*Mulheres da Comunidade do Coque, no Recife, se organizam para propor uma fotografia que se contraponha aos registros feitos pelo machismo e o racismo
Texto e fotos: Coletivo Revelar.si
Pensamos muito – e por muitos anos-, mas não há um modo de resumir ou definir o Revelar.si.
Somos muitas, somos diversas. Começamos como um coletivo de fotógrafas da comunidade do Coque (Recife/PE), mas hoje somos mais.
Somos um coletivo de fotografia e cuidado, que se iniciou com 5 jovens que tinham o desejo de aprender fotografia, mesmo com poucos recursos. Essa caminhada existe há quase cinco anos e não pretendemos nunca parar, pois o coletivo nos motiva e impacta nossas vidas.
Além de desenvolver as habilidades artísticas, atuamos com produção, fotografia, oficinas formativas, ensaios fotográficos, modelagem, desenho, colagem, artesanato e muitas outras coisas.
Somos todas mulheres, na maioria negras e moradoras do mesmo território. Foi através dessa condição compartilhada de ser mulher no Coque que resolvemos criar o coletivo. É a nossa forma de resistir às dificuldades que se impõem nas nossas vidas e de honrar nossas ancestrais, nossas mães e mulheres que ergueram nossa comunidade e a mantêm até hoje.
É uma das formas que encontramos de desconstruir o estigma que cerca esse lugar. É a nossa forma de comunicar, de mostrar ao mundo que existimos, resistimos e estamos cansadas de que falem por nós.
(Re)tratamos questões próprias à mulher, das mulheres que como nós habitam os territórios periféricos, sempre tendo cuidado e atenção às dores inerentes à essa condição. Aliamos nosso trabalho de criação, com nossa necessidade de nos relacionarmos com nossa comunidade e com o mundo. E, ao mesmo tempo, vamos nos construindo e reconstruindo nesse processo.
O trabalho do coletivo está permeado pelas nossas vidas, emoções, sensações, aprendizados, revoltas, dores e paixões. Utilizamos a fotografia e a colagem como ferramentas de criação, convertidas em instrumentos ético-políticos de construção de uma arte feminista negra periférica. Dessa forma, contamos nossa história utilizando uma narrativa própria que contesta o imaginário e o estigma aos quais temos sido submetidas por séculos.
Para isso, nos reunimos ao menos uma vez por semana no Neimfa (Núcleo Educacional Irmãos Menores de Francisco de Assis), organização social fincada no Coque há 26 anos. Esses encontros abordam temas como “mulher negra”, práticas de cuidado, técnicas de fotografia e edição de imagens, e reflexões sobre sexualidade. Nessa perspectiva, já fizemos reflexões sobre identidade (individual e coletiva), território, raça e racismo. A discussão sobre raça, nesse caso, é permeada pela dimensão de gênero, uma vez que ser negra no Brasil traz significados específicos para as mulheres.
Como profissionais do campo da fotografia, é um processo de empoderamento — entre nós e com as mulheres com quem atuamos. Numa cena dominada por homens, o Revelar.si coloca as mulheres em outro posicionamento na fotografia.
Ao invés de sermos apenas o produto delas, nos tornamos as produtoras. Um coletivo somente de mulheres para mulheres, no intuito de despertar e capturar aquilo que mais nos toca, com um olhar totalmente diferente do que habitualmente se costuma fotografar sobre a favela e sobre as mulheres negras.
Trazemos um olhar mais sensitivo, um olhar de dentro. Estamos propondo que não apenas nós possamos ocupar lugares outros na fotografia, mas também ir para que outras mulheres negras também percebam a possibilidade de ocupar esses outros lugares, que elas vejam beleza em seus corpos e em sua comunidade.
Em nossas oficinas e ensaios fotográficos, já tivemos a oportunidade de estar ao lado de mulheres potentes, mas que não se davam conta disso. Em outros casos, conhecemos mulheres que sabiam bem de sua força, mas estavam muito cansadas para parar e pensar sobre isso.
Em meio a tantas trocas, produzimos registros inundados de simplicidade e abundância, presença e ausência, mas, sobretudo, muita beleza. Em algumas de nossas oficinas, percebemos, no meio do caminho, que a missão seria mostrar a beleza oculta das mulheres.
Às vezes, as mulheres e meninas com quem trabalhamos não conseguiam enxergar essa beleza, por não serem tão bem representadas nas fotos que costumamos ver por aí afora. Se você não se vê e não é mostrado como belo, logo você não vai se achar!
Somos e trabalhamos com mulheres marcadas pela vida, com suas cicatrizes, fora dos padrões estéticos. Por isso é muito comum nas oficinas que realizamos ouvirmos frases como: “não quero foto minha não, que eu sou feia”, “eu tô feia”, “esse negócio de retrato não é pra mim não”. Queremos desconstruir isso.
Não somos referência na grande mídia. Mas podemos ser referência umas para as outras.
Quando estamos juntas, como mágica, as fotógrafas do coletivo conversam e mostram como existe beleza em nós. O nosso papel, nos ensaios fotográficos com outras mulheres, não é nem dizer que as mulheres são bonitas do jeito que são, cada uma do seu jeito. A função do Revelar.si é mostrar essa beleza e fazer com elas também enxerguem e se enxerguem por outra visão.
Quais histórias guardam as mulheres pobres? E se pudéssemos ver o que está inscrito nas marcas de sua pele? Se cada ruga, cada marca do tempo, nos permitisse captar tudo pelo que já passaram: todas as histórias de dor, de luta, de enfrentamento e de coragem?
Nosso trabalho com fotografia é afetivo e político: é a nossa ação política contra as diversas formas de violência que já enfrentamos e ainda vamos enfrentar nas nossas vidas. Não teríamos como fugir desse tema que nos atravessa como uma flecha e vai deixando marcas e perdas ao longo de sua passagem.
No contexto das diversas formas de violência que enfrentamos, o feminicídio é o nível mais extremo de controle sobre a vida — e a morte — das mulheres. O Brasil é o país com a quinta maior taxa de feminicídio do mundo, tendo as mulheres negras como maiores vítimas. A cultura racista, machista e patriarcal em que vivemos, altamente perversa, subjugando as mulheres, nos coloca numa posição subalterna que se reflete no descaso como são tratados os casos de violência doméstica e contra as mulheres.
Dessa forma, quando ocupamos um lugar na arte, na cultura, na fotografia, estamos lutando contra o racismo que nos foi imposto, contra o machismo que nos reserva lugares à sombra ou de objetificação dos nossos corpos.
Temos realizado, ao longo de nossa trajetória, reflexões e trabalhos sobre racismo, machismo, homofobia, lesbofobia, sempre pensando em como implementar práticas anti-racistas nas nossas vidas, na nossa comunidade, através da arte, do nosso trabalho, do nosso olhar e das nossas lentes.
O Revelar.si se transmuta a cada período, se multiplica e se divide a cada ano, mas permanece, resiste, e se perpetua nas suas ações buscando sempre, sempre, trazer nossa visão de mundo.
Resistir, portanto, seria também um ato de acreditar numa resistência possível ou que a resistência ainda é possível. E acreditando, tentar construir essas formas de resistência no cotidiano.
Acreditamos dessa maneira, na reconstrução das formas de resistência coletivas, numa micropolítica cotidiana que vem sendo construída “clandestinamente” pelas mulheres negras, pelas mulheres pobres, onde construímos nós mesmas nossos processos formativos, nossas experiências culturais e coletivas no exercício do viver.
O Revelar.si é a busca pela concretização de um sonho feminista e coletivo de uma sociedade melhor, mais segura, justa e mais feliz para nós mulheres. Resolvemos começar pelo lugar que ocupamos no mundo, enquanto mulheres negras. É no Coque que estamos construindo nosso sonho feminista. Onde ele irá nos levar, não sabemos. Sabemos apenas da potência desse sonho quando sonhamos juntas.
O Revelar.si é construído por Katarina Scervino,Rayane Larissa, Layane Fabíola, Eduarda Salomé, Julia Oliveira, Laryssa Eduarda, Erica Cileide, Mariana Cristina, Nilza Souza, Ana Beatriz, Ana Flávia Catarina, Auta Azevedo, Amanda Martinez, Mariana Medeiros.
*Texto produzido coletivamente pelas mulheres do Revelar.si
Ficha Técnica das fotos:
Autoria: Revelar.si – Coletivo de Fotógrafas do Coque
1) Mulher do Pilar (2019)
2) Afroameríndia Periférica (2020)
3) Afrontosa (2017)
4) Derramar-se (2020)
5) Coque Gigante (2019)
6) Insubmissão de corpos retalhados (2020)
7) Crianças na Maré (2017)
8) Deusa das Águas (2018)
9) Kaliotica (2020)