Pesquisar

A bicicleta e as mulheres: mobilidade ativa, gênero e desigualdades socioterritoriais em São Paulo

Marina Kohler Harkot obteve, em maio de 2018, o título de Mestre em arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, com a dissertação, intitulada “A bicicleta e as mulheres: mobilidade ativa, gênero e desigualdades socioterritoriais em São Paulo”, onde analisou um fenômeno do qual ela foi, ao mesmo tempo, testemunha e participante, como ativista, ciclista e mulher.

Por Marina Kohler Harkot

“As mulheres nas cidades têm um tempo social impossível” – Jéssica Barbosa, Action Aid

Essa pesquisa parte de reflexões de cunho bastante pessoal, e teve suas primeiras questões e hipóteses levantadas a partir da vivência cotidiana de uma jovem mulher ciclista e as interações com o urbano em diversas cidades no Brasil e fora dele.

Ao ter a oportunidade de experimentar usar a bicicleta como modo de transporte em lugares com contextos bastante diferentes entre si – Santos/SP; Stade, uma cidade de 40 mil habitantes na região metropolitana de Hamburgo, Alemanha; Paris, na França; Zurique, na Suíça; no Rio de Janeiro; na Cidade do México; em Recife e, logicamente, em São Paulo – ficou evidente, a partir de uma experiência individual, que havia uma série de aspectos envolvidos, influenciavam e eram influenciados por “variáveis” que formam as identidades de cada indivíduo, dentre as quais gênero certamente parecia uma das mais importantes.

Discutir a intersecção entre gênero e o uso da bicicleta em São Paulo parece uma questão bastante específica, um fenômeno que dificilmente poderia ser extrapolado e interessar a pessoas que não usam a bicicleta como meio de locomoção. Entretanto, o título “A bicicleta e as mulheres: mobilidade ativa, gênero e desigualdades socioterritoriais em São Paulo” fornece algumas pistas sobre a ampla dimensão do assunto aqui tratado: não se está falando apenas sobre ou só da bicicleta, mas sobre a interação com a metrópole paulistana de maneira ampla, utilizando gênero e outros aspectos da construção da identidade e da subjetividade dos sujeitos como aspectos essenciais, que influenciam o que o campo de estudos em transportes normalmente entende simplesmente como “escolha modal”. Assim, minha pesquisa utiliza uma abordagem sociológica do transporte (VASCONCELLOS, 2001) para tentar articular a discussão sobre a manifestação das desigualdades de gênero no urbano, em um contexto latino-americano, e os fatores que fazem com que uma pessoa opte pela utilização de determinado modo de transporte influenciem e sejam influenciados pela maneira como a cidade está estruturada, mas também pela raça, classe, localização no território, idade e a subjetividade que constroem, por fim, as experiências únicas de cada sujeito.

Na primeira parte da pesquisa “As mulheres e a cidade” busco definir o que entendo por “gênero” e como a discussão desse conceito se articula com o urbano. Por que usar a bicicleta como elemento chave para compreender a relação das mulheres com a cidade, a partir de seu uso e da maneira como se dá a apropriação dos espaços públicos urbanos através dela,  especialmente no caso de São Paulo? Como a bicicleta se apresenta enquanto um desafio nesse cenário – tanto por conta dos significados que ela carrega em seu uso por mulheres, à luz do contexto dos usos e papéis diferentes que homens e mulheres desempenham nos espaços urbanos, quanto no seu uso em cidades de tradição rodoviarista como São Paulo?

A BICICLETA COMO UMA FERRAMENTA DE ACESSO DAS MULHERES À CIDADE

Jane Jacobs (1961/2011), em “Vida e Morte das Grandes Cidades”, discorre sobre o planejamento e desenvolvimento das cidades americanas modernas e as escalas nelas praticadas. Ao abordar as dinâmicas das cidades reais e o que está nelas implicado, Jacobs recupera importantes noções de urbanismo que parecem ter ficado esquecidas junto com a utopia da cidade racional e de planejamento ortodoxo: uma das principais delas, e que mais encontra eco no estudo aqui proposto, é a escala humana, a escala da rua, a exposição à cidade e as suas dinâmicas. Ao pensar na maneira como as desigualdades de gênero se expressam no espaço urbano, especialmente em São Paulo, é inevitável pensar no papel exercido pela escala da cidade.

Nesse contexto, a bicicleta carrega um potencial imenso. Illich (2005) distingue “o trânsito das pessoas que usam a sua própria força para transladar-se de um ponto a outro e o transporte motorizado” (ILLICH In: LUDD, 2005, p.42), o que considero uma das principais características da mobilidade por bicicleta: ser um veículo movido a propulsão humana.

A simplicidade da estrutura metálica da bicicleta, a exposição dos corpos quando pedalando, apenas sentados no selim, a baixa velocidade média que atinge nos percursos na cidade e que possibilita contato fácil com o entorno, com as pessoas nas calçadas, com as fachadas do comércio… A bicicleta é capaz de estabelecer uma lógica diferente daquela do funcionamento das cidades modernas e rodoviaristas, por imprimir um ritmo e velocidade mais democráticos, justamente porque são alcançáveis sem a necessidade de motor.

Em se tratando da mobilidade das mulheres, os modos ativos podem desenvolver um papel fundamental nas suas viagens cotidianas, aumentando seu raio de deslocamento, as possibilidades de destino, economia de recursos, a prática de exercícios físicos, entre outros, especialmente em um contexto no qual a pobreza feminina é mais a regra do que a exceção, e no qual as mulheres dispõem de menos recursos financeiros, incluindo aí padrões do caso brasileiro tais quais as desigualdades salariais históricas e a grande ocorrência de famílias monoparentais chefiadas por mulheres.

Além disso, mesmo em famílias nas quais as restrições financeiras não são tão extremas, ou seja, nas famílias em que os gastos com a tarifa de ônibus não necessariamente comprometem boa parte da renda familiar, é fenômeno conhecido nos estudos de “mulheres e transportes” que nas famílias de casais heterossexuais que possuem um automóvel, geralmente seu uso é feito pelo homem do casal (HANSON, 2010). Em São Paulo, as mulheres são o gênero que mais faz viagens a pé, porém, o que menos faz viagens em bicicleta, não ultrapassando os 12% do total das viagens contabilizadas pela Pesquisa de Mobilidade do Metrô de 2012 (LEMOS et al.,2017).

Não é meu objetivo discorrer sobre as barreiras encontradas pelas mulheres ao andar a pé, (SIQUEIRA, 2015) (1) mas acreditamos que, ao discutir o (baixo) uso da bicicleta pelas mulheres, conseguiremos também dar conta de vários aspectos do andar a pé, já que ambos modos envolvem a exposição dos sujeitos ao ambiente da rua, mesmo que com diferentes especificidades.

MULHERES, CORPOS E DOMESTICIDADE: O PAPEL DA BICICLETA

A popularização da bicicleta, cuja origem remonta ao século XIX, teve impactos além dos óbvios: ela foi fundamental para mudar o modo de vestir das mulheres e aproximá-lo ao que vemos na contemporaneidade. De acordo com Santucci e Figueiredo (2015), o vestuário feminino se desenvolveu em cima de uma estrutura bastante conservadora – mantendo sua “ornamentação, constrição do corpo e peso” (SANTUCCI e FIGUEIREDO, op. cit., p.21) – ao passo que os trajes masculinos foram se desenvolvendo de modo a tornarem-se cada vez mais simples, mais parecidos com o que conhecemos hoje em dia já a partir do século XVIII. O uso de trajes bifurcados e calças, apesar de ter sido iniciado com as operárias em seus locais de trabalho para facilitar as suas atividades – e não como forma de rebeldia (CRANE apud SANTUCCI e FIGUEIREDO, op. cit.) – só foi parcialmente possível a partir da sua adoção pelas mulheres de elite para a prática esportiva na virada do século XIX para o XX, em especial para a prática do ciclismo.

O papel exercido pela bicicleta nas mudanças no vestuário feminino caminhou lado a lado com o movimento pelos direitos das mulheres nos Estados Unidos. Amelia Bloomer, importante ativista da causa, foi responsável por propor reformas no guarda-roupa feminino e introduzir as calças turcas presas aos tornozelos por debaixo das saias – e que ficou conhecido como Bloomer (SANTUCCI e FIGUEIREDO, 2015, p.24). O movimento pelo sufrágio feminino nos Estados Unidos, apesar de seu claro recorte de classe e raça, de e para mulheres brancas, excluindo as mulheres negras e a luta antirracista de suas principais reivindicações (DAVIS, 2016) (2), também desenvolveu uma importante relação com a bicicleta. Frances E. Willard (1997), importante figura do movimento sufragista feminino, publica em 1895 o livro A Wheel Within a Wheel, no qual narra como aprendeu a andar de bicicleta com 53 anos de idade.

Seu relato autobiográfico, apesar de ter sido escrito em um contexto completamente diferente do momento contemporâneo, traz reflexões sobre as quais nos baseamos para os argumentos desenvolvidos nessa pesquisa. Willard traça, por exemplo, paralelos sobre as relações entre gênero, corpo, vestimentas, restrição da circulação feminina e o espaço reservado às mulheres a partir da perspectiva de uma mulher burguesa, do final do século XIX, de maneira que não poderia ser mais atual:

Vivendo no interior, longe das restrições e convenções às quais a maior parte das meninas são limitadas das atividades que desenvolveriam uma boa forma física e dotadas da companhia de uma mãe que me permitiu seguir as minhas próprias vontades e desejos, eu “circulei livremente” até meu décimo-sexto aniversário, quando as longas e dificultosas saias foram inseridas na minha vida, acompanhadas de corseletes e salto-alto; meus cabelos foram domados com grampos e eu me lembro de escrever no meu diário, no primeiro episódio de desilusão amorosa de um jovem potro humano tirado de seu pasto prazeroso. ‘De modo geral, eu reconheço que a minha profissão se foi.

(…)

Meu trabalho então mudou do meu amado e ventilado mundo ao ar livre para o reino interno do estudar, escrever, falar, e assim seguiu praticamente sem interrupção ou dor até o meu quinquagésimo terceiro ano de vida, quando a dor da perda da minha mãe acentuou a tensão desse longo período no qual as vidas mental e física estavam fora de balanço, e eu caí numa forma leve do que é conhecido como desgaste nervoso do paciente e é tida como prostração nervosa por aqueles que estão ao redor. Então, violentamente lançada para fora das minhas tradicionais reações e maneiras de viver o meu ambiente, e ansiando por conquistar novos mundos, eu determinei que aprenderia a andar de bicicleta.

Um marinheiro me disse uma vez, depois de ele mesmo aprender a andar de bicicleta, “vocês mulheres não fazem ideia da nova esfera de felicidade que a bicicleta trouxe para nós homens”. (WILLARD,1997, p.10-11 – tradução nossa).

Esse trecho do livro de Willard mostra algumas das dimensões simbólicas da criação das mulheres, que permeiam seus imaginários e que podem ajudar a explicar essa “dificuldade” em andar de bicicleta.

Apesar da relação extremamente imbricada entre as variáveis que impactam o (não) uso da bicicleta pelas mulheres e, por isso mesmo, a tarefa de tentar isolar-se, senão hercúlea, impossível, busco justamente olhar para os fatores não tão óbvios que impedem ou desestimulam que mulheres adotem a bicicleta como meio de transporte.

Uma cidade com mulheres pedalando costuma ser vista como uma cidade onde o uso da bicicleta é mais seguro: as mulheres que usam a bicicleta são vistas como um “indicador” de segurança no trânsito (SINGLETON e GODDARD, 2016; LACERDA, 2014). Tal correlação acaba atuando como um discurso simplista no qual as mulheres teriam “mais medo” do que os homens de pedalar e do trânsito e que, por “naturalmente” se arriscarem menos do que os homens, precisariam necessariamente de infraestrutura cicloviária ou de medidas de acalmamento de tráfego mais amplas para darem o passo inicial em adotar a bicicleta como modo de transporte. Procuro demonstrar que não existe nada de “natural” na relação entre os gêneros, nem que não há nada que seja biológico ou intrínseco à natureza das mulheres, porque gênero é

(…) uma categoria que estrutura as relações sociais através da generificação da divisão do trabalho e das atividades; acesso a recursos; e da construção das identidades dos sujeitos. O poder é exercido em cada uma dessas esferas. As relações de gênero também fornecem um código simbólico através do qual itens e atividades são impregnadas de significados. (LAW,1999, p.575 – tradução nossa)

Os corpos femininos são, desde cedo, domados – domesticados, no sentido mais literal da palavra, querendo dizer voltar-se ao doméstico, à domesticidade. Young (2005), em “Throwing Like a Girl: A Phenomenology of Feminine Body, Comportment, Motility, and Spatiality”, analisa a partir de uma chave de interpretação fenomenológica o desenvolvimento e a consciência corporal de meninos e meninas, buscando desconstruir a ideia de que as mulheres teriam simplesmente menor força ou que não teriam habilidades físicas para desenvolver atividades que envolvem o uso do corpo. Tais diferenças seriam, segundo a autora, em certa medida reais, mas não simplesmente por causa da força física bruta de cada um dos gêneros, mas sim por conta da maneira como cada um deles usa o corpo. Willard menciona a sua posição diferenciada em relação às outras meninas, na qual teria podido se desenvolver livremente, mas ressalta o papel da transição da infância para a vida adulta, sobre o qual escreve Young:

Na maior parte das vezes, às meninas e mulheres não é dada a oportunidade de usar sua capacidade corporal plena na interação livre e aberta com o mundo, e nem tampouco elas são tão incentivadas quanto os meninos a desenvolverem habilidades corporais específicas. As brincadeiras das meninas são mais sedentárias e enclausuradas do que as brincadeiras dos meninos. Nas atividades escolares e extra-curriculares as meninas não são incentivadas a se envolverem com esportes, através do uso controlado de seus corpos visando atingir metas bem-definidas. Além disso, as meninas têm pouca prática em “brincar” com as coisas e, assim, desenvolver maiores habilidades na lida com o espaço. Finalmente, as meninas não são frequentemente solicitadas a desenvolver tarefas que demandem esforço físico e força, ao passo que enquanto os meninos crescem, eles são demandados a fazer mais e mais. (…)

Existe um estilo específico de comportamento e movimento positivos do corpo feminino, que é ensinado às meninas quando elas entendem que elas são meninas. Uma menina pequena apreende hábitos muito sutis do comportamento corporal feminino – andar como uma menina, virar a cabeça como uma menina, ficar em pé e sentar como uma menina, gesticular como uma menina – e assim em diante. A menina aprende ativamente a dificultar seus próprios movimentos. Ela ouve que ela deve ser cuidadosa para não se machucar, para não se sujar, para não rasgar suas roupas, ela aprende que as coisas que ela deseja são perigosas para elas. Dessa forma, ela desenvolve uma timidez corporal que aumenta com a idade. Ao se assumir enquanto menina, ela é levada a se tornar frágil. (YOUNG, 2005, p.43–tradução nossa)

Ainda traçando um paralelo com Davis (2016) e em relação às várias mulheres e ao que lhes é possibilitado, levando em consideração um recorte de gênero, raça e classe, Perrot aponta:

Diferenças sociais consideráveis marcam a condição das jovens. A liberdade da jovem solteira aristocrata, que monta a cavalo, pratica esgrima, tem um preceptor ou uma governanta, como seus irmãos, e aprende rudimentos de latim, contrasta com a vigilância exercida sobre a jovem solteira burguesa, educada por sua mãe, iniciada às atividades domésticas e às artes de entretenimento (o indefectível piano), refinada por alguns anos de estudo ou de colégio interno e submetida aos rituais de ingresso no mundo social, que visam ao casamento. A filha das classes populares é posta para trabalhar muito cedo, geralmente em serviços domésticos. Serviçal de propriedade rural (como a Marie Claire, natural do Berry, retratada por Marguerite Audoux), ela é quase sempre exposta a trabalhos pesados e constrangida à promiscuidade; criada doméstica “para todo serviço” na cidade, é exposta aos riscos da educação. Outras são admitidas como aprendizes em oficinas de costura ou numa fábrica. (PERROT, 2007, p.45-46)

Também, de acordo com Young, o que ocorre é uma completa falta de confiança das mulheres em seus corpos – e que o medo de se machucar seria maior entre as mulheres do que entre os homens. Ao mesmo tempo que as mulheres prestam atenção em seus movimentos, elas também estariam preocupadas em evitar se ferir, já que elas são ensinadas que seus corpos são antes um local de fragilidade do que como uma maneira de atingir as metas que eles próprios nos possibilitam atingir (YOUNG, 2005, p.34).

É inegável que pedalar necessariamente envolve amplo envolvimento corporal daquelas pessoas que se engajam nessa atividade, seja como prática esportiva3, seja através do uso da bicicleta como modo de transporte. Estar em cima de uma bicicleta em meio ao trânsito de veículos envolve colocar seu corpo na rua, por isso a insistência em ressaltar (também) esses aspectos do ato de pedalar na cidade, antes mesmo de discutir o uso da bicicleta per se em São Paulo e em cidades similares do Brasil e da América Latina. Estudos específicos sobre as particularidades do uso da bicicleta por mulheres vêm sendo desenvolvidos principalmente em países do Norte Global há alguns anos, normalmente buscam entender a relação entre gênero e o uso da bicicleta a partir de uma perspectiva que envolve a relação direta com a análise da infraestrutura cicloviária. Aldred et al. (2016) apontam como, em um contexto mais amplo da Europa Ocidental, é possível encontrar variações substanciais na participação de mulheres nas estatísticas ciclísticas. Nos países onde há altos índices de uso da bicicleta, o que normalmente acontece é que as diferenças não existem ou não são tão substanciais assim em relação ao gênero e à idade dos ciclistas: nesses países, inclusive, o que acontece é que mulheres e pessoas mais velhas geralmente estão sobre-representadas. Entretanto, os autores constatam que em locais como o Reino Unido, da mesma forma como acontece em outros países de língua inglesa e de baixos índices de uso da bicicleta, as taxas de desigualdade de gênero e idade são relativamente altas, com mulheres e pessoas mais velhas sub-representadas. Os autores também pontuam que nos países nos quais as políticas de incentivo ao uso da bicicleta ocorreram mais recentemente, ciclistas homens são a maioria.

As políticas de incentivo ao uso da bicicleta são divididas pelos autores em dois grupos: fatores de push (“empurrão”) e de pull (“puxão”). Aqueles referentes à primeira categoria de fatores, os de push, envolvem, por exemplo, o chamado Peak Car — hipótese que aponta que a distância percorrida em viagens feitas em veículos a motor em alguns países desenvolvidos atingiu seu pico e que, a partir de agora, cairá. Ela está intimamente associada a uma mudança modal e de cultura, com a diminuição da posse e uso de automóveis pela população urbana. Já os fatores de pull seriam aqueles que ressaltam a confiabilidade e vantagens da bicicleta em relação ao tempo de viagem em cidades com altos níveis de congestionamento viário e transporte público lotado (ALDRED et al., 2016, p.30).

O mesmo artigo, em uma breve revisão da literatura sobre o tema, elenca três grandes categorias de motivos que podem explicar tais diferenças de gênero no uso da bicicleta: aqueles relacionados às características das viagens; às normas culturais e às preferências de infraestrutura. Sobre as características das viagens, as mulheres apesar de tradicionalmente fazerem viagens mais curtas do que os homens (4), também fazem viagens que não são as mais comuns entre os “ciclistas típicos” – que viajam sozinhos e geralmente direto da origem até o destino.

As viagens “femininas” normalmente são viagens que servem passageiros; viagens com múltiplos destinos; viagens em cadeia; viagens com crianças; viagens carregando objetos pesados que não são potencialmente transportáveis numa bicicleta, o que tornaria o pedalar menos atraente para elas (ALDRED et al.,2016, p.31).

Nesta pesquisa, discordo de apontamentos que colocam a bicicleta como menos apropriada para a realização de viagens com múltiplos destinos ou em cadeia, já que é justamente nessa praticidade da liberdade de movimento — sobretudo se comparado com o transporte público – que a bicicleta tem um potencial positivo enorme.

Aldred et al. (2016) apontam a incoerência desses argumentos ao se pensar no contexto holandês de uso da bicicleta e nos manuais sobre infraestrutura cicloviária utilizados no país, que adotam medidas para minimizar alguns impactos que tais dinâmicas familiares e/ ou preferências de cada gênero podem ter ou não sobre a opção ou não pela bicicleta. Entre as medidas possíveis, os autores mencionam aspectos como a alta qualidade do pavimento utilizado nas infraestruturas cicloviárias ou a prioridade dos ciclistas sobre os automóveis nos cruzamentos, o que impactaria positivamente as mulheres e quaisquer outras pessoas transportando crianças ou cargas, por exemplo.

Em relação às normas culturais que dificultariam a adoção da bicicleta por mulheres, os aspectos identificados pelos autores seriam especialmente as tradições culturais; maior aversão a risco pelas mulheres em comparação aos homens; a tolerância ao risco e ao nível de atividade esportiva envolvidos em pedalar em contextos de baixo uso da bicicleta; e, finalmente, a intersecção entre experiências daquelas pessoas que não fazem parte do grupo de ciclistas “tradicionais” e como elas acabam sendo marginalizadas, o que pode acabar excluindo ainda mais grupos sub-representados. Outros fatores explicativos possíveis têm relação com infraestrutura e ambientes cicloviários: haveria crescente consenso entre os autores que as pessoas tenderiam a preferir pedalar em condições mais seguras e com menor interação como tráfego motorizado e que essa preferência seria ainda maior entre as mulheres.

É interessante notar, entretanto, como a literatura, especialmente aquela oriunda dos países europeus em que a bicicleta é amplamente adotada como meio de transporte há algumas décadas, se preocupa em investigar os grupos sociais dentre os quais são encontrados baixos índices de ciclistas. Este é o caso, por exemplo, do trabalho de Van der Kloof (2015) sobre migrantes em especial, mulheres na Holanda, e sua experiência em aprender a andar de bicicleta que tem um significado importantíssimo para além do pedalar em si: a prática torna-se uma maneira de adaptar-se ao país e de perceber-se pertencente àquela cultura que lhes é estrangeira. Adotar a bicicleta como transporte cotidiano, quebrando barreiras oriundas de seus países e culturas de origem, tem impacto além de seus benefícios “óbvios” e tradicionais da bicicleta, auxiliando na sua integração no país e socialização com outros grupos de pessoas que estão fora de seus círculos sociais.

Todavia, é em países com mais recentes políticas de incentivo à mobilidade por bicicleta que questões acerca de minorias são investigadas com maior frequência. Historicamente os Estados Unidos são um país onde desigualdades raciais e sociais são bastante acentuadas – já citamos anteriormente Davis (2016) e sua discussão sobre as opressões vividas pelas mulheres negras no país.

Embora vivenciadas de maneira diferente, outros grupos sociais e, especialmente, mulheres, não estão isentos de sofrer tipos de discriminação semelhante: pessoas de origem ou ascendência latina e asiática, por exemplo, vivem contextos de opressão bastante específicos, o que abre um vasto campo de possibilidade de estudos que interseccionam questões de gênero e outras características identitárias como (baixo) uso da bicicleta por esses sujeitos (EMOND et al., 2009; SINGLETON e GODDARD, 2016). Ainda, considerando o papel que o ambiente construído e desenvolvimento urbano têm sobre as dinâmicas populacionais no território, a literatura também relaciona processos de gentrificação, raça, gênero, classe e o não uso da bicicleta por mulheres em cidades como Portland (LUBITOW e MILLER, 2013). Em todos os estudos citados, aspectos identitários e de construção da subjetividade dos indivíduos têm um papel determinante nos porquês para usar ou não usar a bicicleta, bem como a maneira que esses sujeitos o fazem e as barreiras enfrentadas para tal.

É na infância que acontecem, possivelmente, alguns dos processos de aculturação determinantes para o uso da bicicleta. Trazendo a discussão para o Hemisfério Sul, ainda que em um contexto muito diferente do latino-americano, embora também situado no Sul Global, Muralidharan e Prakash (2017) analisam o impacto de um programa implementado no estado indiano de Bihar visando diminuir a diferença de gênero nas matrículas no Ensino Médio e a evasão escolar entre garotas. O programa consiste em fornecer uma bicicleta a cada menina que não abandona os estudos após a conclusão do Ensino Fundamental e segue matriculada, frequentando a escola durante o próximo ciclo de ensino. A bicicleta funcionou de maneira tão eficiente em melhorar o acesso das meninas em idade escolar aos estabelecimentos de ensino que a diferença de gênero nas matrículas foi reduzida em 40% e o desempenho escolar das meninas também aumentou.

Além disso, o estudo verificou que a efetividade do programa em aumentar a matrícula de meninas no Ensino Médio é tanta que é tão ou mais comparável a outros programas com o mesmo objetivo no Sul Asiático, mas que para tal se baseiam essencialmente em políticas de transferência de renda. Trabalho semelhante ao programa estatal indiano é aquele realizado pela ONG World Bike Relief, que atua no Continente Africano doando bicicletas para mulheres em comunidades rurais, tornando um pouco mais leves e fáceis as atividades cotidianas que antes eram um pesado fardo de ir à escola, até buscar água em fontes distantes e que antes envolviam horas de caminhada sob o sol quente. Com isso, o raio de deslocamentos possíveis para essas mulheres aumentou enormemente.

O contexto latino-americano traz expressões das desigualdades de gênero bastante locais. As grandes cidades da região, cujo rápido crescimento nas últimas décadas as tornou quase indomáveis, começaram a experimentar apenas na última década políticas mais consistentes voltadas à promoção da mobilidade por bicicleta, apenas depois que se provou a nsustentabilidade, em vários aspectos, no sistema de mobilidade urbana das cidades. Entre as grandes capitais latino-americanas, Buenos Aires, Cidade do México, Bogotá e Santiago tiveram seu momento de concepção e suas políticas públicas para bicicleta executadas a partir da década de 2000, não apenas através da implantação de ciclovias e ciclofaixas, mas também através de redes de bicicletários públicos e sistemas de bicicleta compartilhada que compuseram o chamado sistema cicloviário. No Brasil, o caso de São Paulo a partir de 2014 é referência para todo o país, mas cidades como Curitiba, Santos e Fortaleza também são casos frequentemente lembrados.

Apesar da América Latina ser uma região historicamente desigual, com grandes bolsões de pobreza e histórico do uso cotidiano da bicicleta tradicionalmente pela classe trabalhadora, em muitas das grandes cidades do continente e, em especial, São Paulo, essa prática sempre foi mais masculina. Tal fenômeno levanta questões para este e futuros estudos sobre o tema na América Latina: Quais os porquês para tal divisão? Haveriam diferenças regionais que estabelecem barreiras para a adoção da bicicleta pelas mulheres latino-americanas e, notadamente, pelas mulheres paulistanas? Como se entremeiam, localmente, questões de gênero, identidade, herança sociocultural, formação e desenvolvimento da cidade a fim de fazer com que sejam tão baixos os índices de uso da bicicleta por mulheres em São Paulo?

Notas:

1 No Brasil, essa intersecção entre gênero e andar a pé foi discutida especialmente por Siqueira (2015), a partir de investigação da percepção das mulheres ao caminhar no centro do Recife – em especial, seu sentimento de medo, componente importantíssimo na construção dessa “equação”.

2 Trazer essa informação é extremamente importante já que, com alguma frequência, o movimento cicloativista estabelece um vínculo entre o movimento sufragista e a liberdade que a bicicleta proporcionou para as mulheres. Essa correlação é inegável, mas acredita-se ser também objetivo fundamental desse trabalho a decolonização e interseccionalidade do debate, jogando luz sobre questões de raça e classe que estiveram muito presentes durante todo processo de luta pelo sufrágio feminino nos Estados Unidos. A bicicleta serviu sim, na virada do século XIX para o XX, como um instrumento de liberdade para mulheres – mas para as mulheres brancas e, especialmente, burguesas. Davis (2016) discute em “Mulheres, Raça e Classe”, o racismo das lideranças do movimento sufragista e o (não)papel desenvolvido pela devastadora maioria delas na luta antirracista e pelos direitos civis estadunidense. Assim, não se pode deixar de lembrar o papel da bicicleta para as sufragistas e as suas falas sobre isso, porém sem continuar a romantizar essa referência.

3 Sobre a dimensão da prática esportiva em relação ao gênero, Lessa (2005) aponta “Mas por que tanta falta de investimentos nas práticas desportivas femininas? Podemos dizer que isso faz parte de uma tradição de controle sobre o corpo e o comportamento das mulheres, de um imaginário coletivo no qual a passividade, o sacrifício, a submissão e a maternidade seriam dons privilegiados das mulheres, dons esses que nada combinam com os atributos exigidos para prática de esportes.” (LESSA, 2005, p.165)

4 Embora, ao pensar sobre as características das viagens “femininas”, a maior realização de viagens curtas e em cadeia seria um motivo ainda mais forte para a adoção da bicicleta como modo de transporte por elas, já que tem potencial de simplificar, tornar mais rápida e baratear a mobilidade cotidiana especialmente nesse contexto.

BIBLIOGRAFIA CITADA

ALDRED, Rachel et. al. Cycling provision separated from motor traffic: a systematic review exploring whether stated preferences vary by gender and age. In: Transport Reviews, 37:1, 29-55, 2016. Disponível em: <http:./dx.doi.org/10.1080/01441647.2016.1200156>. Acesso em: 25 fev. 2018.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

EMOND, Catherine R.; TANG, Wei; HANDY, Susan L. Explaining Gender Difference in Bicycling Behavior. In: Transportation Research Record: Journal of the transportation Research Board, n. 2125, 16-25, 2009.

HANSON, Susan. Gender and mobility: new approaches for informing sustainability. In: Gender, Place & Culture: A Journal of Feminist Geography, 17:1, 5-23, 2010.

ILLICH, I. Energia e equidade. In: LUDD, N. (Org.). Apocalipse motorizado: a tirania do automóvel em um planeta poluído. São Paulo: Conrad, 2005. p. 33-72

JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

LACERDA, João. As cidades precisam de mais mulheres em bicicleta. Transporte Ativo, 4 nov. 2014. Disponível em: <http:./transporteativo.org.br/wp/2014/11/04/as-cidades-precisam-de-mais-mulheres-embicicleta.>. Acesso em: 23 fev. 2018.

Law, R. (1999). Beyond “women and transport”: towards new geographies of gender and daily mobility. Progress in Human Geography, 23(4), 567–588. doi:10.1191/030913299666161864

LEMOS, Letícia Lindenberg; HARKOT, Marina Kohler; SANTORO, Paula Freire; RAMOS, Isis Bernardo. Mulheres, por que não pedalam? Por que há menos mulheres do que homens usando a bicicleta em São Paulo, Brasil? In: Revista Transporte y Territorio, Buenos Aires, n. 16, p. 68-92,2017.

LESSA, Patrícia. Mulheres, corpo e esportes em uma perspectiva feminista. In: Motrivivência Ano XVII, n. 24, p. 157-172, jun. 2005.

LUBITOW, Amy; MILLER, Thaddeus R. Contesting Sustainability: Bikes, Race, and Politics in Port-landia. In: Environmental Justice, New Rochelle, v.6, n.4, p. 121-126, 2013.

Muralidharan, Karthik, and Nishith Prakash.Cycling to School: Increasing Secondary School Enrollment for Girls in India. American Economic Journal: Applied Economics, 9 (3): 321-50.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Editora Contexto, 2007.

SANTUCCI, Natália de Noronha; FIGUEIREDO, Joana Bosak de. O feminino, o masculino e a bicicleta: paradigmas de gênero construídos no vestuário ocidental. In: Competência, Porto Alegre, RS, v.8, n.1, p. 17-33, jan./jul. 2015

SINGLETON, Patrick A.; GODDARD, Tara. Cycling by choice or necessity? Exploring the gender gap in bicycling in Oregon. In: Transportation Research Record: Journal of the Transportation Research Board, p. 110-118. Transportation Research Board of the National Academies, 2016

SIQUEIRA, Lucia de Andrade. Por onde andam as mulheres: percursos e medos que limitam a experiência de mulheres no centro do Recife. Dissertação de mestrado, UFPE, Recife, 2015.

VAN DER KLOOF, Angela. Lessons learned through training immigrant women in the Netherlands to cycle. In: COX, P. (ed). Cycling Cultures. 1ª ed. Chester: University of Chester Press, p. 8-105. 2015.

VASCONCELLOS, Eduardo A. Transporte urbano, espaço e eqüidade: análise das políticas públicas. São Paulo: Annablume, 2001.

WILLARD, Frances E. A Wheel within a Wheel. New York: F.H. Revell, 1997

YOUNG, Iris Marion. Throwing Like a Girl: A Phenomenology of Feminine Body, Comportment, Motility, and Spatiality. In: On female body experience : “Throwing like a girl” and other essays. Oxford: Oxford University Press, 2005.

Mais recentes

plugins premium WordPress

Coletivo independente constituído em 2011 com a missão de fortalecer grupos ativistas por meio de processos de aprendizagem em estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas, campanhas, comunicação, mobilização e segurança e proteção integral, voltadas para a defesa da democracia e dos direitos humanos.

Assine Nossa Newsletter

Material de aprendizagem, reflexões, iniciativas, resistências. Um conteúdo exclusivo e analítico sobre o cenário, os desafios e as ferramentas para seguir na luta.

E mais: Vem de Zap! Recebe em primeira mão ferramentas, editais, notícias e materiais ativistas! 

assine nossa NEWSLETTER

Material de aprendizagem, reflexões, iniciativas, resistências. Um conteúdo exclusivo e analítico sobre o cenário, os desafios e as ferramentas para seguir na luta.

Pular para o conteúdo