Está posto então que existe uma disputa, uma luta racial na nossa realidade. Mas quem é “o inimigo”?
Vou dar uma resposta polêmica para essa. Eu só vou falar porque você não é jornalista, estrito senso, então você não vai cortar uma aspa e tirar de contexto o que eu vou falar. Mas é que, pra mim, o inimigo é a própria ideia de raça, porque não existe ideia de raça sem racismo, a ideia de raça só existe porque existe racismo, então o grande inimigo é a ideia de raça, é existir ideia de raça, porque não há ideia de raça com neutralidade. Toda ideia de raça advém de uma hierarquização, e se ela vem de uma hierarquização, você tem que combater a própria ideia de raça, a luta é essa. O problema é que é um sistema muito complexo, muito elástico. A ideia de racismo, por consequência, também é muito elástica e muito complexa, e acaba que o nosso poder estar no mundo é justamente nessas quebras e nas fissuras dessa própria ideia de raça. E a quebra disso é fazer a gente ter orgulho da nossa raça, é ter orgulho de ser preto, e de transformar isso numa identidade de afirmação. Mas o grande inimigo pra mim é esse, é a ideia de raça. Pra mim o que a gente tinha que conseguir era sucumbir à própria ideia de racialidade, só que não é possível a gente fazer isso nesse momento, porque é um sistema complexo, a gente pode chamar de estrutural, pode chamar de sistêmico, pode chamar do que for, mas é elástico, resiste no tempo, e é o sistema mais complexo que a humanidade já inventou contra si mesma. Como disse o Carlos Moore, a tecnologia de maior extermínio que a humanidade criou contra si mesma, foi a ideia de raça e eu acho que esse é o grande inimigo, e quem criou, quando eu falo ‘humanidade’, estou falando dos brancos, obviamente, falando de uma supremacia branca e de uma tentativa colonial de dominação do mundo.
Eu penso muito que grande parte do projeto da branquitude é um projeto de extermínio, como aconteceu com diversas etnias ao longo dessa recente história. Mesmo assim, a gente sobrevive, se esse projeto tivesse de fato se concretizado a gente não estaria aqui. Nesse sentido, você acha que os projetos de embranquecimento, de extradição, de extermínio fracassaram? Porque ainda discutimos eles?
Esses planos fracassaram do ponto de vista literal de extermínio, mas em algum nível prosperaram. No sentido de tornar a nossa vida bastante insuportável por aqui, nos dar uma resiliência em meio a essa violência tão grande que a gente sofre. Então, se é um fracasso porque eles de fato não conseguiram nos exterminar, porque teve uma resistência muito grande e a gente empreende tecnologias de resistência, de reação a essa violência colonial muito grande, por outro tem uma certa prosperidade em tornar nossa vida insuportável. Todas as taxas que temos de saúde, de educação, de violência principalmente, em todas elas a gente está muito mal, então a gente refaz a nossa vida, reconstrói a nossa humanidade a partir dos nossos termos, porque os termos deles são insuportáveis para nós.
E a gente é o grande milagre desse país. Eu sempre digo isso que a gente não devia exportar commodity, mas devia exportar tecnologias que a população negra e indígena produziu produziu para se manter viva. Hoje a população negra é maioria da população, a gente passou por toda a sorte de coisas nesse país, desde a escravização, passando por uma abolição inconclusa que não gerou oportunidades para a população negra, não gerou integração da população negra, até essas políticas de embranquecimento. Haviam profecias, de ditos especialistas, de intelectuais, de pesquisadores, na primeira metade do século 20, de que acabaria a mancha negra no Brasil, de que íamos ser um grande país de mestiços, um mestiço orientado para um embranquecimento da população. Então temos aí um grande milagre do Brasil, uma grande tecnologia social, que fez com que a população negra hoje, em 2024, seja a maioria da população, e crescendo. Não só somos a maioria, como estamos em franco crescimento, não só nos sentidos de contingente populacional, mas uma consciência também de pessoas que não se consideravam negras e que hoje se consideram e enxergam nisso um traço positivo.