Por Allan de Campos Silva
Em meio a pandemia de COVID-19, as práticas largamente abusivas e insalubres das campeãs do setor, como a JBS no Brasil e a Smithfield nos EUA, vêm à tona transfiguradas por uma nova camada de humilhações e riscos para os trabalhadores de frigoríficos. Por sua vez, o avanço do agronegócio e a destruição ambiental no país, sob a égide do bolsonarismo, nos lançam do fogo para a brasa: enquanto se intensificam as causas que em primeiro lugar produzem as epidemias e pandemias, nos deparamos com a consolidação de uma ecologia proto-pandêmica no Brasil.
De acordo com Wallace, contudo, vírus como os causadores da influenza não são objetos inertes, alheios às intervenções humanas sobre os ambientes de produção e criação de aves e porcos. Muito pelo contrário: ao perseguir cegamente uma demanda tautológica por incre-mento de produtividade, a pecuária intensiva, tal como praticada pelas indústrias de aves e porcos no mundo todo, pode estar contribuindo para a seleção de vírus cada vez mais mortais.
Um novo rearranjo de vírus que tenha sido capaz de infectar animais produzidos sob o sistema de monocultivo genético em confinamento, em tese, é capaz de contaminar celeiros, fazendas e regiões inteiras. O sistema é tão crítico que, em muitos casos, os animais são sacrificados por meio de abates sanitários em massa, para evitar que um surto incipiente se espalhe por uma região ou até mesmo pelo planeta inteiro.
DO NORMAL-TERRÍVEL ÀS PRIVAÇÕES DE SEGUNDA ORDEM NA PANDEMIA
Em meio a pandemia de COVID-19, proliferam-se denúncias sobre funcionários de frigoríficos obrigados a trabalhar sem proteção adequada ou mesmo enquanto manifestam os sinto-mas da doença. Contudo, não é de hoje que o setor de carnes se destaca pelos riscos ocupacionais que oferece aos seus trabalhadores, em muitos casos composto por contingentes de imigrantes.
A história de abuso sobre os trabalhadores da indústria de processamento de carnes já é razoavelmente conhecida no Brasil. O documentário Carne e Osso (3), produzido com apoio do Repórter Brasil, retrata as condições degradantes para os trabalhadores das atividades de abate e desossamento de aves. Em uma pesquisa anterior (4), eu já havia relatado a situação dos abatedores de frango da sessão halal da BRFoods – voltado à exportação para mercados muçulmanos – onde cada trabalhador chega a sangrar duas mil aves por hora. Em muitos casos estes trabalhadores são forçados a cumprirem segunda ou terceira jornada de trabalho, o que caracterizaria uma relação de trabalho análoga à escravidão.
As grande empresas do setor já tiveram diversos frigoríficos temporariamente interditados e já foram obrigadas a pagar indenizações coletivas a grupos de trabalhadores – o que, em todo caso, não tem sido suficiente para coibir tais práticas.
E os trabalhadores do setor já há muito tempo vivenciam uma epidemia de doenças diretamente relacionadas ao trabalho, dentre as quais as Lesões por Esforço Repetitivo (LERs) cons–tituem o carro-chefe.
Vale notar que as LERs são doenças crônicas, ou seja, um trabalhador que tenha os braços assim lesionados portará braços danificados para o resto da sua vida. Os trabalhadores com LERs em geral são afastados temporariamente do serviço – em muitos casos sem qualquer acompanhamento médico, principalmente nas cidades pequenas que sequer contam com clínicas de fisioterapia. Esperam a lesão desinflamar, a dor ser mais suportável ou o açoite da fome para logo voltarem a se sacrificar, em geral, na mesma função que em primeiro lugar produziu a lesão.
As LERs, contudo, não andam sozinhas, pois sempre se vêm acompanhadas de cortes nos membros, depressão, pânico de ambientes fechados e infecções nos olhos, boca e pele, que em muitos casos sequer são diagnosticados de maneira apropriada.
A frieza do setor para com a saúde pública se fez notar recente-mente no Brasil por meio da Operação Carne Fraca (5), deflagrada pela Polícia Federal, que expôs um esquema no qual o próprio Ministério da Agricultura, sob o governo do antediluviano Michel Temer, criou barreiras para a inspeção sanitária de carnes impróprias para consumo. Em seguida, um superin-tendente do Ministro da Agricultura foi flagrado orientando a destruição de provas materiais do crime. O esquema visava beneficiar as principais empresas do país, como a JBS – con-troladora das marcas Seara, Swift e Friboi – e a BRFoods – controladora das marcas Sadia e Perdigão.
Em 2019, uma investigação posterior realizada pelo Repórter Brasil em conjunto com o jornal britânico The Guardian revelou que mais de 1 milhão de toneladas de frango contaminado com Salmonella exportadas pelo Brasil e barradas em portos europeus, foram trazidas de volta e revendidas em super-mercados brasileiros.
E mesmo em meio à pandemia de COVID-19, em maio de 2020, frigoríficos da JBS e da Brasil Global, focos consolida-dos da pandemia – que até nisso mimetizam as práticas da gigante Smithfiled dos EUA (6) – são colocados sob escrutínio em Passo Fundo (RS), em Ipumirim (SC) e em Guia Lopes da Laguna (MS), acusados de obrigarem seus funcionários a tra-balhar sem proteção adequada ou a trabalhar com sintomas de COVID-19 – enquanto os representantes do setor lutam na justiça para evitar a interdição dos frigoríficos.
Enquanto a pandemia fortalece o seu curso no Brasil, estes novos focos de contágio se consolidam em pequenas cidades que, apesar de distantes das principais regiões metropolita-nas contaminadas ou fora dos principais eixos de circulação de pessoas, têm em comum o fato de abrigarem frigoríficos com milhares de trabalhadores.
Estes casos revelam com que frivolidade sujeitamos os tra-balhadores, entendidos antes de tudo como engrenagens descartáveis de uma máquina autodestrutiva. As declaradas atividades essenciais sujeitam os trabalhadores dos frigoríficos a situações de saúde que potencializam o contágio. Seus trabalhadores são sacrificados em plena pandemia, mimetizando os abates sanitários conduzidos pela indústria avícola diante de lotes de aves infectadas. A pecuária industrial parece realizar a metáfora de Marx, do trabalhador “como alguém que levou a sua própria pele para o mercado e agora não tem mais nada a esperar, exceto — o curtume” (7).
Em suma, o argumento de Rob Wallace nos oferece um vislumbre sobre a situação crítica para o Brasil assim como para toda a região Pan-Amazônica, uma vez que todas as condições econômicas e ambientais que deram origem aos surtos de epidemias na China, no México ou nos EUA, aqui se encontram de forma abundante.
Enfim, nos resta saber se a epidemiologia capitalista, sob a égide do obscurantismo bolsonarista, será também capaz de cultivar a sua própria cepa de vírus no coração da sua catastrófica ecologia.
9 AMAZÔNIA pode ser ‘maior repositório de coronavírus do mundo’, diz cientista. UOL, São Paulo, 13 mai. 2020. Viva Bem. Disponível em: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/afp/2020/05/13/amazonia-pode-ser-maior-repositorio-de-coronavirus-do-mundo-diz-cientista.htm Acesso em 4 de fev. 2021.
10 O equivalente a “epidemias” no universo animal não-humano.