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Guia de segurança em manifestações: seus direitos, dicas de proteção e cuidados coletivos

Veja 8 passos para ativistas realizarem protestos efetivos com segurança

A participação em protestos, além de ser direito fundamental e uma expressão democrática, é também uma ferramenta poderosa usada ao longo da história para conquistar direitos e desafiar os sistemas opressores. Organizados por lideranças, os atos dão visibilidade a causas, pressionam governos e empresas por mudanças e mobilizam a sociedade para a ação. 

Ativistas e defensores de direitos humanos têm as manifestações como ferramentas de resistência. Foi assim no Pará. Grandes grupos de indígenas, quilombolas, professores e apoiadores do movimento resistiram por mais de 30 dias contra a Lei 10.820 –  medida que poderia levar à substituição do ensino presencial pelo remoto e causar danos graves à educação oferecida às comunidades originárias e tradicionais do estado. A manifestação longa terminou apenas depois que a lei foi revogada pelo governador Helder Barbalho no Diário Oficial.

Mas, justamente por sua efetividade, protestos também são historicamente reprimidos. De modo que é preciso saber que esse tipo de ação direta oferece alguns riscos e por isso é necessário agir de forma coletiva para reduzir vulnerabilidades durante os atos. 

Quando os manifestantes são pessoas negras, indígenas, quilombolas e LGBTQIAPN+, os cuidados devem ser maiores. Isso porque a polícia tem seus alvos preferenciais e costuma identificar pessoas dentro de determinados grupos étnicos e raciais como “ameaças à segurança pública”.

Conhecer direitos é essencial. E também é muito importante saber táticas de proteção que podem ser necessárias em algum momento de tensão. 

Neste texto vamos pensar em estratégias de segurança física, psicoemocional, jurídica e digital. Estar preparado é fundamental para garantir a própria segurança e a de outros manifestantes. Isso inclui planejamento estratégico, conhecimento de direitos, táticas de autoproteção, entre outras precauções.

Foto: Ianca Moreira

O que eu preciso saber?

 Para se manter em segurança antes, durante e depois das manifestaçõe é importante: 

  1. 1- Conhecer os espaços
  2. 2- Estar sempre em coletivo e cuidando uns dos outros
  3. 3- Saber seus direitos diante de uma abordagem 
  4. 4- Ter cuidados digitais
  5. 5- Capturar imagens com segurança 
  6. 6- Usar roupas que protejam 
  7. 7- Saber o que levar na bolsa
  8. 8- Pensar na segurança emocional
  9.  

As regras podem mudar de acordo com o público que compõe o protesto, a localização, clima, tensão política, entre outras especificidades. 

A advogada e antropóloga Maria Tranjan, coordenadora do Programa de Proteção e Participação Democrática da Artigo 19 – organização internacional voltada ao direito de liberdade de expressão –  afirma que quando o assunto é segurança em protestos é relevante e urgente considerar, antes de mais nada, a proteção coletiva.

“A grande maioria das recomendações relacionadas à segurança em protestos são recomendações de ordem coletiva. E essas são as proteções que a gente tem mais dificuldade de desenvolver. Porque quando sou eu sozinha sofrendo um potencial risco pela minha atuação política, eu individualmente desenvolvo ações que vão me deixar mais segura. Quando a gente está falando de um protesto, não é uma única pessoa que vai fazer uma ação que vai torná-la mais segura. Ela até pode fazer isso. Mas se as outras pessoas no entorno dela também não estiverem se mobilizando no sentido de estarem mais seguras individual e coletivamente, a gente vai abrindo brechas de segurança”, explicou Maria Tranjan.

Indígenas ocuparam a SEDUC no Pará e exigiram a regovação da Lei 10.820

Foto: Nay Jinknss

Conhecer os espaços

Para as mobilizações físicas é importante entender o espaço físico no qual a estamos realizando uma manifestação. Entender a geografia do local facilita a movimentação e a comunicação entre os manifestantes. 

A ativista ambiental e integrante da equipe de operações e logística da Escola de Ativismo, Melissa Meneses, afirma que é imprescindível saber se existem saídas de emergência e/ou alguma rota de fuga. Isso faz muita diferença na hora de elaborar uma estratégia de proteção. Lugares muito fechados ou sem rotas de saída podem se tornar perigosos em caso de confronto. O ideal é sempre escolher pontos estratégicos mais amplos e abertos. 

“É importante entender bem o caminho que vai fazer, saber as saídas, se há delegacias ou hospitais por perto. Tenha pessoas observando todos os perímetros, o que acontece ao redor. E se escutar barulho, tente ter calma para evitar correrias e pessoas feridas e pisoteadas”, explicou Melissa. 

É preciso identificar pontos de apoio, como locais para água e apoio jurídico e médico.  Saber onde encontrar insumos ou pessoas que possam ajudar caso alguém seja preso ou ferido é essencial. Isso pode fazer a diferença para manter a resistência, principalmente durante os protestos mais longos. Se essa manifestação durar muitos dias, é preciso preparar uma série de insumos para a manutenção da vida, como água, alimentos, lugar para dormir.

Também é necessário pensar em escalas de segurança. “Durante a noite não pode acontecer de todas as pessoas dormirem ao mesmo tempo sob o risco de ter alguma intervenção das forças de segurança. Pense em turnos para o dia e noite e coloque as barracas com visões estratégicas”, disse Melissa.

Esteja em coletivo e cuidando uns dos outros

A coletividade é um dos princípios mais importantes dos protestos. Além de fortalecer a luta, estar acompanhado protege a si mesmo e aos outros. Em meio a multidões, é mais difícil se perder ou ficar isolado quando se está acompanhado. Se alguém se machucar, um companheiro pode ajudar a sair da área de risco e buscar socorro.

Além disso, a repressão tende a ser mais intensa contra pessoas isoladas e estar em grupo reduz o risco de abordagens violentas. Esse cuidado é essencial quando o público do protesto já costuma ser alvo do sistema de segurança, como pessoas negras, quilombolas e indígenas. Em uma manifestação, esses grupos podem ser mais afetados pela violência policial. 

“Nesse caso é muito importante que a gente tente pensar em estratégias de segurança que sejam fáceis de compartilhar e saber como fazer essa comunicação para todo mundo. É  importante que essas formas de comunicar sejam mais próximas possível de como elas se comunicam em casa. Precisa ser uma linguagem simples e acessível. Quando a gente está falando de etnias que falam em línguas diferentes, a gente precisa também pensar em como traduzir essas informações para que todo mundo que está ali realmente consiga entender o que está acontecendo”, explicou a advogada Maria Tranjan. 

É importante também pensar em protocolos para crianças e idosos e pessoas com dificuldade de locomoção. Existem algumas experiências bem sucedidas nesse sentido, como fazer cordão de isolamento da manifestação no lugar onde estão as pessoas mais vulneráveis para garantir a integridade física delas. 

Nos atos que for participar, proteja as pessoas menores de 18 anos. Lembre-se que de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), essas pessoas não podem ser detidas como adultos.

Cuidados jurídicos: quais são seus direitos durante uma abordagem

É direito dos cidadãos realizar protestos. A advogada Maria Tranjan explica que na teoria não se deveria, pelos princípios internacionais nem pela legislação nacional, ter que pedir autorização para realizar uma manifestação. Mas isso não acontece na prática. 

“No Brasil a gente tem uma política, principalmente por parte das polícias militares, que se a manifestação não foi devidamente autorizada pelo Poder Judiciário, especialmente quando a gente está falando de ocupação de rodovia ou de espaço público, a polícia parte do pressuposto de aquela manifestação é ilegal, ainda que ela não seja legalmente falando, tanto internacionalmente quanto nacionalmente. Então é muito comum que se não há uma autorização judicial expressa, que as pessoas sejam detidas. E aí elas podem ser detidas tanto sobre o argumento de que aquela manifestação é ilegal, quanto sobre argumentos que na maioria das vezes são manipulados pelas forças de segurança pública, para dizer que essas pessoas estão impregnando alguma forma de violência”, disse Maria.

E se isso acontecer, existem recomendações que são relacionadas a esse momento da abordagem policial. Alguns cuidados podem evitar um agravamento de uma criminalização que já está acontecendo a partir do momento da detenção durante uma manifestação. 

É comum que aconteçam prisões em manifestações e por isso é importante sempre que nessa avaliação de risco prévia e durante uma manifestação, exista um advogado ou algum tipo de apoio jurídico, como a Defensoria Pública ou algum Centro de Advocacia Popular que possa fazer apoio jurídico se for necessário. Esse cuidado é importante para evitar que aconteça uma prisão. E se acontecer, que as pessoas saibam como agir. 

Como os manifestantes sabem que não estão cometendo ilegalidades, podem acontecer resistências a prisões em ações diretas. Mas se você for detido, mesmo sabendo da injustiça, evite entrar em confronto direto com os policiais e não entregue seu celular desbloqueado. “É ilegal o policial requisitar que você entregue seu celular desbloqueado, e muitas vezes se faz isso com uma forma de conter o andamento da manifestação. O ideal é que os nossos dispositivos estejam sempre muito seguros”, disse Maria Tranjan. 

A advogada explica que durante as abordagens é preciso fazer avaliação de risco.“Se eu estou sozinha, meus companheiros estão longe e o policial me aborda e pede meu celular desbloqueado, eu não vou falar que eu não vou entregar porque eu corro risco de sofrer uma violência maior. E se eu já fiz essa análise de risco prévia e já apaguei do meu celular coisas que poderiam ser sensíveis, é muito pequena a chance desse agente prejudicar meus companheiros, a mobilização e o movimento do qual eu faço parte”, explicou. 

Mas se durante a abordagem você está entre outras pessoas, há advogados ou representantes da Defensoria Pública ou do Ministério Público por perto, você está juridicamente respaldado, porque ali tem pessoas vendo que você não está desacatando o policial e nem tentando contra a integridade física de ninguém.

Foto: Nay Jinknss

Tenha cuidados digitais

Com o risco de ter o celular confiscado, é importantíssimo ter uma senha forte. Esse cuidado deve ser redobrado quando você está em uma manifestação, já que no seu celular provavelmente é possível acessar informações da rota daquela manifestação, redes sociais, planejamentos para os próximos dias, identificação das lideranças, além de outros dados. 

Senhas fortes devem ter letras maiúsculas e minúsculas, números, caracteres especiais, sinais de pontuação, língua estrangeira e ser trocada com uma certa frequência. Para ser segura, a senha não deve conter dados pessoais (nome, sobrenome, data de aniversário), nem dados de familiares ou pets. Além disso, quanto mais curta a senha, mais fácil para decifrá-la.

Para se proteger de vazamentos de dados e roubos de contas, é importante usar recursos como a autenticação de dois fatores, também chamada de autenticação em duas etapas. Ela funciona com a sua senha e mais uma etapa de segurança. Desta forma, mesmo que alguém saiba a sua senha, não vai ter acesso imediato à sua conta. O recomendado, entretanto, é que o usuário use uma senha forte e diferente e única para cada tipo de serviço, assim como o PIN. Mas sempre lembrando que o melhor são senhas seguras e únicas. 

Capture imagens com segurança

Apesar do risco de ter o celular confiscado, o lado bom de tê-lo em uma manifestação é a pela possibilidade de registrar a atuação abusiva das forças de segurança pública. Então se em uma mobilização o seu companheiro de luta está sofrendo algum tipo de abuso, você deve filmar. Mas como a gente faz isso com uma forma mais segura? Em primeiro lugar, evitando se identificar no vídeo.

Na hora de fazer uma filmagem, tenha cuidado de estar entre outras pessoas para não ser identificado como o responsável pelo registro de imagem. Seja discreto, não dê destaque ao celular, deixe-o próximo ao corpo e esteja em uma distância segura. Claro que isso também faz parte de uma análise de contexto e ao tornar evidente que você está filmando você pode contribuir para coibir uma violência – ao mesmo tempo em que expõe ao risco de sofrer uma.

Ao disponibilizar essa imagem é importante não postar em uma rede social pessoal, mas sim do coletivo, por exemplo. Se não existe uma conta do movimento, outra estratégia é marcar um horário e postar, várias pessoas, ao mesmo tempo para ninguém tenha certeza de quem captou a imagem.

Qual roupa usar?

Use roupas que te protejam, mas que sejam confortáveis e adequadas para a sua realidade. No geral, a recomendação é uso de tênis e camisas de manga longa com tecido mais grosso, mas isso depende da região, cultura e condições climáticas. 

Usar um calçado confortável que te permita correr, se necessário, é mais adequado. Se não der pra ficar de camisa grossa que pode proteger de balas de borracha e de reações químicas, tenha um casaco por perto para vestir rápido se for necessário. 

Também é importante ter um lenço no pescoço para cobrir o rosto se uma bomba de gás for lançada. Isso pode amenizar os efeitos da substância. Coloque a bolsa sempre para frente para evitar puxões. 

Mas o que levar na minha bolsa?

Levar uma bolsa bem equipada pode fazer toda a diferença para garantir sua segurança e bem-estar durante um protesto. Tenha sempre: 

– Documento pessoal 

  • – Celular carregado 
  • – Água 
  • – Guarda-chuva ou capa de chuva
  • – Dinheiro em espécie
  • – Casaco de manga comprida e de tecido grosso
  • – Máscara PFF2/N95 ou lenço (protege contra gás lacrimogêneo) 
  • – Contato de alguém de confiança anotado em um papel 
  • – Saco plástico (para proteger dispositivos e/ou documentos da chuva)

Cuidados psicossociais

É importantíssimo pensar na segurança emocional das pessoas que estão participando de manifestações. A violência policial no Brasil é uma realidade preocupante, especialmente em contextos de protestos, onde há histórico de repressão. E a presença de agentes armados pode gerar gatilhos em muitas pessoas, especialmente em quem já vivenciou situações de abuso ou violência policial. 

Isso pode levar ao medo, ansiedade e até crises emocionais, tornando o ambiente do protesto mais tenso e potencialmente perigoso. 

“Isso afeta especialmente quando a gente está falando de pessoas não brancas. Essas pessoas podem ter gatilhos com o som da bala de borracha, com o gás lacrimogêneo. Não é só o gatilho físico que o gás lacrimogêneo gera, mas um gatilho emocional, que a pessoa pode ter um ataque de pânico, pode ter uma crise de ansiedade. Então, tem também uma parte de saúde mental que precisa ser elaborada coletivamente”, afirmou Maria Tranjan. 

Cuidar da saúde emocional nas manifestações é essencial diante da possibilidade de violência e por isso é importante se preparar e refletir sobre seus limites. Estar acompanhado de pessoas de confiança, usar técnicas de respiração profunda para se acalmar e levar algo que te traga conforto, como um amuleto ou um aroma, pode ajudar. 

Se sons altos, multidões ou agentes armados são um gatilho para você, tente se manter em áreas mais abertas e longe da linha de frente. Após o protesto, descanse e, se necessário, procure apoio emocional ou terapia.

Foto: Nay Jinknss

Lutar sempre, mas com segurança

“Para a luta continuar, temos que ser resilientes, ter atenção, postura, firmeza. Tudo isso influencia o movimento. Tem que lutar com segurança, se auto protegendo e protegendo as pessoas ao seu redor. A luta em protestos é legítima, válida, pacífica e fundamental para a mudança social”, afirmou Melissa, da Escola de Ativismo.

“Mesmo diante das infinitas dificuldades que tem se colocado para essas manifestações, continuem. A gente precisa disputar esses espaços, essas narrativas. E só nas ruas, só nas redes, só nesses processos de mobilização a gente consegue, de fato, imprimir alguma mudança”, disse Maria Tranjan, da Artigo 19. 

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Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

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