Por Bárbara Poerner

Em Anchieta (SC) e região, mulheres campesinas fortalecem a agroecologia e o feminismo camponês popular desde a redemocratização do Brasil ao preservarem culturas tradicionais

Movimento de mulheres camponesas lutam contra a monocultura guardando linhagens genéticas ancestrais l Foto: MMC/Reprodução

 Há sessenta anos, Zenaide Millan da Silva preserva as sementes de sua família. Ela nasceu e mora na capital das sementes crioulas do Brasil: Anchieta, no extremo oeste catarinense. A guardiã, que faz parte do Movimento de Mulheres Campesinas (MMC) ao lado de outras dezenas de mulheres da região, ajuda a garantir a autonomia campesina e a fortalecer a agroecologia, ao preservar culturas ancestrais que também significam o futuro da biodiversidade.

A definição das sementes crioulas pode partir do ponto de vista científico, mas também político, explica Juliana Bernardi Ogliari, engenheira agrônoma, mestre e doutora em genética e melhoramento de plantas. Em síntese, a pesquisadora diz que elas são “aquelas sementes multiplicadas, selecionadas e preservadas por muitas gerações de cultivo”. O que acontece é que muitas delas são atemporais e torna-se impreciso definir exatamente qual sua idade. 

 “Quando os colonizadores chegaram aqui, já existiam populações indígenas, como os guaranis, que utilizavam variedades de milho”, continua ela, que cita como exemplo alguns milho pipoca, que concentram características particulares que apontam esse tempo distante e “não tem uma ancestralidade comercial”.  

Foi essa potência milenar que encantou, também, Luana Rockenbach. Filha de agricultores, ela deixou sua cidade natal, Itapiranga, para estudar Letras em Florianópolis. Em pouco tempo, a saudade do campo apertou e resultou em um mochilão pelo Brasil e parte da América Latina. De bicicleta e carona, a guardiã levava, trazia, trocava e conhecia a diversidade de sementes crioulas.  

“Comecei a plantar mais variedade de amendoim, melancia, e outras culturas, e abriu um universo de quanta variedade crioula existe”, conta. 

A motivação de Luana para se aprofundar no cultivo e manejo das sementes crioulas veio a partir da consciência que tem essa biodiversidade que está se perdendo e como todas as regiões estão tomadas pelo agronegócio. “São os monocultivos que desterritorializam as territorialidades”, define. 

A Revolução Verde e os impactos nas sementes crioulas 

Na década de 1980, a forma de ser agricultor mudou drasticamente. À época, o Brasil recebia as promessas da Revolução Verde, movimento encabeçado pelos Estados Unidos que introduziu um pacote tecnológico no campo por meio da mecanização, monoculturas e uso de fertilizantes químicos, agrotóxicos e sementes geneticamente alteradas. A palavra de ordem tornou-se produtividade e a justificativa era otimizar a produção de alimentos para acabar com a fome no mundo.

 Anos depois, o montante de grãos realmente cresceu. Entre 1975 e 2017, a produção, que era de 38 milhões de toneladas, cresceu mais de seis vezes, atingindo 236 milhões, enquanto a área plantada só dobrou. Contudo, a fome, insegurança alimentar e desnutrição continuam crescendo em todo o planeta, inclusive no Brasil, que concentra 33 milhões de pessoas esfomeadas.  

Juliana explica que, com a Revolução Verde, muitos agricultores criaram vínculos de dependência com as companhias do agronegócio e a preservação das sementes crioulas foi diretamente afetada. “Você está na mão das empresas que produziram o material genético para isso. O agricultor teve que reaprender uma cultura diferente, e as tradicionais acabaram sendo abandonadas”. 

Hoje, é difícil encontrar grandes áreas sem a transgenia. Os dados da Embrapa mostram que a cada 100 hectares plantados com soja hoje no planeta, 80 são de sementes com genes alterados. No caso do milho, são 30 para cada 100. Em território nacional, 92% da soja é transgênica, 90% do milho e 47% do algodão. Somamos a isso o advento da monocultura e vemos um país que tem 36 milhões de hectares ocupados por soja, o que equivale a 4,3% do território nacional – área da República do Congo e superior a países como Itália, Vietnã e Malásia. Metade desse total está no Cerrado.  

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Na visão de Luana, é difícil competir com “essa facilidade que o agronegócio oferece, onde você passa o veneno e não tem muito trabalho”. Ela argumenta que houve um discurso que as sementes crioulas são menos produtivas e que as outras sementes ‘tecnológicas’ produzem melhor. Juliana tem avaliação semelhante. “O novo e o tecnológico são sempre colocados como a melhor opção em todos os sistemas, mas isso nem sempre é verdade”. 

Com o avanço dos transgênicos e agrotóxicos, os guardiões de sementes enfrentam muitas dificuldades. “Nas terras dos meus pais, três vizinhos plantaram transgênicos e tinha que cuidar muito quando eles plantavam, para não misturar”, conta Luana. A agricultora se refere a um processo que pode acontecer com todo guardião: a contaminação das suas sementes tradicionais. 

 “O que temos de contrapartida com a Revolução Verde e a Revolução dos transgênicos é a perda de diversidade. Quando uma variedade crioula é contaminada por transgenia, além perder as próprias características, muitas vezes ele [o agricultor] é sujeito a questões jurídicas, pois ele é ‘culpado’ por ter tido sua variedade contaminada, já que gene sequenciado é patenteado [pelas grandes companhias] e isso tem uma proteção intelectual”, diz ela, ao citar um caso que aconteceu no Canadá, onde um agricultor teve sua lavoura contaminada e foi processado pela Monsanto. 

A pesquisadora destaca que com o abandono das variedades crioulas, a própria ciência é impactada negativamente. Muitas das sementes tradicionais conservam características genéticas únicas, que podem ajudar em avanços na medicina, saúde e na própria agricultura. 

 “Existe a perda da biodiversidade e da tradição e cultura deles, mas não é só isso. A erosão genética tem um impacto não só no modo de vida das pessoas, das tradições [e identidade] que elas cultivavam, mas também questões biológicas. A ciência perde com isso”.

Movimento das mulheres camponesas olha as particularidades da vida no campo partindo da lente de gênero  l Foto: Marcello Casal Jr. /Agência Brasil

O Movimento de Mulheres Camponesas

 Em contrapartida à pressão no campo e aos impactos negativos da transgenia, monocultura e destruição da biodiversidade, surgem movimentos importantes de resistência. O livro Mulheres Camponesas, iniciativa do ICMBio, contextualiza o surgimento do MMC no oeste catarinense. Alguns fatores culminaram para o surgimento da entidade desde as décadas de 1960, como o intenso êxodo rural e a fragmentação fundiária, a subsequente ao pacote de modernização do setor agropecuário. Dados do IBGE de 1995 mostram que, em 1975, existiam 26.936 estabelecimentos agropecuários com área inferior a 10 hectares; em 1980 passaram para 32.613; em 1985 esse número subiu para 40.100. 

Essa divisão das áreas do campo, aliada às consequências da Revolução Verde,   mudaram a forma da família agricultora e a manutenção da vida campesina. As mulheres, que já estavam presentes em diferentes movimentos sociais na esteira da redemocratização, como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), sindicatos e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), muitas vezes não tinham plena voz ou eram subalternizadas nos debates e decisões. Isso foi mais uma motivação para se articularem em torno de suas demandas e interesses, que envolviam particularidades da vivência como mulheres do campo e discussões a partir da lente de gênero. 

Tudo isso ocorreu durante a década de 1980 em diante, com diferentes eventos que forjaram o MMC de hoje. Oficializado em 2004, a entidade aglutinou lutas nacionais de todos os territórios rurais e firmou um projeto campesino, popular e feminista. Desde o início, também houve a defesa da proteção das sementes crioulas. Por exemplo, em 2003, na cidade de Curitibanos, o MMA (Movimento de Mulheres Agricultoras, antigo nome do MMC) realizou um seminário sobre a agricultura agroecológica no qual as participantes socializaram as sementes crioulas produzidas e recuperadas em suas terras. 

Por isso que, não ao acaso, muitas culturas tradicionais podem ser encontradas nos quintais dessas guardiãs. São os chamados quintais produtivos. Zenaide conta que o MMC busca fortalecer a biodiversidade desses espaços, justamente porque entende que grande parte das campesinas estão ali. Ela também aponta como “o Movimento ajudou as mulheres a entender a forma de guardar, para que continue mantendo a qualidade dessas sementes”.  

“Você ter a semente é uma coisa, mas ter ela com qualidade é outra, e o movimento trabalhou pras mulheres pudessem ter uma produção boa, de boa germinação. Às vezes, você colhe a semente de qualidade mas você não armazena ela num local adequado e isso é prejudicial”, explica.  

Contudo, Luana destaca que as mulheres ainda sofrem os impactos da concentração de terras e da própria estrutura machista. “Aí é onde o feminismo tem que chegar. Que [elas façam parte de] decisões participativas, de como será plantado, se não a mente masculina e machista do agronegócio é da monocultura”. A guardiã escreveu mais sobre isso em um artigo, intitulado Desafios e ideias para o resgate, produção, multiplicação e uso das sementes crioulas.

No trabalho, Luana escreve que “as sementes, as mulheres e a juventude são chaves para projetar um modelo de produção mais sustentável, igualitário e responsável com a biodiversidade. […] Soa repetitivo, mas é necessário lembrar que sem sementes crioulas e sem feminismo não há agroecologia”. Zenaide acrescenta que preservar as sementes crioulas é garantir que haja futuro.  

“O objetivo é que as próximas gerações consigam ter uma alimentação diversificada, não só três ou quatro tipos de grãos, e isso ser a base de toda a alimentação das pessoas. Quanto mais pessoas tiver [acesso à] essa diversidade, mais qualidade de vida”, finaliza.

Bárbara Poerner é jornalista.

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