mais fácil, acessível e barato, sem depender de um grande supermercado. É um impacto que a gente vê nessa memória, das normas sociais que foram mudando.

Hoje, tem lugares no Brasil que ainda tem uma grande disponibilidade de frutas, mas as pessoas também não querem, não aproveitam. Então acho que tem uma coisa aí maior em relação a entender esse acesso a alimentos no quintal e nas ruas, em como alimentos que devem ser valorizados.

"Sempre foi uma construção coletiva. Não foi uma ideia, uma pessoa que veio e falou. Foi uma construção de pessoas, de inspirações e de acúmulos de experiências."

É muito importante para nós, na Escola de Ativismo, entendermos como uma conquista se torna uma conquista. Um dos pontos que eu soube que são muito essenciais na sua luta é o selo alimentar. Como surgiu essa ideia? Por quê?

Eu comecei a trabalhar no IDEC e foi uma experiência muito interessante de reconhecer a conexão do direito da alimentação com o direito do consumidor. As pessoas pensam o consumidor como uma coisa “ah, é consumidor, é consumismo, é quem quer consumir, quer comprar”. Mas a gente tem uma construção bem importante de consumidor no sentido da cidadania, de lutar por direitos coletivos, né?

O Código de Defesa do Consumidor brasileiro é referência. Foi construído na época da redemocratização, junto com o SUS e outras coisas. Ele traz uma lógica de princípios, de como devem funcionar as relações entre pessoas e empresas. Quem detém o poder e a informação do que está sendo ofertado são as empresas, portanto, elas também têm a obrigação de garantir que os consumidores, por estarem mais vulneráveis, recebam todo tipo de informação, de apoio para que essa relação seja o mais justa possível. 

Eu não conhecia tanto o tema da rotulagem, mas lá no IDEC já era uma temática que vinha se valorizando há muito tempo com pesquisas e atuações. Quando cheguei, tive essa oportunidade de discutir sobre a rotulagem nutricional, que era inicialmente apenas a tabela que fica atrás da embalagem.

Logo em seguida surgiu a iniciativa dos octógonos pretos, no Chile. Foi o primeiro país que adotou selos frontais na abordagem de advertência, e ficamos encantados com essa experiência. Nessa época, eu comecei a participar de algumas reuniões do CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional). Lá, a gente teve uma discussão sobre isso, e falamos, “vamos incitar a Anvisa para começar a discutir sobre o tema.”

Tinha uma abertura política na época, então a Anvisa topou começar a discussão. Nem havíamos feito uma proposta, mas começou-se a discutir o que que ia ser essa rotulagem nutricional e quais eram os problemas. Conseguimos  fazer uma discussão bem aberta com a participação da sociedade civil e da academia. E até com a indústria.

Fui entendendo a lógica, a dinâmica, o que a Anvisa queria propor. Fomos conversar com outros grupos.  E foi assim que eu conheci um grupo que trabalha com design da informação, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) , e junto com eles, desenhamos uma proposta que achamos mais adequada para o Brasil. Eles propuseram o formato dos triângulos, e a gente na parte funcional propôs as regras da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), para dizer o que é alto em açúcar, gordura, sódio. Isso porque a conformação do selo depende das duas componentes: o design e o perfil de nutrientes.

A gente já tinha recomendação da OPAS do que deveria ser o critério para isso. Com essa proposta, a gente conseguiu fazer estudos para validar essa proposta aqui no Brasil. Fizemos um monte de campanha, porque havia a possibilidade de fazer campanha de informação em massa. Foi incrível fazer a articulação direta com diretores da Anvisa.

Quanto à ação de rua, foi uma época muito intensa de mobilização. A gente defendeu o triângulo até o final, tinha ali uma proposta muito consistente. Mas isso acabou se transformando. De todo modo, sempre foi uma construção coletiva. Não foi uma ideia, uma pessoa que veio e falou. Foi uma construção de pessoas, de inspirações e de acúmulos de experiências.

O triângulo foi considerado por eles, mas acabou perdendo pela correlação de forças com a indústria. A Anvisa acabou optando pela lupa, por ser uma mediação com a indústria, mas já foi algo positivo por si só.

Não seria a abordagem no semáforo que a indústria queria: a indústria teve que se dobrar e aceitar essa proposta, bem diferente do que eles queriam. Os critérios para dizer o que é alto [em sódio, açúcar etc.] ainda são muito flexíveis, mas chegamos num reconhecimento da necessidade de avançar com essa agenda. Com a implementação da rotulagem acontecendo, isso muda a norma social, isso muda como as pessoas se relacionam com a alimentação, e a gente quer seguir melhorando.

Você mencionou que houve esse impasse com a indústria. Como lidar com essa resistência da indústria com o que vocês queriam? O que exatamente a indústria queria e que não era conciliável para vocês? Não só para vocês, mas para a sociedade.

Eu acho que a indústria não queria nada, né? Eles queriam manter como estava, uma proposta que afetasse menos a embalagem. Diziam que o triângulo ia causar medo nas pessoas, que as pessoas iam deixar de consumir.

Fizeram previsões econômicas catastróficas, de que o mercado de alimentos ia falir. Eles queriam uma proposta, então defenderam a proposta do semáforo, que a gente já sabe que não funciona por ter impactos bem pequenos.

No começo da discussão eles achavam tudo muito fácil, porque estavam mal acostumados a lidar com a Anvisa e ganhar a causa, sabe? Depois, se assustaram e organizaram a rede de rotulagem, que é uma rede enorme com todas as associações da indústria de alimentos. Virou uma coisa muito grande de posicionamento da indústria.

Eles influenciaram ali. A gente não tem provas, detalhes, mas induziram a indicação do próximo diretor indicado, para que fosse uma pessoa mais alinhada com o interesse do lucro. Muitos conflitos de interesses nesse meio de campo que a gente não sabe…

Os avisos logo ganharam as redes sociais e se tornaram memes.

Foto: Montagem/Escola de Ativismo

 

E como está a luta agora? 

O que está pegando mais hoje na Anvisa são duas discussões. Uma é para melhorar as normas sobre adoçantes, que estão chamadas tecnicamente de edulcorantes, porque a gente já sabe que é um efeito colateral da lupa é aumentar a quantidade de adoçante nos produtos. A reformulação mais fácil feita pelas indústrias é tirar o açúcar e inserir o edulcorante. No Chile aconteceu a mesma coisa.

No Chile, não há advertência para educorante, adoçante. Está sendo uma grande polêmica, porque as pessoas da área da tecnologia de alimentos defendem que os edulcorantes são seguros, que tem toda uma análise toxicológica que é feita. Mas nós, do campo da saúde pública, vemos limitações nessa forma de avaliar a segurança dos edulcorantes, principalmente na forma combinada em que pessoas consomem vários edulcorantes ao mesmo tempo.

Se você observar nos rótulos hoje, não tem um destaque muito grande sobre ter adoçante. A Coca-Cola está reformulando sua fórmula e colocando menos açúcar, mas com um destaque bem pequeno. É com adoçante, mas não é diet, não é light. Acho que tem um grau de enganosidade das pessoas… fora os que são para criança, porque como a dose máxima de consumo de adoçante é de acordo com o peso corporal, essa dose é muito baixa no público infantil.

A outra ideia é melhorar as regras do que é considerado alto em açúcar, sódio e gordura. Talvez seja um pouco mais de médio e longo prazo, mas a gente percebe que tem uma abertura para rever esses valores, para que mais produtos recebam a lupa, e toda essa lógica é pensada em aumentar o alinhamento da norma da rotulagem com o Guia Alimentar [para a População Brasileira], a nossa principal referência de alimentação saudável.

Quanto mais a lupa for capaz de identificar quais são os ultraprocessados, mais fácil vai ser com que as pessoas sigam as recomendações do Guia.

Tem gente que está por dentro do assunto, tem gente que não está. Como que a gente consegue dizer o que é um ultraprocessado?

O jeito mais prático de identificar é ler a lista de ingredientes. Na lista de ingredientes você vai conseguir ler, apesar de aparecer com uma letrinha pequena. Às vezes escondido, mas é onde aparecem todos os ingredientes, todas as substâncias que são incluídas naquele alimento. O ultraprocessado tem lá extratos, xaropes, substâncias que não reconhecemos que a gente usa na nossa cozinha, como maltodextrina, proteína extrusada, gordura de algum tipo. Não tem mais a gordura hidrogenada, mas tem a interesterificada. Ou então aditivos alimentares, como corantes, aromatizantes, emulsificantes, que vão mudar a cor, o cheiro e a textura dos alimentos.

Na prática eu diria que esse é o jeito mais fácil de identificar. Tem que ler mesmo os nomes do que aquele produto compõe. Se ele tiver alimentos e sal, ou gordura, ele vai ser processado. Em geral, alguns dos alimentos in natura minimamente processados nem precisam ter a lista de ingredientes, porque você já olha, já reconhece o açúcar, feijão, arroz, lentilha, e por aí vai.

"Quanto mais a lupa for capaz de identificar quais são os ultraprocessados, mais fácil vai ser com que as pessoas sigam as recomendações do Guia [Alimentar para a População Brasileira]".

 

Recentemente fui ao supermercado e tomei um susto com a quantidade de produtos ultraprocessados, misturados, irreais. As pessoas estavam pegando os alimentos sem ler. Você mencionou que a publicidade tem um papel chave em fazer com que as pessoas consumam esses produtos.

A publicidade tem que ser regulada. A gente tem que proibir publicidade infantil, tem que ter restrições de publicidade para ultraprocessados, nas escolas, nos parques, nos locais públicos em que as crianças frequentam. Tem que seguir mais por esse caminho.

Óbvio que o marketing social é um campo que está se desenvolvendo, de pensar mensagens e ações que estimulem hábitos saudáveis. Isso é bacana, mas vai ser difícil contrapor com essa agressiva estratégia de marketing sem ter algum tipo de regulação mais efetiva.

É uma oportunidade colocada para que produtos que tenham a lupa possam ter algum tipo de advertência depois da publicidade na TV. Como havia com o cigarro. Acho que essa é a lógica.

Tem um grupo da Argentina que faz uma contra-publicidade, digamos assim. Eles pegam em cartazes nas ruas, ou mais de mídia de massa mesmo, e aí fazem colagens, lambe-lambes e tal, é bem legal. E tem também uma, todo um conjunto de marketing social pensado de mídia de massas para avançar com políticas públicas no campo da saúde, né?

Eu não poderia deixar de falar dos 10 anos do Guia Alimentar para a População Brasileira. Após uma década, o Guia é atual. Apesar disso, o cenário que a gente tem hoje não é aquele que gostaríamos, apesar de todas as recomendações que estão escritas por lá. Quais são os caminhos que a gente tem que priorizar para poder fazer com que o Guia seja uma realidade implementada pelos próximos anos?

Temos  muitos desafios para que ele seja implementado, que seja mais divulgado, que seja mais utilizado nas políticas. São muitas frentes de trabalho para que isso aconteça.

Uma delas é investir na incorporação do Guia em todas as políticas públicas de segurança alimentar. Por exemplo, as políticas que vão desde a agricultura familiar até olhar para o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), que já tem bastante incorporações do Guia, para políticas de enfrentamento emergencial. A gente avançou com a nova cesta básica, que também prevê que não tenha ultraprocessados. Isso vai começar a ser implementado agora. 

Além disso, um investimento maior é para qualificar os profissionais da saúde para aplicar o Guia Alimentar. A gente tem agora um curso virtual que é o QualiGuia, para que os profissionais de saúde já possam aplicar o Guia.

Ainda hoje a gente vê materiais didáticos nas escolas desatualizados, que não consideram o Guia. Esse é um grande desafio, que eu nem sei muito por onde começar, mas talvez com as editoras e tal, para esse alinhamento.

E acho que cobrindo essas frentes aí, segurança alimentar, saúde, educação, a gente conseguiria aumentar bastante esse alcance. Quanto mais, melhor. Não tenho muita expectativa que a gente consiga ter grandes campanhas massivas de comunicação, porque a indústria pega pesado.

"O aumento da insegurança alimentar no Brasil, que vem de 2016 para cá, fez com que as pessoas tivessem que direcionar suas escolhas pro que é mais barato. Hoje o mais barato é ultraprocessado. As pessoas associam a pobreza com a falta de comida, mas não com a baixa qualidade dos alimentos."

Não dá para listar tudo, mas o que você tem percebido que tem sido mais impactante dos ultraprocessados na saúde das pessoas?

Tem um estudo que fez um compilado de todas as doenças relacionadas com pré-processados: eles foram relacionados com mais de 30 tipos de doenças. As que a gente tem evidência mais forte tem a ver com obesidade, doenças cardiovasculares, alguns tipos de câncer, distúrbios de saúde mental, como depressão, ansiedade, distúrbios gastrointestinais e até mesmo doenças respiratórias. 

As pessoas ainda não entendem que, talvez, ter dinheiro para comprar apenas um pacote de biscoito é insegurança alimentar. Ainda são poucas as problematizações diante da realidade de uma pessoa que só tem dinheiro para comprar um suco, que na verdade não é um suco, mas sim alguma outra coisa. Por que você acha que os ultraprocessados entraram com tanta força na nossa casa e na nossa vida?

 

É super importante essa pergunta. Mais recentemente o ultraprocessado está mais barato. Fomos olhar algumas décadas anteriores e a gente via que quem consumia ultraprocessado era a população mais rica, a que tinha acesso financeiro para comprar esse tipo de produto. Para ser mais exata, estamos falando dos 20% da população mais ricos.

Com o passar do tempo, a gente tem visto que a dinâmica de preço de alimentos no Brasil e no mundo tem mudado muito. Todas essas crises, como a crise climática e a de baixos incentivos para os alimentos saudáveis, fazem com que esses alimentos saudáveis estejam aumentando de preço. Isso torna os ultraprocessados mais baratos, que dependem só de monoculturas, poucos ingredientes que não são commodities. Açúcar, trigo, milho, soja… basicamente são esses quatro ingredientes que compõem os ultraprocessados.

O aumento da insegurança alimentar no Brasil, que vem de 2016 para cá, fez com que as pessoas tivessem que direcionar suas escolhas pro que é mais barato. Hoje o mais barato é ultraprocessado. As pessoas associam a pobreza com a falta de comida, mas não com a baixa qualidade dos alimentos.

Isso faz com que apareçam críticas falando que não se pode criticar o que as pessoas estão consumindo porque é o que elas têm acesso. Mas se não é um acesso de qualidade, a pessoa continua em insegurança alimentar. Ela continua com mais riscos de desenvolver doenças. A gente não pode deixar de falar sobre isso. A pessoa tem situação de fome e a gente quer que todo mundo tenha acesso a alimentos de qualidade.

O ultraprocessado tem que ser usado para combater a fome. E se é o que tem para pessoa consumir, claro que numa situação emergencial, é o que ela vai fazer. Mas a gente não pode deixar de considerar que isso não é suficiente, e tanto é que os dados que a gente tem atualmente mostram que aquele pessoal mais rico que está no patamar dos 20% mais ricos desacelerou, não está consumindo mais. 

Tem toda a publicidade envolvida, todo o estímulo ao consumo a esses produtos como um pertencimento a um grupo seleto de pessoas que consegue consumi-los. Como que a gente vai dizer que quem está numa situação com menos renda não pode consumir, se a publicidade coloca todo mundo nessa tensão aí de querer consumir mais esses produtos? Acho que tem muitas coisas em jogo.

 

Sair ou disputar? Oito ativistas discutem estratégias e analisam o avanço da extrema-direita nas redes sociais

Sair ou disputar? Oito ativistas discutem estratégias e analisam o avanço da extrema-direita nas redes sociais

As redes sociais têm se tornado um espaço cada vez mais hostil aos direitos humanos, à democracia e à saúde mental. O que ativistas e comunicadores populares podemo fazer? Sair ou ficar? Trouxemos oito vezes diversas para debater esse tema.

Nirvana Lima, Sérgio Amadeu, Adriano Liziero, Ana Mielke, Raimundo Quilombola, Pedro Telles, Vitória Rodrigues e Joelson Maworno opinam sobre essa encruzilhada digital. 

Foto: Reprodução

O ano de 2025 começou com o anúncio de Mark Zuckerberg, fundador do Facebook e criador da Meta, que também administra o Instagram e Whatsapp, do fim da checagem de fatos e se alinhando com as políticas digitais de “livre expressão” da extrema-direita. O antigo Twitter, atual X, cujo atual dono é Elon Musk, um dos homens mais ricos do mundo e parte do governo de Trump, se tornou um espaço de propaganda e fermentação de ideias retrógradas. Cada vez mais, as redes sociais são espaços onde pessoas, grupos e comunidades podem ser atacados com base em uma “liberdade de expressão absoluta”. 

Há tempos em que esses espaços são criticados pela mineração de dados privados, por algoritmos viciantes, pela falta de moderação de conteúdo e por abrirem espaço para discursos de ódio. Seus efeitos também são sentidos em diversos adoecimentos psíquicos amplificados por essas dinâmicas. Críticos apontam para seu caráter massificador, alienante e voltado ao consumismo desenfreado.

Fomos ouvir especialistas e ativistas da área da tecnologia para entender como essas movimentações podem afetar a sociedade dentro e fora do ambiente digital e quais riscos elas representam para a democracia. Enquanto alguns defendem que ocupar esses espaços é essencial para enfrentar a desinformação, o neofacismo, os discursos de ódio e ataques à democracia, outros alertam para o risco de legitimar e fortalecer essas redes. O dilema evidencia os desafios da comunicação no momento em que a luta por visibilidade deixa pessoas em territórios que funcionam como verdadeiros ecossistemas de manipulação e radicalização. 

Sair das Big Techs como forma de protesto já é uma realidade. Ativistas em Londres fazem uma campanha contra a rede X. A mensagem “Delete sua conta do X“ foi espalhada pela cidade acompanhada da imagem de Elon Musk fazendo um gesto nazista. As mensagens criticam a postura do bilionário pela falta de moderação e permissão para discursos de ódio. 

Há também quem prefira deixar as plataformas e migrar para ambientes digitais mais seguros e descentralizados, que priorizam a segurança psicológica e a privacidade dos usuários, a exemplo do Mastodon, Pixelfed e Friendica, são algumas das mais usadas.

“Delete sua conta: se um bar deixa nazistas entrarem, é um bar nazista”, diz o cartaz.

A Escola de Ativismo ouviu oito vozes de diferentes territórios e experiências no ativismo digital. Elas falam sobre os desafios de se comunicar em plataformas controladas por bilionários, os riscos para quem defende direitos humanos e os caminhos possíveis para manter a luta viva.

Perguntamos se faz sentido continuar nas plataformas de Elon Musk e Mark Zuckerberg ou se é mais estratégico buscar outras redes com as mesmas funcionalidades e layouts semelhantes. Também indagamos se há métodos e estratégias de proteção online e as formas de fazer com que essa navegação seja mais saudável e segura para ativistas que usam as redes sociais em mobilizações e pressões por mudanças sociais. Veja as respostas.

Sérgio Amadeu da Silveira – Doutor em ciência política, professor da UFABC, criador e apresentador do podcast Tecnopolítica

O único sentido de continuar atuando nas plataformas das Big Techs está em combater o discurso da extrema direita e não permitir que ele se amplie sem contraposição. Como essas plataformas concentram atualmente a maioria das verbas publicitárias do país, elas conseguem atrair as pessoas que buscam entretenimento e relacionamentos cotidianos. A ampla maioria das pessoas só se interessam pela política em poucos momentos. Não podemos deixá-las apenas ouvir ou receber o discurso das forças reacionárias. Segundo a pesquisa sobre o uso da internet no Brasil em 2024, realizada pelo Comitê Gestor da Internet, 81% das pessoas com mais de 10 anos utilizam redes sociais online no país. Sem dúvida, não devemos ter ilusão alguma que os donos das redes controladas pelo Grupo Meta, pelo Alphabet e outras redes ligadas ao Vale do Silício atuarão para beneficiar as forças da extrema-direita no Brasil. 

Essas redes nunca foram neutras, nunca foram defensoras das liberdades democráticas, muito menos da nossa Constituição. Atuam em diversos países, incluindo o Brasil, em consonância com parlamentares reacionários para impedir a regulamentação democrática de suas operações. Não aceitam a transparência algorítmica, não querem se submeter à vontade das maiorias, não aceitam bloquear conteúdos negacionistas, racistas, misóginos, pois as narrativas exageradas, agressivas, principalmente espetaculares dão maior visualização e permitem que as pessoas fiquem mais tempo nas plataformas. Isso permite que os seus sistemas algorítmicos coletam mais dados de cada usuário e aprimore os perfis de cada pessoa colocando-as em amostras que são vendida para a publicidade e para a venda de serviços. Espetacularização e monetização são os princípios que guiam os algoritmos das redes de relacionamento das Big Techs.

Precisamos desincentivar o uso dessas plataformas. Mas, devemos encontrar alternativas. Temos condições tecnológicas de superar os dispositivos tecnológicos e as arquiteturas autoritárias e restritivas das redes de relacionamento. Para isso, precisamos de construirmos novos arranjos que devem partir da cultura. Nosso problema para montar alternativas às Big Techs não está na falta de conhecimento técnico, mas na falta de um projeto de futuro que enfrente o sistema capitalista perverso e desigual. Precisamos reunir a força cultural da nossa sociedade em projetos tecnoculturais. Podemos apostar na tecnodiversidade. Sem isso, não atrairemos recursos para desbancar o poder descomunal das Big Techs. Temos que lutar pela hegemonia cultural e por um mundo em que os jovens tenham futuro. A extrema direita oferece como futuro, o fundamentalismo religioso e a volta a um passado de violência de controle absoluto dos corpos pelos coronéis do patriarcado, a submissão das meninas e mulheres, a colonização do espaço para devastar ambientalmente novos mundos. É a reprodução do velho colonialismo racista e violento em tempo do playboy Elon Musk. Assim, nossa estratégia deve ser dupla. Utilizar pragmaticamente as redes sociais das Big Techs para conter o avanço do neofascismo e apostar principalmente em novas plataformas federadas, coletivas e que superem o vigilantismo imposto pelo capitalismo de dados.

Não devemos apostar em fazer o mesmo que as Big Techs fazem. Imitando fascistas nos tornamos iguais a eles. A estética das Big Techs apostam em um mundo somente individualista, cínico, concentrador. Temos que aprender com os povos originários, temos que criar novos arranjos, extrair do senso comum a sua criatividade não-conservadora e apostar uma recombinação dialética que teste novas possibilidades de interação e comunicação. Fazer redes sociais que se baseiem em cliques como critério de verdade, em sensacionalismos, em espetacularização não nos tornará diferentes. 

O fato de andarmos o tempo todo com celulares nos coloca o tempo todo à disposição das Big Techs. Essas corporações exploram gatilhos emocionais que chamamos de gatilhos de atenção. O objetivo dessas empresas é nos tornar viciados em suas estruturas de relacionamento. Por isso, temos que voltar a nos reunir, a criarmos horas de leitura coletiva, jogos coletivos, saraus de poesia, coding dojo para enfrentarmos problemas tecnológicos em conjunto… enfim, a dimensão digital não pode aprisionar a dimensão presencial. 

Nossos corpos são físicos, nossos afetos e nossos abraços são mais importantes do que cliques. Não podemos ficar refém de mediadores de IA e formatadores da nossa cognição. Muitos adolescentes não conseguem mais concentrar a atenção porque são prisioneiros do minuto, do nano conteúdo. Temos que conversar em todos os coletivos sobre o uso das redes e dos mecanismos de dependência e de controle das subjetividades que as Big Techs criaram”.

Ana Mielke – coordenadora-executiva do Intervozes 

Para que haja um efeito político considerável, seria preciso um movimento massivo de saída, o que aparentemente não está colocado neste momento. Sair da rede individualmente significa optar por um isolamento, ou seja, deixar de acompanhar o que acontece na vida de amigos ou mesmo no mundo, tendo em vista que estas plataformas possuem centralidade no debate público atualmente. Num contexto de disputa de ideias e opiniões, “estar fora” deste ambiente é deixar de dialogar com um contingente enorme de pessoas, organizações e movimentos, o que não parece estratégico neste momento. A saída, em massa ou coletiva, precisaria também considerar a criação de outras ferramentas para a manutenção deste diálogo público. Essas ferramentas não precisariam (e nem deveriam) estar baseadas no modelo de negócios e no designer que as plataformas privadas desenvolveram. Elas deveriam ser construídas a partir de outros parâmetros de sociabilidade digital, incluindo, a garantia de maior autonomia aos usuários do ponto de vista da gestão de seus próprios dados e maior liberdade em termos de interfaces de interoperatividade e navegabilidade.  

Por outro lado, é preciso levar em conta que além dos conteúdos violentos, discriminatórios, desinformativos, etc., a forma como estas redes retém nossa atenção e modulam nossos comportamentos impactam nossas subjetividades e as formas como nos relacionamos. E neste sentido, não descartaria as saídas individuais das plataformas digitais como medida importante para a garantia da saúde mental do usuário. 

A busca por plataformas é uma possibilidade, mas não faz muito sentido entrar em plataformas de modelos de negócios e designer semelhantes, que irão reproduzir os mesmos problemas: extração de dados, perfilamento de usuários, modulação de comportamentos. Precisamos pensar em novas possibilidades. Mas como abordado acima, não faz muito sentido a saída individual se ela for resultar em isolamento ou limitar a participação no debate público.

Uso estratégias individuais que passam pela delimitação do meu tempo de tela ou por educar o algoritmo para ele não recomendar de violências que busco combater. Exemplo: na busca por combater o racismo e a violência policial é comum que os algoritmos recomendem muitas violências desse tipo. Então busco não deter meu tempo em posts sobre o tema, nem mesmo clicar para assistir vídeos violentos, evitando assim, que o algoritmo me recomende estes conteúdos. Mas tais estratégias são individuais e limitadas.

 

Adriano Liziero – geógrafo, editor de conteúdo multiplataforma. Pesquisa inovação digital e tecnologias colaborativas e abertas. Cria conteúdo no @geopanoramas, onde utiliza a geotecnologia na comunicação sobre sustentabilidade e mudanças climáticas. 

Aprendi com o grande geógrafo brasileiro Milton Santos, na faculdade de Geografia da USP, a tomar as tecnologias hegemônicas, que servem aos interesses dos poderosos, como contrafinalidade. O movimento que faço nessas redes – e nos satélites que uso para capturar imagens do alto – são contrários ao que desejam os setores hegemônicos. Para isso, é preciso estudar o funcionamento dessas tecnologias, desafiá-las e subvertê-las em favor da solidariedade e do bem viver. Sou do tempo das redes abertas e livres, fui formado em coletivos de código aberto e pensamento hacker. Então, minha resposta não é voltada a simplesmente ESTAR nessas plataformas, mas em jogar o jogo delas para a construção de movimentos horizontais fora delas.

Tenho me voltado à força do lugar em contraponto às redes globais. Na escala local, podemos criar redes, inclusive digitais, mais interessantes às pessoas, pois as conversas são mais significativas e orgânicas; estão relacionadas ao espaço vivido. As pessoas sentem falta dos grupos, dos fóruns, onde o diálogo é horizontal. Redes locais precisam de menos dinheiro, menos servidores. No Geopanoramas, estou criando um projeto voltado a praças urbanas. As praças são o lugar do encontro, da formação de redes locais, além de serem tecnologias para a adaptação aos extremos climáticos. Em um mundo onde a maioria da população vive em cidades, sobretudo em metrópoles, as praças podem atuar como contrafinalidades e serem a inspiração para a emergência de redes digitais locais e horizontais, algo que as bigtechs não fazem porque não é tão lucrativo. Muita gente está em grupos do condomínio, do bairro, da cidade. Penso que o caminho é por aí, não o de criar mais redes verticais.

Criei um indexador para acompanhar apenas os conteúdos que me inspiram. Com isso, reduzi o uso do feed infinito, que adoece as pessoas. Porém, o que tenho feito cada vez mais é buscar esperança nos territórios, fora das telas. Tenho visitado praças, hortas comunitárias, agroflorestas e outras iniciativas de impacto positivo em busca de esperança. Em um ambiente tóxico, num mundo marcado pela perversidade, somos empurrados a olhar para os problemas sem vislumbrar as soluções, as contrafinalidades. Aprendi que a melhor ação para me proteger é estar em comunidade. No Geopanoramas, tenho um grupo que apoia o meu trabalho, inclusive financeiramente, no Apoia-se. São essas pessoas com quem posso contar na hora do aperto. A resposta é a comunidade e o lugar, em oposição ao que é imposto de longe, ao que busca homogeneizar o discurso.

 

Vitória Rodrigues – técnica em gerência em saúde, ativista pelo direito à cidade, estudante de comunicação social e comunicadora na Escola de Ativismo

Acho que faz sentido estar presente pelo sentido da disputa. Muito se fala que ao invés das redes, deveríamos estar mais nas ruas. Concordo. Acontece que até mesmo as ruas seguem uma lógica de produção de consumo, de priorização de máquinas, de geração de insegurança. Todo espaço na sociedade capitalista é projetado para o controle, então nos cabe reinventar o uso do que existe, inclusive das plataformas de mídias sociais.

Não faz sentido ficar dando, de graça, informações sobre a minha vida para o Musk, o Zuckerberg e o Page. Tudo que eu voluntariamente ofereço e consumo é revertido em uma grana que não chega ao meu bolso. Tenho usado o Mastodon e o Pixelfed regularmente, porque querendo ou não, muita gente tem o hábito de publicar textos e fotos pessoais. E eu prefiro fazer a maior parte disso numa rede social descentralizada, por mais que poucas pessoas que conheço usem.

Eu uso as redes sociais para mobilizar protestos, ativismos, denúncias. Entro nas contas que administro só uma vez ao dia. Sempre que me vejo assistindo mais de cinco reels numa sequência, lembro que não vou lembrar da maioria deles. E aí penso que devo direcionar o meu tempo a mim. Por isso, também, tenho usado as redes do Fediverso e navegadores como o Duckduckgo. Tudo é um rastro… a gente sempre acaba deixando, mas é melhor deixar de menos, né?.

Joelson Marworno – Ativista indígena em comunicação e segurança digital e coordenador de comunicações da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN)  

Não faz sentindo continuar usando essas plataformas, porque isso disponibiliza informações e dados analíticos para que sejam usados como estratégia contra pautas contrárias a eles. Uma vez que eles possuem o domínio da informação eles ficam cada vez mais poderosos para manipular os interesses a favor dos grandes capitalistas, e assim a desigualdades sociais só aumentam.

É fundamental que migremos para App de código aberto com funcionalidades e UX Designer idênticos para que assim sejam mais acessíveis ao aprendizado do uso do sistema por sua vez aumentando número de usuários e acessos às nossas causas e ideias sem a manipulação do algoritmo de entrega e coleta de informação uma vez que os códigos são abertos e auditáveis.

Utilizo configurações de privacidade bloqueando  os periféricos que coletam informações, porém como trabalho com comunicação fica muito difícil não se atentar as redes sociais e acabo que sendo pescado no algoritmos das redes.

Nirvana Lima – jornalista e Educadora Popular em Cuidados Digitais da Escola de Ativismo

No mundo ideal, todas as pessoas já estariam migrando para redes sociais que priorizam o controle e a privacidade dos usuários. No entanto, não acredito que a solução esteja em uma saída imediata das plataformas mainstream. Há um tom paradoxal na minha fala, porém abandonar esses espaços sem estratégia significa abdicar da possibilidade de disputar narrativas e impactar quem ainda está lá. As redes sociais que compõem o monopólio de Zuckerberg retêm a atenção de bilhões de pessoas, sendo milhões apenas no Brasil. Segundo dados do DataReportal, mais de 134 milhões de brasileiros estão no Instagram, o que equivale a aproximadamente 62% da população do país – e isso considerando apenas uma única plataforma.

É ingênuo pensar que conseguiremos desmantelar a estrutura e seus algoritmos de dentro para fora, mas mensagens adversas ao sistema nesses territórios digitais tencionam discursos e podem criar fissuras em uma arena de sentidos altamente controlada. Trata-se de uma disputa desigual, permeada por regras opacas e dinâmicas de silenciamento em um espaço que ainda permite que vozes dissonantes sejam amplificadas. Permanecer nesse campo minado exige, no entanto, uma postura metodológica: compreender as lógicas que regem essas plataformas, exigir sua regulação, saber explorar brechas e, ao mesmo tempo, construir rotas de saída.

Em uma sociedade neoliberal, o valor do interesse é medido pelo consumo. Quanto mais pessoas aderirem a plataformas colaborativas, comunitárias e de código aberto – que garantam maior controle sobre dados, privacidade e transparência algorítmica –, maior será a pressão sobre o mercado para seguir essa direção.

Raimundo Quilombola – Jovem do Quilombo Rampa, no Maranhão. Comunicador ancestral e cofundador da Rádio e TV Quilombo, formado em Geografia e Mestrando em Estudos Africanos e Afro Brasileiros.

Para mim está cada dia fazendo menos sentido ficar em redes sociais que, ao invés de contribuir com a nossa luta estão mais focadas nesse distanciamento das pautas da gente, principalmente de movimentos sociais e comunidade tradicionais. E se entrelaçando cada dia mais com a abertura desses discurso de ódio. Então é algo que eu já tenho refletido muito. Eu me vejo menos trilhando esse caminho, de estar intensamente dentro dessas plataformas.

Eu acho que chegou o momento que é muito importante, da gente estar pensando e traçando outras metas de nos auto fortalecer com outras redes; Eu acho que é o caminho mais certo até o momento, o que é visível para a gente não continuar se frustrando tanto de não ver os algoritmos recebendo as nossas pautas, que são pautas urgentes e necessárias, porque são pautas que dizem respeito aos direitos de quem mais precisa né? A proteção da vida dessas pessoas… então a gente a todo momento está falando de bem viver, de vida, de pessoas que que precisam a todo momento está pautando nesse espaço, e fica essa angústia de que tudo isso não faz muito sentido mais dentro dessas redes né? Nunca fez, né? Mas agora muito menos. Acho que chegou o momento da gente estar pensando em outras plataformas. Faz muito sentido a gente buscar fugir desses algoritmos que só envenenam a gente.

Temos que começar a trazer esse tema com mais força, sobre o tempo que os nossos ativistas estão passando nas redes sociais. A gente acaba jogando muito da nossa energia nesse espaço, acreditando que ele vai ser um espaço saudável e muitas vezes a gente vê o contrário. Às vezes a gente prepara memórias, histórias, arquivos de áudio de vídeos que a gente quer que chegue em muitos outros lugares, em muitos outros movimentos e que ganhe as telas de uma forma que todo mundo entenda o que está acontecendo, principalmente no contexto de violação de direitos das comunidades, e tudo isso acaba tendo movimento contrário. E essa navegação, ela não tem sido muito saudável. Acho que essa questão de diminuição do tempo de tela e de ter novas estratégias de proteção é importante, porque isso leva a muitas coisas, né? Inclusive problemas psicológicos.

Pedro Telles – diretor do Democracy Hub (D-Hub) e professor da Fundação Getúlio Vargas  (FGV)

A síntese da resposta para mim é, depende da sua estratégia. Se o seu objetivo é disputar a opinião pública em grande escala, essas plataformas, especialmente as da Meta, mais do que as do Elon Musk né, do X, nesse momento ainda são onde a maioria das pessoas está. E apesar de ser um jogo desnivelado nessas plataformas, eu acho que ainda é espaço onde o jogo é jogado e onde existe a possibilidade de fazer uma disputa de opinião em desvantagem, mas que ainda é relevante. Então, se você faz disputa de opinião em grande escala, eu acho que faz sentido você estar especialmente nas da Meta. O X está cada vez mais virando um lugar onde só tem extremista frequentando de verdade e aí cada vez faz menos sentido porque o público que está ali não tem muito mais chance de ser convencido. Agora se a Meta avançar mais numa direção e se tornar igual ao X, vai fazer menos sentido estar ali. Mas existem outras duas dimensões. 

Precisamos também fortalecer alternativas como o BlueSky, que tem se mostrado interessante, e considerar que tipo de trabalho faremos nas redes sociais e fora delas. Se o foco é organizar ativistas e voluntários, podemos usar plataformas menos vulneráveis à Big Techs.

Existem alguns esforços também interessantes como aquela campanha que está sendo puxada pelo pessoal ligado à Mozilla Foundation, ligado ao Wikipédia entre outros, de captação de recurso para ajudar a financiar a infraestrutura que está por trás do BlueSky e de outras redes que estão surgindo mais saudáveis e garantir mais uma possibilidade para esse ecossistema de de movimento de organizações e redes que querem construir alternativas.

É necessário focar na regulação econômica das Big Techs, como a Meta, para combater seu poder de monopólio e abuso de poder econômico. Isso inclui forçar a interoperabilidade entre plataformas, como a existente no email, e garantir transparência algorítmica. Você não consegue fazer isso hoje porque essas empresas não deixam, só que isso não é tecnicamente impossível. E a regulação econômica passa por esse tipo de coisa, por forçar a interoperabilidade, por forçar transparência algorítmica e entre outras coisas que precisam ser feitas, que é importante que a gente trabalhe pra fazer acontecer.

São muitos os possíveis tipos de problemas e ameaças que a gente encara nas redes sociais. Vai desde lugar de vício em telas, de como essas como celulares e redes sociais são projetadas para nos manter viciados. E aí pra lidar com esse tipo de coisa, tem várias medidas, como aplicativos que bloqueiam, colocam limites de tempo e até troca de celular. Eu troquei meu celular faz quase um ano para reduzir tempo de tela, por um celular que me força a isso. Então se é esse tipo de problema, de exposição excessiva a conteúdos problemáticos ou a vício, tem toda uma série de recomendações aí. Mas tem outro tipo de risco. 

É muito comum ativistas de temas ligados a gênero ou a raça sofrerem ataques misóginos e racistas online. Ativistas do tema de combate de informação e democracia sofrerem ameaças pelo trabalho que fazem buscando expor perfis e conteúdos extremistas. Então se o risco é na linha de ameaças à sua integridade digital, psicológica ou física, aí tem medidas de treinamentos de como é que você não expõe informações sensíveis online, de como é que você identifica se uma ameaça é mais grave que outras. Acho que os cuidados dependem um pouco dos tipos de proteção que a gente tá falando e dos tipos de riscos.

Leia também: As redes sociais se alinham com a extrema-direita: o que isso significa para a democracia?

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Letícia Queiroz

jornalista quilombola, repórter da Escola de Ativismo

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ATL 2025 mostra a força coletiva dos povos indígenas em defesa de territórios e do clima

ATL 2025 mostra a força coletiva dos povos indígenas em defesa de territórios e do clima

Maior mobilização indígena do Brasil denunciou violações de direitos e exigiu demarcação e segurança para os povos originários.

A 21ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL) – maior mobilização indígena do Brasil – reuniu milhares de lideranças de diferentes povos e biomas em Brasília (DF) para reivindicar direitos, fortalecer a luta pela demarcação dos territórios e denunciar as violações contra os povos originários. Entre os dias 7 e 11 de abril, plenárias, debates, atividades culturais e marchas mostraram a resistência coletiva em defesa da vida, das florestas, das águas e das culturas ancestrais.

Com o tema “Em defesa da Constituição e da Vida”, o ATL 2025 reuniu mais de 7 mil indígenas, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). O acampamento no centro do poder político brasileiro mostrou que povos indígenas de todo o Brasil seguem mobilizados e unidos em torno de suas pautas históricas. 

Em duas grandes marchas, indígenas usaram táticas criativas para fazer denúncias e exigir a demarcação de terras. Fotos de políticos que não se comprometem com a pauta indígena foram colocadas dentro de caixões e enterradas. Em outro momento, uma réplica da estátua da Justiça foi exibida pelas ruas de Brasília com um cocar – adorno usado na cabeça por muitos povos indígenas.

No penúltimo dia, ao final de uma marcha, um grupo de indígenas sofreu violência policial e precisou de atendimento médico após ser atingido por gás lacrimogêneo. A Apib e várias outras organizações se manifestaram contra a repressão durante um ato legítimo.

Os protestos alertam principalmente para a urgência na demarcação das terras indígenas. A ausência de demarcação expõe comunidades inteiras à violência, à falta de políticas públicas, ao avanço do desmatamento, à contaminação de rios, invasões ilegais e a várias outras ameaças constantes. A regularização dos territórios protege a vida dos povos, preserva os biomas, a biodiversidade, o clima e fortalece a autonomia e o bem viver dentro das comunidades. 

A programação do ATL contou a plenária “A Resposta Somos Nós: Povos Indígenas rumo à COP-30” , com comemorações aos 20 anos da Abip e com o lançamento da  Contribuição Nacionalmente Determinada  (NDC) Indígena. Elaborada a partir do acúmulo de propostas das organizações regionais da Apib, a NDC Indígena reforça que o debate climático precisa considerar a equidade, a autodeterminação e a participação efetiva dos povos indígenas e comunidades tradicionais na implementação da NDC brasileira, no âmbito do Acordo de Paris.

O Acampamento Terra Livre reuniu também lideranças políticas, como as ministras Sônia Guajajara, Marina Silva, a deputada federal indígena Célia Xakriabá, além de outros parlamentares e representações políticas internacionais.  

Neste ano o ATL também contou com a Tenda de Cuidados Digitais – um espaço estratégico de acolhimento, apoio prático e orientação sobre proteção digital para quem está na linha de frente da luta por direitos. Com escuta atenta, cuidado e foco na proteção coletiva, a iniciativa reuniu especialistas em segurança digital para orientar quem está na linha de frente das lutas, incluindo lideranças e comunicadores indígenas. Além da Escola de Ativismo, participaram representantes da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Semeadores, Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) e Tapajós de Fato.

No último dia de evento a Carta Final do Acampamento Terra Livre, lançada pela Apib, afirma diante de um cenário global e nacional marcado pelo avanço da extrema-direita e por ataques sistemáticos aos nossos direitos, é preciso reafirmar a importância da resistência e da luta coletiva. 

“As crises climática, ambiental, alimentar e civilizatória têm em nossos modos de vida, saberes e práticas tradicionais o caminho para a regeneração do planeta. Nossa ciência e sistema ancestral, expressa na agroecologia, nas economias indígenas, na gestão coletiva dos territórios, na nossa relação espiritual com a Mãe Natureza, preserva a biodiversidade, todas as formas de vida, incluindo os mananciais e sustenta sistemas alimentares saudáveis e equilibrados. Por isso, demandamos a retomada imediata das demarcações de todas as terras indígenas no Brasil, como uma política climática efetiva, e o financiamento direto para a proteção integral dos nossos territórios e nossos modos de vida”.

Confira aqui a Carta Final do 21º Acampamento Terra Livre na íntegra.

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Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

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