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Como as escolas militarizadas contrariam a constituição — mas também o que é educação

O Núcleo de Educação Popular da Escola de Ativismo mostra como projeto que regulamenta as escolas cívico-militares é antítese de uma educação emancipadora

Estudantes protestam contra educação militarizada algo que não seria possível numa escola militarizada

Foto: Francisco Alves/Sintep-MT

O aumento da militarização da educação básica pública no Brasil certamente é o grande tema para quem se preocupa com a educação neste momento do país. Estados e municípios contaminados por ideologia de extrema-direita vêm se engajando neste processo que, se não começou especificamente no governo Bolsonaro, encontrou seu ápice neste governo. Inconstitucionalidade e desrespeito a uma educação crítica são tônicas deste processo. Só no estado do Paraná, que vem sendo tomado como referência na militarização das escolas públicas, já são 312 escolas cívico-militares, todas ligadas ao programa estadual, segundo a Secretaria de Educação do Paraná.

A militarização das escolas não encontra respaldo na legislação, não está na Constituição nem na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação. Do ponto de vista da legalidade, é difícil definir o que são essas escolas militarizadas. Mas antes de nos debruçarmos sobre a legislação, vale notar que, hoje, há três modelos de escola sob tutela militar: escolas militares, escolas militarizadas e escolas cívico-militares.

Escolas militares são aquelas fundadas por uma corporação militar e estão vinculadas ao organograma de uma corporação militar e não estão vinculadas a uma secretaria de educação, com objetivos políticos-pedagógicos mais específicos para a formação de futuros membros das corporações militares. 

Escolas militarizadas são escolas públicas mantidas financeiramente e vinculadas às secretarias municipais ou estaduais de educação, que atendem um público geral e que não tem como objetivo específico formar futuros membros das corporações militares.

As escolas cívico-militares são um programa para o fomento à transformação de escolas civis de educação básica em escolas militarizadas a partir de um decreto do governo federal de Bolsonaro.

Quando se fala de escola militarizada, não se trata de uma nova escola, e sim está se impondo uma série de normas vindas dos quarteis para o ambiente escolar pré-existente. Quando se fala da criação de uma escola militar, estamos falando de uma nova escola, com verba federal destinada à corporação militar e a educação é voltada para uma formação básica vinculada à novos quadros militares e estas, sim, são previstas em legislação específica..

O programa das escolas cívico-militares: na contramão de uma educação emancipadora.

A educação no Brasil, muitas vezes, é terreno fértil para pessoas sem formação pedagógica alguma. Os militares estão gerindo as escolas militarizadas e, via de regra, não têm formação pedagógica. Isso representa o desconhecimento e desconsideração por todo saber científico acumulado pela área da educação, ao longo de seus 300 anos.

Porém, há uma pedagogia nos currículos militares, ainda que eles desconheçam as bases pedagógicas. E há uma pedagogia na forma de organização e gestão das escolas militarizadas. É possível gerir um sistema de educação na mais completa ignorância da ciência da educação.

Quem acredita na educação militarizada diz que as crianças seriam mais educadas e obedientes. Como vai formar crianças obedientes, ela terá outros problemas. Uma criança obediente ao longo do tempo se torna um adulto obediente, e assim é incapaz de questionar uma ordem tirana, uma ordem que não esteja de acordo com valores humanos. Isso lembra os oficiais do nazismo que, perante os tribunais, alegavam repetidas vezes que só “estavam seguindo ordens”.

Isso foi chamado, por Hannah Arendt, de a banalidade do mal. A diferença entre emancipação e obediência é quando você pode pensar por si próprio, pode desobedecer quando considerar algo ilegítimo, pode fazer protesto, pode divergir. Só quem é emancipado consegue emancipar. O conceito de emancipação é muito importante na pedagogia porque é um conceito que vai produzir seres humanos pensantes, que conseguem ir além do que a autoridade coloca numa situação qualquer. Quem ensina, sem emancipar, embrutece.

Essa emancipação intelectual é uma situação onde um humano olha um outdoor na rua, olha um jornal, um artigo, ou ouve uma fala e consegue fazer a reflexão “quais valores essa informação representa? De onde ela veio? Quais as consequências e interesses dessa informação?” Não existe neutralidade na vida, ao fazer uma escolha, você já está escolhendo qual grupo representa: os interesses das elites, da classe trabalhadora ou seus próprios interesses.

A pessoa emancipada intelectualmente é a pessoa que tenta em seu autodidatismo abranger todas as áreas do conhecimento, pensa em uma formação integral. Já uma formação que tolhe, que não permite discutir certos assuntos por tabu, significa que o moralismo passa a tomar conta da formação, passa a ser uma formação restringida, acrítica, é uma formação da obediência, não tem espírito investigativo, curioso e criativo.

A educação militarizada é herdeira da educação tradicional católica, mas não só. Nas escolas militares há a figura do capelão, uma capela, e a doutrina militar está sempre ligada à religião cristã. A educação laica deixa a educação religiosa para o campo privado. O estado passou a ser laico então a escola passou a ser laica. Mas a militarização não está só nas escolas; a administração pública tá cheia de militares, por exemplo.

Lógica padronizadora

Os militares tomam partido de uma educação padronizadora, pela disciplinarização, pela docilização de corpos, negação do papel social da escola com ênfase numa educação bancária, nos moldes descritos por Paulo Freire, e uma pedagogia do medo. O Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), instituído pelo Decreto n° 10.004, de 5 de setembro de 2019, foi publicado sem nenhum diálogo da sociedade, através de um ministério da educação que exalta as escolas cívico-militares, e vai defender uma ideia de uniformização dos estudantes, sempre em detrimento de uma educação crítica.

Essa militarização das escolas, é importante ressaltar, ele ocorre por diferentes vias, por um edital que o governo abre, mas também através de prefeituras municipais que fazem convênio e pactuação com a Secretaria de Segurança Pública para propor a militarização das escolas. A militarização das escolas é um rompimento com a educação na perspectiva dos direitos humanos, da vinculação da interculturalidade, assim uma verdadeira barbárie contra a mente e os corpos de adolescentes e jovens.

As escolas cívico-militares são salvacionistas, ou seja, elas viriam para salvar a educação pública, mas contrariam a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) por não oferecerem uma educação plena para os sujeitos.

Quanto aos princípios do PECIM há três que merecem destaque. Um dos princípios é da gestão de excelência em projetos educacionais didático-pedagógicos e administrativos. Seria a melhoria nos processos de gestão. É a ideia que os diretores e gestores não sabem gerir os recursos nos processos de gestão nas escolas públicas. Quando abrimos os processos de gestão a pessoas que não tem uma formação específica na área da Pedagogia, isso fere o princípio da educação democrática, dos espaços de atuação da comunidade escolar, descaracteriza a participação, subordinando os trabalhadores da educação aos militares. Essa suposta otimização da gestão proposta no PECIM não trata em momento algum da precarização e falta de investimentos que são problemas evidentes e recorrentes da educação pública brasileira.

Um outro princípio do documento é o fortalecimento de valores humanos e cívicos. O PECIM faz uma receita de bolo a respeito do que deveria ser uma escola. O que chama atenção sobremaneira é o fortalecimento de valores cívicos, que toda escola cívico-militar deve ter um projeto de valores cívicos. Esse projeto proporciona uma estreita aproximação com as antigas disciplinas de Moral e Cívica, fruto da ditadura militar. A essência desse projeto reside na natureza reduzida e engessada de cidadania, acoplando a ideia que atitudes são incorporadas via treinamento e temas como hierarquia, civismo e apelo à ordem prevalecem sobre a ideia de democracia e direitos humanos. Se imediatiza uma forte relação com a construção de virtudes cívicas como uma das finalidades primordiais da educação, em detrimento de aspectos sócio históricos.

O terceiro aspecto seria um modelo de gestão que proporcione igualdade de oportunidades para os educandos. É cômico porque as escolas cívicas militares retiram de seu corpo estudantil os alunos com déficit de aprendizagem e deficiências físicas, interferindo no seu direito de continuidade escolar. É um modelo de escola capacitista que não trabalha com as diferenças, mas com a padronização de homens e mulheres. Essas escolas também inviabilizam o EJA (Educação de jovens e adultos). É uma escola desigual, desumanizadora, capacitista que busca a homogeneização dos processos de aprendizagem.

Quanto às diretrizes do PECIM vale destacar duas: a viabilização da contratação pelas Forças Armadas de militares inativos como prestadores de tarefa por tempo certo para atuarem nas áreas de gestão educacional didático-pedagógico-administrativa; e o emprego de oficiais e praças para atuarem na área de gestão educacional didático-pedagógico-administrativo. 

Essas duas diretrizes postas no programa das escolas civil-militares são inconstitucionais, pois contrariam o artigo 61 da LDB, que diz que profissionais da educação escolar básica são os professores habilitados em nível médio ou superior para a docência na educação infantil e nos ensinos fundamental e médio; trabalhadores em educação portadores de diploma de pedagogia, e trabalhadores em educação, portadores de diploma de curso técnico ou superior em área pedagógica ou afim.

A inconstitucionalidade da militarização na escola pública

A Constituição de 1988 é um documento típico dos anseios por uma sociedade liberal, no qual a liberdade e a igualdade jurídica são formuladas como bens de todos, mas que na prática alcançam só determinados segmentos da sociedade. Assim sendo, quando este documento trata de educação, ele parte de princípios liberais de educação. No artigo 206, temos princípios que pretendem dar as bases para a educação no país. O artigo versa sobre o acesso e as condições para permanência na escola, liberdade de aprender, ensinar e pesquisar, pluralismo de ideias, gratuidade do ensino em estabelecimentos oficiais, valorização dos profissionais da educação, gestão democrática, garantia de padrão de qualidade, piso salarial profissional nacional e garantia à educação e aprendizagem. Nesse artigo, não há brechas para a participação dos militares em processos educativos, em qualquer parte do processo.

O artigo 142 fala sobre o papel das Forças Armadas e nesse artigo tampouco há qualquer brecha para a participação dos militares na educação, em qualquer parte do sistema de ensino público. Temos também o artigo 144, que dá as diretrizes sobre segurança pública e nesse artigo também dá as diretrizes sobre o papel da Polícia Militar, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, da Polícia Ferroviária, das Polícias Civis e dos Corpos de Bombeiros. E não há qualquer brecha nesse artigo que permitisse a participação desses agentes nos processos educativos ou na gestão do mesmo. O texto constitucional deixa bem delimitado que o papel das Forças Armadas é relacionado à defesa nacional ou à segurança pública.

No entanto, temos escolas militares vinculadas ao exército e também vinculadas à Polícia Militar, que são escolas cujo organograma fazem parte tanto do Exército quanto dessas polícias militares.

No artigo 83 das Leis de Diretrizes e Bases (LDB) da educação, temos o reconhecimento do ensino militar regulado em lei específica, admitida a equivalência de estudos de acordo com as normas fixadas pelos sistemas de ensino. Há uma compreensão que esse artigo versa sobre a educação profissional e profissionalizante dos cursos que os militares promovem para obtenção de quadros para suas fileiras, e não estaria relacionado com a educação pública civil.

A lei máxima da educação nacional é a LDB. Em nenhum momento a LDB trata do modelo de escola militarizada. O único tratamento dado nessa direção é para a educação voltada à formação de quadros militares, ou seja, a escola militar.

A educação popular ativista refletindo sobre o ensino militarizado

Inicialmente, vale frisar: uma educação popular ativista é feita com as comunidades, a partir das demandas do território em específico. É uma dinâmica mais horizontal, e em tudo difere da educação militarizada que, vertical em todo o processo, prevê uma distinção de poder e deveres muito claros e autoritários na relação educador/educando.

Como colocado por Paulo Freire em seu Pedagogia da Autonomia (1996), ensinar exige respeito aos saberes dos educandos. E assim coloca o problema:

“Por que não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Por que não estabelecer uma ‘intimidade’ entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso?” (Pág. 30).

E responde: porque essa educação para autonomia nada interessa ao educador conservador, reacionário. A educação popular é o oposto da educação militarizada.

* Texto construído a partir das ótimas lives da Rede Nacional de Pesquisa sobre a Militarização da Educação no Brasil, e podem ser acessadas aqui https://www.youtube.com/@redenacionaldemilitarizaca8381. A Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação reúne docentes das diferentes redes e níveis da educação, pesquisadores(as) e ativistas que se dedicam a pesquisar os processos de militarização da educação no Brasil, as relações com a democracia e seus desdobramentos na construção de valores morais e sociais em crianças, adolescentes, jovens e adultos nos diferentes espaços da vida social e, em especial, nas instituições educativas.

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Núcleo de Educação Popular da Escola de Ativismo

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