Cristiano Silva escreve sobre sua passagem pelo “sistema” e a fundação do coletivo de sobreviventes que quer corroer as engrenagens das prisões
Por Cristiano Silva*
Iniciar este texto requer estrutura. Cada lembrança que acesso reflete diretamente no meu corpo e traz à tona memórias de dor e sofrimento. Os efeitos dessas recordações disparam diversos gatilhos. Enquanto digito cada palavra que vai neste breve artigo, meus olhos ficam marejados, minha garganta forma um nó e resseca. As longas vias penais percorridas me trouxeram sofrimento, experiências intensas, dolorosas, traumatizantes e provocaram feridas profundas que vão para além da concretude do corpo.
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Tudo começou em 12 de junho de 2010. Depois de chegar do trabalho, fui abordado por policiais civis com um mandado de prisão na entrada do prédio onde meus pais moram. Acusado de um crime de ordem financeira enquadrado nos artigos de furto qualificado e formação de quadrilha.
No momento da prisão, minha companheira, meus filhos, meus pais e vizinhos assistiram àquelas cenas perplexos e desesperados.
Meu filho, com sete anos na época, teve uma crise de choro ao ver o policial me algemar; esse choro ecoa na minha mente até hoje.
Minha filha tinha apenas um ano de vida, a tenra idade a poupou daquele momento traumatizante, mas quase apagou de sua memória a minha presença paterna, por causa do longo cumprimento da pena.
Quando meus olhos encontravam suas expressões faciais, via que eram de pura tristeza e dor. Lembro dos olhos da minha companheira e dos meus pais. Eles doíam mais do que tudo. As algemas que apertavam e cortavam os meus pulsos, a vergonha e as humilhações na presença de todos, tudo isso não era nada diante daqueles olhares desolados.
“Sobreviver aos ataques letais do sistema penal brasileiro é uma missão quase impossível“
Embora seja terapêutico dividir as cargas emocionais advindas daquele momento — por meio de uma escrita viva e memorial —, minha proposta não é me deter somente no momento da minha prisão. Pretendo discorrer brevemente sobre a permanência e focar mais nas questões pós-cárcere e os inúmeros desafios impostos pela ressocialização e como transformar a dor em luta. Nesse ponto falarei também do coletivo de egressos EuSouEu – A Ferrugem, que visa corroer as estruturas do sistema prisional, fortalecer famílias, egressos e presidiários.
Estrutura desigual
O encarceramento causa danos duradouros. Ressalto três: a criminalização do sujeito e de seus familiares; a sentença; e a segregação social. Essa tríplice penitência opera com eficácia em todos os campos existenciais do(a) penitente e de seus familiares, que sofrem perenemente os danos da prisão.
A prisão é um ambiente estigmatizante de desesperança e reducionismo, de contágio patológico, de morte e sofrimento.
Sobreviver aos ataques letais do sistema penal brasileiro é uma missão quase impossível e muitos sucumbem diante da sentença aplicada por um conjunto jurídico que vai desde os modus operandi das polícias até as decisões dos tribunais de justiça.
Todo rigor da lei e ordem estão ancorados no racismo, machismo, no patriarcado e na seletividade penal. Essas superestruturas definem a tipificação do sujeito de acordo com a cor da sua pele, renda, endereço e gênero.
Eu, no entanto, antes daquele momento aterrorizante da prisão, levava uma vida comum.
Eu, um homem afrodescendente, fruto de uma relação miscigenada entre um pai branco e uma mãe preta, vivia as restrições impostas pelas dificuldades socioeconômicas e com uma visão crítica, mas pouco aprofundada. Seguia o fluxo do capital e não me envolvia muito com a militância.
Sabemos, e isto é fato, que milhares de famílias pretas, periféricas e empobrecidas não puderam dar os suportes necessários aos seus por causa de políticas desiguais na terra dos privilégios, das classes dominantes e do genocídio.
No meu caso, ainda que debaixo de muito sacrifício obtive apoio e graças aos esforços contínuos dos meus pais. Então pude seguir com meus estudos e, concluí o ensino médio em uma escola estadual na zona oeste do Rio de janeiro, no bairro de Realengo, onde moro.
Prisão
Quando fui preso havia dois equipamentos prisionais, um sob gestão da Polícia Civil (Polinter) e o outro da Secretaria de Administração Penitenciária (Seap). Tudo é prisão, mas com algumas especificidades. Na Polinter, os papos de melhoria aconteciam com mais facilidade, as negociações não exigiam muitos critérios para chegar até os gestores da carceragem, era só ter grana. Quanto mais cheia a carceragem, maiores eram os lucros. Afinal, tudo estava pautado no poder de compra do apenado. Mas também, não faltavam os desenrolados — esse termo pode significar muitas coisas diferentes dentro da realidade prisional e, no decorrer do texto, explicarei seus diversos significados.
Imagine só: era um espaço, que mais parecia uma masmorra da Idade Média, projetado para 100 pessoas, mas era ocupado pelo triplo. Só de lembrar, sinto o cheiro daquele lugar. Diversos corpos pendurados e sustentados por lençóis amarrados na grade. No chão da carceragem formava uma espécie de tapete humano. Para chegar no boi, o banheiro da cela, inevitavelmente pisávamos nos corpos espremidos. Recentemente, todas as carceragens foram desativadas por causa da insalubridade aguda.
O Complexo de Gericinó abriga um dos maiores conjuntos prisionais do país, com mais de 25 unidades. As mais conhecidas pelo senso popular são as unidades de, Bangu I, II e III. Lá o desenrolado e os papos de melhoria são mais criteriosos, a hierarquia lá dentro é levada ao pé da letra. Alcançar acordos no interior dos anéis penitenciários não é uma tarefa fácil, exige influência e muita grana.
Vivenciar esses dois espaços e presenciar diversas situações sinistras me conduziram a entender cada vez mais como nós somos um produto, um objeto. Não somos donos nem mesmo dos nossos corpos, das nossas vidas. Além disso, percebi quem é o verdadeiro criminoso nessa história toda: “o Estado”, que ao longo da história tortura, mata, some com vidas, apaga memórias, viola e nega direitos. E dentro da prisão, o crime institucionalizado é legitimado pelas diversas instituições de controle social. E assim a legalidade bate palma com as mãos sujas de sangue.
Nós, resistimos
Quanto mais eu entendia as verdadeiras intenções desses equipamentos, mais eu queria alertar os meus companheiros de sofrimento do plano tenebroso arquitetado para prender e dizimar nosso povo. Foi então que nos organizamos em um pequeno grupo para discutir e pensar como poderíamos confrontar e danificar tais engrenagens. Carregamos nossa utopia, sabíamos o tamanho das dificuldades. Afinal, mudar completamente todo um sistema leva anos ou até mesmo séculos, na melhor das hipóteses. Contudo, percebemos que a revolução estava ocorrendo na nossa forma de pensar. O desafio era como agir dentro daquelas estruturas triturantes.
Éramos apenas números, e arrumar problemas com a massa carcerária ou com a gestão da unidade é sinônimo de desenrolado. Esse conceito dentrodo sistema tem diversos significados. Por exemplo, as leis e os estatutos internos regem as relações entre os presos e a gestão da unidade e a quebra dessas regras leva o infrator para uma espécie de tribunal, liderado por presos que constituem a hierarquia interna, é uma comissão que define o perdão ou a culpabilidade e o tipo da sanção a ser imposta sobre o réu. Isso é desenrolado.
Darei alguns exemplos: ninguém acha nada na cadeia, sempre tem um dono, caso alguém ache um o objeto e não comunique nas galerias isso dá um maior problemão; no pátio de visita cada preso tem que ficar focado na sua família, caso contrário alguém poderá se sentir invadido por atitudes ou olhares, que podem ser entendidos e julgados como ações libidinosas. Citei duas, mas são diversas situações que podem levar um preso ao tribunal.
“Quanto mais eu entendia as verdadeiras intenções desses equipamentos, mais eu queria alertar meus companheiros de sofrimento do plano arquitetado para prender e dizimar nosso povo”
Mas o desenrolado não é só sobre sentenças. Ele pode ser convocado para anunciar mudanças de regras nas leis e nos estatutos regimentais. Na maioria das vezes esses desenrolados aconteciam no miolo, que é o centro da cela, de onde assistíamos os desdobramentos e os resultados finais. E estar no miolo por causa de alguma quebra de regras, é pânico total e os desfechos na maioria das vezes eram catastróficos.
Então segui com minha luta de sobrevivência, levando comigo meu projeto político de como poderia ajudar do lado de fora dos muros pessoas egressas e seus familiares. Mesmo com tantas questões, eu já tinha rompido com a minha inércia.
Minha família me ajudou muito a manter meus projetos pós-cárcere e ao me visitar traziam livros. Alguns eram barrados por causa do volume de páginas e espessura, não me recordo dos títulos que foram impedidos de entrar. Mas, na cabeça dos guardas, e em nome da segurança subjetiva de cada plantão, a preocupação não era com o conteúdo do livro e sim com algum objeto ilícito que poderia estar escondido dentro.
Mesmo assim, eu continuava a minha busca por conhecimento. O livro que eu mais li e pesquisei foi o Vade Mecum, um compilado de leis, assim como outras publicações na área das ciências jurídicas. Meu intuito de confrontar o massacre legitimado pelo poder público nutria minha gana em aprender a enfrentá-lo. Entretanto, nessas visitas, os desgastes emocionais eram gigantescos e tão severos que em muitas das vezes eu achava melhor ficar na menor (gíria usada para expressar mais observação e menos reação).
Visitas no sistema prisional fluminense são totalmente estressantes. Os esculachos, os constrangimentos e tantas outras coisas transformam esse dia marcado no calendário de cada visitante em “o dia do massacre”. Repito, lutar por direitos estando dentro do sistema prisional é bem complicado, e é preciso analisar se isso encurtará os espaços conquistados pelos presos junto à gestão da unidade. O sistema prisional fundamentou-se em códigos e regras sociais, só que lá dentro é muito mais (in)tenso e neurótico.
O processo
Nesse ínterim, no meu cotidiano prisional, resolvi agir em relação ao meu processo. Após o confere, momento em que os guardas fazem a contagem dos presos, e no bater dos cadeados, peguei uma folha de papel ofício — isso já dentro do cubículo onde estava cumprindo a pena — e montei uma peça a próprio punho, solicitando minha progressão de regime. Tudo isso, após trocar ideias sobre os possíveis caminhos jurídicos em direção a liberdade, as longas leituras sobre direito constitucional e criminal e o auxílio dos presos mais antigos e experientes no assunto.
Alguns companheiros não acreditavam nessa possibilidade, mas eu estava cansado de esperar pela Defensoria Pública, os rodízios de atendimento às vezes chegavam a ser trimestrais e minha progressão para o semifechado (uso este termo porque as prisões fluminenses semiabertas não são tão diferentes das totalmente fechadas) já tinha vencido. Entreguei o documento à minha companheira e a instruí. Ela levou na seção de protocolos na vara de execuções penais no Centro do Rio de Janeiro e protocolou o pedido. Compartilhei essas informações e muitos fizeram o mesmo procedimento, pois boa parte dos presos da galeria estavam também com suas progressões vencidas.
Era um dia igual aos outros, o dia a dia na prisão parece uma fita que é rebobinada o tempo todo e traz uma sensação de que o relógio trabalha de forma diferente. Por isso, o dia da visita é a maior responsa e é importantíssimo, mesmo para quem não recebe alguém. Então fui encher minhas garrafas pet e os baldes para armazenar água; na cadeia a água só cai duas vezes ao dia, perder esses dois momentos é ficar na sequidão até o próximo dia.
De repente, ouvi chamar meu nome, estava próximo de cair a brilhosa (quentinha fornecida nos presídios do Rio de janeiro). Informaram que minha transferência tinha chegado. Os demais companheiros de cela e galeria vibravam e entenderam a potencialidade do conhecimento.
Da escrita até chegar à transferência para o regime semifechado levou cerca de 20 dias. Ali percebi o quanto eu poderia auxiliar e ajudar muitos deles nessas questões e em outras, conforme as possibilidades.
Na longa travessia penal, passei pela visita periódica familiar e pelo trabalho extramuro e então alcancei a condicional, depois de 5 anos e dois meses. Por onde passei levei esses argumentos, que o conhecimento pode arrebentar grades e cadeados. Finalmente senti a suposta brisa da liberdade e eu estava de volta à correria social.
Liberdade cantou?
Nos primeiros momentos anestesiado, fora de órbita, festejei com toda família, tentando recuperar os anos sequestrados pelo sistema. Por algumas horas esqueci os desafios, as lutas e as barreiras que teria de enfrentar. Mas é assim, a cadeia é tão sinistra que ela é capaz de assumir todas as possibilidades da sua existência. Sua extensão aparece na ressocialização, na sentença social e na velha dialética punitiva do “CPF cancelado” e do “bandido bom é bandido morto”.
Veja, eu, homem preto e periférico, casado e com dois filhos, marcado pelo carimbo da ressocialização, na condicional, sem emprego e sem renda, carregando os efeitos nocivos da prisão. Nos percursos da vida reencontrei algumas pessoas que tiraram uma etapa (tempo de prisão), comigo no conjunto prisional. Dialogamos muito sobre as imensas dificuldades de empregabilidade. Como alguns já tinham conseguido um emprego, compartilharam como é difícil mantê-lo. Para quem está na condicional ou monitorado eletronicamente é preciso ir ao patronato da Seap de três em três meses para marcar presença. A cada ida para assinatura era necessário um atraso ou inventar uma história no emprego.
A saga da ressocialização é presente em todos os momentos. Tem uma galera que vem do interior do Estado do Rio de Janeiro trimestralmente para assinar. Quantas pessoas não conseguem cumprir as medidas por causa das restrições econômicas, habitacionais, culturais, sociais e acabam tendo um novo mandado de prisão expedido para regressão de regime. Essa tal ressocialização é um termo expectorado pelos pulmões da hipocrisia social, onde a sociedade narcótica consome abusivamente esta crença de que cadeia é ressocialização. Nesses termos, esquecem o tipo de socialização que o Estado aplica sobre a população mais vulnerabilizada — uma sociabilidade carregada de racismo, violência, segregacionismo e preconceitos, tudo fora dos preceitos da isonomia institucional.
A ferrugem
Em meio a tantos horrores, eu precisava colocar em prática aquele projeto político pensado nos intramuros, ajudar pessoas egressas e seus familiares. Apesar de que quando saímos da cadeia não queremos tocar muito no assunto e nem ser identificados como ex-presidiários. As exposições geram fragilidades emocionais, o cenário punitivista e o clamor social contribuem impiedosamente e sempre manifestarão dúvidas, desconfiabilidade, ódio, medo, insegurança e indignação contra os(as) etiquetados(as).
É nesse cenário que eu e mais alguns irmãos e irmãs de sofrimento, aproximadamente umas vinte e seis pessoas, passamos a nos encontrar quinzenalmente na Praça da República, no Centro do Rio de Janeiro, para colocarmos em prática nosso projeto político e nos organizarmos.
A partir de nossas construções, em 18 de janeiro de 2017, formamos o coletivo EuSouEu- reflexos de uma vida na prisão.
Nossa proposta estava ancorada em amenizar os sofrimentos dos familiares quando o assunto era a falta de informações sobre o(a) preso(a).
Além disso, nosso objetivo era facilitar o entendimento nas leituras de processos, construir uma rede de apoio para evitar maiores transtornos emocionais, viabilizar acesso à justiça de forma descomplicada e fornecer o maior número possível de informações aos familiares sobre seus direitos e os dos(as) custodiados(as). Atualmente passamos de “reflexos de uma vida na prisão” para EusouEu – A ferrugem.
Sem perder de vista o nosso foco inicial, assumimos uma postura de maior incidência política e educacional, pois queremos enferrujar as engrenagens de um Estado penal e mortífero, que ceifa diariamente vidas e sonhos. Nossa meta é interromper esse fluxo encarcerador e promover novas possibilidades e compartilhar conhecimento para todos(as) aqueles(as) que foram atravessados(as) pelo sistema prisional.
“Queremos enferrujar as engrenagens de um Estado penal e mortífero, que ceifa diariamente vidas e sonhos.”
No campo político participamos de audiências públicas para ampliarmos o debate e trazer um olhar empírico de dentro do sistema para fora e propor ideias colaborativas e de protestar contra decretos e projetos de lei que ferem os direitos dos entes privados de liberdade e de seus familiares. Já no educacional elaboramos um projeto chamado de “Educação Que Liberta”, no bairro de São Gonçalo, região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, para atender pessoas que foram atravessadas direta ou indiretamente pelo sistema prisional fluminense. O intuito é fortalecer esse público por meio de um ensino emancipatório, o objetivo do projeto é prepará-los(as) para a prova do Encceja e obter a certificação de conclusão dos ensinos fundamental e médio.
Por fim, encerro este extenso texto reafirmando a ineficácia da prisão. Ela afeta mentes e corpos, fragmenta identidades e criminaliza familiares. Seus agentes ressocializadores orquestram uma sinfonia da morte entre as ciladas sutis da reincidência e do brutal dogma estatal. Todos esses aparatos violadores e violentos estão precisamente expressos no verso penal “ressocializar para o futuro conquistar”. Essa frase que chamo de verso penal, esconde um projeto político racista e bem estruturado, consolidado em interesses lucrativos. Afinal, a cadeia é um órgão público e como toda máquina pública necessita de capital e a fonte desses recursos somos nós, os indesejáveis, os matáveis e os economicamente inviáveis. E é justamente nesta perspectiva ressocializadora, que o Estado segue negando e violando direitos. Suas políticas seguem pautadas na certeza da reincidência. De modo que, investem agressivamente e maciçamente nos contêineres da privação, para manter a lógica do poder e do controle de corpos carimbados por uma subcidadania.
*Cristiano Silva é cofundador da associação EuSouEu-A Ferrugem.