Por Luane Barbosa
Em 2011, uma frente de mulheres brasileiras reuniu-se em Brasília para debater sobre seus direitos no segundo encontro da Articulação de Mulheres Brasileiras. Marcado pela presença de uma diversidade de corpos de diferentes regiões, o evento possibilitou a elas a criação da campanha nacional “Solte Seu Cabelo e Prenda Seu Racismo”, responsável por desencadear uma série de ações focadas na população de mulheres negras em todo o país. Em Pernambuco, a iniciativa reverberou na construção de novas estratégias coletivas de enfrentamento político, como o surgimento do Coletivo Cabelaço PE, formado por mulheres negras comprometidas em repensar a sociedade a partir dos saberes ancestrais.
A ideia de formar o Cabelaço veio através de muita conversa sobre como e o que seria o grupo, de pensar “o que é que tem na nossa filosofia, na nossa forma de agir e fazer a vida que podemos usar para pensar os direitos humanos assim como uma pessoa de direito faz?”, conta Jaque Martins, integrante do coletivo. Sobre o surgimento do grupo, Drica Mendes, também integrante do coletivo, compartilha que “passamos dois anos realizando encontros de autoconhecimento e formações internas até que a gente começou a ir para a rua e fazer campanhas na internet, discutimos bastante sobre os significados do que seria ‘soltar nossos cabelos’, pensando nossa identidade racial e ancestralidade”. Assim, sempre por meio do fortalecimento interno, elas conseguem pensar em estratégias para impactar tanto dentro de suas próprias comunidades como na sociedade em geral. “Eu acho que é preciso dizer também que é um aspecto importante do Cabelaço ter suas ações com um caráter político-artístico, pensando a cultura não apenas como algo isolado, mas utilizando-a pelo seu caráter formativo”, pontua Jaque.
Pedagogia do Axé
As ações e atividades realizadas pelo coletivo partem da utilização dos saberes dos povos de terreiro como meio para construir uma nova percepção social através de um processo educativo distinto. “Existe uma singularidade nos processos educativos de terreiro, assim como tem uma singularidade na escola indígena e quilombola, porque temos uma pedagogia que vem da experiência. No terreiro, não vai ter alguém que vai explicar, por exemplo, o que é Oxum, não é assim, conhecemos Oxum a partir de uma experiência com ela. Isso vem de algo que chamamos de pedagogia do axé.”, explica Jaque Martins.
O programa de rádio Oba Kò Só foi um dos trabalhos recentes do coletivo, que demonstra como esse processo educativo acontece. O projeto aborda em cada episódio uma temática social a partir da compreensão de um Orixá, que serve como fio condutor para conversa sobre dança, justiça ambiental, tecnologia, entre outros temas, sempre com a presença de pessoas convidadas de diferentes territórios. “A forma como articulamos o programa foi pensando para quando uma pessoa que não é de terreiro olhasse minimamente para o Orixá, ela pudesse ter uma mudança na sua percepção sobre ele em relação a um olhar que parte na maioria das vezes de um lugar racista”, conclui ela.
Dessa forma, elas conseguem construir estratégias de enfrentamento ao racismo e racismo religioso, partindo de uma lógica educacional que não está dentro dos currículos escolares e acadêmicos atuais. “Percebo que muita coisa que queremos falar não dialoga com os direitos humanos que está posto e que foi construído a partir de uma lógica europeia”, conta Jaque. Por isso, o Oba Kò Só corrobora com a ideia de quebrar esse caminho mais técnico e cristalizado. “Quando a gente propôs o programa, pensamos em realizar uma tentativa de uma reeducação que reconhecesse a produção de saberes e conhecimentos dos povos tradicionais como válidos e como capazes de emancipar e libertar os sujeitos, mesmo que esses saberes não estejam dentro dos parâmetros ocidentais de fazer ciência”, conclui Jaque.
Comunicação como fundamental na luta política
Historicamente, os veículos de comunicação hegemônicos endossaram perspectivas sociais baseadas em estereótipos sobre a população negra e de terreiro, sobretudo nos canais de rádio ligados às igrejas cristãs. Por isso, o setor da comunicação surge enquanto um lugar estratégico dentro do movimento na busca pela libertação e emancipação explicada por Jaque. Além disso, esse espaço também constitui-se enquanto fundamental para garantir visibilidade aos terreiros localizados em diferentes partes do Brasil. “A atuação dentro de veículos de mídia faz todo sentido para o coletivo, pois precisamos mostrar a história das pessoas de terreiros, porque muitas vezes uma pessoa nem sabe que existe um perto de sua casa”, destaca Angela Lopes, que também integra o Cabelaço.
Porém, nesses últimos anos, as leituras sociais presentes na mídia – que muitas vezes estão transvestidas em discurso de ódio – vêm pouco a pouco sendo confrontadas, principalmente, através da ocupação de espaços na TV e no rádio pela população negra. “A gente entende que é preciso enfrentar a mídia (corporativa) que atribui para si um lugar de centro e de que pode falar por nós. Então, a gente traz outras narrativas a partir da ocupação de espaços de comunicação pública e independente porque já passou o tempo da gente não falar”, explica Drica. Assim, Jaque coloca em perspectiva que “vê esse lugar de ocupação como um espaço para retomarmos uma autonomia não apenas em relação à fala, mas também uma autonomia na produção e difusão de conteúdos feitos por nós”. Dessa forma, essa autonomia “é parte tanto do processo de libertação coletiva como parte do processo de re-existência coletiva”, completa ela. Corroborando, portanto, na garantia de direitos tradicionalmente retirados dos povos de terreiro e comunidades tradicionais.
A rede de articulação social
Toda a capacidade de atuação do coletivo ocorre muito pelo fato delas acreditarem também na importância de atuar junto a outros movimentos sociais, potencializando projetos como o Oba Kò Só. “As ações do coletivo estão articuladas com pessoas, com amigas, lideranças locais e nacionais, que conhecem nosso trabalho. E por termos essa rede muito fortalecida na população de Pernambuco, conseguimos chegar em mais pessoas para entrevistar no programa de rádio”, explica Jaque. Além disso, esses processos resultaram em outros desdobramentos nos espaços acadêmicos. “Recentemente, uma amiga entrou em contato comigo para utilizar o Oba Kò So em uma formação de professores”, conta Drica. Elas receberam ainda um convite para participar de uma aula com estudantes da graduação de comunicação na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
O engajamento com diferentes setores sociais é fruto também do entendimento de que nos movimentos é preciso construir uma rede de solidariedade, que começa dentro de cada coletivo, como pontua Jaque, “o Coletivo Cabelaço por mais que ele tenha pessoas de ensino superior, temos muitas mulheres que têm muita dificuldade no autossustento financeiro. Temos uma discussão de que precisamos ajudar umas às outras, repartindo o que temos.” E, sobretudo, diante do cenário de crise sanitária e política vivido no Brasil nos últimos anos, a abertura de editais e convocatórias para ajudar coletivos da sociedade civil são extremamente cruciais para a manutenção do trabalho. “Numa época de pandemia foi muito importante os editais que conquistamos porque conseguimos não só fazer o programa, mas também pagamos pelos serviços, por exemplo, para realizar a prestação de contas.”, diz Drica. Além de realizarem uma ação de distribuição de equipamento de proteção individual, onde fizemos as máscaras com um coletivo de mulheres em Abreu e Lima e realizamos as entregas”, completa Jaque.
Programa Oba Kò So e outras ações
As ações que vêm sendo realizadas durante a pandemia incluem também uma atividade formativa para conscientização sobre o novo coronavírus nas comunidades de terreiro. “Realizamos a distribuição de uma guia de prevenção ao Covid-19 e junto com isso também distribuímos algumas cestas básicas, explica Drica. Para além disso, o grupo também atua por meio de formações e residências em parceria com outros espaços como o Mário de Andrade e a Associação do Sítio Agatha, Drica destaca que “mais recentemente atuaram na comunicação em rádio e na academia com a produção de textos para publicação em revistas”.
A amplitude de iniciativas que o coletivo consegue realizar mostra o impacto social e a importância dos coletivos de organização civil, especialmente, para mulheres negras. O Programa Oba Kò So serviu para potencializar ainda mais essa trajetória, desdobrando-se, inclusive, em uma produção de podcast em parceria com as Blogueiras Negras. Então, como Jaque fala “é como Angela Walker diz ‘nós mulheres negras não sobrevivemos umas sem as outras’”.
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O programa Oba Kò Só, conta com vinte e quatro episódios veiculados nas rádios Frei Caneca, Aconchego e na Rizoma Rádio Livre. O produto teve o apoio do Edital Mini EA – Periferias do Recife e está disponível aqui.
Nota de Rodapé sobre as entrevistadas
Jaque Martins
Filha de Maria de Fátima de Josenildo José Alves Correia. Ela é nascida e criada no Morro da Conceição (PE). Candomblecista, filha de Orixá Oyá Oxalá do terreiro Ilê Axé Oxalá Talabi em Paulista em Pernambuco. Formada em Direito pela Faculdade de Olinda é mestranda em Educação, Culturas e Identidades na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Integra o Coletivo Cabelaço, mas já passou por alguns outros coletivos como o Afronte e o Coletivo Mário de Andrade, onde atuou como assessora jurídica. Atualmente, trabalha também com comunicação, produção cultural e educação.
Angela Lopes
Alagoana, nascida em Maceió, trabalhou com direitos de pessoas indígenas e quilombolas, formada em Direito e trabalha como advogada.
Drica Mendes
Recifense e sua família vem da cidade de Timbaúba, localizada na Zona da Mata de Pernambuco. Formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), faz parte do Coletivo Cabelaço e trabalha como produtora cultural e educadora social e também atua nas áreas de comunicação e audiovisual.
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Ref da pesquisa: Direito dos povos de terreiro.pdf (uneb.br)