Conceição Evaristo, importante escritora brasileira, disse que “não escrevemos para adormecer os da casa-grande, ao contrário “escrevemos para acordá-la de seus sonhos injustos”. Quando pensamos as escrevivências, conceito cunhado por Conceição, não se trata apenas de refletirmos os produtos finais, as escritas, mas os processos que levam até as vivências. São nelas que forjamos (des)formas, (des)caminhos, geramos aberturas e abrimos janelas e portas para aquelas e aqueles que ocupam os quartos de despejos do mundo.
O Exame Nacional de Educação (ENEM) 2022 trouxe como proposta para produção textual o tema “Desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”. Na prova também foi possível ver janelas abertas em questões de diferentes áreas (Humanas e Linguagens), com a presença de Carolina Maria de Jesus em duas delas. Essa racialização de algumas propostas da maior prova voltada a estudantes no país significa uma abertura gigante e, ainda que siga na maior contradição que é a existência de um processo seletivo desigual, acrescenta muito às perspectivas que incluem uma educação antirracista.
Desde as Leis 10639/02 e 11645/08, que tornaram obrigatório o ensino de cultura e história africana, afro-brasileira e indígenas na educação básica, muitas educadoras e educadores têm se colocado a pensar vias para colocá-las em prática. Não basta somente termos legislações que amparam, é preciso construir os caminhos que possibilitam materializar isto na formação de professoras nas licenciaturas em universidades, que se tornem prioridades nas secretarias de educação e que se façam presentes no cotidiano do chão escolar.
Nilma Lino Gomes (2017) afirma em “O Movimento Negro Educador” que é preciso romper com a estrutura secular da escola, da universidade e da ciência que temos e isso se dá questionando o conhecimento que a escola se vê como responsável por transmitir, descolonizando-o a partir de saberes produzidos que não são costumeiramente considerados. Imagine só uma obra escrita como diário pessoal por uma catadora de papel que não concluiu o ensino fundamental, negra, moradora de favela integrando o ensino escolar? Imagine essa mesma obra sendo considerada no maior exame nacional de educação do país? Isto questiona as estruturas colonizadas que interditam corpos em prol de um pretenso conteúdo programático distanciado da realidade dos próprios estudantes das escolas públicas do país e abre portas e janelas de possibilidades.
Muito se fala sobre educação antirracista quando se pensa, por exemplo, o conteúdo de discussões centralizadas nas áreas de Humanas e Linguagem. Aliás, as fronteiras delimitadas por disciplinas e áreas têm sido tensionadas por novas perspectivas de ensino que se amparam na transdisciplinaridade. Não se trata de superar as competências básicas para cada ciência do conhecimento, mas de construir um enfoque na capacidade cognitiva de interpretação, associação e relação dos sujeitos sobre o que tá sendo objeto de análise e reflexão crítica.
Ora, o que é raça se não uma invenção da modernidade a partir da colonização como forma de instituir um poder que atravessa todas as relações sociais, todos os corpos e territórios? E, assim sendo, não é só o conteúdo específico das aulas que precisam ser descolonizados, mas a própria configuração de como se ensina, como se aprende.
A forma de construção cognitiva dos sujeitos que adentram o espaço escolar também é moldada pelos mecanismos da colonialidade, adaptada assim para repetir instituições e ideologias compatíveis com o poder que a divisão racial estrutura. Significa dizer que a transdisciplinaridade e o ensino antirracista são suficientes para se superar essa estrutura de poder? Não, mas que é um passo decisivo na demanda da agenda antirracista, visto que, segundo Luiz Simas (2021) “muito do que se pinta como educação é, na verdade, malabarismo discursivo para mistificar o que é mobilizado na agenda curricular do Estado colonial” (p.13), e, portanto, “a primeira tarefa da educação, enquanto radical de vida e diversidade, é a descolonização” (idem).
Para autopsiar o racismo é preciso que tenhamos consciência de que, se ele atravessa toda a vida como mecanismo de poder, não é a divisão disciplinar escolar rígida que supera isso. Pelo contrário, ela acaba por colocar raça como assunto de humanas e não de exatas ou ciências da natureza e afetar até mesmo as legislações que conquistamos e que devem ser voltadas a toda a educação, como a Lei 10639 e a Lei 11645. Não é função apenas do professor ou professora de História a organização do Novembro Negro na escola.
Para se construir, assim, uma Educação Antirracista é preciso ampará-la nas pedagogias críticas, que, como diz Bell Hooks (2017), “abraçam as experiências, as confissões e os testemunhos como modos de conhecimento válidos, como dimensões importantes e vitais de qualquer processo de aprendizagem” (p.120) e isto está muito além do conteúdo programado para cada disciplina, pois transpassa fronteiras, constrói pontes e amplia horizontes possíveis, ainda que nossos escritos magoem muita gente, ainda que muitos fechem portas e janelas quando as Carolinas passam, precisamos fazer barulhos que despertem a casa-grande de seus sonhos injustos.